Os dias correm lassos, tomados pela acédia, esse pecado
capital que abatia o ânimo dos ascetas e os desviava dos cuidados que a alma e
o corpo exigiam. Depois, foram-lhe dando outros nomes como preguiça ou
indolência, mas em nenhuma dessas variantes se compreende a angústia e o estado
de torpor que sentiam aqueles que sofriam de acédia. Era uma doença, apesar de considerada
pecado, que atingia os que se sujeitavam, por motivos do espírito, à vida solitária.
Se se continuar assim, muitos serão contaminados por esse estupor. O dia
acordou alegre, com um sol primaveril a animar a manhã, mas o céu vai-se
enchendo de nuvens e talvez a alegria seja curta. Consulto um site que vive do
estado dos meteoros e sou informado que a partir de sábado volta a chuva. Ficará,
diz a profecia, quase uma semana. Domingo de Páscoa fará sol. Ou não. Podia
aproveitar para arrumar livros, CD, DVD ou mesmo a mim. A desordem ainda não é
um caos e, quanto a mim, já é tarde para arrumações e encontrar uma ordem que
vença o caos. Se tivesse estudado Física, agora poderia construir umas belas
metáforas com a entropia e haveria de parecer pessoa sapiente. Um carro passa
numa das ruas laterais. É um acontecimento, como aqueles que se davam quando, num
passado tão remoto que nem eu me lembro, um automóvel surgia numa aldeia, para
lhe quebrar o silêncio e abrir as bocas de espanto, enquanto as mãos faziam o
sinal da cruz e os mais rápidos se persignavam, não fora aquilo uma emanação
dos poderes ínferos. Intuo que os assunto começam a faltar-me à força de tanta
contenção, uma bela desculpa para quem tem imaginação fraca. Hoje é
quinta-feira, dia 2 de Abril. O pequeno bosque da escola aqui ao lado lança
sobre o chão sombras breves e na praceta não se vê vivalma. Talvez de todos os
mundos possíveis, o da humanidade recolhida não seja dos piores, ocorre-me.
quinta-feira, 2 de abril de 2020
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Um dia sem tino
Abril nasceu com ar de desterrado, alguém a quem tenham
imposto a pena de um longo exílio, dez anos de ostracismo. Envolto em chuva fria,
começa a viagem desapegado das dores dos homens. Não sei se para compensar o
olímpico desdém do recém-nascido, oiço as Canções
do Pôr-do-Sol, de Frederick Delius. Hoje não há sol para se pôr e o
anacronismo da música deu-me um súbito contentamento. Talvez tudo se resuma a
um desarranjo cronológico, a uma crise gerada pela mudança da hora ou pela inconstância
do calendário. Passo a mão pelos cabelos, olho para a rua, respiro lentamente e
deixo que a voz do barítono ecoe, até que a contralto a interrompe. Também para
mim deveriam contar os óstracos para me banirem desta república. Não que seja cidadão
influente, mas porque há que limpar a cidade de indigentes e eu já não consigo
disfarçar a minha aptidão para a inópia. Usei este termo que ninguém usa apenas
para não usar indigência, que ficava mal naquele lugar e há que ter cuidado com
o que fica mal, nesta hora em que ninguém nos vê. Consolou-me hoje a palavra de
um filósofo ao dizer que as pessoas habituadas
a seguir as reformas linguísticas são mais fáceis de manipular. Sinto-me
assim protegido contra todas as manipulações, pois sou um fervoroso defensor da
contra-reforma linguística, ortográfica, gramatical e o mais que quiserem. Sou
um velho reaccionário linguístico e por mim poderiam restaurar a ortografia do
tempo da monarquia. Como se vê, o isolamento social não é o mais indicado para
cultivar a sensatez dos indivíduos, ainda por cima num dia sem tino como este. Hoje é quarta-feira, dia 1 de
Abril. Parece confirmar-se o adágio popular de que teremos águas mil. A
sabedoria comum fascina-me e tomo-a sempre por verdadeira, mesmo que o mês seja
de seca extrema. Há que preservar as tradições.
terça-feira, 31 de março de 2020
Março acaba
Imagino que esteja frio lá fora. O aquecimento central tem
trabalhado com zelo e um site de
meteorologia confirma que a temperatura está baixa para a época. O ano passado,
por esta altura, há muito que a caldeira não trabalhava. Também as estações e
os meses são volúveis, incapazes de seguirem um plano uniforme, planeado com
cuidado. Lastimo que a natureza tenha trocado a burocracia pelos impulsos
espontâneos, frutos do acaso e filhos da incerteza. Entrega-se a variações
apenas para se distrair e confundir os mortais, já de si tão confusos. Chega
até mim o zunir de um aspirador, alguém que num apartamento vizinho mata o
tempo com excessos de limpeza e, sabe-se lá, de arrumações. Também eu precisava
de arrumar a minha mente, mas não encontro armários disponíveis e as estantes
existentes não têm prateleiras. Deveria haver um Ikea para consciências em convulsão. Sou obrigado a amontoar
informações, sem que um princípio de ordem se estabeleça e num qualquer futuro
me permita, sem tropeções, usá-las. Encolho os ombros. Qual a importância de
falar em bugalhos mesmo que me perguntem por alhos? Deveria censurar esta
tendência para recorrer a ditos ao gosto popular, mas talvez seja tarde para arrepiar
caminho. Já pensei em começar a descrever as paisagens que se avistam das
diversas janelas do escritório, mas ainda não estou suficientemente
enlouquecido. Recosto-me na cadeira e deixo-me invadir pela música para piano
de Fauré. Devolve-me alguma sanidade. Depois, olho lá para fora e tudo parece
normal. Um pássaro voa de uma árvore para outra, um carro contorna uma rotunda
e as acácias, esgalgadas, vão-se cobrindo de um folhedo verde que as há-de
compor. Hoje é terça-feira, dia 31 de Março. O mês acaba envolto numa capa cinzenta
de tristeza, sem aura nem fortuna, contente por ir desaguar no dia das
mentiras.
segunda-feira, 30 de março de 2020
O verdadeiro nome
Recebo dois vídeos no telemóvel. O meu neto, do alto dos dezasseis
meses, exibe-se para um público restrito ampliado pela câmara de telemóvel. Faz
grandes discursos, mas fala numa língua que deixei de perceber há muitas
décadas. Quem sabe se os discurso que fiz nos meus dezasseis meses não foram os
mais sensatos e profundos de toda a minha vida. Talvez nesse tempo designasse
as coisas pelo verdadeiro nome delas e que, com a aprendizagem da língua, começasse
a falhar irremediavelmente a nomeação do mundo. Hoje levantei-me cedo. O dia
nascia enfastiado e assim foi crescendo. Agora que atingiu a maioridade não
apresenta melhoras. Progride com tédio, faz umas caretas de nojo, suspira
maçado. Tento entabular conversa com ele, mas ignora-me e prossegue o seu
caminho tomado pela náusea e má educação. Um existencialista da rive gauche. Oiço um bater de asas e
volto-me. É um pombo. Nos campos ao longe avisto ciprestes. Distribuem-se ao
acaso. Dizem que são memórias que ficaram de umas escaramuças havidas por aqui aquando
das invasões francesas. Chegam a durar mil anos, descubro em pesquisa rápida. Consola-me
a existência destes seres que ultrapassam a medida humana, sem que ostentem
sobranceria nem sejam dados a chamar a
atenção para si. Crescem em silêncio e contenção. Espera-me mais uma
vídeo-reunião. Colecciono-as e não tarda serei especialista. Hoje é
segunda-feira, dia trinta de Março. O mundo encolhe, enquanto os meus olhos se
esforçam por alargar o horizonte. Começo a ficar cansado de conviver comigo.
domingo, 29 de março de 2020
Mudança da hora
Hoje a tarde chegou mais cedo. Março declina envolto numa
melancolia de nuvens, a luz difusa exausta pela longa cavalgada que a trouxe do
Sol à Terra. O pretérito perfeito do verbo trazer, agora usado, fez-me parar.
Que estranho verbo, cheio de irregularidades na conjugação. Vá uma pessoa
investigar-lhe a vida e ainda descobre coisas que não devia. Concubinatos
secretos, casamentos paralelos, dívidas de casino, mancomunações quadrilheiras,
sabe-se lá mais o quê. Há verbos assim. Procura-se-lhe a regularidade e
só se encontram anomalias, como se tivesse sido fruto de uma linha de montagem
deficiente ou a criação d'un génie malin,
aquele diabrete que assediava o pobre Descartes nos seus ócios meditativos. Não
paro de olhar para o relógio para me certificar das horas. Também eu preciso de
certezas e de estar certificado, de vencer com método a dúvida a hiperbólica.
Fora eu um relojoeiro e tudo seria mais fácil, afinaria o relógio para um
futuro mais tranquilo, caso esse existisse. Não me parece que seja de utilidade
pública esta minha deriva da gramática para o Descartes e deste para a
relojoaria. Hoje fui visitar três vezes o outro lado da casa. Pareceu-me que
estava no mesmo sítio que ontem e que nele nada mudara, mas não estou certo. Aproveitei
os passeios e espreitei as torres do castelo, contei os carros que passam na Sá
Carneiro, assegurei-me que os baloiços estão protegidos com fitas plásticas
brancas e vermelhas, para impedir que crianças com pais desavisados andem por
ali a baloiçar-se. Contei as orquídeas floridas e descobri que sessenta por
cento já o fez. Respirei fundo e atendi um telefonema. Confirmei que a hora
tinha mudado e que talvez o relógio de parede estivesse agora certo, se não era
só esperar para a próxima mudança. Almoçarei mais tarde e talvez ainda tenha
tempo para contar o sonho que imaginei que tinha tido esta noite. Havia um anjo
de pedra, disso estou certo, mas quem é que quer saber de pedras e de anjos? O
melhor é inventar o sonho só para mim. Hoje é domingo, dia 29 de Abril. As
igrejas estão fechadas e nelas não haverá missa. Tenho de ir. Chamam-me para o
almoço.
sábado, 28 de março de 2020
Dos nomes e outras coisas incertas
Não vejo razão para dar ao dia de hoje o nome de sábado ou outro. Recordo-me de imediato que não haverá para qualquer coisa que seja razão para lhe dar o nome que tem ou tão pouco denominá-la de forma diferente. Afasto estes pensamentos penumbrosos para não me afogar num oceano de contradições, agora que faço parte de um imenso arquipélago, cujas ilhas deixaram de ter modo de se ligarem. Fui a uma das varandas, onde havia sol. O ar era frio e um vento irritante batia-me de frente, trazia-me notícias que não consegui ler. Sim, há um livro da natureza cheio de mensagens, mas estão de tal modo cifradas que não sei descodificá-las. Galileu, a quem por vezes se atribui o cunhar da designação, julgava que esse livro estava escrito em caracteres matemáticos, mas outros antes dele, na obscura Idade Média, criaram livros da natureza, onde esta se descrevia em latim. Não sei porque me ocorrem estas coisas, embora esteja habituado a que me ocorram muitas coisas que não interessam para nada nem a ninguém. Não sei que impulso me moveu, pus-me a escutar Canto Gregoriano e logo me imaginei como um monge que leva a vida entre a cela e o lugar de culto, onde canta um Ofício de Trevas, nestes dias em que todos eles são Sextas-feiras de Paixão. Escrito isto, rio-me. O espírito hiperbólico voltou-me, como se fosse a anunciação da normalidade. Não o é. Olho para a rua e fico fascinado com o verde cinzento da folhagem das oliveiras que, na escola ao lado, foram deixadas vivas como testemunho do passado. O sol ilumina-as, desenha nelas paisagens fantasmagóricas a que o vento incita à mobilidade, numa cadência incerta, hesitante. Hoje é sábado, dia 28 de Março. Oiço vozes na praceta aqui em baixo. Depois calam-se, e apenas o canto dos pássaros vem da rua. Os monges continuam os seus cânticos pascais e a tarde progride indiferente por dentro das paredes translúcidas do dia.
sexta-feira, 27 de março de 2020
Desenhar espirais
Desenho espirais no tampo da secretária. Fixo um dedo num
ponto do vidro, julgo que os geómetras lhe chamam pólo, e depois traçando
curvas cada vez mais amplas vejo-o afastar-se desse centro onde tudo começou.
