domingo, 8 de março de 2020

Um treino para o futuro

Realizo com método e sem prazer um conjunto de tarefas que tem por finalidade coisa nenhuma. Conheço muita gente que faz coisas úteis, mesmo que isso não lhe dê um especial prazer. Eu especializei-me em inutilidades. A inutilidade tem uma estratégia insidiosa para impor a sua natureza despótica. Durante muito tempo ela traveste-se, mostra-se como um farol que iluminará o bem. Quando o incauto, neste caso eu, dá por isso, está enrolado de pés e mãos e já passou há muito o tempo em que poderia ter-se posto a grande distância. A partir daí terá de sofrer, e isto não é uma hipérbole, os desvarios das coisas inúteis, o poder infinito dos produtores de irracionalidades, das imaginações transbordantes com que conseguem apresentar as maiores idiotices como sinal de razoabilidade. Alturas há em que chego a apreciar este meu destino, o treino que me dá lidar com a insensatez. Tenho esperança que no futuro me seja de grande préstimo, quando a idade, se a ela chegar, me trouxer a demência ou coisa semelhante. Terei paciência para mim, serei condescendente com os esquecimentos, a troca de nomes, as frases truncadas, até com os risos idiotas que haverei de ter sobre coisas que não têm graça nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas, é o que penso quando me deixo invadir pela cultura ao gosto popular. Dá-me uma realidade insensata para que eu aprenda a viver com a insensatez que me espera. O domingo está cinzento e preciso de sair, mas muitas são as coisas idiotas que me retêm.

sábado, 7 de março de 2020

Mistérios da botânica

Acordei muito cedo. Pus-me a ler e tornei a adormecer. Não é que Chesterton me dê sono, mas dormira muito pouco. Quando dei por mim a manhã tinha entrado na idade madura, com uma luz quente e uma temperatura sensata. Lembrei-me que ainda há uns meses o pequeno almoço começava ritualmente, sem qualquer expectativa terapêutica e apenas por puro prazer, com um copo de sumo de toranja. Entre esta e um medicamento que tenho de tomar existe uma incompatibilidade tal que não podem coexistir no meu pobre organismo. Durante muito tempo, pus de lado o medicamento. Agora rendi-me à realidade, que é sempre mais perversa do que deveria ser. Antes de tomar o pequeno almoço dei uma volta pela casa para abrir janelas. De todas as coisas teóricas que me interessaram, a botânica não foi uma delas. E entre as poucas coisas práticas que me solicitaram o desejo, não consta a jardinagem. A verdade, porém, é que nunca deixo de contemplar o friso das orquídeas e o pequeno mistério que lá habita. O friso dar orquídeas é uma hipérbole para designar o parapeito de uma janela onde habitam dez exemplares desta espécie. Estão a florescer. O mistério é o da orquídea branca que chegou aqui nos finais de Março do ano passado com as flores abertas. Enquanto as suas novas vizinhas entregavam a beleza ao criador e hibernavam, ela manteve-se florida até hoje e, conforme pude constatar, promete continuar. Durante os meses de Outono e Inverno foi incansável, oferecendo o imaculado da sua brancura como uma bandeira para apaziguar os espíritos. Quando a olho imagino que será um anjo cansado de voar e que tomou a forma de uma planta. Os anjos são capazes de tudo, embora também angelologia não seja uma das áreas a que tenha dedicado atenção, o que não me permite ter a certeza se entre as hierarquias angélicas existirá alguma cujos membros se possam transformar em orquídea. O sábado já passou pelo portal do meio-dia. A minha consciência olha-me acusadora e pergunta-me por que razão não dei atenção à botânica nem ao estudo dos anjos. Olhei-a nos olhos e fiz-lhe um gesto que por decoro me abstenho de descrever.

sexta-feira, 6 de março de 2020

As memórias inúteis

Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos, como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos, crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Tendência para a dissipação

Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou. Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes resistir. Haverá alguém que leia O Prato d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.

