Uns dias fora e chego à cidade onde me acolho e sou recebido com 38 graus. Eram cinco da tarde. Tive de sair do carro para ir à farmácia e senti a pele a estalar. Não estalou, mas a sensação foi essa. Parece que no fim-de-semana a temperatura desce para níveis aceitáveis, mas é apenas para ganhar balanço para novas aventuras na antecâmara do inferno. Demorei a ser atendido, mas quase agradeci, pois o ar-condicionado devolvia-me a um mundo normal. Este sítio antecipou as alterações climáticas. Já era um clima alterado e ainda não havia alterações climáticas com origem nos devaneios humanos. Alguém se lembrou de introduzir uma serra, não muito alta, entre o ar marítimo e aquele que se respira por aqui. O resultado é, na verdade, caloroso, demasiado caloroso. Já pensei em sugerir aos autarcas dos concelhos que sofrem os desmandos da serra para proporem a abertura de grandes túneis por onde o ar marítimo entraria para espalhar por estas terras uns dias não direi frescos, mas menos quentes. Depois, equacionei as consequências na indústria e comércio de aparelhos de ar-condicionado e contive-me. Não quis que a minha magnífica ideia fosse culpada de falências e desempregos. Sou um narrador com consciência social, coisa que não é partilhada por muitos dos meus confrades. Gostaria de ir caminhar, mas a temperatura sentida é de 37 graus, embora a real seja de 33. Esta diferença entre a temperatura que faz e aquela que é sentida permitir-me-ia uma bela dissertação sobre o problema do conhecimento, mas estou pouco inclinado para a epistemologia. Prefiro ficar a fazer nada, pois, como se sabe, o nada é uma coisa que dá muito gozo fazer. É um trabalho ontológico.
quinta-feira, 4 de julho de 2024
domingo, 30 de junho de 2024
Teratologia
Ontem, decidi comprar uma trilogia romanesca que terá mais de 1800 páginas. Na verdade, é uma biografia romanceada de um dos governantes mais detestáveis do século XX europeu, embora fosse, em grau de detestabilidade, superado por outros. O século XX europeu, mas não só, foi bastante rico em personagens políticas detestáveis. A segunda metade do século deu a ilusão de que esse tipo de figuras não voltaria ao palco, mas as ilusões acabam por se dissolver e o que há de monstruoso no fundo da alma de cada um de nós acaba por abrir caminho para o retorno dos monstros. Estes chegam, por norma, não parecendo monstros, mas o seu desígnio é a monstruosidade. Estas considerações não são de natureza política, assunto que me está vedado, mas de psicologia. Melhor, de teratologia. O mais sensato seria meditar num ensaio sobre a monstruosidade, não haveria de faltar assunto.
sábado, 29 de junho de 2024
Dilemas
Encontro num prefácio ao romance Somos Todos Assassinos, de Jean Meckert, uma referência à oposição entre o cinema como entretenimento e o cinema como reflexão social e política. A referência ao cinema deve-se a que a obra foi produzida, a pedido de Gaston Gallimard, a partir do guião do filme com o mesmo nome de André Cayatte. Este dilema entre entretenimento e reflexão social e política colocado pelo cinema poderia ser transposto para todas as outras áreas artísticas, desde o romance à música, da pintura à dança. O dilema é falso, mas não apenas porque existam outras possibilidades para a arte, mas porque entretenimento e arte são duas categorias culturais irremediavelmente distintas. Também a relação entre arte e expressão de problemas sociais e políticos será acidental. Retrocedamos a Hegel. Como via ele a arte? Era a manifestação sensível – isto é, através dos sentidos – do Absoluto. Esta definição que hoje em dia será olhada com vincado desprezo talvez seja mais proveitosa do que se está disposto a admitir. Não que a arte seja, na verdade, a manifestação sensível do Absoluto, mas a manifestação da uma perplexidade existencial do homem perante o Absoluto ou perante essa ideia de um Absoluto. Esse encontro entre uma consciência relativa e finita e aquilo que dela difere totalmente, que lhe é incomensurável, é o começo da arte, desse gesto que confere à matéria a perplexidade de um encontro inexplicável.
