Há muitos anos, conheci alguém que tinha por máxima de vida
preservar-se do contacto com o rebanho. Era uma pessoa discreta e, por alguma
razão que eu nunca quis saber, deixou que o aforismo se lhe soltasse da boca
num ambiente relativamente público. Nesse momento dei pela sua existência. Foi
o princípio de uma longa amizade só interrompida pela morte. O rebanho, dizia,
não cheira apenas mal. Contamina-nos com o seu cheiro. E logo acrescentava que
não há coisa pior que o mau odor. Um dia, numa conversa ocasional cujo assunto
esqueci, acrescentou à sua tese uma taxinomia humana. Há quatro tipo de
pessoas, afirmou, enquanto olhava para lá da janela. As que fazem parte do
rebanho, as que são cães do rebanho, os pastores do rebanho e os inúteis, os
que não sabem balir, nem ladrar, nem possuem voz de comando ou propensão para
homilia. Esses tornam-se suspeitos e a única solução que possuem, para que
possam preservar a vida, é tornarem-se texugos. Só o mau cheiro pode combater o
mau cheiro, acrescentou não sem deixar escapar uma gargalhada.
quarta-feira, 8 de novembro de 2017
terça-feira, 7 de novembro de 2017
Desejo
Há pouco, ainda havia luz, passei por uma mulher encostada à
parede de um prédio quase pegado àquele onde moro. As costas hirtas pareciam
suster o monstro de cimento, mas a cabeça inclinava-se para o chão. Os olhos, fascinados
pelo rodopiar das folhas que o Outono rouba ao arvoredo, não se desprendiam do
espectáculo. Tive vontade de parar e desejei ser arrastado para dentro daquele
olhar. Havia nele uma tal melancolia que quase me comovi. Apressei o passo e já
longe voltei-me para trás. As folhas rodopiavam e na parede havia então uma
sombra, o buraco vazio de um desejo por realizar.
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
Desassossego
São longas, muito longas, as segundas-feiras. Chega a noite
e sento-me sem saber bem o que fazer do que ainda tenho para acabar. Logo,
porém, esqueço os trabalhos e os dia. Um acaso, e eu sou muito atento aos
acasos, influência do incerto princípio da incerteza, de Heisenberg,
conduziu-me a um texto sobre o escritor norueguês Kejell Askildsen, cuja obra
faz parte do infinito oceano da minha ignorância. Diz ele que escreve histórias
para desassossegar os leitores. Compreendo-o, mas tenho uma funda dúvida sobre
se os leitores querem ser desassossegados. Leitores desses são uma raridade. Há
alguns, claro, que falam muito em desassossego, mas, por norma, gostam que
sejam os outros a serem desassossegados. Eles, apesar da retórica, querem ser
confirmados nas suas crenças. O desassossego é sempre algo que o outro precisa.
São coisas destas que me dão para pensar às segundas-feiras depois de jantar,
quando me fecho no sossego do escritório e oiço a noite ranger nos gonzos da
terra.
domingo, 5 de novembro de 2017
Domingo
Sem interlúdio, transitámos de um Verão agreste, pesado e funesto
para o Verão de S. Martinho. Imagino que ali ao lado, na Golegã, a azáfama seja
grande. É um mundo que nunca exerceu qualquer fascínio sobre mim. Por vezes,
fazia visitas etnográficas, mas a etnografia deixou de me interessar há muito.
Sou um péssimo ribatejano, confesso. Prefiro ficar a ver o sol a iluminar o
silêncio da manhã e a ramagem das árvores a ser sacudida por uma brisa ligeira
que se desprende da Serra de Aire. Há mais verdade no vento que desce da serra
do que no trote dos cavalos num concurso hípico. E rio-me deste pensamento absurdo. Uma sirene interrompe-me o devaneio, e logo avisto uma ambulância a
correr para o hospital. Também eu, um dia qualquer, posso ir de urgência para lá.
Encolho os ombros. Poucas são as coisas que estão na mão dos mortais e mesmo
essas são incertas. A tarde chegou mansa e recordou-me que há muitos, muito
anos, a esta hora, estaria na Igreja de S. Pedro, na missa do meio-dia. Talvez
o mundo, naqueles dias, fosse mais perfeito. Ou talvez fosse igual ao de hoje.