quarta-feira, 4 de março de 2020

O verbo reunir

Olho para a minha agenda, uma agenda imaginária, claro, e sou assaltado por uma pergunta. Que mistério haverá no verbo reunir para que ele exerça sobre tantos tão poderosa atracção? Vou a um dicionário, olho o verbo bem nos olhos, perscruto-lhe a intimidade e começo a vislumbrar aquilo que nele há de tão poderoso. Exprime uma nostalgia e uma recusa. Imaginemos a expressão toca a reunir. Nela há uma urgência na recusa do estado de dispersão. Haverá medo de que dispersos, perdidos na singularidade, não consigamos resistir a não se sabe bem o quê. E é aqui que nasce a nostalgia desse tempo mítico em estávamos todos unidos. As instituições estão cheias de reuniões porque muitos daqueles que as ordenam são pessoas nostálgicas e medrosas. Não suportam a solidão do estado de dispersão, desejam ardentemente voltar ao estado arcaico que habita a sua imaginação. Tudo isto para dizer que tenho duas reuniões para me ocuparem a tarde, sem que lhes vislumbre a necessidade, a não ser para aqueles que têm medo da solidão. Uma motorizada ronca pelas ruas aqui à volta. O ruído da maquineta é inversamente proporcional à inteligência de quem a conduz. Depois imagino que também ele terá pressa para se reunir. Os pássaros meus vizinhos parecem corroborar a minha ideia, mas logo abandonam o assunto para se entregar a uma conversa sobre os planos de voo. Também eles precisam de acertar detalhes, tomar decisões, fazer escolhas. Calaram-se agora, sinal que tudo está resolvido.

terça-feira, 3 de março de 2020

A insurgência contra a voz

O céu sobre o hospital parece chumbo, tão carregadas estão as nuvens. Tenho alguns assuntos pouco entusiasmantes para resolver, mas folheio um livro de memórias de Elias Canetti, O Archote no Ouvido – História de Uma Vida. Leio umas frases aqui, outras ali, saltitando com inconstância, enquanto vou espreitando os meteoros. Já ninguém emprega esta palavra para designar o que acontece na atmosfera. A terceira parte do livro, que trata da vida do autor em Viena entre 1926 e 1928, tem um título extraordinário, A Escola do Ouvir. Será, por certo, uma metáfora, mas representa um modo de existência. Aprender a ouvir e aprender ouvindo são a mais profunda forma de aprender a viver. Só a voz toca as cordas do coração e abre caminhos insuspeitos, muitos dos quais se manterão secretos até que, por um qualquer acidente de percurso, eles se revelem, com o que têm de benfazejo. Hoje ninguém quer aprender a ouvir. Não se suporta escutar uma voz. As crianças não devem aprender ouvindo, diz-se, mas devem fazer, experimentar, como se estivessem todas condenadas à fabricação. O que me impressiona é o medo que se tem de saber escutar. Esse medo nasce da recusa da voz. Os filhos não escutam a voz dos pais. Os alunos recusam a voz dos professores. Temem que essas vozes não sejam as do futuro ou não foram educados a suportar o imenso peso do passado que uma voz traz em si. Não é por acaso que um certo livro do Novo Testamento começa dizendo que no princípio era o Verbo. No início está a voz que profere a palavra. A insurgência contra a voz, a recusa da escola do ouvir, não representa progresso algum, mas a perda da nossa humanidade, que está toda ela nessa voz que faz ouvir e que se escuta. Hoje cheguei à tarde envolvido num pathos metafísico, o mais sensato será ir comer chocolate.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Uma tarde na vida de um pobre mortal

A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas, entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala, sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir. Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório, sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera, como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me, imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse, respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.

domingo, 1 de março de 2020

Cultivar um jardim

Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois, com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade. Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul Han com o belo nome de Louvor da Terra. Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me responda.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

