Ingénuo – e ingenuidade com esta idade não é ingenuidade, mas burrice – tinha eu pensado que no dia 26 terminavam as natalidades deste ano. Não tomei em consideração a possibilidade de existirem efeitos colaterais. Estes, porém, vieram inexoráveis e atingiram toda a família. Sessões de vómitos, febres, diarreias, dores no corpo. Como bons seres humanos, logo arranjámos maneira de acusar umas ostras do almoço de Dia de Natal. Foram incriminadas com o delito de intoxicação alimentar. Pobres ostras, o mais certo é estarem inocentes. Depois, foi considerada a possibilidade de uma virose genérica, sem designação. Aqui havia um contratempo. Não se identificava o criminoso e a queixa era apresentada contra incertos. Valeu a opinião de um farmacêutico desconhecido e ocasional e de um médico amigo, este via telefone. O mais certo é ser gripe A. Foi o que deram as natalidades deste ano, gripe A. Agora, vou repousar, eu que ainda não fiz outra coisa senão descansar, pois, seja qual for o agente patogénico, tem o extraordinário poder de enviar o paciente para a imobilidade. Imóvel, o corpo parece mais apaziguado. É disso que preciso, apaziguamento.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
terça-feira, 26 de dezembro de 2023
Uma tradição
Ainda não acabaram as minhas natalidades. Respiro fundo, encho-me de coragem e preparo-me para a última etapa. É uma etapa e não uma provação. Por norma, são momentos agradáveis e acolhedores, mas já cheguei àquela altura em que estar em casa é estar no melhor dos mundos possíveis. Aliás, o Natal para mim não é uma provação, mas uma altura de que gosto, embora fique cada vez mais cansado do exercício. Recebi uma fotografia com o meu neto vestido com um pólo do clube de que a família é adepta há várias gerações. Foi uma foto para ver como ficava e para enviar ao avô que teve a ideia de lhe oferecer a vestimenta. É preciso notar, todavia, que o avô está para o clube como muitos católicos estão para Igreja. É um não praticante. Gosta quando o clube ganha, mas se perde ou empata, não encontra motivos de tristeza. Não consegue entender a metafísica do esférico, acha a ética da coisa deplorável e a estética do jogo, em muitos casos, ainda é pior que a ética. Em suma, raramente vê um jogo de futebol. Quanto ao desporto, o rugby há muito que ocupou o lugar do futebol e nem mesmo a esse jogo presta grande atenção. Na adolescência, porém, era vidrado, no sentido que no Brasil se atribui a esse vocábulo, para além do futebol, pela Fórmula 1. Adepto incondicional de Jackie Stewart, o escocês voador. Não havia grande prémio que não assistisse na televisão. Quando a Fórmula 1 chegou a Portugal, ao autódromo do Estoril, já o interesse pelo fenómeno dos carros à volta de uma pista se tinha ido embora e nunca cheguei a assistir a uma corrida ao vivo. Ainda me recordo do nome dos pilotos daqueles tempos, então, uns heróis, mas dos actuais não faço ideia de quem sejam, para além daqueles que ocupam os cabeçalhos das notícias dos jornais que leio. Apesar de tudo, achei que a camisola ficava bem ao meu neto. Um dia destes, faço um sacrifício e levo-o a ver um jogo. Ele veste o pólo e o avô põe um cachecol que um dia comprou ao passar, inadvertidamente, depois de uma ida ao cinema, por uma celebração de um campeonato ganho pelo tal clube que conquistou o coração familiar há várias gerações. Uma tradição.
segunda-feira, 25 de dezembro de 2023
Natalidades
A Consoada já pode ser riscada do calendário natalício deste ano. Segue-se, mais logo, o almoço de Natal, sempre tardio, depois uma espécie de lanche e jantar, num só, e a coisa só acaba com um almoço de dia 26. Tudo isto em diferentes locais. Famílias modernas, digamos assim. Em resumo quase um por cento dos dias de um ano são gastos com as natalidades, isto sem contar, com a procura e compra de presentes. O Papa, li nem sei bem onde, apela para que não se faça do Natal uma festa do consumismo. Eis um pedido pouco caridoso. Imaginemos que todos os que vivem numa cultura com base no cristianismo se tornavam frugais no Natal, que restringiam os consumos e viviam a efeméride com o espírito de pobreza do presépio e não com a presunção de que são reis magos vindos do Oriente. Quantas falências essa atitude implicaria? Quantas pessoas lançadas no desemprego? A Terra, caso tivesse consciência e linguagem, ficaria grata, mas se as tem nós não damos por elas. Por isso, dispensamos a gratidão do planeta e cuidamos de comprar coisas, as mais das vezes inúteis para os compradores e ainda mais para aqueles que vão ser contemplados com elas, mas que têm um forte significado económico. Estou a desviar-me do assunto e a economia é uma área em que a minha ignorância é inexcedível. Por vezes, penso que é uma disciplina com fortes afinidades com a astrologia, pois as previsões económicas são tão incertas quanto as astrológicas, apesar dos robustos modelos matemáticos que os economistas usam para que todos pensem que são cientistas e não astrólogos. O melhor é não continuar com esta catilinária contra a tribo dos economistas, pois hoje é dia de Natal e há que fazer parte dos homens de boa vontade. Talvez o Papa precise de um aconselhamento económico, mesmo dado por astrólogos do mercado, para compreender que entre o espírito e o consumismo não há uma incompatibilidade, pois o espírito dos nossos dias é o espírito de consumo. Até que tudo fique consumado. Vou preparar-me para enfrentar as natalidades que ainda me faltam.