Eu é que perdi a paciência para a homilia.
sábado, 4 de novembro de 2017
Um raga
Por vezes, aventuro-me na música erudita, digamos assim, de
tradições não ocidentais. A que mais me fascina é a japonesa. Hoje, porém, não
sei se devido à combinação do sol e das nuvens em tarde de sábado, ou se por
ter andado, há pouco, a observar as folhas avermelhadas pelo Outono das árvores
da avenida, acabei por escolher um raga indiano. Na raiz indo-europeia da
palavra raga está a ideia de colorir, descubro-o agora numa consulta na
internet. É a mesma raiz da palavra inglesa red e por certo da alemã rot ou da
francesa rouge. O raga, enquanto peça musical, pretende colorir a mente,
retirá-la da abstracção dos conceitos e fazê-la o centro da vida. A experiência
de escuta, contudo, não é, de início, a de uma explosão vital como, por
exemplo, na Sagração da Primavera de Stravinsky. Pelo contrário, o espírito
que escuta volta-se para si, concentra-se na sua solidão, abstrai-se da
exterioridade. É um espírito devocional. Só depois, de forma gradual mas
vagarosa, a música conduz à exteriorização, à manifestação no mundo, da vida
exuberante, e o corpo quase é movido pela vento que sopra da música. De súbito,
percebo que o sol deste sábado ou as folhas avermelhadas do Outono, também
eles, nascem desse espírito que sopra do raga que oiço. Lá fora, um vento
empurra as folhas e fá-las rodopiar, rodopiar, rodopiar e, entre mim e as
folhas que rodopiam há uma funda comunhão.
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
O baile
Uma loja de roupa anuncia-me, por sms, que sente a minha falta. Apetece-me responder que eu não, não sinto, de todo, a minha falta. Contenho-me. Ainda não me habituei a estes anoiteceres temporãos. Tenho de vigiar o humor. Lá dentro, as minhas netas contendem sobre quem será a princesa e quem será a aia. Enquanto me entretenho com uma broa remanescente dos Santos, espero que o litígio se prolongue. Quando terminar, está-me reservado o papel de acompanhar a princesa ao baile. Com o tempo que está, não me apetece calcorrear a cidade numa velha carruagem. E a noite, mais negra e mais densa, desce sem piedade sobre o dia. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam, disse João. Fico a meditar na incompreensão das trevas perante a luminosidade da luz. A demanda parece resolvida. Não tarda, irrompem pelo escritório. O melhor é ir preparar-me. Será que tenho roupa para o evento?
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
Fiéis Defuntos
Não ontem, mas hoje, sim, é o dia de Fiéis Defuntos. Consta
que a tradição se teria iniciado no século II. Os fiéis oravam pelos mártires.
Mais tarde, pelo século V, a Igreja dedicou um dia para que se rezasse por
todos os mortos, por aqueles de que ninguém se lembrava já. Este exercício
mnemónico fascina-me, como se ele fosse o resultado de um saber arcaico, uma
sabedoria que não desiste de nos recordar que somos, todos nós, devedores de
uma longa tradição genética. Sem cada um desses membros esquecidos da cadeia
que nos liga ao início da vida, não existiríamos. Haja então um dia em que os
possamos recordar, trazê-los ao coração. Não comprei crisântemos e não irei ao
cemitério. Nunca o faço nestes dias. Trago, porém, os meus mortos comigo.
Aqueles que conheci e amei e aqueles que teria amado se me tivessem dado essa
possibilidade. Por vezes, dou comigo a falar com um ou outro dos meus avôs, os
quais morreram muito antes que qualquer um dos seus netos tivesse nascido. Apesar
disso, compreendemo-nos muito bem. Eles, como eu, sabem o quanto lhes devo.
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Banalidades
Leio: a morte está cada vez mais banalizada. Assinto sem
dificuldade. Quanto mais banalizada estiver a vida, mais banalizada estará a
morte. Nunca a banalização da morte ultrapassará a banalização da vida.