A verdade numa app

Acordei com a chuva a tamborilar nas janelas, mas como me converti ao pechisbeque tecnológico do mundo pós-moderno em que vivo fui verificar na aplicação do telemóvel se era verdade. Era-o. De facto, a água caía mesmo aqui, na freguesia em que vivo. Fiquei descansado, pois nem a natureza se atreve a desmentir aquilo que a técnica diz estar a ocorrer. Fora eu dado a meditações filosóficas e haveria motivo para longas argumentações sobre o estatuto da verdade nos nossos dias. É verdade aquilo que uma aplicação informática, chamam-lhe app, diz que o é. Vale-me a mim e aos que têm a infelicidade de me ler que não sou dado a tais pensamentos. Se me ocorrem, desvio logo os olhos e fico a ver a paisagem, as nuvens no céu, o sol a brilhar nas superfícies molhadas, a mulher de curvas recortadas que arrasta com vagar um guarda-chuva sobre a passadeira, enquanto os carros param com cerimónia e os condutores olham quem, tão exposto ao desejo dos seus olhos, assim passa sem pressa. Ao escrever isto assaltou-me uma inquietação. Será que ainda se podem dizer estas coisas? Farei eu parte de uma conjuração patriarcal? O melhor é também afastar estes pensamentos, pois o autor destas palavras proibiu-me tudo o que tivesse odor a política. Eu sou apenas um pobre narrador e sei qual é o meu lugar. Olho pela janela e vejo o sol a romper as nuvens e lançar os seus dardos – meu Deus, isto não é uma metáfora moribunda, mas um cadáver ambulante que trouxe para o texto – sobre as árvores incautas que dele não se sabem proteger. Será verdade, o que vejo? Pressuroso precipito-me para o telemóvel e sinto-me reconfortado pela app meteorológica confirmar que não é ilusão aquilo que os meus olhos observam. Fecho-os e neles logo passa a mulher de curvas recortadas que arrasta um guarda-chuva pela passadeira e maldigo-me por ainda não ter descarregado a aplicação que me confirme se ela vai mesmo pela passadeira.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Entre Uqbar e Pasárgada

Um ruído de canivetes afiados chega-me aos ouvidos. Bandos de crianças de um dos Jardins de Infância desembarcaram no parque, anunciando-me a aproximação do fim-de-semana. Admiro a coragem de quem se presta a passar o dia a receber alfinetadas nos tímpanos. Não sei como não enlouquece e não se torna em personagem de um dos quadros de Munch. Conto os minutos para que o ruído se evapore e possa respirar fundo, olhar com demora para um livro que descobri ontem e entrar no reino do silêncio. Tenho um pequeno ensaio para escrever. É tão pequeno que me esqueci dele e só me lembrei quando o fim do prazo de entrega fez soar o gongo anunciando as poucas horas que restam para que tudo fique consumado. As crianças continuam a gritar, chamam-se por nomes inverosímeis, o que abre no meu coração a porta para o que há de pior, a tentação de elaborar um estrito catálogo de nomes possíveis e torná-lo lei incondicional e com efeitos retroactivos. É em momentos destes que me lembro de uma passagem de Borges, em que este atribui a Casares a recordação de que um dos heresiarcas de Uqbar declarara espelhos e cópula como coisas abomináveis, pois ambos multiplicam o número de homens. Nunca deixei de admirar estes heresiarcas apócrifos e alturas houve, movido pelo cansaço que os espelhos provocam, em que pensei também eu tornar-me um grande heresiarca. O meu problema foi a hesitação. Comecei por um inventário de heresias, mas havia tantas e tão extraordinárias que nunca consegui decidir-me por nenhuma e, desse modo, falhei a vocação. Resta sonhar-me em Uqbar carregando no dorso a heresia que não escolhi ou, caso o dia esteja escuro, em Pasárgada, lá serei amigo do rei. Hoje estou demasiado sul-americano.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Caminhar dentro da realidade