sexta-feira, 28 de junho de 2024
Alheiras
Enquanto a minha pobre neta se submetia a uma operação ao septo nasal, o avô decidiu almoçar. Coisa rápida, assegurar a função e desalvorar dali o mais depressa possível. Não para a ir ver, pois estaria no recobro, mas porque tinha que fazer. Para despachar, nada melhor do que uma alheira de Mirandela, com ovo e batatas fritas, tudo acompanhado por uma salada de tomate, alface, a que, sabe-se lá porquê, juntam cenoura ralada e cebola. O resultado não é famoso. Duas nódoas na camisa e a constatação triste de que a idade do aparelho digestivo já não se adapta a estas coisas. Os fritos estão a caminho da proibição. Lá consegui fazer aquilo a que me propusera, mas ainda não percebi a razão que me levou a comer o que comi. Uma lição para o futuro, pois a avó da minha neta também terá de ser operada ao septo nasal, uma família de septos tortos. Nesse dia, não me apanharão à volta de alheiras, sejam de Mirandela, sejam de outro lado qualquer, pois não há lugar, desde Trás-os-Montes até ao Algarve e ilhas adjacentes, que não produza alheiras de Mirandela.
quinta-feira, 27 de junho de 2024
Fonte da juventude
Em 1546, Lucas Cranach, o Velho, talvez por ser velho, pintou um quadro com o título Der Jungbrunnen, A Fonte da Juventude. Na época, a lenda de uma fonte cujas águas rejuvenesciam quem delas bebesse tinha um enorme mercado no imaginário das pessoas. O mito, contudo, já seria velho naqueles dias, o que não foi razão suficiente para que não se organizassem expedições para descobrir a fonte. Ora, foi preciso chegar a este ditoso século para que alguém, talvez todos nós, possa beber e mergulhar nas águas da eterna juventude. Há pouco, recebi um email da companhia que me vende os serviços de televisão, telemóvel e internet e descobri que tinha voltado à juventude. És digital? Descobre como receber prémios. Serei um adolescente, em crise de borbulhas, para ser tratado por tu, perguntei-me. Intrigado, fui ver, ao lixo, outras comunicações da empresa e vi que o tratamento por tu era contumaz. Procuras descontos nos melhores equipamentos? Por vezes, são menos interrogativos e mais declarativos: Mergulha numa Net sem limites. Como não tenho o hábito de ver esta correspondência, fui verificar o email com a factura. Também aí continua o tratamento por tu. Pensei em pôr-me de imediato diante do espelho, mas contive-me. Talvez tenha trocado a data de nascimento quando fiz o contrato. Estas coisas sucedem. Fui ver outras companhias que me vendem, ou não, coisas diversas. Também sou tuteado, um verbo que detesto, por todas elas. Afinal, sempre existe a fonte da juventude e não foi preciso procurá-la. Ela vem ter connosco. Não damos por isso, mas a cada dia que passa estamos mais novos, somos todos camaradas de recreio, tu cá, tu lá, nada de tratamentos formais, que isso é coisa para velhos. Bebi a água da fonte que permite que todos me tratem por tu. Isto tem uma consequência na história da pintura. Até aqui pensava-se que Lucas Cranach, o Jovem, era o filho mais novo de Lucas Cranach, o Velho. Falso. Lucas Cranach, o Jovem, era o próprio Lucas Cranach, o Velho, depois de beber a água da fonte da juventude, isto é, quando começou a receber comunicações por email, naquele já distante século XVI.