Parece uma alegoria aos dias de hoje, mas não era essa a intenção. Quando paro
o exercício circular, os meus olhos não detectam vestígio da actividade, e essa
é outra alegoria. Faça o que fizer, daqui a um tempo ninguém encontrará sinal
ou pista que conduza ao que fiz, ao que fui, ao que desejei. Não lamento que
seja assim e será mesmo uma boa razão para ficar grato com a ordem do mundo e a
natureza das coisas. A tarde desliza nimbada por uma luz esquiva, sorrateira,
que dardeja a terra a medo, como se também ela temesse a contaminação.
Cresceram muito as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado, erguem-se
para os céus, mas não rogam por nós, ou será que o fazem e nós não sabemos
escutar? Abri a porta da varanda e entrou uma mosca. Parece perdida, voando
para aqui e para ali, como se a sua bússola se tivesse desregulado. Hoje estou
com uma forte inclinação para o discurso alegórico. Melhor era o tempo em que
as hipérboles me ocupavam o espírito e desse modo me entregava a discursos
fantasiosos, onde o exagero expandia os textos para ocultar o grande vazio que
há em mim. Estou mais contido. Hoje participei em duas reuniões virtuais e
ainda me espera uma terceira. Sou para mim mesmo uma imagem virtual, uma
fotografia de passe inquieta no canto de um computador. Mal frequento a
televisão, como é hábito, e sou frugal nas notícias, há que evitar a realidade.
Hoje é sexta-feira, dia 27 de Março. Vou a uma dessas aplicações que
virtualizam o mundo e imploro, como se distribuísse imperativos, um vídeo do
meu neto. Vou desenhar mais espirais.
quinta-feira, 26 de março de 2020
Esquece-te a ti mesmo
Bati devagar e a porta da tarde abriu-se. Ao fundo, um
grande espelho devolveu-me a imagem. Pensei em Narciso e logo a minha mente,
presa na sua inalterável volubilidade, o associou ao que um certo Sócrates
inquieto pensou das palavras à entrada do Oráculo de Delfos. A cada um o seu
narcisismo. Em vez de me conhecer a mim mesmo prefiro olhar o horizonte,
distanciar-me e, se tal fora possível, esquecer-me. Esquece-te a ti mesmo, eis
a minha divisa para o dia de hoje, amanhã logo se verá. Uma divisa por dia, dá
saúde e afasta a melancolia. Isto sim, seria um belo slogan. Logo mudo de ideias e julgo que deveria dedicar-me à
construção de longas écfrases, daquelas cuja minúcia faz bocejar o leitor, mas
o tempo das descrições passou. Uma imagem vale por mil palavras, segundo a
sabedoria que nunca compreendeu o que era uma palavra e que nela não há mil,
mas milhões de imagens. A rosa que eu vejo quando digo rosa não é rosa que tu
vês ao escutar-me, mas isto não interessa a ninguém e há que evitar o
didactismo. Tamborilo com os dedos sobre a secretária, dedilho com paciência os
minutos e construo com eles um rosário de contas minúsculas e sem fim. Gostava
de ser especialista numa especialidade qualquer, mas faltou-me o talento para a
especialização e agora, que anda meio mundo a usar da sua autoridade de
especialista sobre coisas que não conhece, estou confinado à mudez. Reparo na
primeira frase do texto e coro. Não devia escrever coisas daquelas. Quantas
pessoas não bateram devagar e a porta da tarde se lhes abriu? Vou fechá-la. Os
pássaros meus vizinhos trocam acusações. Apuro o ouvido, quero ver se descubro
a causa da dissensão. Hoje é quinta-feira, dia 26 de Março. No campo de jogos
da escola aqui ao lado alguém corre como se fugisse de um inimigo astuto e
invisível.
quarta-feira, 25 de março de 2020
Uma mutação
Imagino-me a escrever um diário de bordo, mas o barco não
sai do lugar. Os ventos não sopram e a armada está retida. Como não sou caçador
não corro o risco de ter irritado a deusa ao matar-lhe um cervo na floresta
sagrada. Também não sou Agamémnon, nem a minha missão é ir pôr cerco a Tróia.
Tudo isso deixa-me um pouco mais tranquilo. Desde manhã que oiço Sonatas e Partitas
de Bach, mas é um ouvir distraído, uma música ao fundo, que se derrama sobre
mim enquanto trabalho, envolve-me e talvez fale com alguma coisa escondida na
cave da minha consciência. Olho à volta e contemplo todas as coisas inúteis que
fui acumulando ao longo da vida. Em tudo isso ainda arde a febre do desejo, a
pouca conta que tenho das possibilidades finitas que me são concedidas, a
grande fábrica da fantasia que recebi de presente já não sei de quem. A
Primavera cresce no ramalhar do arvoredo, embalada pelo canto dos pássaros e o
zunir dos insectos. A luz alivia o tom carregado do verde dos cedros e não oiço
vozes humanas. Daqui a pouco terei uma reunião. Cada um dos reunidos estará em
sua casa e todos se hão-de espreitar com espanto através do monitor, como se
fossem fantasmas, gente desencarnada, tomada por preocupações risíveis. Sem se
dar por isso sofremos uma transformação ontológica. Transitámos de seres de carne
viva para imagens virtuais. Lembro-me então que a grande promessa da Páscoa dos
cristãos é a ressurreição da carne. Hoje é quarta-feira, dia 25 de Março. Os
dias deslizam vagarosos, como as nuvens que ocultam o sol. Oiço vozes infantis,
agora que Bach se calou. Tenho de ir espreitar o friso das orquídeas ou as
torres do castelo.
terça-feira, 24 de março de 2020
Espaço e tempo
Da praceta aqui ao pé de casa vem o som da campainha de uma
bicicleta. Levanto-me e vou espreitar. Uma adolescente pela idade das minhas
netas passeia-se. Estava combinado que elas estariam cá pela Páscoa e haveriam
de ir para ali andar de bicicleta, como acontece quase sempre. Agora estão
confinadas muito longe daqui, mas a lonjura tornou-se risível. O meu neto está
a dois minutos de carro e também está tão longe quanto elas. Assistimos a uma
lenta dissolução do espaço. Há pontos, mas não segmentos de rectas ou curvas que
os unam. Deveria evitar referências à geometria, aconselho-me. Não há
distâncias que possam ser percorridas num determinado tempo. A suspensão do
espaço e das trajectórias lança-nos para um mundo onde a única coisa que conta é
o deslizar contínuo da areia na ampulheta. Os gregos tinham relógios de água, clepsidras
que mediam o tempo pelo escoar da água. O termo teve um feliz destino na poesia
portuguesa. Dá nome à recolha de poemas de Camilo Pessanha. Muito mais tarde,
João Miguel Fernandes Jorge intitula O Roubador
de Água um dos seus livros de poesia. E será isso o que uma clepsidra é, um
roubador de água, ou de tempo, ou de vida. A suspensão do espaço talvez pudesse
alimentar um romance distópico, onde cada um estivesse afastado dos outros por
um abismo inultrapassável, enquanto uma gigantesca clepsidra deixava escoar,
com lentidão inusitada, a água. Rio-me da falta de imaginação. Oiço uma buzina
e o rumorejar dos carros ao longe. O som de um aspirador sai pela janela de um apartamento
contíguo e entra pela minha. Devia fechá-la. Hoje é terça-feira, dia 24 de
Março. Os pássaros cantam, enquanto eu descubro um erro de ortografia no texto
e apresso-me a emendá-lo. Sem espaço, mas com a ortografia correcta.
segunda-feira, 23 de março de 2020
Stabat Mater
Num tempo em que a mobilidade se tornou, também ela, uma
pandemia, com toda a gente a mover-se para todo o lado, não deixa de ser
curioso que ficar em casa se torne uma verdadeira epopeia. Os helenos não se
deslocam para Tróia, nem os Gamas demandam a Índia. Ficam em casa e esse é todo
o heroísmo que nos resta. Somos heróis domésticos e enfrentamos não pequenos
perigos sentados à secretária ou num sofá, enquanto o tempo passa, agora tão
vagaroso, tão dado a demoras, tão lânguido, tão pouco compassivo com os anseios
dos novos semideuses. Não tarda e não há Penélope que suporte o seu Ulisses,
que não deseje que ele se vá para a primeira Tróia que o chame. Fora eu dado ao
filosofar esotérico e que belos pensamentos haveria de ter sobre a languidez da
duração ou sobre a diferença entre Cronos,
o tempo medido pelo relógio, e Kairós, o tempo oportuno para que algo
aconteça. Não sou dado, porém, nem à filosofia nem ao esoterismo, cujas
competências o destino decidiu negar-me. Evito bater à porta de tais arcanos e
embrulho-me na capa da perplexidade. Sento-me à janela e contemplo o deslizar
das nuvens, a cor do arvoredo, o vazio da rua. Das colunas sai o Stabat Mater, de Pergolesi. Deixo-me
envolver na dor daquela mãe e olho o horizonte, na esperança de que exista
ainda um horizonte que espere que o olhem. Hoje é segunda-feira, dia 23 de
Março. A Quaresma progride no silêncio da cidade. Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius, e
isto é tudo o que me ocorre.
domingo, 22 de março de 2020
Sem eventos na agenda
No email, o calendário da Google informa-me que não tenho
eventos marcados para hoje. Olho-o e enternece-me o vazio social da minha existência.