Não tarda e caminharei por dentro da realidade. Esta combina estranhas características, um misto de rameira e de alcaiota, onde os ademanes de prostíbulo e as estratégias do alcovito se fundem entre urros selvagens e longos desesperos. Ali cultiva-se a ignorância e há que ter punho de ferro para sobreviver. Por vezes, há quem caia em combate. Consta que as enfermarias estão cheias de feridos de guerra, gente mutilada pelos cantos, uma visão preparatória para a entrada no Inferno, onde Dante e o seu mestre ainda nos esperam, contrariamente ao que consta por aí. Como é habitual, a minha propensão para a hipérbole não se conteve e deixei transparecer o cepticismo contumaz com que envolvo tudo que tenha a ver com a realidade, a humana para ser mais específico. Desaconselham-me a descrença nessa realidade, pois, afirmam, vivemos no melhor dos mundos possíveis, ou se ainda não o é para lá caminha a grande velocidade, aquela que nos leva para o futuro. Esquecem-se, porém, que o único futuro certo que temos é a morte, mas sobre esta o melhor é seguir a máxima wittgensteiniana sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar, o que contraria a inclinação natural para a logorreia de que sofro. Com tantas citações eruditas, não fora eu o que sou, há muito teria evitado a corveia da realidade.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Meditações em Quarta-Feira de Cinzas

Sic transit gloria mundi. Era assim que deveria começar este texto, mas recuso-me a fazê-lo. Sei que é Quarta-Feira de Cinzas, que estas são símbolo da transitoriedade humana e que o latim não iria mal com o dia de hoje. Há nele uma melancolia tal que sinto o coração a contrair-se. Esta tristeza veste muito bem os dias quaresmais que batem à porta. Não é que haja quem se entregue, nestes tempos, a jejuns hercúleos e abstinências rigorosas, mas é a própria Quaresma que empresta tonalidades entristecidas a um sol cúmplice e a uma luz de pouco ânimo. Salvo algumas excepções, espanto-me sempre com a falta de personagens nestes textos, como se o que é humano não devesse ser o motivo de quem narra. É preciso talento para falar de pessoas, dar-lhes vida, avigorá-las com acções, excitá-las com desejos e instigá-las com objectivos a perseguir ou apoucá-las com o peso da decepção. O meu talento, porém, viveu sempre de longos jejuns e árduas abstinências e por isso escrevo coisas que não interessam a ninguém. Por exemplo, John Locke pensava que as palavras são sinais sensíveis das nossas ideias. O que falta explicar é como me ocorrem tantas palavras sem que na minha mente haja uma ideia. Para mim, palavras são peças de Lego que vou encaixando umas nas outras. É verdade que nunca consigo fazer uma casa, um carro ou um helicóptero, mas gosto de as ver arrumadas da esquerda para a direita e de cima para baixo. Essa ordem tranquiliza-me, como se fosse um escudo contra o transitório que há em tudo o que existe. Não é, mas não deixa de ser virtuoso mentir a si mesmo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Manteiga de arsénio

Acordei com uma sensação de irritação na garganta, um pré-aviso de faringite, e o primeiro pensamento foi onde está o Strepfen. Não devia fazer publicidade gratuita à indústria farmacêutica, mas não há ninguém que, ao acordar envinagrado, pense onde está a solução para pulverização bucal de flurbiprofeno. O comércio com as suas marcas é muito mais entusiasmante do que a química, a qual desde a reforma da nomenclatura feita por Lavoisier, Bertholet, Fourcroy e Morveau – são legião as coisas inúteis que eu sei – perdeu a natureza poética que animava o mundo governado pela teoria do flogisto e onde existiam coisas tão espantosas como fígado de antimónio, sal da sabedoria, flor de bismuto, isto para não falar no açafrão de Marte e na manteiga de arsénio, a qual deveria ter excelente utilidade em casos desesperados, e que hoje em dia, se vi bem, é conhecida pela designação despoética de tricloreto de arsénio. Acordar assim no dia de Carnaval não é um bom sintoma e não sei a quem culpar se à minha faringe se ao Lavoisier. Durante a noite, e num momento de insónia, o senhor Chesterton, do qual estive a ler umas páginas para tentar chamar o sono, recordou-me uma verdade central da existência. Tudo o que é extraordinário depende de um veto, de uma proibição, por norma destituída de sentido. Lembrei-me de imediato de Adão e Eva e da sua extraordinária existência paradisíaca presa pelo veto de comerem o fruto de uma árvore. Se o leitor, porém, for um nietzschiano empedernido ou um cultor da supremacia ariana e achar que isso são coisas de uma cultura judaico-cristã decadente, recordo-lhe que também a felicidade de Orfeu dependia da estranha proibição de olhar para Eurídice enquanto se afastavam do país dos mortos. Num mundo em que já não há fígado de antimónio nem flor de bismuto, o sal da sabedoria é descobrir qual a proibição que vela pela sua felicidade e o mais sensato é não comer maçãs ou olhar para trás, não vá lá estar a Eurídice que se perderá para sempre.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Outros carnavais