quarta-feira, 26 de junho de 2024
Do vício e da virtude
terça-feira, 25 de junho de 2024
Mascarado
Não tarda e terei de ir consultar-me com aquela rapariga que faz de minha nutricionista. Contudo, para ela não me reconhecer, vou de máscara. Minto, vou mascarado porque fui assaltado em plena luz do dia por um vírus incerto, que decidiu usar-me como hospedeiro, trazendo-me incómodos e uma indisponibilidade quase total para fazer seja o que for. Não descrevo os sintomas, por uma questão de decoro estético. O paracetamol devolve-me, por um certo período, a ilusão de bem-estar. Será uma ilusão? É um bem-estar induzido, que passará, mas não deixa de ser sentido como real. Se assim o sinto, assim o será. Quando deixar de sentir, deixará de ser. Será que esta virose tem como efeito secundário tornar-me um sensacionista à maneira de Alberto Caeiro? Tudo se reduz às minhas sensações e não há maior metafísica do que comer chocolates, uma metafísica reduzida às sensações do gosto. Uma virose, todavia, não é compatível com comer chocolates. Agonia-me a sensação de ter sensações a chocolate na boca, mesmo que seja chocolate negro, avantajado em cacau e reduzido em açúcar. Talvez, é uma hipótese, haja uma conjuração entre a nutricionista e o vírus que se apoderou da minha boa disposição. Seja como for, estou determinado, como um Quixote, a enfrentá-la e ver nela um vírus gigante que me há-de dar preciosos conselhos a que prestarei toda a atenção sem me dispor a cumpri-los. Não se pode fazer tudo. Ou se presta atenção ou se cumpre as indicações. Estamos perante uma disjunção exclusiva e ambas não podem ser verdadeiras. O pior é que há muitas coisas que não podem ser verdadeiras e, para nos desgostar, são-no.
segunda-feira, 24 de junho de 2024
Bom-senso
domingo, 23 de junho de 2024
Decreto divino
Jean Paul, um dos grandes escritores alemães da transição do século XVIII para o XIX, antepõe ao romance Titã um pequeno texto denominado Sonhar a Verdade. Esta não é uma tradução literal, mas talvez a literalidade seja, no caso da arte, uma coisa lateral. De que trata esse texto? De um sonho, claro. Era sonhado que Afrodite e as três graças – Aglaia, Eufrosina e Tália – que faziam parte da sua comitiva estavam cansadas do Olimpo que, apesar de ser radiante, era frio, e desejavam descer à Terra, pois aqui a alma ama mais porque sofre mais e, apesar de ser mais sombria, é mais calorosa. Chegadas à Terra, o Destino, o deus supremo dos deuses e dos homens, decretou que os imortais na Terra se tornariam mortais e cada espírito se transformaria num ser humano. Imaginamos agora a verdade do sonho. Afrodite, Aglaia, Eufrosina e Tália transformaram-se em mulheres, Luísa, Carlota, Teresa e Frederica. As mulheres, apesar de mortais, são, ainda na sua natureza, divindades olímpicas, o que deixa os homens na mais terrível das situações. Ou não reconhecem na mulher a divindade que a habita ou, reconhecendo-o, só lhes resta o confronto com a sua inferioridade ontológica. Ou a ignorância ou a incurável ferida narcísica. Foi este o destino que o Destino terá querido para os homens. Eles rebelam-se, mas quem pode desfazer o que o deus dos deuses e dos homens decretou?
sábado, 22 de junho de 2024
Descansar
Uns dias fora para descansar da realidade, a qual, como se sabe, é particularmente cansativa. Fora talvez não seja a palavra apropriada, pois é difícil sentir-se no estrangeiro quando se está na Galiza. Esta é o prolongamento natural de Portugal, ou este é o prolongamento natural da Galiza. Ali, sempre me senti em casa, talvez mais em casa do que aqui onde é a minha casa. Tanto quanto sei, não há notícia de galegos na ascendência, mas a informação só chega a umas seis ou sete gerações para trás, e o mais plausível é todos termos ascendentes galegos, nem que seja do início da nacionalidade. Saí de lá com temperaturas na ordem dos vinte e dois graus e cheguei aqui quase com trinta. Ontem, em Pontevedra, vi pessoas de cachecol, talvez sofressem da garganta, pensei, ou então são um pouco teatrais. Não estava calor, mas nada justificava certos trajos de Inverno que anotei na memória. Hoje, ao sair do hotel, o empregado da recepção, ao ver que éramos portugueses, não hesitou em tecer um louvor rasgado à língua portuguesa, que ele conhecia muito bem. Percebi que também é tradutor. Disse que, para ele, a língua portuguesa é muito mais espiritual do que o castelhano, tem uma plasticidade muito maior e que o jogo linguístico português, com o sugerido mas não dito, é impossível de traduzir para o castelhano, língua a que falta a ductilidade da portuguesa. Ali, porém, não estávamos em Castela, nem em Leão, nem em Aragão. Ali, portugueses e galegos entendem-se, como irmãos que não se vêem há algum tempo, mas que sabem muitas coisas um do outro e basta uma sugestão para o outro saber do que se está a falar. Agora, vou descansar destes dias de descanso.