domingo, 24 de dezembro de 2023
Consoada
Chegámos ao dia cuja noite é a noite de consoada. Pasmo não poucas vezes com a quantidade de palavras que uso e cujo sentido efectivo desconheço. Consoada é uma delas. Claro que sei o que é a noite de consoada. Esse saber, porém, diz pouco, é uma ciência que não passa de um minúsculo ilhéu no mar semântico da palavra consoada. Perante a ignorância, decido investigar. Na origem está o verbo consoar. Contudo, esse verbo, como muitos dos verbos que usamos, é equívoco, transportando mais que um sentido e tendo mais que uma origem. Em resumo, são dois verbos. No primeiro, consoar significa soar conjuntamente, mas também rimar. Estamos na área semântica do som. Deriva do latino consonāre, que significa ressoar juntamente. Ora a consoada não é um concerto coral, onde as vozes dos consoados se juntam e em uníssono ressoam. Embora, seja uma possibilidade interessante. Existe uma segunda dimensão semântica de consoar. Caso seja a versão intransitiva, então significa celebrar a consoada. Se, porém, for a versão transitiva, significará comer por consoada. Na sua origem, encontra-se um verbo latino, cōnsōlor, cujo infinitivo é cōnsōlārī e nos remete para a ideia de reconfortar. Contudo, podemos continuar a escavar no léxico e, de imediato, encontramos na raiz de cōnsōlor o verbo, também latino, sōlor. Que nos dirá ele? Fala-nos em aliviar, ajudar, socorrer. A consoada, então, será um exercício em que nos socorremos, ajudamos ou aliviamos uns aos outros, e isso reconforta-nos. Podemos ainda ir um pouco mais longe e tentar descobrir de onde vem sōlor. Aqui, as minhas fontes (o Wiktionnaire) perdem alguma precisão e apenas oferecem uma conjectura. E como todas as conjecturas, esta está sujeita a refutações. É provável que sōlor derive de sollus. Este será uma variante arcaica de solus, cujo significado era todo ou inteiro. Consta mesmo que sollus é o vocábulo latino mais antigo para significar o todo, o inteiro. Então, a consoada será aquela refeição conjunta em que nos tornamos numa totalidade, onde subsistirá a ideia de comunidade familiar, e ainda nos tornamos inteiros, onde restauramos a nossa inteireza, a nossa completude. E isso reconforta-nos, torna-nos mais fortes. Talvez aqui possamos juntar os dois verbos consoar, aquele que fala em ressoar conjuntamente e aquele onde restauramos a nossa inteireza em comunidade familiar. Essa restauração do todo é como uma canção, que cantamos completos na totalidade a que pertencemos. Não há nada melhor de que nos entregarmos à ociosidade da especulação. Curiosamente, na história evangélica do cristianismo, não é no momento que antecede o nascimento do Menino que se celebra a refeição reconfortante, mas no tempo que antecede a morte desse Menino, agora homem, na última ceia, que é, na verdade, uma ceia de consolação que prepara a morte, mas também o novo nascimento, o restabelecimento da inteireza perdida pela desatenção de Adão e Eva. Uma boa Consoada.
sábado, 23 de dezembro de 2023
Uma aventura em Campo de Ourique
Já chegou a noite. A maior aventura que me aconteceu hoje foi almoçar um cozido à portuguesa em Campo de Ourique. Desesperados, com a hora de almoço bem atrasada, cinco pessoas esfomeadas, encontram uma mesa, num restaurante ao acaso, sem marcação. Um milagre para um sábado, e que sábado, por aquelas paragens. Depressa percebi a inteligência daquela escolha. Era possível compor o cozido, excluindo umas coisas e reforçando outras. Por exemplo, excluir o frango ou o nabo e a cenoura. Isto de fazer compras a um sábado, véspera da véspera do dia de Natal, não lembra ao demónio, mas foi o que aconteceu. Não se tratava de presentes, mas de bebidas e comidas, com uma visita a uma grande superfície. Aproveitei, o estar ali pelo Jardim da Parada e fui à Ler, a livraria do bairro, sítio que, sempre que posso, visito, com pouco proveito para a minha conta bancária. Dos presentes que decidi oferecer-me consta os Poemas 1934-1961 de Pedro Homem de Mello. Nem tudo o que escreveu é bom, mas é um poeta que continua a merecer uma leitura atenta. O poema “Bailado” começa com a seguinte quadra: Quebrada pela cintura / Abre em dois frutos o