Rio-me, pois todos os dias recebo a mesma mensagem. Nunca usei aquela
artimanha, ou outra, para dar ordem ao que me acontece. Há pessoas que cultivam
agendas, eu tenho apenas uma imaginária, onde registo na memória todas as
coisas que hei-de esquecer. Os ramos das acácias ainda estão muito despidos,
mas as suas pontas já estão tintas de um verde claro, que escurecerá com o
passar dos dias. Da minha janela não avisto ninguém. Há um pequeno restaurante
numa aldeia debruçada sobre o Tejo, não muito longe daqui. Uma vez por outra, vou
lá aos domingos. Gosto do ambiente provinciano e sem pretensões, da comida e de
ver as águas do Tejo a encaminharem-se para uma Lisboa distante. Depois desço a
um parque, sempre sem ninguém, mesmo na margem do rio e olho os remoinhos que a
água traiçoeira desenha para avisar os incautos. Ir lá não faz parte dos
eventos que me esperam hoje. Volto aos domingos de adolescência na exuberância
da vida na província. A ida à missa, o almoço de família e a tarde dedicada ao
futebol ou ao cinema. Aquela família já não pode almoçar junta, e não há
missas, nem futebol nem cinema. Foi tudo suspenso, para que a vida se abrigue
de si mesma e das armadilhas que a si estende. Desocupado, passarei a tarde a
trabalhar. Hoje é domingo, dia 22 de Março. É o octogésimo segundo dia do ano,
um dia primaveril. Há exactamente oitenta e sete anos Roosevelt acabou com a
Lei Seca e permitiu o consumo de bebidas alcoólicas. Há que dar importância às
coisas verdadeiramente importantes.
sábado, 21 de março de 2020
Anjos pelos telhados
Chegámos ao tempo da verdadeira contabilidade, aquela cujas
razões se dão a conhecer não no segredo dos escritórios mas nos escaparates das
notícias. Um exercício de balanços e balancetes, onde se anota os movimentos a
débito e a crédito. Lá vêm os mortos e os que escaparam, na falibilidade que há
em toda a fuga, os infectados e os que não o estão ou ainda não o estão. Novas
rotinas instalam-se, como se nos habituássemos ao cerco que os exércitos
inimigos decidiram pôr às portas da cidade. Passei parte da manhã a enviar
emails, mensagens que não encontram destinatários dispostos a recebê-las, mas a
isso estou habituado há muito. Quem quer saber daquilo que eu tenha para
comunicar? Se fosse eu o destinatário das minhas mensagens também me recusaria
a abri-las. De mim apenas pode vir spam
e o melhor é evitar espreitar o que contêm, será por certo publicidade
enganadora. Desde ontem que não largo os ciclos de canções de Schubert, na voz
de Fischer-Dieskau. Na minha secretária está a Nova Gramática do Latim. No entanto, é apenas a prova de uma longa
hesitação. Acompanharei ou não as lições do autor no facebook? Está um dia de início de Primavera. Depois penso na
frase e descubro que ela não quer dizer absolutamente nada, como a maior parte
das coisas que digo. Num livro do poeta Daniel Jonas, leio o seguinte verso: Aqui nesta Tebaida, ouço a paz. Fico em
silêncio, pois não sei se aquilo que oiço é a paz ou a guerra. Talvez tenha
começado a ficar um pouco surdo. Hoje é sábado, dia 21 de Março. A Primavera
trouxe alguns anjos que estão sentados nos telhados. Vou à varanda acenar-lhes.
sexta-feira, 20 de março de 2020
Viagem de Inverno
Olhei para a rua e, de súbito, apeteceu-me ouvir o ciclo de
canções Winterreise (Viagem de
Inverno), de Franz Schubert. Oiço a primeira interpretação que encontro, com a
esperança de uma surpresa, mas não era aquilo que desejava. Procuro uma edição
que junta Alfred Brendel e Friedrich Fischer-Dieskau e deixo-me deslizar na
tarde. Segundo o calendário estamos a abandonar o Inverno e na próxima estação
tomamos o comboio da Primavera, mas o dia chegou mascarado de invernia. Chove e
o horizonte cobre-se de uma melancolia tépida. Os campos de jogos da escola
aqui ao lado estão vazios, cobertos por finos lençóis de água. As árvores
vestem-se de verde, mas os seus matizes são tão distintos que só um hábito
enraizado me permite usar a mesma palavra para designar cores tão diferentes.
Uma vez, talvez num documentário, descobri que uma certa tribo de esquimós
teria mais de sessenta palavras para designar o branco. Também eu agora
necessitaria de um vocabulário enorme para designar os verdes que vejo ou para
classificar estes dias, em que a nomenclatura semanal começa a diluir-se. Sim,
hoje é sexta-feira, e depois? Que diferença faz? Ainda não fui espreitar as
torres do castelo, mas a orquídea amarela deu as primeiras flores. Há pouco recebi
um vídeo com o meu neto a desarranjar a madrugada aos pais. Do que temos mais
saudades aqui é de uma mera possibilidade, a de poder estar com os netos. Deixo
o espírito entregue à voz de Fischer-Dieskau e agradeço ao mundo da técnica que
nos deixa ouvir os que partiram sabe-se lá para onde. Talvez Deus sinta prazer
em ouvir Schubert. Prometo-me, apesar de mortal, que dedicarei as próximas
horas a ouvir os três ciclos de canções de Schubert. Hoje é sexta-feira, dia 20
de Março. O Inverno e a Primavera lutam
arduamente pela prevalência. O tempo porém é um deus impiedoso e fará o
calendário triunfar.
quinta-feira, 19 de março de 2020
Florestas de símbolos
Abri a janela e com o ar entra também o canto dos pássaros e
o bulício do mundo. Oiço a voz alteada de uma criança já em pré-adolescência,
mas não percebo o que diz. Respiro lentamente para sorver o ar renovado. Nestes
dias não faltam profetas do apocalipse, detectives que revelam as mais
tenebrosas conspirações, analistas que desenham futuros que nos esmagarão como
mosquitos. Podia ter evitado a comparação e optado por um enunciado metafórico,
mas não devo esgotar rapidamente o stock
retórico, a espera parece prolongada. Também não faltam idiotas, que aliás se
confundem com as várias classes enunciadas ou os que lhes mimam as teorias. Eu
não descobri nenhum segredo, não me foi dada visão de raio-X que equipa esses
extraordinários super-homens. Tenho, porém, a vantagem sobre eles de não ser
afectado pela Kryptonite, embora isso não me proteja de nada. Os vidros
dos carros estacionados no hospital reverberam, enviam mensagens luminosas mas
não há quem as saiba decifrar. Numa das leitura que fiz ontem, um filósofo francês
referia que tudo é símbolo e logo a minha mente, perdida nos arcanos da
volubilidade, chama por Baudelaire e põe-se a declamar La Nature est un temple où de vivants piliers / Laissent parfois sortir
de confuses paroles ; / L’homme y passe à travers des forêts de symboles /
Qui l’observent avec des regards familiers. Ponho fim ao soneto e volto a
mim, mas sinto a saudade de certos olhares familiares. Penso neles e sorrio. À
minha frente estão tarefas a realizar e olho para elas com inusitada
benevolência. Ligam-me ao mundo, mesmo que esse não seja o melhor dos mundos
possíveis. Hoje é quinta-feira, dia 19 de Março. É dia do pai e lembro-me do
meu, de como gostaria de falar com ele sobre tudo isto ou sobre nada.
quarta-feira, 18 de março de 2020
Quando on a que l’amour
Mantenho os hábitos instalados. Não sei, porém, quanto tempo
as rotinas resistirão ou se uma nova normalidade virá tomar conta dos dias para
lhes dar uma aparência de sentido. Oiço o ruído de um corta-relvas. Levanto-me
e confirmo aquilo que oiço, há alguém a aparar a relva da praceta. A partir de
agora talvez precisemos de uma nova forma de verificação da realidade. Não
basta que uma coisa soe para que ela exista. É preciso vê-la. E nada garante
que esta dupla verificação esteja correcta, embora seja um pouco mais difícil, apenas
um pouco, que se seja vítima ao mesmo tempo de ilusões sonoras e alucinações
visuais. Na minha secretária amontoam-se papéis. Ordeno-os e nisso há um prazer
específico, pois toda a classificação é um começo de vitória sobre o caos, e
vitórias é aquilo que as pessoas mais precisam. Desenho estratégias para manter
a sanidade e as actividades correntes a correr. Oiço vozes e vou à janela. Três
homens confraternizam, fumam, mantêm uma quase distância. Um casal que conheço
bem, ambos entrados na casa dos oitenta, passeia devagar, ela amparada por uma
bengala e pelo braço dele, ele direito como se dissesse podes confiar em mim.
Partilham o peso da solidão e a ameaça que parece tudo rodear sem alterar rotinas.
Ao vê-los lembro-me de uma canção de Brel que começa assim Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande
voyage / Qu’est notre grand amour. Já pouca gente sabe francês, lembro-me,
e sinto uma estranha saudade dos tempos em que descobri a música de Brel. Então
recorro ao Youtube e escuto a canção.
Contrariamente à minha natureza, pouco dada a manifestações sentimentais,
acompanho-a e canto em surdina Quando on
a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre
grand amour. Depois, paro e deixo que a canção se escoe e olho para mim
atónito. Hoje é quarta-feira, dia dezoito de Março. Escrevo o nome do mês com
maiúscula e esse pequeno prazer ortográfico contenta-me.
terça-feira, 17 de março de 2020
O verde das primeiras folhas
Oiço o canto dos pássaros meus vizinhos. De mais longe chega o ronco de um carro pertencente a alguém que imagina estar em Le Mans. Há coisas que nunca passam e mesmo a actual situação não assegura que exista um salto no QI das pessoas. Não estamos num tempo de vigília mas de vigilância, digo-me para me convencer. Vigiamo-nos a nós mesmos temerosos dos sinais. O pior é a dilação da espera, de uma espera que nem se sabe do quê e que se resume em aguardar que tudo isto passe e a velha vida volte. Agora, faço pequenas caminhadas dentro de casa. De um lado, vejo o hospital com as paredes maculadas pelos fungos, do outro avisto duas torres do velho castelo, batidas por um sol quaresmal. Evito explorar a simbólica que a paisagem guarda e olho para a praceta aqui em baixo. Não posso furtar-me à recordação dos quadros de Giorgio de Chirico. Na verdade, são poucas as coisas de que podemos resguardar-nos desde que chegámos a esta terra. Ocorre-me, então, que somos extraterrestres que lutam por se habituar ao ambiente de um planeta quase hostil e para o qual não foram feitos. São tempos propícios para a proliferação de metáforas e alegorias. Toda a literatura nasce de uma estranheza, de uma inquietante estranheza, e este é um tempo propício. A sirene dos bombeiros acabou de assinalar as doze horas. O dia dobra o cume e começa a diminuir, as orquídeas, porém, erguem-se em direcção aos meus olhos. Olho-as e lembro-me dos netos. Sorrio para enfrentar a ausência. As acácias começam a deixar escapar dos seus dedos imploradores o verde das primeiras folhas.
segunda-feira, 16 de março de 2020
Olhar as orquídeas
Não vale a pena contar os dias, pois eles serão mais do que suporta o nosso desejo. Fui à varanda, na avenida quase não havia ninguém e só muito a espaços passava um carro. Ao longe, o castelo reverberava, mas o vento estava frio. Voltei para dentro e olhei para o friso das orquídeas. Não cessam de florir e a mim só me resta a gratidão. Comecei a trabalhar pouco passava das oito da manhã. Ordeno papéis, envio mensagens, verifico o que tenho e o que deveria ter, para expedir novas mensagens. Não sei se os destinatários as querem receber ou mesmo se se dignam vê-las. Tudo se tornou aleatório como se o princípio de incerteza de Heisenberg transbordasse do mundo das partículas subatómicas e invadisse o quotidiano e os devaneios de conhecermos a realidade onde se embrulha a existência. E isso pode ser um dos grandes perigos, pois apesar de tudo ser incerto é necessário que à certeza de um comportamento adequado corresponda não a maximização da incerteza do que pode acontecer, mas o contrário. Deveria evitar entrar por caminhos para os quais não fui feito. Deixemos Heisenberg em paz. Há pouco falei com um amigo que se exilou há uns tempos no Alentejo. Ontem troquei emails com outro que está fechado em Lisboa e tem a mulher também fechada em casa em S. Paulo, ambos em duplo isolamento. Lá fora oiço o trabalhar de máquinas que não consigo avistar. O café da praceta está aberto, com a esplanada ensolarada à espera de clientes renitentes em chegar. O ruído mecânico parece um cântico de esperança e não tarda terei saudades de ouvir o ranger insuportável dos baloiços do parque infantil. Vou sentar-me lá dentro para que possa ir olhando as orquídeas.
domingo, 15 de março de 2020
Uma palavra vinda de longe
Hoje é domingo, pensei ao levantar-me. Havia sol nas ruas,
mas a aplicação do telemóvel tratou logo de me esclarecer que a temperatura não
chegaria aos vinte graus. Noutra altura, seria ocasião para ficar grato ao deus
do clima. Uma vaga apreensão nasceu em mim, mas logo a afastei, esperando que o
tempo se compadeça e dê uma ajuda. Agora, enquanto escrevo, olho para a rua, o
céu cobriu-se de um manto de cinza que os raios solares têm dificuldade em
atravessar. Novos hábitos começam a desenhar-se, constato. Outros porém são difíceis de combater, como a
tentação sem fim de levar as mãos à cara. É um exercício de vigilância difícil
e nós, há muito, perdemos o hábito de nos vigiarmos. A partir de certa altura a
autovigilância começou a ter má reputação, pois contraria um modo de estar
espontâneo e a espontaneidade foi entendida como prova de ser autêntico. A
vida, porém, contínua. No Facebook,
descubro que a missa dominical da TVI é transmitida da Igreja de S. Pedro,
oficiada pelo pároco local e pelo bispo da diocese para um auditório vazio. Num
site noticioso sou informado que um
homem foi assassinado à facada e que a Rainha Isabel II abandona o Palácio de Buckingham.