terça-feira, 18 de junho de 2024
Falência narrativa
Estava cinzento o dia quando me levantei. Caso se mantenha, pensei, depois de almoço, aproveitando o tempo sombrio, irei caminhar, o que me permitirá, depois, realizar as tarefas que tenha para fazer sem que a digestão se intrometa entre mim e mim. Não se pense que sou dado a almoços pesados. Pelo contrário, o meu almoço foi frugal, talvez mais frugal do que o de um monge cartuxo. O corpo, porém, tem as suas idiossincrasias. Plano baldado, pois o sol rompeu e pairava no ar a ameaça de calor naquela hora. Entretive-me a fazer isto e aquilo, coisas práticas que me impunham estar de pé, e, depois, voltei para as minhas tarefas. Quando o que um narrador tem para narrar é isto, o melhor que terá a fazer é fechar a loja e inscrever-se no fundo de desemprego da associação de narradores em falência narrativa. Não o faço, pois há sempre a esperança de ter alguma coisa para contar, nem que seja que recebi um vídeo do meu neto a saltar de uma rocha para o mar ou a notícia de que a minha neta mais velha foi fazer análises e um electrocardiograma, pois vai ser operado ao septo nasal. O dia está ventoso, o sol anémico e na rua não passa ninguém, talvez ela tenha sido proibida aos peões, depois de ter sido proibida aos carros. Estou a mentir. Apenas proibiram a circulação nos dois sentidos. As acácias projectam a sombra nos muros da escola aqui ao lado, sombras inquietas, movendo-se para a frente e para trás. O silêncio foi quebrado pelo ladrar de um cão. Ainda é cedo para o crepúsculo.
segunda-feira, 17 de junho de 2024
Chamo-lhe Diotima
A nossa mente, ou a nossa consciência, é um macaco saltitante. Vai de assunto para assunto, numa indisciplina generalizada. Caso as mentes fossem ao serviço militar, nunca aprenderiam a marchar. O que vale é que aquilo que vai para a tropa é o corpo, muito mais fácil de adestrar. A minha mente pensou naquela história narrada por Platão em que um sacerdote egípcio dizia que os gregos eram crianças, faltava-lhes a profundidade do tempo. Não passavam de recém-nascidos. O mundo era, porém, muito mais antigo. Daqui, desta limitação das qualidades dos gregos, a minha mente navegou para O homem sem qualidades, de Musil. Abro o primeiro volume ao acaso e leio E foi sobretudo Diotima quem confirmou nele, por uma via diferente, este sentimento de que a superfície e o fundo da sua pessoa não coincidiam. O ele em que tal suspeita foi considera é Ulrich. No homem sem qualidades, podemos pensar, há uma descoincidência e talvez seja nesse não coincidir entre superfície e fundo, entre aparência e essência, numa versão mais filosófica, que as qualidades desaparecem. Depois, penso que me agrada o nome de Diotima, não que o desse a uma filha ou o desejasse para uma neta, mas enquanto nome de personagem romanesca é perfeitíssimo. Uma coisa estranhíssima, por falar em personagens romanescas. Estou a ler um romance do dinamarquês Henrik Pontopiddan. Tem por título Hans Kvast e Melusina. Pensa-se, de imediato, que a obra se centrará em personagens com esses nomes, mas não parece ser assim. As que surgem, e já li mais de um terço, denominam-se Hugo Maertens e Matilde. A sensação de estranheza é de tal ordem que fui investigar e os dados recolhidos mostram que é mesmo assim. Talvez, lá mais para a frente, surjam Hans Kvast e Melusina. Ou, então, será uma referência cultural que me escapa. Não sou dinamarquês. O romance não está publicado em português. Está no domínio público em dinamarquês e com os modernos meios de tradução consegue-se um resultado muito interessante. Em dois anos a técnica de tradução automática melhorou assustadoramente. E assim, a minha mente, saltando como uma macaca, pulou desde o assunto da mente até aos dispositivos técnicos de tradução. Tenho uma mente indisciplinada. Esta é a verdade crua. Não me parece que seja a melhor das mentes possível. Acho que lhe deveria chamar, à minha mente, Diotima.