peito. E o seu calcanhar procura / A ponta do pé direito. E não resisto a continuar, com mais duas quadras: O vento dá-lhe na cara, /Escondida pelo lenço. / E o luar, que a decepara, / Deixa-lhe o busto suspenso… // Os olhos, como hei-de vê-los, / Se os desejos, menos vãos, / Morrem só porque os cabelos / Nos deixam sombras nas mãos? E para o poema aqui jazer completo, fica a quadra final: Indizível, mas perfeito / Indício de formusura! / Abre em dois frutos o peito, / Quebrada pela cintura. Fez a Assírio & Alvim muito bem trazer de volta a poesia de Homem de Mello. Faltará um segundo volume, com a obra que vai de 1964 a 1979. O poeta morreu em 1984. Reparei, na livraria, que estão a ser republicados autores que estavam semi-esquecidos. Por exemplo, Fernando Namora, Alves Redol ou Augusto Abelaira. Carlos de Oliveira continua a ter leitores, bem como José Cardoso Pires ou Agustina Bessa-Luís. Além da obra poética de Homem de Mello, aventurei-me a comprar um romance de Jaime Nogueira Pinto, Os Passageiros da Sombra, e ainda A Justiça de Yerney, do esloveno Ivan Cankar e um livro de contos de Barnard Malamud, com um título de um realismo atroz, Primeiro os Idiotas. Para memória futuro, os livros foram comprados antes do cozido. O resultado de tudo isto foi voltar para o meu recanto na pequena província onde arrasto os meus dias, presos à pequenez de todas as coisas pequenas, as quais têm exactamente a mesma dimensão que as grandes, o que muda são os olhos que as observam.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
Ignorâncias e indefinições
Comecei a minha viagem de Inverno. Os primeiros rituais foram idênticos aos das outras estações. Extrair os comprimidos das respectivas embalagens para os colocar na mesa do pequeno-almoço. Tomo-os a meio da refeição, não todos de uma vez, pois são quatro, mas segundo uma ordem que me parece imutável. Primeiro um, depois outro e por fim os dois em falta, sempre na mesma ordem. As razões desta ordenação desconheço-as, mas existirão, tal como posso confirmar, aceitando o velho Baruch Espinosa como autoridade credível. Numa carta a Schuller, a carta LVIII, o filósofo holandês escrevia o seguinte: E esta é aquela liberdade humana que todos se vangloriam de possuir e que consiste apenas no facto de que os homens têm consciência dos seus desejos, mas ignoram as causas que os determinam. Assim, o bebé crê desejar livremente o leite, o garoto zangado a vingança e a criança medrosa a fuga. Ora, eu que não sou bebé, nem garoto, tão pouco criança, creio haver uma causa a determinar a ordem pelas quais tomo a medicação. Por vezes, ao engolir aquelas coisas, especulo sobre as causas. Serão mecânicas? Serão psicológicas? Serão fisiológicas? Serão sobrenaturais? E a cada pergunta sinto, com embaraço, a minha desilusão por não conseguir descobrir que potência está a guiar o meu ritual e o meu destino. Já pensei que fossem causas estéticas, mas ao olhar para cada um dos comprimidos não consigo sentir qualquer emoção estética e afastei a hipótese por implausível. Por vezes, caio na tentação de ver naquela ordenação apenas o resultado de uma escolha livre, de um projecto que me vai constituir, que me conduzirá da existência à minha essência. Existe, todavia, um óbice. Ter-se tornado um hábito ritualizado, quase uma tradição pessoal. Se é um hábito, então não é uma acção livre, mas determinada, mesmo que, por hipótese especulativa e pouco credível, no primeiro momento tivesse sido um acto de liberdade. Penso, uma vez por outra, em alterar a ordem da tomada dos comprimidos, mas o hábito é uma segunda natureza e eu sigo a natureza, mesmo que seja apenas uma segunda natureza. Não fora a existência de coisas como os blogues, como poderia o mundo ter acesso à sabedoria que me consome e que o ilumina. Eu sei que não será fraca a objecção que dirá que o mundo está nas trevas mais negras e que a minha luz ilumina tanto como uma lâmpada fundida. É preciso fé, respondo, pois só a fé permite ver a luz onde ela não existe e mesmo onde existe. A luz é uma coisa muita estranha, não fosse onda e corpúsculo, como se sofresse de uma incapacidade inata de se definir enquanto género. Chegou o Inverno.