Nestes dias ainda não avistei por aqui foliões a imaginar que estão no Carnaval. Anda tudo muito circunspecto. Se deixar a memória fluir, hei-de lembrar-me de que no tempo de criança, na escola primária, talvez antes, ter-me-iam comprado uma caraça – havia as de pasta de papel e as de plástico – uma pistola de água, as inevitáveis serpentinas e os estalinhos, não sei se por outros lados teriam outro nome. Nada disto entrava na escola e os professores daquele tempo, com os seus fatos escuros e gravatas sombrias, eram gente séria e pouco dada à volatilidade do corso, prontos a manejar uma régua com que imaginavam civilizar uma turba de selvagens. Mascaradas e outros devaneios conflituavam com a santidade do que havia para aprender. Mesmo em casa, as bombinhas de mau cheiro não faziam parte do permissível e os sacos de confettis, vá lá saber-se o motivo, também não. Não seria um Carnaval inebriante, mas na altura tudo aquilo pertencia a uma ordem inquestionada do mundo, que se aceitava porque era assim, mesmo os selvagens actos civilizacionais de professores austeros. As pistolas de água nem sempre davam ocasião a situações amistosas e as serpentinas nunca deixaram de ser uma decepção. Lançadas, era impossível recolhê-las para as tornar a lançar. Serviam apenas para juncar o chão de papel colorido e ficar a olhar para aquilo sem entusiasmo, não percebendo na altura a lição que havia nelas sobre a irreversibilidade de tudo o que acontece. Na verdade, aprendiam-se muitas coisas, talvez as mais importantes, sem saber que se aprendiam e nisso havia uma inteligência profunda que foi vendida ao desbarato nalguma feira da ladra.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Meditações em Domingo Gordo

Ganha-se má fama e pouco há a fazer. Depois de ter ouvido a irmã dizer mil vezes que têm de levar as raquetes de badminton para jogarem comigo, a minha neta mais velha, cansada da iteração, respondeu que não achava isso grande ideia, pois a última vez que o avô jogou com elas deu cabo das costas. Entrar na adolescência é abrir a porta da blasfémia, foi o que me ocorreu quando soube do comentário impiedoso acerca da minha condição atlética. Dei indicação estrita para não se esquecerem das raquetes. Se ficar sem me mexer, paciência. Está um domingo gordo, cheio de sol, os insectos que o inverno tinha adormecido despertam e enchem o ar de zumbidos. Tenho dias em que a verve descamba para o regionalismo, para pintar paisagens bucólicas, por onde caminho à beira do rio, a vida a florescer à minha volta, os pássaros a cantar. Ser provinciano é um exercício trabalhoso, onde há que adoçar as vísceras, conter ideias que possam atravessar a mente como um relâmpago e desabarem no mundo como um trovão. Duas comparações seguidas não são bom augúrio para o meu destino de autor. Há tempos comprei duas obras da Sarah Beirão. Falo a sério. Amores no Campo e Serões da Beira. Numa deles, a autora escreve: Amavam-se enternecidamente. E fico aqui na minha província, diferente da dela, sentado à secretária, a olhar para aquele amor terno, à antiga, como de imediato se esclarece. Um daqueles amores de almas enlaçadas, a vibrar nas mesmas emoções, uma cornucópia de olhares e desejos que hão-de traduzir-se em muitos filhos, ou não, pois nunca li o conto. Um dos livros traz, no interior, uma assinatura e o ano de 1942 e, mais abaixo, uma dedicatória e a data de 16-XI-59. A vida tem destas coisas. Alguém, uma mãe, compra o livro ainda a segunda guerra mundial estava a meio, oferece-o à filha e ao genro, ou ao filho e à nora, mesmo antes de se chegar aos gloriosos anos sessenta e agora jaz à minha frente, depois de ter sido vendido a um alfarrabista. O que tem isto a ver com o badminton? Nada, mas a vida é feita de coisas que não têm nada a ver umas com as outras.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Nostalgias incompreensíveis

