segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Puro e impuro

Um dos pares de categorias mais antigo, por isso, mais estruturantes da vida social dos homens, será o de puro e impuro. Por motivos alheios aos meus interesses, mas movido por um certo acaso, deparei-me com uma pequena notícia de 2019 do Expresso. Uma jovem mulher nepalesa morrera sufocada numa cabana sem janelas, onde acendera uma fogueira para se aquecer. Estava isolada, pois, estando no período menstrual, era considerada impura, o mesmo aconteceria se tivesse acabado de dar à luz. Os tempos de impureza implicavam isolamento, o que muitas vezes acabava mal. Este par de categorias talvez esteja na origem de todas as atitudes discriminatórias que compõem a vida da espécie. Podemos pensar, na ignorância que temos dos factos, que num momento muito arcaico da cultura humana, arcaico pois a força dessas categorias parece ser universal, algum acontecimento traumático levou a consciência dos nossos antepassados a fixarem-se no problema da mácula e a construir um terrível jogo de distinções entre o puro e o impuro, o maculado e o imaculado. Estas distinções não tiveram apenas valor cognitivo, mas deram origem a múltiplos mandamentos que ordenam as acções dos seres humanos. Uma irracionalidade, dir-se-á, a que tempos mais esclarecidos acabarão por pôr fim. Disso, este narrador tem fundadas dúvidas. Esse jogo entre o puro e o impuro acontece mesmo – por vezes, com inusitada intensidade – em culturas modernas, marcadas por forte educação da razão. Mesmo um filósofo supinamente racional, Immanuel Kant, não resistiu à atracção que o par puro/impuro exerce sobre o espírito humano, ao escrever a sua mais célebre obra, a Crítica da Razão Pura. Também ele pretendeu isolar numa cabana destituída de janelas o uso da razão contaminado pela sensibilidade. Ora, se o expoente do pensamento iluminista caiu na armadilha do puro/impuro, o que haverá de suceder connosco, pobres mortais, cujo pensamento não se eleva às alturas onde habitava o senhor Kant, enquanto dava aqueles célebres passeios pela velha Konigsberg e as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem?

6 comentários:

  1. Talvez seja interessante pensar que Jesus, segundo João, fez uma Emenda à lei de Moisés, escrevinhando no chão e salvando uma mulher adúltera com as palavras sábias que foi dizendo a todos; e, por fim, a sós com a mulher.
    Isto parece-me uma razão pura.

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    1. No caso da mulher adúltera parece haver uma moderação do jogo puro/impuro, mas o jogo continua presente em toda a passagem, tanto no que diz aos acusadores, como no que, no fim, diz à mulher. Do ponto de vista kantiano, agir segundo uma razão pura significa agir apenas e só motivado pelo cumprimento do dever, sem que motivações empíricos e egoístas se intrometam na decisão que leva a agir. Ora, caso se aceite que Jesus Cristo é filho de Deus, então todas as suas acções são motivadas apenas e só pelo cumprimento do dever. Nenhum interesse egoísta se imiscuirá nelas. A diferença relativamente a Kant seria a seguinte. No caso kantiano, o dever é prescrito ao homem apenas pela razão. No caso de Cristo, o dever que o move é-lhe dado por Deus, isto é, por Ele mesmo, enquanto segunda pessoa da Trindade. Pode-se sempre pensar que Deus é pura razão e nada mais do que razão, o que aproximaria as posições. Isso pode ter implicações na interpretação dos mandamentos dados por Cristo: (1) amar a Deus sobre todas as coisas e (2) ao próximo como a ti mesmo. Este amor não seria um sentimento, uma afecção, mas um dever racional. Julgo que, no entanto, predomina, entre cristãos, uma interpretação muita afectiva do cristianismo, mas os dois mandamentos referidos impõem o amor como um dever, o que parece vincar uma dimensão racional. O amor não é o resultado de uma afecção sentimental, mas uma prescrição que os homens têm de cumprir, tenham ou não um sentimento de amor para com Deus, para com o próximo e para consigo mesmos. Depois, ainda há a questão sobre o que é esse amor, que me parece das coisas mais obscuras que o cristianismo traz.

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    2. *Aquilo que peço é, na verdade, bastante ridículo. Oh, Senhor, o que eu digo é que neste momento sou um queijo, faz de mim uma mística, imediatamente. *
      Flannery O’ Connor / Um diário de Preces 25/9; Pág. 48
      Relógio D’Água

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    3. O que põe um problema curioso. O que será mais digno de valor? Amar a Deus, sendo um queijo, ou amá-Lo, sendo uma mística?

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    4. Sendo uma mística que evolui do queijo, e ainda por cima com uma prece, talvez seja de mais valor fazer o trabalho de casa e continuar queijo, mas um bom queijo, um dos melhores. Aqui é a consciência de estar a falhar (de ser um queijo em vez de o máximo na escala do amor a Deus) que torna o crente num queijo. Porém, se o queijo for apenas crente, ignorante dos místicos, e sem grandes pedidos ou ambições, não haverá diferença, e o valor de um queijo ou de um místico é o mesmo.
      Descobri há pouco tempo que o meu Deus sempre foi o Deus de Espinosa. pelo que li em linhas gerais. Mas ainda não me aventurei a ler Espinosa. Temo transformar-me em parmesão.

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    5. Bem, o Deus de Espinosa era a Natureza. Deus seria imanente à Natureza, não transcendente, como nas várias religiões monoteístas. É, digamos assim, uma concepção herética de divindade.

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