Todos-os-Santos
Comi há pouco uma broa, daquelas broas de azeite que só em
terras de olival existem. E ela instalou-me, como por milagre, em pleno dia de
Todos-os-Santos, fez-me mesmo crer que o Outono chegara. O dia, tomado pelo
revoltear do vento, a chamar chuva, e pela luz desmaiada, confirma-o. Em
criança, nunca participei nessas deambulações, em grupo, de porta em porta, a
que aqui chamam “ir aos bolinhos” e em outros lados “pão por Deus”. Não lastimo
esse espaço em branco no currículo. Por certo, os meus pais não favoreciam a
aventura, mas a causa primeira, vejo-o agora, estaria na minha pouca vontade
para o fazer. Tirando uma época exígua em que, tomado pela febre do tempo,
julguei que a salvação do mundo estaria na força do grupo, a minha vida
caminhou sempre em direcção contrária. Por isso estranhei há pouco, vinda de
não sei bem onde, a voz de alguém a trautear “canta amigo canta / vem cantar a
nossa canção / tu sozinho não és nada /juntos temos o mundo na mão”. Nunca
percebi para que haveria de querer ter o mundo na mão. E logo me recolhi em
Todos-os-Santos, que, apesar da sua natureza colectiva, faz nascer em mim o
desejo de uma longa solidão.
terça-feira, 31 de outubro de 2017
Os castanheiros da avenida
Quando, hoje de manhã, atravessei a avenida marginal, havia
nos castanheiros um silêncio ruidoso, quase agreste, talvez uma atitude de
desafio aos que, como eu, por ali passam sem os ver, ou, talvez mais
indesculpável, só os vendo naquela época do ano em que o seu ser se exibe numa
floração sumptuosa, que cativa os olhos e os obriga a erguer-se às copas. Uma
pessoa vai por ali, enclausurado no carro, a ouvir música, e enrodilha-se no
primeiro oximoro que lhe aparece e logo começa pensar em silêncios ruidosos ou
na paz conflitual que a envolve. E por uma súbita associação de ideias percebe
que o silêncio ruidoso dos castanheiros é uma metáfora de certos ambientes que
frequenta, o horizonte onde se inscreve aquilo que diz. Nunca é tempo perdido
falar com castanheiros ou carvalhos, ou mesmo a velha oliveira que o tempo
deixou esquecida num relvado posto ali para que se pensasse que somos
civilizados.
segunda-feira, 30 de outubro de 2017
Sombrio
A noite cai agora demasiado cedo. As pessoas enrolam-se nela
e vão rua fora, e eu vejo-as passar em direcção ao seu destino, sem que saibam
que tudo é fortuito, mesmo a noite onde se escondem ou a hora em que ela cai.
Dizem-me, por vezes, que vejo as coisas demasiado sombrias e que preciso de me
encantar com o mundo. E eu penso que devo precisar de ir ao oftalmologista,
pois os olhos inclinam-se para ver sombras onde os outros vêem tudo tão
luminoso. Talvez o problema se resuma à falta de óculos ou, em caso mais
extremo, a alguma catarata que se interponha entre mim e o esplendor fulgurante
do mundo.
domingo, 29 de outubro de 2017
Questões filosóficas
Um problema desabou aqui em casa ao cair um dente da minha neta
mais velha. Pôr o dente por baixo da almofada ou não, para que a Fada dos Dentes
tenha oportunidade de exercer a sua benevolência. Perante o dilema, a mais nova
diz: “A mana não acredita no Pai Natal nem na Fada dos Dentes, mas eu gosto de
acreditar. Faço bem, não faço, avó?” E assim, numa daquelas conversas que ela
gosta de entretecer com os adultos, resolve problemas filosóficos com mais
rapidez do que aqueles a que eles se dedicam. A magna questão de crer no Pai
Natal ou na Fada dos Dentes não pertence ao reino da epistemologia, mas ao da
estética – eu gosto de acreditar – e ao da ética – faço bem, não faço? E assim,
ficamos a saber que não é a verdade que interessa, mas o prazer. E se nos dá
prazer, então temos o dever de acreditar. Será isto o fundamento da religião?