Percorro uma edição online de um tratado medieval atribuído, primeiramente, a
Hugo de S. Victor e, depois, a um anónimo cisterciense, companheiro de Bernardo
de Clairvaux. Numa pequena introdução dizem-me que está redigido sem ordem
nem método e, a partir de certa altura, cheio de repetições. Percorro-o rapidamente
e encontro isto: e aquilo que fatiga o
lutador coroa o vencedor. Repito para mim a mensagem e talvez ela baste
para fazer esquecer toda a desordem que, segundo o editor, macula o texto ou as
nossas vidas, acrescento. Alguém, ainda na Idade Média, deixou uma palavra para
todos os tempos difíceis. E aquilo que
fatiga o lutador coroa o vencedor.
sábado, 14 de março de 2020
Dias de excepção
Cheguei aqui já a noite tinha descido em turbilhão sobre mais
um dia em que a excepção se torna a norma. Nestas situações, à falta de
experiência, recorre-se ao que se tem à mão para lhes dar um sentido. Muitos
lembram A Peste, de Albert Camus.
Outros não deixam de recordar o Decameron, de
Giovanni Boccaccio. Ainda hoje havia quem referisse um conto de Edgar Allan
Poe. A mim ocorre-me A Montanha Mágica, de
Thomas Mann. Em todos eles vemos a excepção tornar-se a vida habitual. Apesar
de difícil, será uma aprendizagem rápida, embora a lógica destas coisas tenha
uma inclinação para nos escapar, mesmo aos que possuem uma armadura racional
mais poderosa. Há pouco parei uns instantes diante do friso das orquídeas.
Estão esplendorosas e indiferentes ao que inquieta os humanos, enchem o espaço
com a subtil emanação da beleza, como se ela fosse a mensageira da esperança.
Nem todas floriram ainda, reparei, depois voltei-lhes as costas e vim
sentar-me, a pensar no que tenho de fazer, no que tenho de cuidar. A verdade é
que nos disseram que o paraíso não era aqui, mas noutro lugar de onde fomos
expulsos, mas não acreditámos. Imaginámos, contra todas as evidências, que poderia
nascer neste mundo e pelas nossas mãos, o que suscitou um não pequeno número de
teologias, de incontáveis homilias e de legiões de mensageiros do admirável
mundo que estaria à nossa espera. Depois um qualquer incidente recorda-nos o
outro lado da história, aquele que nos diz que este é um lugar de exílio.
Encolho os ombros e digo entre dentes a cada um a sua metáfora. No telemóvel
surge uma mensagem. É uma fotografia do meu neto de chapéu na cabeça. Quer vir
para a província, pensei.
sexta-feira, 13 de março de 2020
Um pássaro canta
No correio havia duas cartas. Pego nelas, olho-as de soslaio
e não consigo reprimir um momento de suspeição. Há em nós comportamentos muito
arcaicos vindos daqueles tempos em que ainda não tínhamos estabelecido um
cordão sanitário eficaz em torno das comunidades humanas para as proteger dos
predadores e da própria natureza. Estabelecido este, esses comportamentos foram
recorrentemente avivados ora com a guerra ora com a epidemia. Voltam a
manifestar-se. Está uma tarde soturna e caminha-se para a Páscoa como se
estivéssemos efectivamente na Quaresma. Os lugares estão mais vazios, o bulício
das ruas baixou de intensidade e na face das pessoas há um esgar de
preocupação. São imensas as coisas por fazer, mas a vontade está avara. Nada
corrói mais o querer do que a suspeita e esta tornou-se, também ela, pandémica,
uma reacção psicológica à ameaça. Em ambientes destes surgem todas as teorias
marcadas pelo terror e a própria razoabilidade vai sendo escavada até que
derrui. Nos telhados em volta, não vejo nenhum dos anjos que lá costuma parar.
Talvez tenham partido em serviço, talvez tenham ido a um congresso angélico
discutir o que fazer connosco, talvez tenham sido chamados pelo Criador para escutar
ordens e receber recomendações. Na escola ao lado ainda há bolas a rolar,
rapazes a correr, gritos de golo. Um pássaro poisa no parapeito da janela e
canta.
quinta-feira, 12 de março de 2020
Dias difíceis
Não sem dificuldade juntei os bocados em que me divido para
chegar a esta hora que anuncia o crepúsculo. Os dias não têm sido fáceis e a
prova disso é que as minhas leituras se resumem a O Homem que era Quinta-Feira, de G. K. Chesterton. Não me atenua o cansaço mas faz-me
sorrir. Lera-o há muito e havia muitos pormenores que se tinham apagado. Na
mesma época li O Ente Querido, de
Evelyn Waugh, e A Relíquia, de Eça de
Queirós. Lembro-me de os ter juntado, mas não sei precisar a razão. Porventura,
um acaso. Tenho pena de já não conseguir situar na existência a época em que os
li. Talvez fosse um tempo em que precisasse de me rir um pouco, embora, ao
contrário do que por vezes parece, não tenho propensão depressiva. Gosto de
pintar o mundo com tintas escuras, mas o mundo faz muito por isso e teima com
frequência elevada em não me desmentir. Um pessimismo antropológico não faz mal
a ninguém e talvez ajude a que todos sejamos um pouco menos bárbaros. As
sombras arrastam-se pelo chão, restos de luz batalham com denodo contra a vinda
da noite, qualquer coisa cai num dos andares contíguos, oiço um bater metálico
e depois o silêncio desce em espirais sobre mim. No ar, há uma exaltação
contida, algum medo disfarçado por risos forçados. Não é fácil ser-se despojado
dos hábitos, que são uma segunda natureza no dizer do velho Aristóteles. Nada
melhor que citar uma autoridade para acabar.
quarta-feira, 11 de março de 2020
O deus do vazio
Anúncio do Verão. A temperatura chegará por aqui aos vinte e
nove graus. O inferno insinua-se ainda a estação fria olha para o deve e haver
e faz o balanço final, antes de entregar a contabilidade nas mãos da Primavera.
Os últimos dias deixaram-me a cabeça mais vazia do que o habitual. Uma
descoberta já não recente ensinou-me que quando lidamos com o vazio tornamo-nos
como ele. O nada contamina a realidade e fá-la explodir. Com os anos fui
descobrindo que a nulidade é uma divindade poderosa e tem ao seu serviço um
sacerdócio persistente, auxiliado por janízaros impiedosos. São pagos para
destruir tudo o que faça sentido e instituir a nova ordem onde nada existirá.
Continuo a falar por enigmas e isto não é sinal de sanidade mental. Daqui a
pouco irei para a rua e não sei se hei-de fingir-me no Inverno rigoroso ou se
cedo à tentação estival. A cidade estará ensolarada e no sítio onde me esperam
haverá sacerdotes do deus do vazio, perdidos em liturgias que só o demónio
poderia ter inventado. O hospital ergue-se sombrio, as paredes maculadas por
fungos, um bloco preso à terra para me roubar a vista dos campos. Desvio o
olhar e vejo ao longe a serrania e penso que nunca sabemos para o que estamos
votados.
terça-feira, 10 de março de 2020
O dardo refulgente
Sob o olhar atónito um espectro silencioso desenha a sua sombra de antracite na prosa gasta do mundo. Universidades e escolas fechadas, eventos cancelados, um país em quarentena. A fragilidade de tudo borbulha e ouve-se o ploc-ploc das bolhas ao rebentar. Tivera pendor para moralista e que magníficas máximas poderia agora expelir sobre a vaidade dos homens e as ilusões da vida. Não passo todavia de um mero narrador cujas palavras são o capricho de um autor com o qual nem sempre mantenho as melhores relações. Há que evitar moralizar sobre a desgraça, diz-me e eu obedeço-lhe. Sento-me à secretária e vejo o tempo, como um dardo refulgente, a deslizar à minha frente. Ao lado dele vai um casal de mãos dadas, perdido na verdura dos anos, o vigor dos corpos ainda disfarça aquilo que os espera na curva dos dias. O ranger do baloiço está cada vez mais insuportável, lembra o crocitar de uma ave agoirenta, enquanto uma criança vai e vem, vai e vem, impelida por uma mãe distraída, que por vezes leva as mãos à cabeça para compor os cabelos que o vento teima em desalinhar. Ao longe, no vazio dos campos, erguem-se ciprestes, um aqui outro ali, mais dois ou três à esquerda. Estão silenciosos e a sua sombra cresce oblíqua pelo chão. A reverberação da luz espalha um traço de melancolia na tarde e em tudo descubro a convocação de um romantismo chegado no vapor que deixou a estação do século XIX. Lá em baixo um adolescente grita ó Filipe anda cá já, um imperativo cambado, tinto pela incerteza de se fazer obedecer. Na avenida, os carros passam, param na passadeira para que peões cheguem ao outro lado, como se houvesse outro lado aonde chegar.
segunda-feira, 9 de março de 2020
Tempo de sacrifício
Daqui a pouco devo participar num exercício de penitência. Penso isto e rio-me. Afinal estamos na Quaresma e este é um tempo penitencial. Depois ocorre-me a possibilidade de já não ser assim. Não vejo ninguém com ar penitente, nem que se exima de carnalidades. Os jejuns passaram de moda e a abstinência contraria as regras do mercado. A ideia é nunca nos abstermos seja do que for. Alguém terá de fazer sacrifícios pelo bem da comunidade e hoje cabe-me a mim, intimo-me com a habitual tendência para o exagero. Lembro-me de imediato de alguns sacrifícios célebres. O de Isaac, que prazer em não escrever Isaque, por Abraão e o de Ifigénia. Naqueles tempos as coisas eram bem mais sérias. A tarde espuma um sol esbranquiçado, preguiçoso, enquanto eu antecipo o altar que me espera, os artifícios dos sacerdotes e sacerdotisas de serviço e o próprio deus, perante o qual sou completamente ateu, a que eles votaram as suas vidas. Há escolhas que são tão eloquentes que nem vale e pena sublinhá-las. O melhor é não fazer juízos apressados, pois houve quem visse no carrasco um ser sagrado, a pedra angular sobre a qual se constrói o edifício social. Hoje estou com uma tendência desmedida para o enigma, mas tudo no mundo é enigma, a começar por esta chávena por onde bebo o café e a acabar no facto cru de haver tardes, noites e manhãs. Respiro fundo e só espero que chegada a hora, em plena liturgia, não me dê o sono. Ando a dormir pouco e mal.