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
Sem proficiência
Há dias tão brancos que nenhuma aventura os enriquece. São duas da tarde e apesar de ter demandado várias paragens, nem gigantes nem monstros, tão pouco canto de sereias. Ontem, porém, tive uma aventura extraordinária. Depois de pôr gasolina, fui dar ar aos pneus, que andavam com falta dele, precisavam de um ventilador. Aí descobri que a idade vai rasurando as poucas faculdades com que uma pessoa é dotada à nascença. Num dos pneus, o ar não queria entrar. A maquineta dava erro, uma e outra vez. As pernas doíam-me de estar acocorado e a máquina a dar erro, o ar a recusar-se a penetrar pela câmara que lhe estava destinada e um novo utente da maquineta à espera. Até que se condoeu de mim e me foi explicar, exemplificando, o problema. Era eu que não estava a usar a violência necessária para cingir o terminal da bomba de ar à válvula do pneu. Agradeci e pensei que as coisas começam a complicar-se. Uma vida inteira a pôr ar nos pneus e agora preciso que me expliquem como se faz. É verdade que ontem a minha mente estava ocupada com diversos assuntos que não vêm ao caso, mas isso não deveria impedir que fosse proficiente a encher os pneus do carro. Se chego a esta altura e perco a proficiência numa tarefa tão rotineira como essa, um mero amplexo entre um terminal e uma válvula, o que se seguirá? Talvez exista uma desculpa. O terminal, apesar da designação masculina, tem uma configuração fêmea, devendo ser penetrado pela válvula, independentemente da denominação feminina que lhe cabe. Haverá aqui uma confusão de género, um assunto que é melhor não abordar, mas que pode ter gerado em mim uma confusão tal que já não soubesse o que, naquele caso, era macho e o que era fêmea. Uma outra explicação, talvez melhor, será a minha falta de habilidade para coisas técnicas, mesmo as mais simples. Esta, porém, ainda que melhor, não me convence. Está um bonito dia de Inverno, apesar de estarmos no Outono. Por umas horas.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2023
Traduções
Tenho diante dos olhos uma tradução de poemas de Rainer Marie Rilke. O mais certo é a poesia ser intraduzível. Não se trata de transpor sentidos, mas sons e ritmos. Imaginemos uma música universal. Ela é o rumor da Terra ou o murmúrio das esferas celestes. Os poetas captam essas ondas sonoras e a poesia nasce na fronteira que separa essa música e a fala. Então, a poesia é o exercício de uma dupla contaminação, a da música que contagia a fala numa certa língua e a da fala de uma certa língua que infecta a música primordial. Em cada poema entramos no domínio de uma patologia, de uma paixão. Ora, nem a doença que sofro nem a paixão que vivo são transmissíveis a terceiros. São propriedades minhas, propriedades intransferíveis. É esse o problema da tradução de poemas. Por certo, pode haver versões de poemas, mas são sempre outra coisa, na melhor das situações outros poemas, como bem compreendeu Vasco Graça Moura ou Herberto Helder. Em nenhum caso, porém, um não poeta deve pôr-se a traduzir poesia, pois aquilo que sai não é uma tradução e tão pouco um novo poema. E com esta diatribe contra os tradutores não poéticos de poesia chego a esta hora. Ainda é de dia, mas por pouco tempo. Espera-me uma caminhada para acumular passos e pontos cardio. Primeiro, porém, vou assaltar o bolo rainha que vi lá para dentro e depois enfrento o vento norte, com a esperança de queimar calorias.
terça-feira, 19 de dezembro de 2023
Uma teologia da estucha
Entre o Natal e o Ano Novo está por cá? Por cá, o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini, queria dizer por Lisboa. Respondi que não estaria. Tenho em agenda uma viagem com as netas, que me afastará da capital. Algum acontecimento especial, perguntei. Está cá o Hans, referia-se a Hans Castorp, e a mulher. Como já terei contado por aqui, Hans Castorp foi discípulo do padre Lodo, embora nunca tenha sabido em que condições ocorreu esse discipulato. Mais tarde casou com Emilia Bazán. Melhor, Emilia Pardo Bazán. Nunca deixou fenecer a amizade com o padre Lodo e, não poucas vezes, o visita em Lisboa. Por norma, isso dá direito a um almoço ou jantar grupal, no qual o velho jesuíta conjuga diferentes amizades e as junta numa atmosfera amena, onde uma conversa cordial não esconde diferentes visões do mundo, muitas delas pouco concordantes com o espírito da Companhia de Jesus. Há mesmo entre os membros do grupo alguns representantes do velho jacobinismo anti-jesuítico, mas que não resistiram à afabilidade do padre italiano. As divergências, porém, nunca ultrapassam a benevolência de pequenos chistes, que fazem sorrir. Terei de ver se eles ainda estarão cá depois da passagem de ano, essa estucha. Estucha, sublinhei eu com ar interrogativo. Sim, estucha, estopada, uma chatice, aquela coisa das passas e da meia-noite. Ninguém o obriga ao ritual das passas, de facto, uma coisa insuportável, mas estucha, nunca lhe tinha ouvido tal palavra. Foi uma confessada que me a ensinou. Chega ao confessionário e todos os pecados que debita acabam com a expressão uma estucha. Parece-me uma pecadora enfadada, respondi. Talvez, talvez o pecado leve à perda dos homens mergulhando-os no aborrecimento, acrescentou. O melhor, depois do spleen baudelairiano e da nausée sartriana, seria elaborar uma teologia da chatice ou, melhor, da estucha. Ele riu-se e ficámos de falar daqui a dias.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023
Taxionomias pilosas
Comecei esta noite a ler Não Sou Stiller, um romance do suíço Max Frisch. Parece-me ter feito uma grande descoberta. O mais apropriado, por certo, não seria enfatizar a descoberta agora realizda, mas reconhecer com humildade socrática a minha enorme ignorância. Escrevi suíço e fiquei a pensar nas suíças, aquela porção de barba que certos homens deixam crescer nas partes laterais do rosto, também chamadas patilhas. De onde virá a designação? Das mulheres dos suíços? Um enigma. Ainda procurei, lendo em diagonal, no Signum Salomonis – A Figa – A Barba em Portugal, de José Leite de Vasconcelos. Ora, Leite de Vasconcelos entrega-se a uma informada e exaustiva taxionomia das suíças, mas não tem clara a razão que conduziu a que se chamassem suíças às suíças, não às mulheres naturais da Suíça, mas às vulgares patilhas, nome vindo daquele sítio de onde não vem nem bom vento nem bom casamento. Para quem esteja interessado em meditar os velhos usos pátrios da pilosidade facial, deixo o Sumário do Capítulo III, do livro supracitado: Formas naturais e artificiais • Barba medrada e seus nomes • Barba aparada • Nomenclatura da barba, segundo as partes do rosto que esta ocupa • Uso de formas de barba, já avulsas, já combinadas entre si • O que é projecto • Explicações etimológicas. Eu, como narrador glabro, não irei reflectir na metafísica da suíça, do bigode, da pêra e da mosca. Retenho o cavanhaque, não pela estética da pilosidade, mas por me lembrar o cognac. Quando me sentei aqui, não tinha qualquer intenção de falar de pêlos faciais, mas, faltando-me um espírito científico, deixei-me, como uma criança, arrastar pela associação de ideias, uma associação por contiguidade, para ser mais preciso. Nunca imaginei que o célebre Leite de Vasconcelos, nas suas investigações etnolinguísticas, se tivesse interessado por tal tema, mas o mundo é feito de surpresas, e eu sou um mestre em lugares-comuns.