Hesito sempre entre o antes e o depois, não sei qual das personagens me desagrada menos, embora pareçam muito distantes e diferentes. Não estou a falar de literatura. Hoje hipotequei a manhã num corte de cabelo. Antes de o cortar talvez parecesse um velho intelectual da rive gauche. Agora, já que corto sempre o cabelo curto, talvez pareça um velho militar na reforma. Não me desagrada o ar marcial. Há uns anos, por motivos fortuitos que não vêm ao caso, cortei rente o cabelo. Gostei da sensação. Há em mim nostalgias incompreensíveis, saudades de coisas que nunca experimentei. Umas vezes, penso que deveria ter sido monge cartuxo ou trapista. Ponho-me a imaginar a vida disciplinada, a prática do sacrifício, as horas de oração, a dádiva total à vontade divina. Outras vejo-me como militar, o serviço prestado à comunidade, a dádiva no campo de batalha. Talvez haja em mim uma inclinação trágica para o sacrifício. A verdade, contudo, é que sou um filho de Adão e tão volúvel como este, que logo se deixa levar pelo sorriso de Eva e vende o paraíso pela primeira quimera que lhe oferecem. Cheguei cedo a este sábado. Já não sou o mesmo que era quando saí da cama. Não lerei o Le Monde nem o Libération, sentado numa esplanada. Olho-me ao espelho e vejo nele o militar que não fui. Há pouco, quando escrevi que não estava a falar de literatura, menti.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Dias difíceis

Enquanto escrevo, um programa de optimização do computador exerce laborioso a sua função. Talvez não devesse estar a escrever enquanto ele luta com denodo contra a corrupção da máquina e faz o que pode para a manter à tona de água. Invejo os computadores. Como eu desejaria poder correr em mim um software que me optimizasse. Não haveria erros de registo, nem de atalhos. Acabaria com os problemas de privacidade, as ameaças de spyware e o desempenho, esse elevar-se-ia à estratosfera. Infelizmente, não há um programa desses que me livre de tudo aquilo que me corrompe as vísceras, infecta a alma e apodrece o espírito. É neste estado que enfrento a entrada numa das épocas mais melancólicas do ano. Só de me lembrar daqueles carnavais portugueses, com as raparigas quase despidas, a fingir que são brasileiras e que trazem o samba à flor da pele, dá-me vontade de chorar. Depois, oiço palavras como foliões e nesse delicado momento a minha vontade de invadir a Bélgica ou mesmo a Polónia é desmedida. Vão ser tempos difíceis. Os dias estão cada vez maiores e o sol mais quente. Olho para a paisagem e só vejo primaveras e qualquer coisa em mim fica apreensiva. A Primavera é um embuste da natureza para nos enfiar à socapa nos matagais ínferos do Verão. O baloiço lá em baixo range e eu vou rangendo com ele. Hoje devia recomeçar as caminhadas. Aliás, devia recomeçar muitas coisas e não tenho tempo para tanto recomeço, o melhor é procrastinar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O caos avança

A quinta-feira passou a fronteira que separa a manhã da tarde, vai a trote, sem impaciência. Ao nomear o dia lembrei-me de um romance de Chesterton lido há muito, O Homem que Era Quinta-Feira. A história metia anarquistas, polícias e espiões infiltrados, acabando por tudo se confundir. É o que acontece na vida não romanesca. Tudo se confunde. Porventura, eu deveria ser mais honesto e dizer tudo se me confunde ou confundo-me com tudo. Imagino que quando se é recém-nascido a mente seja povoada por um caos e que, paulatinamente, se vai organizando até se tornar um cosmos límpido e quase aprazível, como aquele que Descartes exibia quando tinha por habitantes da sua mente as evidências, tão claras e tão distintas, que ofuscariam um sol como o de hoje. Eu, confesso, nunca tive muitas evidências, embora viva num mundo onde não há cão nem gato que não as exija . Seja como for, eu sei que é quinta-feira porque o calendário assim o diz ou talvez me tenha lembrado do romance do Chesterton e feito a dedução, aliás brilhante, que se segue: hoje lembrei-me do romance O Homem que Era Quinta-Feira, logo hoje só pode ser quinta-feira. Como se vê, existem já evidências do meu estado de confusão mental, em que confundo a objectividade do calendário com a subjectividade da memória. Espero que amanhã, por contiguidade metonímica ou por mera associação, me lembre do Robinson Crusoe e acerte no dia da semana. Com o avançar da tarde a confusão só pode aumentar. Quando a noite cair, o caos mental será tão grande que talvez já nem saiba o meu nome, se é que terei algum nessa altura.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A quarta-feira escorrega