domingo, 8 de março de 2020
Um treino para o futuro
Realizo com método e sem prazer um conjunto de tarefas que tem por finalidade coisa nenhuma. Conheço muita gente que faz coisas úteis, mesmo que isso não lhe dê um especial prazer. Eu especializei-me em inutilidades. A inutilidade tem uma estratégia insidiosa para impor a sua natureza despótica. Durante muito tempo ela traveste-se, mostra-se como um farol que iluminará o bem. Quando o incauto, neste caso eu, dá por isso, está enrolado de pés e mãos e já passou há muito o tempo em que poderia ter-se posto a grande distância. A partir daí terá de sofrer, e isto não é uma hipérbole, os desvarios das coisas inúteis, o poder infinito dos produtores de irracionalidades, das imaginações transbordantes com que conseguem apresentar as maiores idiotices como sinal de razoabilidade. Alturas há em que chego a apreciar este meu destino, o treino que me dá lidar com a insensatez. Tenho esperança que no futuro me seja de grande préstimo, quando a idade, se a ela chegar, me trouxer a demência ou coisa semelhante. Terei paciência para mim, serei condescendente com os esquecimentos, a troca de nomes, as frases truncadas, até com os risos idiotas que haverei de ter sobre coisas que não têm graça nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas, é o que penso quando me deixo invadir pela cultura ao gosto popular. Dá-me uma realidade insensata para que eu aprenda a viver com a insensatez que me espera. O domingo está cinzento e preciso de sair, mas muitas são as coisas idiotas que me retêm.
sábado, 7 de março de 2020
Mistérios da botânica
Acordei muito cedo. Pus-me a ler e tornei a adormecer. Não é que Chesterton me dê sono, mas dormira muito pouco. Quando dei por mim a manhã tinha entrado na idade madura, com uma luz quente e uma temperatura sensata. Lembrei-me que ainda há uns meses o pequeno almoço começava ritualmente, sem qualquer expectativa terapêutica e apenas por puro prazer, com um copo de sumo de toranja. Entre esta e um medicamento que tenho de tomar existe uma incompatibilidade tal que não podem coexistir no meu pobre organismo. Durante muito tempo, pus de lado o medicamento. Agora rendi-me à realidade, que é sempre mais perversa do que deveria ser. Antes de tomar o pequeno almoço dei uma volta pela casa para abrir janelas. De todas as coisas teóricas que me interessaram, a botânica não foi uma delas. E entre as poucas coisas práticas que me solicitaram o desejo, não consta a jardinagem. A verdade, porém, é que nunca deixo de contemplar o friso das orquídeas e o pequeno mistério que lá habita. O friso dar orquídeas é uma hipérbole para designar o parapeito de uma janela onde habitam dez exemplares desta espécie. Estão a florescer. O mistério é o da orquídea branca que chegou aqui nos finais de Março do ano passado com as flores abertas. Enquanto as suas novas vizinhas entregavam a beleza ao criador e hibernavam, ela manteve-se florida até hoje e, conforme pude constatar, promete continuar. Durante os meses de Outono e Inverno foi incansável, oferecendo o imaculado da sua brancura como uma bandeira para apaziguar os espíritos. Quando a olho imagino que será um anjo cansado de voar e que tomou a forma de uma planta. Os anjos são capazes de tudo, embora também angelologia não seja uma das áreas a que tenha dedicado atenção, o que não me permite ter a certeza se entre as hierarquias angélicas existirá alguma cujos membros se possam transformar em orquídea. O sábado já passou pelo portal do meio-dia. A minha consciência olha-me acusadora e pergunta-me por que razão não dei atenção à botânica nem ao estudo dos anjos. Olhei-a nos olhos e fiz-lhe um gesto que por decoro me abstenho de descrever.
sexta-feira, 6 de março de 2020
As memórias inúteis
Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em
contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do
pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo
com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de
sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a
metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos,
como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos,
crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento
de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe
a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe
no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de
referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo
em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que
havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim
muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha
perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde
aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno
de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com
ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.
quinta-feira, 5 de março de 2020
Tendência para a dissipação
Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros
que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser
ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de
os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a
percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado
curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou.
Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma
distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas
portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o
tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando
livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade
para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder
de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma
libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me
avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes
resistir. Haverá alguém que leia O Prato
d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba
quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha
secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente
doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho
de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.
quarta-feira, 4 de março de 2020
O verbo reunir
Olho para a minha agenda, uma agenda imaginária, claro, e
sou assaltado por uma pergunta. Que mistério haverá no verbo reunir para que
ele exerça sobre tantos tão poderosa atracção? Vou a um dicionário, olho o
verbo bem nos olhos, perscruto-lhe a intimidade e começo a vislumbrar aquilo
que nele há de tão poderoso. Exprime uma nostalgia e uma recusa. Imaginemos a
expressão toca a reunir. Nela há uma
urgência na recusa do estado de dispersão. Haverá medo de que dispersos,
perdidos na singularidade, não consigamos resistir a não se sabe bem o quê. E é
aqui que nasce a nostalgia desse tempo mítico em estávamos todos unidos. As
instituições estão cheias de reuniões porque muitos daqueles que as ordenam são
pessoas nostálgicas e medrosas. Não suportam a solidão do estado de dispersão,
desejam ardentemente voltar ao estado arcaico que habita a sua imaginação. Tudo
isto para dizer que tenho duas reuniões para me ocuparem a tarde, sem que lhes
vislumbre a necessidade, a não ser para aqueles que têm medo da solidão. Uma
motorizada ronca pelas ruas aqui à volta. O ruído da maquineta é inversamente
proporcional à inteligência de quem a conduz. Depois imagino que também ele
terá pressa para se reunir. Os pássaros meus vizinhos parecem corroborar a
minha ideia, mas logo abandonam o assunto para se entregar a uma conversa sobre
os planos de voo. Também eles precisam de acertar detalhes, tomar decisões,
fazer escolhas. Calaram-se agora, sinal que tudo está resolvido.
terça-feira, 3 de março de 2020
A insurgência contra a voz
O céu sobre o hospital parece chumbo, tão carregadas estão as nuvens. Tenho alguns assuntos pouco entusiasmantes para resolver, mas
folheio um livro de memórias de Elias Canetti, O Archote no Ouvido – História de Uma Vida. Leio umas frases aqui,
outras ali, saltitando com inconstância, enquanto vou espreitando os meteoros.
Já ninguém emprega esta palavra para designar o que acontece na atmosfera. A terceira parte do livro, que trata da vida do autor em Viena entre
1926 e 1928, tem um título extraordinário, A
Escola do Ouvir. Será, por certo, uma metáfora, mas representa um modo de existência.
Aprender a ouvir e aprender ouvindo são a mais profunda forma de aprender a viver.
Só a voz toca as cordas do coração e abre caminhos insuspeitos, muitos dos
quais se manterão secretos até que, por um qualquer acidente de percurso, eles
se revelem, com o que têm de benfazejo. Hoje ninguém quer aprender a ouvir. Não
se suporta escutar uma voz. As crianças não devem aprender ouvindo, diz-se, mas
devem fazer, experimentar, como se estivessem todas condenadas à fabricação. O
que me impressiona é o medo que se tem de saber escutar. Esse medo nasce da
recusa da voz. Os filhos não escutam a voz dos pais. Os alunos recusam a voz
dos professores. Temem que essas vozes não sejam as do futuro ou não foram
educados a suportar o imenso peso do passado que uma voz traz em si. Não é por
acaso que um certo livro do Novo Testamento começa dizendo que no princípio era
o Verbo. No início está a voz que profere a palavra. A insurgência contra a
voz, a recusa da escola do ouvir, não representa progresso algum, mas a perda
da nossa humanidade, que está toda ela nessa voz que faz ouvir e que se escuta.
Hoje cheguei à tarde envolvido num pathos
metafísico, o mais sensato será ir comer chocolate.
segunda-feira, 2 de março de 2020
Uma tarde na vida de um pobre mortal
A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao
banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas,
entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala,
sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava
já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de
esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e
consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir.
Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de
esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de
ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha
esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório,
sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz
mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve
quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me
atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde
não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera,
como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o
mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me,
imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e
lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida
passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede
desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse,
respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu
escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou
consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a
Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a
descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas
do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa
galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar
medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese
disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se
fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa
do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e
uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.
domingo, 1 de março de 2020
Cultivar um jardim
Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a
realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me
enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois,
com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com
o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que
há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a
razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto
umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que
está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade.
Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo
quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve
poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul
Han com o belo nome de Louvor da Terra.
Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu
cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre
essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada
apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra
revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de
lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo
nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento
natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim
suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de
dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que
não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja
cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado
do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me
responda.
sábado, 29 de fevereiro de 2020
A verdade numa app
Acordei com a chuva a tamborilar nas janelas, mas como me
converti ao pechisbeque tecnológico do mundo pós-moderno em que vivo fui
verificar na aplicação do telemóvel se era verdade. Era-o. De facto, a água
caía mesmo aqui, na freguesia em que vivo. Fiquei descansado, pois nem a
natureza se atreve a desmentir aquilo que a técnica diz estar a ocorrer. Fora
eu dado a meditações filosóficas e haveria motivo para longas argumentações
sobre o estatuto da verdade nos nossos dias. É verdade aquilo que uma aplicação
informática, chamam-lhe app, diz que
o é. Vale-me a mim e aos que têm a infelicidade de me ler que não sou dado a
tais pensamentos. Se me ocorrem, desvio logo os olhos e fico a ver a paisagem,
as nuvens no céu, o sol a brilhar nas superfícies molhadas, a mulher de curvas
recortadas que arrasta com vagar um guarda-chuva sobre a passadeira, enquanto
os carros param com cerimónia e os condutores olham quem, tão exposto ao desejo
dos seus olhos, assim passa sem pressa. Ao escrever isto assaltou-me uma
inquietação. Será que ainda se podem dizer estas coisas? Farei eu parte de uma
conjuração patriarcal? O melhor é também afastar estes pensamentos, pois o
autor destas palavras proibiu-me tudo o que tivesse odor a política. Eu sou
apenas um pobre narrador e sei qual é o meu lugar. Olho pela janela e vejo o
sol a romper as nuvens e lançar os seus dardos – meu Deus, isto não é uma
metáfora moribunda, mas um cadáver ambulante que trouxe para o texto – sobre as
árvores incautas que dele não se sabem proteger. Será verdade, o que vejo?