domingo, 17 de dezembro de 2023
Motos e camelos
Sentei-me para escrever este texto e oiço um barulho na rua. Um desfile de motards passava pela Sá Carneiro. A maior parte vinha vestida de Pai Natal. Consta que faz parte da agenda cultural dos amantes das duas rodas esta celebração natalícia, ainda antes de Natal. Uma coisa fica provada. Existe evolução ao cimo deste pobre planeta. Houvesse, naqueles dias em que o Menino Jesus nasceu, o desenvolvimento tecnológico de hoje e os Reis Magos teriam chegado muito mais cedo. Em vez de camelos, vinham em potentes motos, isto para o caso de dispensarem os aviões e gostarem do ar a bater no rosto, e o dia de Reis poderia ser ainda antes do dia de Natal, como acontece com estes motards. Em vez de virem prestar tributo ao menino nascido, vinham partilhar as incertezas do parto, a expectativa que fosse um rapaz e que eles não se tivessem enganado ao seguir a estrela, que também andaria mais acelerada. Tenho, porém, de estar agradecido ao atraso tecnológico daqueles dias. Quando era criança, mas já estava submetido ao jugo da escolaridade, as férias de Natal iam até ao dia de Reis. Só a sete de Janeiro recomeçavam as aulas. Tudo acontecia sem pressa, com a lentidão de um camelo a atravessar o deserto. Olhando para trás, constato que havia alguma sabedoria naquele calendário escolar. Pelo menos, aprendi a ler, escrever e contar, sem ter que passar o dia inteiro na escola e ainda recebia o prémio de férias dilatadas, onde fantasiava a libertação dos deveres escolares. Talvez a solução para os problemas do ensino em Portugal, caso existam, seja a de substituir carros e motociclos por camelos, cavalos, mulas, machos e, acima de tudo, burros. Essa lentidão recuperada permitirá aos corações e aos cérebros abrir-se à sapiência, sem as pressas ruidosas dos tempos modernos. Hoje acordei com a veia conservadora a latejar e dobro o meu espírito a essa sombra da tradição. Amanhã, terei tempo para ser moderno e trocar o camelo pelo automóvel, já que motos nunca me seduziram.
sábado, 16 de dezembro de 2023
Trocas
Tem o número 000834 da biblioteca de um centro paroquial. Olhei para o número e pensei que seria grande a esperança de quem começou a catalogar os livros. Chegar às centenas de milhares seria um feito. O mais plausível é que quem carimbou aqueles algarismos, pois trata-se de um número carimbado, não tivesse meditado o suficiente nem em quantidades, nem em livros e muito menos em quantidades de livros. O destino dessa biblioteca paroquial foi o fim e os livros apareceram à venda. No site onde o comprei, havia informação de que estavam a esvaziar a sala onde se encontrava a biblioteca, pois era precisa para outras coisas. De facto, o espaço é pouco e talvez os livros sejam coisas que se dêem mal no espaço pertença de uma paróquia. O livro é composto por duas peças de teatro – A Muralha da China e Biedermann e os Incendiários – da autoria de Max Frisch. Há muito que não leio teatro. Não estou a dizer a verdade. Há uns meses li uma peça de Shakespeare, mas já não me lembro qual. Uma das portas que me permitiu entrar na literatura foi, todavia, o teatro. Sófocles e Sartre. O que li, então, exerceu forte influência sobre o meu pobre espírito de rapaz provinciano, mas não foi suficiente para me tornar um fiel leitor de peças teatrais. Recebi o livro há pouco, pois o centro paroquial é daqui perto e combinei ir lá buscar o livro. Pareceu-me uma paróquia muito dinâmica, mas imagino que pouco inclinada à leitura. Eu troquei o dinamismo pela leitura e não fiquei a ganhar, aposto.