Enfastiado, deixo a quarta-feira escorregar por mim. Não sei o que fazer com ela, embora saiba o que fazer nela. Tenho muito para ler, mas não é literatura que me desvaneça. Cansar-me-á os olhos. Haverá de me fazer sorrir, outras vezes bocejar. Do parque infantil, chega-me o ranger das roldanas. Não fora o ruído e quase acharia um tom poético na aliteração. Isto aqui, porém, é prosa e manda a correcção do estilo evitar repetições sonoras, mas elas insistem, desabam no texto, caminham por ele e deixam uma pegada que ninguém apagará. Uma mãe chama uma filha, um aspirador sorve a poeira num apartamento vizinho, o ar fresco entra-me pela janela, enquanto os meus olhos saltam para a paisagem em frente. O pequeno bosque ergue-se como uma barreira verde que começa a ocultar-me o mundo. É uma tapada de árvores uniformes, de onde se exceptuam alguns cedros, que deram em esgalgar e querem confundir-se com marcos miliários, pelos quais os anjos hão-de contar as milhas que percorrem nessa estéril tentativa de proteger os homens de si mesmos. O aspirador calou-se. Não tarda e o grupo musical da escola vizinha há-de vir animar a tarde, com as suas canções de baile de província. Ocorre-me que ande a ensaiar para o baile da pinhata ou para alguma verbena. O telemóvel informa-me que o antivírus está a olhar por mim. Inclino a cabeça em sinal de gratidão e penso que sempre existem anjos. A minha operadora de comunicações, purificando-se pela caridade, insiste em oferecer-me coisas, como se tivesse urgência em ganhar o céu. O inferno são os outros, mas isso é conversa de intelectual que não vem ao caso.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Escolher o pior

Devia ter-me dedicado ao comércio, trocar mercadorias por dinheiro. Comerciar é um exercício pacífico em que ambos os lados, os que compram e os que vendem, acabam por se sentir felizes e por isso cooperam, quase sempre com a bonomia e o trato civilizado que o interesse mútuo supõe. Há nessa civilidade fingimento e dissimulação? Claro, mas sem essas duas virtudes – pois virtudes são e virtuosos, os seus efeitos – o mundo seria um lugar nefasto e muito mais insuportável do que é. A minha natureza, porém, impediu-me a escolha sensata. Fui dotado de uma propensão para optar pelo pior. Não falo por falar. Escolhi dar de comer a quem não tem fome. Uma profissão de mérito, embora com pouca utilidade. Durante uns tempos ainda me apareciam famélicos, alguns mesmo subnutridos, a quem eu tinha o privilégio – coisa que não sabia na altura que o era – de alimentar. Depois, os enjoados e os enojados, que vomitam com facilidade, começaram a crescer em número e tornaram-se dominantes, mas foram já ultrapassados por aqueles que se recusam a abrir a boca. A colher vai e vem, enquanto eles indiferentes ostentam uma saciedade desarmante. Como seria empolgante esse mundo de letras e livranças, de cheques e numerário, com os seus almoços e jantares de negócios, uma pessoa rodeada de gente com apetite, sempre disposta a abrir a boca, sempre disponível para mais uma iguaria. Como é belo um balanço e terna a relação entre o deve e o haver. Escolhi, porém, dever tudo e não ter nada a haver. Quando começo a falar por enigmas, o melhor é desconfiar da minha sanidade mental.