Pressuroso precipito-me para o telemóvel e sinto-me reconfortado pela app meteorológica confirmar que não é
ilusão aquilo que os meus olhos observam. Fecho-os e neles logo passa a mulher
de curvas recortadas que arrasta um guarda-chuva pela passadeira e maldigo-me
por ainda não ter descarregado a aplicação que me confirme se ela vai mesmo
pela passadeira.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Entre Uqbar e Pasárgada
Um ruído de canivetes afiados chega-me aos ouvidos. Bandos de crianças de um dos Jardins de Infância desembarcaram no parque, anunciando-me a aproximação do fim-de-semana. Admiro a coragem de quem se presta a passar o dia a receber alfinetadas nos tímpanos. Não sei como não enlouquece e não se torna em personagem de um dos quadros de Munch. Conto os minutos para que o ruído se evapore e possa respirar fundo, olhar com demora para um livro que descobri ontem e entrar no reino do silêncio. Tenho um pequeno ensaio para escrever. É tão pequeno que me esqueci dele e só me lembrei quando o fim do prazo de entrega fez soar o gongo anunciando as poucas horas que restam para que tudo fique consumado. As crianças continuam a gritar, chamam-se por nomes inverosímeis, o que abre no meu coração a porta para o que há de pior, a tentação de elaborar um estrito catálogo de nomes possíveis e torná-lo lei incondicional e com efeitos retroactivos. É em momentos destes que me lembro de uma passagem de Borges, em que este atribui a Casares a recordação de que um dos heresiarcas de Uqbar declarara espelhos e cópula como coisas abomináveis, pois ambos multiplicam o número de homens. Nunca deixei de admirar estes heresiarcas apócrifos e alturas houve, movido pelo cansaço que os espelhos provocam, em que pensei também eu tornar-me um grande heresiarca. O meu problema foi a hesitação. Comecei por um inventário de heresias, mas havia tantas e tão extraordinárias que nunca consegui decidir-me por nenhuma e, desse modo, falhei a vocação. Resta sonhar-me em Uqbar carregando no dorso a heresia que não escolhi ou, caso o dia esteja escuro, em Pasárgada, lá serei amigo do rei. Hoje estou demasiado sul-americano.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020
Caminhar dentro da realidade
Não tarda e caminharei por dentro da realidade. Esta combina estranhas características, um misto de rameira e de alcaiota, onde os ademanes de prostíbulo e as estratégias do alcovito se fundem entre urros selvagens e longos desesperos. Ali cultiva-se a ignorância e há que ter punho de ferro para sobreviver. Por vezes, há quem caia em combate. Consta que as enfermarias estão cheias de feridos de guerra, gente mutilada pelos cantos, uma visão preparatória para a entrada no Inferno, onde Dante e o seu mestre ainda nos esperam, contrariamente ao que consta por aí. Como é habitual, a minha propensão para a hipérbole não se conteve e deixei transparecer o cepticismo contumaz com que envolvo tudo que tenha a ver com a realidade, a humana para ser mais específico. Desaconselham-me a descrença nessa realidade, pois, afirmam, vivemos no melhor dos mundos possíveis, ou se ainda não o é para lá caminha a grande velocidade, aquela que nos leva para o futuro. Esquecem-se, porém, que o único futuro certo que temos é a morte, mas sobre esta o melhor é seguir a máxima wittgensteiniana sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar, o que contraria a inclinação natural para a logorreia de que sofro. Com tantas citações eruditas, não fora eu o que sou, há muito teria evitado a corveia da realidade.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
Meditações em Quarta-Feira de Cinzas
Sic transit gloria
mundi. Era assim que deveria começar este texto, mas recuso-me a fazê-lo.
Sei que é Quarta-Feira de Cinzas, que estas são símbolo da transitoriedade
humana e que o latim não iria mal com o dia de hoje. Há nele uma melancolia tal
que sinto o coração a contrair-se. Esta tristeza veste muito bem os dias quaresmais
que batem à porta. Não é que haja quem se entregue, nestes tempos, a jejuns
hercúleos e abstinências rigorosas, mas é a própria Quaresma que empresta
tonalidades entristecidas a um sol cúmplice e a uma luz de pouco ânimo. Salvo
algumas excepções, espanto-me sempre com a falta de personagens nestes textos,
como se o que é humano não devesse ser o motivo de quem narra. É preciso
talento para falar de pessoas, dar-lhes vida, avigorá-las com acções, excitá-las
com desejos e instigá-las com objectivos a perseguir ou apoucá-las com o peso
da decepção. O meu talento, porém, viveu sempre de longos jejuns e árduas
abstinências e por isso escrevo coisas que não interessam a ninguém. Por
exemplo, John Locke pensava que as palavras são sinais sensíveis das nossas
ideias. O que falta explicar é como me ocorrem tantas palavras sem que na minha
mente haja uma ideia. Para mim, palavras são peças de Lego que vou encaixando
umas nas outras. É verdade que nunca consigo fazer uma casa, um carro ou um
helicóptero, mas gosto de as ver arrumadas da esquerda para a direita e de cima
para baixo. Essa ordem tranquiliza-me, como se fosse um escudo contra o
transitório que há em tudo o que existe. Não é, mas não deixa de ser virtuoso
mentir a si mesmo.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
Manteiga de arsénio
Acordei com uma sensação de irritação na garganta, um
pré-aviso de faringite, e o primeiro pensamento foi onde está o Strepfen. Não devia fazer publicidade
gratuita à indústria farmacêutica, mas não há ninguém que, ao acordar envinagrado,
pense onde está a solução para pulverização bucal de flurbiprofeno. O comércio
com as suas marcas é muito mais entusiasmante do que a química, a qual desde a
reforma da nomenclatura feita por Lavoisier, Bertholet, Fourcroy e Morveau – são
legião as coisas inúteis que eu sei – perdeu a natureza poética que animava o
mundo governado pela teoria do flogisto e onde existiam coisas tão espantosas
como fígado de antimónio, sal da sabedoria, flor de bismuto, isto para não
falar no açafrão de Marte e na manteiga de arsénio, a qual deveria ter
excelente utilidade em casos desesperados, e que hoje em dia, se vi bem, é
conhecida pela designação despoética de tricloreto de arsénio. Acordar assim no
dia de Carnaval não é um bom sintoma e não sei a quem culpar se à minha faringe
se ao Lavoisier. Durante a noite, e num momento de insónia, o senhor Chesterton,
do qual estive a ler umas páginas para tentar chamar o sono, recordou-me uma
verdade central da existência. Tudo o que é extraordinário depende de um veto,
de uma proibição, por norma destituída de sentido. Lembrei-me de imediato de
Adão e Eva e da sua extraordinária existência paradisíaca presa pelo veto de
comerem o fruto de uma árvore. Se o leitor, porém, for um nietzschiano
empedernido ou um cultor da supremacia ariana e achar que isso são coisas de
uma cultura judaico-cristã decadente, recordo-lhe que também a felicidade de Orfeu
dependia da estranha proibição de olhar para Eurídice enquanto se afastavam do país
dos mortos. Num mundo em que já não há fígado de antimónio nem flor de bismuto,
o sal da sabedoria é descobrir qual a proibição que vela pela sua felicidade e
o mais sensato é não comer maçãs ou olhar para trás, não vá lá estar a Eurídice
que se perderá para sempre.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Outros carnavais
Nestes dias ainda não avistei por aqui foliões a imaginar
que estão no Carnaval. Anda tudo muito circunspecto. Se deixar a memória fluir,
hei-de lembrar-me de que no tempo de criança, na escola primária, talvez antes,
ter-me-iam comprado uma caraça – havia as de pasta de papel e as de plástico –
uma pistola de água, as inevitáveis serpentinas e os estalinhos, não sei se por
outros lados teriam outro nome. Nada disto entrava na escola e os professores
daquele tempo, com os seus fatos escuros e gravatas sombrias, eram gente séria
e pouco dada à volatilidade do corso, prontos a manejar uma régua com que
imaginavam civilizar uma turba de selvagens. Mascaradas e outros devaneios
conflituavam com a santidade do que havia para aprender. Mesmo em casa, as
bombinhas de mau cheiro não faziam parte do permissível e os sacos de confettis, vá lá saber-se o motivo,
também não. Não seria um Carnaval inebriante, mas na altura tudo aquilo
pertencia a uma ordem inquestionada do mundo, que se aceitava porque era assim,
mesmo os selvagens actos civilizacionais de professores austeros. As pistolas
de água nem sempre davam ocasião a situações amistosas e as serpentinas nunca
deixaram de ser uma decepção. Lançadas, era impossível recolhê-las para as
tornar a lançar. Serviam apenas para juncar o chão de papel colorido e ficar a
olhar para aquilo sem entusiasmo, não percebendo na altura a lição que havia nelas
sobre a irreversibilidade de tudo o que acontece. Na verdade, aprendiam-se
muitas coisas, talvez as mais importantes, sem saber que se aprendiam e nisso
havia uma inteligência profunda que foi vendida ao desbarato nalguma feira da
ladra.
domingo, 23 de fevereiro de 2020
Meditações em Domingo Gordo
Ganha-se má fama e pouco há a fazer. Depois de ter ouvido a
irmã dizer mil vezes que têm de levar as raquetes de badminton para jogarem
comigo, a minha neta mais velha, cansada da iteração, respondeu que não achava
isso grande ideia, pois a última vez que o avô jogou com elas deu cabo das
costas. Entrar na adolescência é abrir a porta da blasfémia, foi o que me
ocorreu quando soube do comentário impiedoso acerca da minha condição atlética.
Dei indicação estrita para não se esquecerem das raquetes. Se ficar sem me
mexer, paciência. Está um domingo gordo, cheio de sol, os insectos que o
inverno tinha adormecido despertam e enchem o ar de zumbidos. Tenho dias em que
a verve descamba para o regionalismo, para pintar paisagens bucólicas, por onde
caminho à beira do rio, a vida a florescer à minha volta, os pássaros a cantar.
Ser provinciano é um exercício trabalhoso, onde há que adoçar as vísceras,
conter ideias que possam atravessar a mente como um relâmpago e desabarem no
mundo como um trovão. Duas comparações seguidas não são bom augúrio para o meu
destino de autor. Há tempos comprei duas obras da Sarah Beirão. Falo a sério.
Amores no Campo e Serões da Beira. Numa deles, a autora escreve: Amavam-se
enternecidamente. E fico aqui na minha província, diferente da dela, sentado à
secretária, a olhar para aquele amor terno, à antiga, como de imediato se
esclarece. Um daqueles amores de almas enlaçadas, a vibrar nas mesmas emoções,
uma cornucópia de olhares e desejos que hão-de traduzir-se em muitos filhos, ou
não, pois nunca li o conto. Um dos livros traz, no interior, uma assinatura e o
ano de 1942 e, mais abaixo, uma dedicatória e a data de 16-XI-59. A vida tem
destas coisas. Alguém, uma mãe, compra o livro ainda a segunda guerra mundial
estava a meio, oferece-o à filha e ao genro, ou ao filho e à nora, mesmo antes
de se chegar aos gloriosos anos sessenta e agora jaz à minha frente, depois de
ter sido vendido a um alfarrabista. O que tem isto a ver com o badminton? Nada,
mas a vida é feita de coisas que não têm nada a ver umas com as outras.
sábado, 22 de fevereiro de 2020
Nostalgias incompreensíveis
Hesito sempre entre o antes e o depois, não sei qual das
personagens me desagrada menos, embora pareçam muito distantes e diferentes.