sábado, 28 de outubro de 2017
Crisântemos
Pego no livro de haikus de Bashô e leio um. Não é bem ler,
antes uma tentativa, condenada ao fracasso, de escutar o sentido, o fundo
sentido que, apesar da tradução, ainda deve ecoar no texto. Escreveu o poeta ou
o tradutor: “para não morrer no outono / a borboleta bebe o orvalho /
depositado sobre o crisântemo”. Não sou japonês, não pratico o Zen, e tudo o
que ressoa em mim é o desespero da borboleta que, por um jogo fácil de
associação, me faz lembrar os homens neste Outono português. Olho a manhã e duvido
que tenha havido, mesmo na primeira aurora, orvalho sobre os crisântemos. E uma
pergunta assalta-me: haverá este ano crisântemos suficientes para que a memória
dos mortos não feneça e os vivos se sintam reconciliados com o outro mundo?
sexta-feira, 27 de outubro de 2017
O elusivo Excel
Tenho estado às voltas com o Excel. Para dizer a verdade,
não sei nada da ferramenta, mas fascina-me o espírito geométrico e exacto que
por ali reina. Dou comigo a pensar que deveria ter enveredado pela matemática
ou pela física em vez de me interessar pela filosofia e pela literatura. É
assim que se perde uma vida. Suspendo estes pensamentos dolosos e abro uma
frente de combate com o software para ver se, sem recorrer a terceiros, me
desvenda os segredos que procuro. Porém, ele é avaro e ríspido e logo me atira
ao tapete. Há pouco, deixou-se surpreender e descobri uma das coisas que
procurava, mas ainda falta o mais importante. O melhor é pegar na edição
completa dos haikus de Matsuo Bashô, o eremita viajante, que a Assírio &
Alvim teve a caridade de publicar, e procurar ali a chave que me há-de abrir o
caminho para o beneplácito do elusivo Excel. Há coisas que não têm solução e
pessoas que não têm cura.
quinta-feira, 26 de outubro de 2017
O reino da anomalia
Os dias quentes deste Outubro alucinado correm engavinhados
à inutilidade. Esta não é uma negação do útil, mas um florescimento de
anomalias que se tornam tudo o que um certo modo de vida pode conter, até que
não seja outra coisa senão uma grande e monótona anomalia. Quando se escolhe ou
aceita um modo de vida anómalo, o mais certo é que se viva na sombra da
anomalia. Por vezes, um vento desassisado desce sobre nós como o Espírito Santo,
em línguas de fogo, desceu sobre os apóstolos. É o nosso dia de Pentecostes. E
então falamos em diversas línguas e profetizamos sobre o fim do reino da
anomalia, mas não há ninguém para ouvir. O entardecer inclina-se sorrateiro
para a noite e recordo-me da minha velha gata. Eu falava e ela ouvia. Depois,
miava e saltava-me para o colo a ronronar, enquanto eu lhe passava a mão pelo
dorso. E tudo estava no seu lugar.
terça-feira, 24 de outubro de 2017
O fim do mundo
Dei comigo a cismar sobre O Leopardo, de Visconti. Acontece-me, por vezes, a memória, sem que
eu perceba porquê, voltar a esse filme. O que me prende nele, como num sonho
recorrente, é a cena inicial, a da oração do terço, e a final, a do baile.
Entre estas duas, é um mundo que se afunda na ruína e outro que desponta.
Assaltam-me imagens das contas a deslizar pelos dedos dos que rezam
entrecortadas por outras, onde os pares rodopiam no salão de baile. E eu não
sei, juro que não sei, se um mundo, outrora sólido e garboso, acaba com uma
oração ou se com uma grande festa. Se num mistério doloroso ou se numa promessa
gozosa.
segunda-feira, 23 de outubro de 2017
Um galo
A noite ruge de uma forma muito distinta do dia. Oiço-a
murmurante e no murmúrio descortino a ameaça. Exceptuando talvez a primeira
juventude, nunca fui um animal noctívago. Talvez me dê mal com as potências das
trevas e prefira, sem hesitação, deixar vaguear os olhos sobre as coisas
iluminadas pelo Sol. Alguém fecha uma persiana, um carro passa na avenida, mas
a noite continua, levada pelo seu rugido, a deslizar para a madrugada. O pior é
não haver por aqui um galo. Quando cantasse, saber-se-ia que o dia se aprestava
para estilhaçar a parede negra com que somos envolvidos. Um galo a Asclépio devia
Sócrates na hora da morte. Um galo é o que todos devemos quando a noite se
aproxima.