sexta-feira, 15 de dezembro de 2023
Sextar
Estou dividido, embora a divisão seja superficial. Imagino que tenha sido no Brasil que a sexta-feira gerou o verbo sextar. Chegado a sexta-feira, alguém grita sextou! Não deixa de me divertir essa capacidade de reinventar o português que existe no Brasil. Por outro lado, não me ocorreria chegar a esta hora e gritar sextou! Em primeiro lugar, porque é desagradável andar a gritar por aí. Depois, porque temos obrigação de economizar nos pontos de exclamação. Por fim, porque há qualquer coisa de infantil na expressão. Como é hábito, a expressão começa a penetrar no léxico dos portugueses, que terão menos poder de imaginação para reinventar a língua e são mais sisudos do que os brasileiros. A conjugação destes dois factores faz com que, para sorrirmos, importemos a pilhéria do outro lado do oceano, tal como importámos o Carnaval, para que as raparigas despidas tremam de frio, enquanto expõem o corpo e fingem dançar o samba. Seja como for, chegámos ao crepúsculo desta sexta-feira, num momento em que o azul do céu se torna cinzento, para, depois, devir negro. Antes de chegar a casa, passei por um supermercado para comprar umas coisas que consta fazerem falta em casa. Acrescentei a isso duas garrafas de vinho, que não estando em falta, sempre animam o coração. Tinha já tudo acomodado quando descubro que deixara a carteira no carro. Ocorreu-me então que na pandemia se tinha desenvolvido o hábito de pagar por MBWay. Foi o que me salvou de ter de abandonar as compras e ir ao carro em busca do santo graal. Esta foi, felizmente, a coisa mais extraordinária que me aconteceu até agora, e assim espero que se mantenha. Não há nada pior do que as coisas extraordinárias. Às ordinárias sabemos como enfrentá-las, às extraordinárias, o fôlego já não é o que era. Estou a fazer horas para ir caminhar. Deixo que o fluxo do trânsito abrande, para não ter de respirar a fumarada que sai dos carros.
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
Especulações
Alguém diz Sem dúvida, o futuro será sombrio. Eu oiço o que é dito. Melhor, eu não oiço o que é dito, mas vejo o que está escrito. Talvez a pessoa que escreveu tal coisa não a diga. Imagino que nunca ninguém terá pensado nessa possível dissonância entre dizer e escrever. Imaginemos uma pessoa que, ao falar, diz certas coisas, mas que ao escrever se recusa a transpor por escrito as suas crenças orais. Quando escreve afirma coisas diferentes ou mesmo contraditórias. Todos tentamos unificar o ser que somos ao falar e aquele que somos ao escrever, mas será que somos o mesmo quando falamos e quando escrevemos? Imagine-se um académico. Quando faz uma conferência defende um certo ponto de vista sobre um dado assunto. Quando, porém, escreve um ensaio sobre esse mesmo assunto, propõe coisas radicalmente diferentes. A especulação desviou-me do tema que aqui me trazia. Como poderá alguém não ter dúvidas sobre a natureza sombria do futuro? O futuro, digo eu, não será sombrio, nem luminoso, nem negro. O futuro não existe, nunca existiu e nunca existirá, enquanto o tempo for aquilo que é. Eu nunca estarei no futuro, nem nunca estive no passado. Estive sempre no presente e, enquanto este se move, eu desloco-me com ele, que nunca me deixa abandoná-lo, e eu, por mais que tente, nunca consigo fugir-lhe. O resto são memórias e expectativas, mas nem uma coisa nem outra são tempo. Estas duas insanas especulações resultam de ter tido, malditas memórias, uns dias atribulados, preenchidos com tarefas que não contribuirão para a gesta que me há-de elevar à glória. Agora, essa casa de onde nunca saio, vejo um rosto feminino. Dos olhos abertos, deslizam duas lágrimas. A gravidade, todavia, é mais forte numa face do que na outra. Uma lágrima desliza mais rapidamente e aproxima-se já dos lábios. A outra parece parada sob a pálpebra. Eu fico a contemplar, numa revista, aquela estranha exposta numa fotografia a preto e branco. De súbito, encontrei nela uma inquietante semelhança com Eduína. Talvez os olhos abertos, talvez os lábios desejáveis, talvez a expressão de perplexidade, talvez o corte de cabelo. Se existisse passado, eu poderia dizer fui visitado pelo passado, mas não existe e eu não o digo.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023
Uma realidade disfuncional