Não estou a falar de literatura. Hoje hipotequei a manhã num corte de cabelo.
Antes de o cortar talvez parecesse um velho intelectual da rive gauche. Agora, já que corto sempre o cabelo curto, talvez pareça
um velho militar na reforma. Não me desagrada o ar marcial. Há uns anos, por motivos
fortuitos que não vêm ao caso, cortei rente o cabelo. Gostei da sensação. Há em
mim nostalgias incompreensíveis, saudades de coisas que nunca experimentei.
Umas vezes, penso que deveria ter sido monge cartuxo ou trapista. Ponho-me a
imaginar a vida disciplinada, a prática do sacrifício, as horas de oração, a
dádiva total à vontade divina. Outras vejo-me como militar, o serviço prestado
à comunidade, a dádiva no campo de batalha. Talvez haja em mim uma inclinação
trágica para o sacrifício. A verdade, contudo, é que sou um filho de Adão e tão
volúvel como este, que logo se deixa levar pelo sorriso de Eva e vende o paraíso
pela primeira quimera que lhe oferecem. Cheguei cedo a este sábado. Já não sou
o mesmo que era quando saí da cama. Não lerei o Le Monde nem o Libération,
sentado numa esplanada. Olho-me ao espelho e vejo nele o militar que não fui.
Há pouco, quando escrevi que não estava a falar de literatura, menti.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
Dias difíceis
Enquanto escrevo, um programa de optimização do computador
exerce laborioso a sua função. Talvez não devesse estar a escrever enquanto ele
luta com denodo contra a corrupção da máquina e faz o que pode para a manter à
tona de água. Invejo os computadores. Como eu desejaria poder correr em mim um software que me optimizasse. Não haveria
erros de registo, nem de atalhos. Acabaria com os problemas de privacidade, as
ameaças de spyware e o desempenho,
esse elevar-se-ia à estratosfera. Infelizmente, não há um programa desses que
me livre de tudo aquilo que me corrompe as vísceras, infecta a alma e apodrece
o espírito. É neste estado que enfrento a entrada numa das épocas mais
melancólicas do ano. Só de me lembrar daqueles carnavais portugueses, com as
raparigas quase despidas, a fingir que são brasileiras e que trazem o samba à
flor da pele, dá-me vontade de chorar. Depois, oiço palavras como foliões e nesse
delicado momento a minha vontade de invadir a Bélgica ou mesmo a Polónia é desmedida.
Vão ser tempos difíceis. Os dias estão cada vez maiores e o sol mais quente.
Olho para a paisagem e só vejo primaveras e qualquer coisa em mim fica apreensiva.
A Primavera é um embuste da natureza para nos enfiar à socapa nos matagais ínferos
do Verão. O baloiço lá em baixo range e eu vou rangendo com ele. Hoje devia
recomeçar as caminhadas. Aliás, devia recomeçar muitas coisas e não tenho tempo
para tanto recomeço, o melhor é procrastinar.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020
O caos avança
A quinta-feira passou a fronteira que separa a manhã da
tarde, vai a trote, sem impaciência. Ao nomear o dia lembrei-me de um romance
de Chesterton lido há muito, O Homem que Era
Quinta-Feira. A história metia anarquistas, polícias e espiões infiltrados,
acabando por tudo se confundir. É o que acontece na vida não romanesca. Tudo se
confunde. Porventura, eu deveria ser mais honesto e dizer tudo se me confunde
ou confundo-me com tudo. Imagino que quando se é recém-nascido a mente seja
povoada por um caos e que, paulatinamente, se vai organizando até se tornar um
cosmos límpido e quase aprazível, como aquele que Descartes exibia quando tinha
por habitantes da sua mente as evidências, tão claras e tão distintas, que
ofuscariam um sol como o de hoje. Eu, confesso, nunca tive muitas evidências, embora
viva num mundo onde não há cão nem gato que não as exija . Seja como
for, eu sei que é quinta-feira porque o calendário assim o diz ou talvez me
tenha lembrado do romance do Chesterton e feito a dedução, aliás brilhante, que
se segue: hoje lembrei-me do romance O
Homem que Era Quinta-Feira, logo hoje só pode ser quinta-feira. Como se vê,
existem já evidências do meu estado de confusão mental, em que confundo a objectividade
do calendário com a subjectividade da memória. Espero que amanhã, por
contiguidade metonímica ou por mera associação, me lembre do Robinson Crusoe e acerte no dia da
semana. Com o avançar da tarde a confusão só pode aumentar. Quando a noite
cair, o caos mental será tão grande que talvez já nem saiba o meu nome, se é
que terei algum nessa altura.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
A quarta-feira escorrega
Enfastiado, deixo a quarta-feira escorregar por mim. Não sei o que fazer com ela, embora saiba o que fazer nela. Tenho muito para ler, mas não é literatura que me desvaneça. Cansar-me-á os olhos. Haverá de me fazer sorrir, outras vezes bocejar. Do parque infantil, chega-me o ranger das roldanas. Não fora o ruído e quase acharia um tom poético na aliteração. Isto aqui, porém, é prosa e manda a correcção do estilo evitar repetições sonoras, mas elas insistem, desabam no texto, caminham por ele e deixam uma pegada que ninguém apagará. Uma mãe chama uma filha, um aspirador sorve a poeira num apartamento vizinho, o ar fresco entra-me pela janela, enquanto os meus olhos saltam para a paisagem em frente. O pequeno bosque ergue-se como uma barreira verde que começa a ocultar-me o mundo. É uma tapada de árvores uniformes, de onde se exceptuam alguns cedros, que deram em esgalgar e querem confundir-se com marcos miliários, pelos quais os anjos hão-de contar as milhas que percorrem nessa estéril tentativa de proteger os homens de si mesmos. O aspirador calou-se. Não tarda e o grupo musical da escola vizinha há-de vir animar a tarde, com as suas canções de baile de província. Ocorre-me que ande a ensaiar para o baile da pinhata ou para alguma verbena. O telemóvel informa-me que o antivírus está a olhar por mim. Inclino a cabeça em sinal de gratidão e penso que sempre existem anjos. A minha operadora de comunicações, purificando-se pela caridade, insiste em oferecer-me coisas, como se tivesse urgência em ganhar o céu. O inferno são os outros, mas isso é conversa de intelectual que não vem ao caso.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Escolher o pior
Devia ter-me dedicado ao comércio, trocar mercadorias por dinheiro. Comerciar é um exercício pacífico em que ambos os lados, os que compram e os que vendem, acabam por se sentir felizes e por isso cooperam, quase sempre com a bonomia e o trato civilizado que o interesse mútuo supõe. Há nessa civilidade fingimento e dissimulação? Claro, mas sem essas duas virtudes – pois virtudes são e virtuosos, os seus efeitos – o mundo seria um lugar nefasto e muito mais insuportável do que é. A minha natureza, porém, impediu-me a escolha sensata. Fui dotado de uma propensão para optar pelo pior. Não falo por falar. Escolhi dar de comer a quem não tem fome. Uma profissão de mérito, embora com pouca utilidade. Durante uns tempos ainda me apareciam famélicos, alguns mesmo subnutridos, a quem eu tinha o privilégio – coisa que não sabia na altura que o era – de alimentar. Depois, os enjoados e os enojados, que vomitam com facilidade, começaram a crescer em número e tornaram-se dominantes, mas foram já ultrapassados por aqueles que se recusam a abrir a boca. A colher vai e vem, enquanto eles indiferentes ostentam uma saciedade desarmante. Como seria empolgante esse mundo de letras e livranças, de cheques e numerário, com os seus almoços e jantares de negócios, uma pessoa rodeada de gente com apetite, sempre disposta a abrir a boca, sempre disponível para mais uma iguaria. Como é belo um balanço e terna a relação entre o deve e o haver. Escolhi, porém, dever tudo e não ter nada a haver. Quando começo a falar por enigmas, o melhor é desconfiar da minha sanidade mental.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
Uma questão de fidelidade
Enterneço-me com pouco, afinal. Ao abrir a caixa do correio, encontrei uma carta da operadora de comunicações. Franzi o sobrolho, mas não a abri de imediato pois não tinha óculos à mão. Chegado a casa, com a visão devidamente aumentada, li a comunicação. Ofereciam-me um cheque de 150 euros para gastar na respectiva loja. Foi aqui que fiquei enternecido. Afinal, ainda há operadoras de comunicações boas e caridosas. Com a emoção a fazer vibrar as cordas do coração, fui ler as condições, pois até os santos mais caridosos têm as suas condições para a prática do bem. Eles são santos, não são, como Kant, adeptos do dever pelo dever. Havia algumas sem importância, mas uma exigia-me mais 24 meses de fidelidade à operadora. Apesar de enternecido, rasguei o cheque. Depois, olhando para os despojos, perguntei-me se o meu coração terá tanta capacidade em enternecer-se quanta em evitar fidelizações. Talvez ele não seja inclinado a pôr-se ao abrigo do pecado da infidelidade ou não esteja disposto a ser fiel por uns miseráveis 150 euros. Não quis aprofundar a questão, peguei nos papéis e fui colocá-los no caixote da reciclagem. Temo o dia em que receba um pequeno embrulho da operadora. Será um anel de noivado e um pedido de casamento pela Igreja.
domingo, 16 de fevereiro de 2020
Dramas dominicais
Num dos apartamentos contíguos, os habitantes esqueceram-se
de baixar o volume das vozes. Por certo, não sabem onde deixaram o comando e
pertencem a gerações que já não trazem botão para controlar o som. O tema da
dissensão, se é que existe alguma, não o percebo, tão pouco consigo discriminar
qualquer palavra no meio das ondas sonoras. Há apenas uma melodia exasperada,
que me chega como um murmúrio amplificado, com algumas tonalidades rudes,
talvez a memória genética do tempo em que o volume sonoro da voz era tido como
manifestação de poder e exercício de autoridade. Porventura não será nada disto
e eu esteja a pôr-me a adivinhar por manifesta falta de vontade de fazer aquilo
que tenho para fazer. Escrito isto, a minha consciência pôs-se a ruminar
insultos, mas conteve-se e perguntou se eu não sabia que hoje era domingo e aos
domingos não há nada para fazer. Como o leitor pode perceber, tenho uma consciência
velha, daquelas que cresceram no tempo em que não havia grandes superfícies
comerciais e em que o domingo não se confundia com os dias úteis. As ondas
encapeladas do mar sonoro que me atingiu há pouco serenaram. Faltou-lhes
energia para se tornarem um tsunami.
O prédio encerrou-se no seu habitual silêncio e daqui de casa chegam-me, quase
sussurradas, umas frases imperativas sobre trabalhos de casa a fazer, seguidas
de um silêncio comprometido. Uma tragédia, suponho. Os domingos são dias de
imensas tragédias, basta serem a véspera de segunda-feira. Não serão tragédias,
para falar com exactidão e evitar a minha inclinação para a hipérbole, mas
pequenos dramas, onde se exprime uma revolta conformada com o que tem de ser. A
culpa foi de quem congeminou a nossa expulsão do Éden. O grande programador
divino, usando o fruto da sua presciência, poderia ter evitado esse bug no software com que nos dotou, mas preferiu que tivéssemos de
enfrentar um mundo com dias úteis e dias inúteis. Ele lá terá as suas razões.
sábado, 15 de fevereiro de 2020
Deambulações num sabat de província
De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava
da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida.
Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco
povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá
escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de
imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de
quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos
a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele
concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos
com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um
príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde
antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez
no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do
fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados
lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que
afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com
que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares
ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a
refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas
entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares
enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos
geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os
empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações
condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta
palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois
penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande
velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020
S. Valentim
Por vezes sou brindado por certas iluminações. Não se pense
que se trata de ficar exposto à acção de um qualquer holofote. Podia ser, mas
não. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam insight. Não sei como, mas acontece-me, muitas vezes depois de uma
refeição, ter um insight. Há quem
sugira que o álcool pode ajudar. Não o creio e devemos evitar dar ouvidos à
ironia de vozes que não sabem calar-se. Ao sentar-me passei os olhos pela
imprensa, observei o estado do mundo e uma luz acendeu-se em mim. A vida em
sociedade é uma enorme manta de irracionalidades. O fundamental é que alguém
saiba dirigi-las de maneira a que se anulem entre si. Julgo que seria a este
trabalho de maestro e tecelão que se dava o nome arte política. Não é um
brilhante insight, mas como se sabe
também as lâmpadas têm potências diferentes, iluminando umas mais e outras
menos. A minha serve apenas para luz de presença. Respiro fundo, depois faço
uma longa expiração, enquanto tapo os ouvidos. O parque infantil foi invadido
por bandos de crianças com as suas vozes de estilete. Faltam ainda algumas
horas para que chegue o fim-de-semana. A pátria dorme uma sesta desconsolada,
enquanto os seus filhos dilectos comemoram o dia de S. Valentim, essa
antiquíssima tradição que uniu os corações de Pedro e Inês e pela qual D.
Sebastião se perdeu em Alcácer-Quibir. Se não acreditam, não esperem de mim a
luz que vos convença da verdade. O que me aborrece mesmo é não poder ir jantar
fora sossegado, tão ocupados estão os restaurantes com os Pedros e as Ineses,
elas tão puras e castas e eles tão firmes e pétreos.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
Do cantabile ao adagio
Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram
tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite
se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão
de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem
na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as
ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que
gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para
melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma
há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e
sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há
muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto
para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico
funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma
sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile
do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio.
Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite
abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da
madrugada. Também eu caminho do cantabile
para o adagio. Ah, o relatório, digo
e bocejo.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Não haveria paciência
Na praceta, extraviado da escola ou do centro de línguas, um grupo de adolescentes urra. O desarranjo hormonal manifesta-se das formas mais inusitadas. As hormonas compor-se-ão lá mais para diante e os proprietários haverão de se comportar como se fossem normais. É preciso não deixar cair por terra o princípio de esperança. Tenho de limpar as lentes dos óculos, pois a realidade parece-me turva. Lá fora, o dia está cinzento e isto fez-me lembrar os tempos em que era existencialista, lia Sartre e Camus, e cultuava o Vergílio Ferreira como existencialista doméstico. Tudo era então náusea e absurdo. O mundo se não era feito de carvão bem negro, era-o de uma cinza escura, pegajosa e quase nojenta. Descobri mais tarde, sem alvoroço, que o existencialismo não era uma doença crónica e que se podia tratar, apesar de deixar algumas sequelas. Se fosse linguista e dado a reformador ortográfico, introduziria de imediato o trema e ficaria com seqüelas existenciais. Aliás, também ressuscitava todas as consoantes mudas que têm vindo a ser decapitadas desde o infausto ano de 1911. O destino, todavia, foi avisado e não me fadou para andar por aí a endireitar os tortos ortográficos. Talvez por isso tenha caído no caldeirão existencialista. Nunca se sabe muito bem por que razão acontece aquilo que acontece. Consulto a agenda, franzo o sobrolho, arrumo o pano de limpar os óculos no estojo e penso que talvez haja alguma razão em quem diz que há em mim uma certa propensão para o autismo. Mastigo dois comprimidos Aero-Om. Se não me curam da terrível propensão, talvez impeçam um recidiva existencialista. Não haveria paciência.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
Wilhelm Reich fora de horas
Pertenço a uma geração que nos verdes anos leu coisas inverosímeis. Ao escrever esta frase, como narrador obediente que me prezo de ser, não deixei de torcer o nariz, coisa que foi de imediato sentida pelo autor. Qual o problema? Olhei-o e a medo disse-lhe que havia vários problemas. Verdes anos e coisas inverosímeis estão longe de ser noções claramente definidas. Depois, acrescentei, eu não tive verdes anos nem li coisas inverosímeis. Sou apenas um ser virtual, nem sequer sou um ser de papel, como eram os narradores de antigamente. O autor olhou-me e perguntou-me se na juventude não tinha lido Wilhelm Reich. Por Deus, disse-lhe eu. Não, não li, nem Reich nem o que quer que seja. Eu não leio. Um narrador não é um leitor. Pois, disse-me ele já irritado, eu li. E não sei o que é mais inverosímil se ter lido Reich ou ter tido verdes anos. Encolhi os ombros, sem paciência para as revisões existenciais a que o autor se entrega. O dia está quente. Fevereiro parece querer arrancar-se à lânguida ciclicidade do ano e correr em direcção à Primavera. Não sei se há alguma ligação entre as memórias reichianas do autor e a anunciação da Primavera. Se há, o melhor é que ele olhe para idade que tem e perceba que os combates da juventude pouco têm a ver com a calma sensatez da idade madura. Excessivamente madura, diga-se. Na escola do lado, um vulto pisa lentamente a erva, senta-se debaixo de uma oliveira e recosta-se. Aposto que nunca ouviu falar em Wilhelm Reich e que o mais certo é que nunca há-de ouvir. Dele será o reino dos Céus.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
A poética das análises laboratoriais
Recebido por correio electrónico, imprimo o relatório das análises que mais logo terei de mostrar ao médico. Está dividido por secções cujos nomes lembram a designação de disciplinas de um curso superior. Hematologia, Bioquímica I, Bioquímica II. Será que também aqui haverá precedências? Quem chumbar na Bioquímica I poderá fazer a Bioquímica II ou terá de repetir a I? Outra secção, porém, tem um nome menos amigável, Marcadores Tumorais. Esta não se parece com uma cadeira universitária, mas com um quadro onde se vai inscrevendo a evolução de um jogo de bilhar às três tabelas. Olho com condescendência para os resultados, verifico se eles se integram nos valores de referência. Por fim, tento descortinar o valor literário da informação. Vejo por ali vocábulos extraordinários. Eritrócitos, hemoglobina, hematócrito, leucócitos, eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. Isto para não falar da glicémia, da ureia, do colesterol e dos triglicéridos. São verdadeiras famílias, com as suas sagas, os seus amores e ódios, triunfos e desditas. O nosso organismo está cheio de histórias com personagens que nem sonhamos. Não admira a quantidade de escritores médicos. Têm a mente povoada de personagens com nomes destes, cuja acção determina a vida ou a morte do hospedeiro, a glória ou a tragédia do herói. A tarde nasceu enfastiada e o fastio que dela se desprende toma conta da atmosfera, envolve os transeuntes na avenida, repousa-se nos ramos do arvoredo. Aqui perto, caminham dois eritrócitos e três leucócitos. Falam em surdina, fazem planos, traçam mapas onde se inscreve a vida e a morte. Param perto de mim e um deles, o leucócito mais apessoado, pergunta-me se conheço a transaminase glutâmica oxalacética. Embaraçado, respondo que não, embora conheça a transaminase glutâmica piruvica, que deve ser prima. Se quiser falar com ela, não tem nada que enganar. Faz a rotunda, sai na terceira saída, é logo o primeiro prédio. No segundo direito.
domingo, 9 de fevereiro de 2020
O espírito aos domingos
Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela
muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e
só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de
quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de
sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me
chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente
repousa um livro que tem por subtítulo Um
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso
tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de
vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O
espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a
cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento
sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a
necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos
domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos
da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e,
eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a
ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade
que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na
verdade era sujeição ao ethos provinciano,
onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na
menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória,
podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz
tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as
janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou
ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os
homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Poupar os pormenores
Hoje ao abrir as janelas dei-me conta de que no friso das
orquídeas persiste florida uma quase há um ano. Comprei-a em Março passado por
razões que não vêm ao caso e já estava florida. Enquanto as outras foram
perdendo as flores, ela atravessou impante a Primavera, fingiu que o Verão era
coisa de somenos por aqui. Quando o Outono deu lugar ao Inverno, a queda de
umas flores foi compensada pelo rebentamento de outras. E ali está ela pronta
para chegar a Março. Ocorreu-me que tivesse sido enganado na florista e que não
seja uma orquídea. Na realidade, não sou um Nero Wolfe. A minha vida não é
desvendar crimes sentado à secretária e cultivar orquídeas. Também não tenho um
cozinheiro à disposição e, por isso, já fui consultar a ementa de uma dessas
casas que têm por função transformar pessoas como eu em cozinheiros improváveis.
Se me perguntarem de quem é a responsabilidade do almoço, posso responder é minha.
Evito os pormenores. A sabedoria da vida reside toda aí, no evitar os
pormenores. Quanto mais pormenores se sabem, maior é a descrença na humanidade.
Uma pessoa sensata tem por norma o imperativo categórico poupem-me os
pormenores! Um pormenor delicioso é narrado em Walden Two, o romance de B. F. Skinner, o behaviorista. Frazier,
enquanto aluno de licenciatura pegou num artigo do reitor da universidade, para
usar um título à nossa medida, publicado numa revista, assinalou-lhe a vermelho
os erros de ortografia, compôs-lhe a sintaxe e com recurso à simbolização
lógica formalizou os argumentos, mostrando a sua não validade. Feito isto, enviou
o artigo ao seu autor com a classificação de C. E qual foi a resposta do magnífico
reitor, pergunta quem tenha a desventura de estar ler este texto. Não sei. B.
F. Skinner, no romance, poupou-me o pormenor.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Acasos
O acaso tem um papel nas nossas vidas muito maior do que
supomos. Mal escrevi a frase vi a que enredos ela poderia conduzir-me e hoje
não estou para ardis nem para ciladas. Foi o acaso que me fez escutar uma canção
que ouvia muito há mais de quarenta e cinco anos. Um poema de Rosalía de Castro
musicado e cantado por um dos trovadores em voga na época. É uma bela canção,
de uma tristeza comovente. Depois, pensei que nessa altura, com a idade que
tinha, não deveria ouvir música daquela. A canção acabou, Rosalía voltou para a
sua Galiza, onde nasceu sem que do registo de baptismo constasse o nome dos
pais. Lembrei-me então que hoje, ao atravessar a cidade e enquanto me preparava
para enfrentar as Erínias, ouvi na Antena 2 que era dia de aniversário de
Juliette Greco. De imediato procurei uma das canções dela de que mais gosto, Déshabillez Moi (honni soit qui mal y pense) e achei que a tarde poderia ter acabado
pior. Vou passar as próximas horas a ouvir cançonetas que não lembra ao diabo,
enquanto a noite vai tricotando a sua agonia, à espera de um relâmpago que a
salve de se precipitar na maresia da madrugada. Rosalía não chegou aos
cinquenta anos, mas a Greco fez hoje noventa e três. Não sei se nisto haverá
alguma mensagem cifrada ou se tudo não passa de um acaso.
Subscrever:
Mensagens (Atom)