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
Teoria
Tenho um aluno, aliás excepcional, que parece ter
desenvolvido um enorme interesse pela política. Apercebi-me que esse interesse
nasceu mais ou menos com a mesma idade em que eu despertei para o fenómeno. É
evidente que, devido à distância geracional, os espaços ideológicos que
exerceram essa atracção são muito diferentes. Comum é que no centro desse
interesse pela política há um enorme fascínio pela teoria, pela explicação do mundo
e pelos argumentos que suportam essa explicação. O que não sabem, aqueles que
muito novos são fascinados pela teoria, é que esta é como a ideia das quatro
estações. O clima recusa-se sempre a cumprir os prazos determinados pelo
calendário, como se vê agora, em que um dia destes entramos no Inverno sem ter
saído do Verão. No fundo, as teorias são revoltas contra a realidade, uma
espécie de libelo acusatório contra a desordem do mundo, e quando se está na
primeira juventude, como eu mesmo experimentei, a desordem do mundo é
inaceitável. A teoria parece então simplificar e ordenar esse caos patológico.
Depois, percebe-se que a desordem é a própria natureza do mundo e o fascínio
pela teoria perde o encantamento. Deixa de ser um espaço mítico e passa a ser
um instrumento de trabalho, quanto menos rígido melhor, para lidarmos com a
vida e o mundo. Isso, porém, é uma experiência que cada um faz por si mesmo,
percorrendo o caminho que escolheu ou que o escolheu. O pior é mesmo o Outono
hesitar em ser Outono e querer continuar Verão.
quinta-feira, 19 de outubro de 2017
Hooligan
A Antena 2, estação de rádio a que sou fiel, tanto quanto posso,
há décadas, tem o condão de me exasperar. Sintonizo-a e apenas quero ouvir
música, mas, por vezes, a estação insiste em servir-me uma conversa que, vá lá
saber-se a razão, me há-de tornar culto. Dispenso, de mau humor, o
enriquecimento oferecido e viajo para o spotify ou para o youtube, só para não
ter trabalho de pôr um CD ou um LP. Nesses momentos de exaspero, fico na dúvida
se serei um bocadinho autista, como se diz cá por casa, ou se não passarei de
um hooligan, daqueles a que refere Jason Brennam no seu livro Against Democracy. E enquanto selecciono
os Nocturnos, de Chopin, pela Brigitte Engerer, penso que, nestes dias, tornei a constatar que estou rodeado de
hooligans políticos. Uns mais amáveis e amenos, outros mais exaltados e
exasperados, mas quase todos hooligans. Vulcanos, esses são raros, muito raros,
embora os haja. Mas mais que a política, é a conversa atoleimada, a que me há-de
salvar da incultura, que me aproxima do hooliganismo. Um dia destes talvez
fale de hobbits, hooligans e vulcanos, caso não tenha mais nada para dizer.
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
Dever ser
O vento bate nas persianas, enquanto a música vinda da
escola aqui ao lado invade o escritório. Tenho de decidir se quero que o ar
continue a entrar ou se me poupo ao gosto musical que outros teimam em
impor-me. E sinto-me enrolado nessa eterna controvérsia entre aquilo que é e
aquilo que deve ser. Se olho as árvores da avenida, cujas folhas, tocadas pelo
vento, se entregam ao êxtase da queda, não me ocorre nenhum dever ser. Poderia,
porém, olhar para as pessoas sem carregar comigo os óculos do dever ser? Eis
uma pergunta muito pertinente nestes dias, penso. E dou comigo a dizer que era
assim que as deveria olhar, olhá-las sem as pintar com aquilo que elas deveriam
ser mas não são. Rio-me, vítima de mim mesmo, do meu dever ser, e fecho a
janela.
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