Nem sei por onde começar. Há qualquer coisa que de disfuncional na realidade. Por exemplo, e começo por aí, o despudor com que ela se recusava, há pouco, a cumprir a previsão meteorológica. Para aqui, o site dava sol, ligeiramente encoberto por alguma nuvem passageira. Enquanto bebia café, consultava a previsão e via chover. Como pode a realidade, enganar-se deste modo, perguntava-me, não sem perplexidade. Demorou tempo até ela perceber o que lhe estava prescrito e deixar que o Sol brilhasse, apesar de algumas nuvens inconvenientes. Pior do que isso é o enigma do número 1949. Recebi há pouco um livro, Não Sou Stiller, um romance do escritor suíço Max Frisch. Um livro comprado num alfarrabista online. A tradução portuguesa, da saudosa Arcádia Editora, é da escritora Fernanda Botelho, e foi publicada em 1958. Ora, e aqui está o enigma, no canto superior direito das terceira e quinta páginas aparece um nome, um apelido grafado em maiúsculas, e debaixo dele o número 1949. Não faz sentido ser a referência ao ano da compra, pois a edição portuguesa só apareceu nove anos depois. Também não faz sentido que seja o ano de nascimento do comprador, pois é implausível que alguém de nove anos tivesse comprado aquele livro. Também não é referência ao ano da publicação original da obra, pois esta é de 1954. Folheio o livro à procura de pistas, mas não encontro nada. A única nota digna de atenção encontra-se no facto da página 181 estar dobrado no canto inferior direito, formando a dobra um triângulo rectângulo escaleno. Esta informação é interessante. O proprietário, eventualmente parou a leitura nessa página, não chegando a metade das 450 que compõem a obra. Um primeiro traço emerge, era pouco persistente. Também é claro que, apesar disso, procurava distinguir-se, pois a norma para dobrar as páginas é usar um canto superior e não inferior. Isso é confirmado pela forma como escreveu o apelido, todo em maiúsculas. Se fosse amante da harmonia e da proporção teria dobrado a folha em forma de triângulo equilátero, mas não. Repugnar-lhe-ia o princípio da igualdade e optou pela total diferenciação e o desequilíbrio. Certamente, alguém que gostaria de se armar em importante, dirá um espírito mais impiedoso que o meu. Com tudo o que se sabe do proprietário, ainda nada sei do número 1949. Como se vê a realidade não apenas é disfuncional, como resiste a que a compreendamos. Derrotado, desdobro a página e fecho o livro. Coloco-o na pilha de livros a ler e vou apanhar Sol.
terça-feira, 12 de dezembro de 2023
Melancolia cantabile
Já não tenho idade para estas coisas, pensei. Logo, porém, me arrependi do pensamento, pois é agora que começo a ter idade para frequentar com assiduidade consultórios médicos e enfrentar a estranha forma como os médicos lidam com o tempo, bem como com a sua inultrapassável incapacidade para perceberem a palavra pontualidade. Setenta e cinco minutos após a hora marcada entrei para consulta. É evidente que poderia ser pior. Cento e cinquenta minutos seria bem mais desagradável. Depois, fui recebido com um pedido de desculpas. O problema é que estes pedidos de desculpa são meramente protocolares, fazem parte do business as usual. Passada essa provação, o meu dia foi assediado pela chuva e pelo cinzento que deslizou do céu e se incrustou por ruas e avenidas, tingindo o casario de uma melancolia quase cantabile. Ao passear pela rua, pensei no húmus. Que excelente húmus dariam estas folhas mortas que inundam os espaços da cidade. Não faço ideia a razão que me trouxe a esta constatação agrícola, logo eu que não tenho qualquer inclinação para a vida no campo. Elevo o pensamento aos céus e, em ânsia, peço uma noite sem chuva, que me permita caminhar. Preciso de coleccionar pontos cardio e de evitar comparações melindrosas entre o peso que tenho e aquele que deveria ter. Disfarço bem a discrepância, mas que ela existe, existe. Vou jantar. Talvez o melhor é fazer jejum, mas não estamos na Quaresma. E mesmo nesta já ninguém jejua.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2023
Uma questão de adequação
Distraí-me e entalei um dedo no quebra-nozes. Foi o segundo incidente no espaço de minutos. O primeiro foi a recusa do dito quebra-nozes em quebrar uma noz. Aliás, um fruto pequeno, quase miserável, mas de casca resistente. Teve de ser subjugada à martelada, não com um martelo. Usei o próprio quebra-nozes, agora em função de martelo. Talvez o instrumento se tenha sentido humilhado pelo uso contra-natura e, vendo-me distraído, abocanhou-me um dedo. Faz parte da ingenuidade dos seres humanos despir os objectos materiais de vontade. Não me parece plausível a ideia de lhes negar um querer, pois eles querem muitas vezes aquilo que nós não queremos e submetem-nos ao querer deles. Imaginemos um carro que se recusa a trabalhar, enquanto nós, os seus proprietários zelosos, estamos cheios de pressa para um compromisso inadiável ou para o encontro da nossa vida. Isto não é um querer? Claro que a inocência humana designa por avaria aquilo que é um acto da vontade e, para mais se iludir, julga o caso como um acidente mecânico ou electrónico, ou qualquer outra coisa que desculpe a maldade do dispositivo. Não consigo compreender o alvoroço que anda aí por causa de podermos vir a ser dominados pela inteligência artificial ou por robôs. Se já somos dominados pelas máquinas a que não atribuímos nem inteligência nem vontade, o que poderemos esperar de dispositivos a quem demos inteligência e mesmo vontade? Retornando ao caso do quebra-nozes, tenho de considerar que foi benévolo comigo, apesar da maldade que lhe vejo no rosto. O dedo não sofreu grande coisa, mas imagino que foi um aviso. Da próxima vez que quiser martelar uma noz renitente vou buscar um martelo. É uma questão de adequação entre o objecto e a finalidade.
domingo, 10 de dezembro de 2023
Na aldeia
Depois de uma viagem ao mundo colonial trazido por Joaquim Paço d’Arcos, entretenho agora as insónias com uma viagem por Madona, de Natália Correia, uma visita – pelo menos de início – ao mundo alternativo da parisiense rive gauche, no pós-segunda guerra mundial, onde, supostamente, Sartre oficiava um culto a não se sabe bem o quê, e no qual alguns portugueses se tingiam de modernidade, que haveria de ser usada na pátria para encontrar distinção e sublinhar a boçalidade daqueles que o acaso ou as possibilidades não conduziram à capital francesa. Não será improvável, tendo em conta o que já li no romance, cerca de um quarto, que tudo acabe em querelas domésticas, passadas na província, num mundo onde ninguém ouviu falar de Sartre e da rive gauche, nem de náuseas, ou sequer do velho spleen baudelairiano, bem anterior à náusea existencial. Em novo, por certo, eu terei cultuado esses heróis de outras gerações que viveram esses anos de perdição. Hoje, porém, dou graças por a vida ter-me poupado a esses destemperos e a ilusões que só poderiam lembrar ao génio maligno do senhor René Descartes. Apesar de velho, nasci demasiado tarde para poder imaginar sequer a minha pessoa a deambular pelas caves, onde o jazz se europeizava. Sento-me, em silêncio, e vejo correr o rio da minha aldeia, que não é aldeia, mas uma cidade que parece uma aldeia. E nisso está toda a minha felicidade, enquanto leio os poemas de Alberto Caeiro e vejo neles toda a verdade deste mundo, mesmo que seja apenas a verdade desta hora de domingo em que escrevo isto.
sábado, 9 de dezembro de 2023
O que me vale
Caminhar na capital não é das coisas mais suaves. Subir e descer, descer e subir. Enquanto se desce, as coisas não estão mal, mas tudo tem um preço e a cada descida corresponde uma subida. Talvez não seja muito sensato fazer pontos cardio num sítio como este, a não ser que se vá para a margem do rio, onde tudo é mais plano, o que não estava nas minhas intenções. Para recuperar as calorias perdidas, perdi-me num restaurante perto do Museu Nacional de Arte Antiga, onde são oferecidos – isto é um eufemismo, claro – pratos dos sítios por onde os portugueses andaram. Escolhi uma visita ao Brasil e não me arrependi. Depois, retornei à caminhada. Chegado a casa, em vez de ir ao cinema, como tinha pensado, sentei-me e fiquei a ver um jogo de rugby da Taça dos Campeões. Não me perguntem quais eram as equipas. Uma era irlandesa, a outra inglesa. O jogo foi interessante, apesar de ter adormecido uns minutos depois do intervalo. Contudo, adormecer diante de ecrãs e monitores tornou-se uma das minhas especialidades. A gesta de que sou o protagonista está cheia de grandes actos libertadores do mundo. É nessa categoria que se devem colocar os adormecimentos diante da televisão ou do computador, onde o meu ser ensonado vence o obstáculo do estado de vigília. O Outono declina a olhos vistos, o solstício de Inverno está a uma distância de menos de duas semanas. Não tarda é noite de Natal e um novo ano perfila-se já bem dentro do horizonte. Hoje é daqueles dias, que não são poucos, em que nada tenho para dizer. Vale-me o ser capaz de inventar qualquer coisa em cima da hora.
sexta-feira, 8 de dezembro de 2023
Agora
Neste momento, onde me encontro, tenho um único livro em papel à mão. Não é um livro recomendável, nem o é o seu autor. O livro compila um discurso de 4 de Janeiro de 1849 e a troca de correspondência entre o autor e o Conde de Montalembert. No início do discurso, depois do protocolar Meus Senhores e de mais umas quantas frases, referindo-se a um discurso anterior que seria o epílogo de um outro epílogo, e este era o epílogo de todos os equívocos que foram inventados durante os últimos três séculos e que trazem inquietadas quase todas as sociedades humanas de hoje. Este tipo de crença é extraordinário, pois supõe que antes destes três últimos séculos não se tinham inventado de maneira sistemática equívocos, além de supor que as sociedades anteriores teriam menos razões de inquietação. Tudo isto faz parte do combate político no congresso espanhol de então, coisa que não me interessa. Todavia há uma prova da incapacidade humana para olhar o passado, imaginando-o um tempo superior ao presente, mesmo que o presente já tenha três séculos. Todas as inquietações que eu vivo, mesmo sendo apenas um narrador, isto é, uma figura literária, todas as inquietações que eu vivo, repito, são presentes, pois não nos foi dada a capacidade de viver as inquietações de um passado onde não existíamos. A este tipo de crenças chamam-se involucionistas. Crêem, consciente ou inconscientemente, que o início da vida do homem na Terra foi esplendoroso, vivia-se na idade do ouro, e que a partir desse momento tudo se foi degradando, foi involuindo. Tanto aqueles que vêem no passado a sua casa, como os que a vêem no futuro, têm um problema com a sua própria existência, pois esta apenas se dá no presente. A idade do ouro ou a idade de ferro apenas existem no presente, pois não há outro tempo que possamos habitar. Ninguém vive no passado ou no futuro, vive no agora. O resto são suposições fundadas na memória ficcional e na expectativa também ela ficcional. E agora é de noite.