domingo, 16 de junho de 2024
Um fungagá
Uma novidade por aqui. A alguém terá ocorrido que as pracetas públicas existentes entre os prédios era o local ideal para organizar uma festa de aniversário de uma criança. Será melhor para a criança e os amigos estarem na rua, correrem, gritarem e guincharem, formas plausíveis de exercitar os pulmões. É aborrecido para terceiros, mas há que ser caridoso. Os progenitores acharam por bem montar um insuflável para a criançada saltar e fazer aquilo que as crianças fazem nesse tipo de coisas. A caridade não se deve suspender aqui. O que é inaceitável é a montagem de uma coluna de grande potência que emite uma coisa que, por certo, chamarão música. Ora, não se pense que é música para crianças. Não é. É o tipo de música que adultos consomem, do pior que se possa imaginar. Suportar guinchos é uma coisa, ter de levar com o lixo sonoro que habita a cabeça dos nossos congéneres é outra. As pessoas não percebem o que é a justa medida. Estão convencidas de que pelo facto não ser legalmente proibido, durante as horas do dia fazer ruídos ou obrigar os outros a ouvir o mau gosto que nos corre no coração, também não é moralmente errado. Podemos distinguir entre ética e moral a partir de duas ideias. A ética refere-se ao modo como habitamos o mundo. A moral relaciona-se com o respeito devido aos outros. As duas coisas estão relacionadas e sempre que se observa o desprezo pelo respeito que se deve aos outros, pode-se desconfiar que a forma como se habita o mundo está longe de ser saudável. Enfim, isto está um fungagá e não é o da bicharada, é mesmo de seres humanos adultos. Terei e fechar a janelas. Ainda não decidi se este é o melhor mundo possível ou se é possível que exista outro mundo onde não se montem fungagás destes.
sábado, 15 de junho de 2024
Uma meditação involucionista
Em Túnis, nasceu ainda dentro do primeiro terço do século XIV um homem que haveria de morrer já no outro século no Cairo, e a quem deram um tão longo nome que não me apetece escrevê-lo. Ficou conhecido, para abreviar, com Ibn Khaldun, e é tido, não sei se com justiça ou se com excessiva generosidade, como um dos pais de diversas disciplinas das áreas das ciências sociais e humanas. A certa altura do seu Discurso sobre a História Universal diz O reino animal desenvolve-se, as suas espécies aumentam e, dentro do progresso gradual da Criação, termina no homem, dotado de pensamento e reflexão. O plano humano é atingido a partir dos macacos, nos quais existe sagacidade e percepção, mas que ainda não atingiram a reflexão e o pensamento. Dentro deste ponto de vista, o primeiro nível humano vem depois do mundo dos macacos; a nossa observação fica-se por aqui. É plausível a existência de quem veja em Khaldun também um precursor do evolucionismo darwiniano, mas o mais inquietante é a declaração final, a nossa observação fica-se por aqui. Será porque não haveria mais nada para observar para além do homem? Será porque o observador se recusa a observar mais alguma coisa? Talvez este contentamento com o observado dissimule um temor, aquele de descrever a existência de muitos homens que não usam nem o pensamento nem a reflexão, limitando-se a macaquear os próprios macacos ou nem isso, pois não é incomum encontrar exemplares da espécie humana a quem falta a sagacidade e a percepção que ele descortina nesses nossos primos. Isso implicaria que a um esboço de uma teoria evolucionista, ele teria de acrescentar o esboço de uma teoria involucionista, que começaria na degradação do homem em macaco, para a qual não faltam exemplos, seria seguida de descrições de quedas cada vez mais fundas, nas quais se chegaria aos homens protozoários e, entre estes, aos homens ameba, aqueles que parasitam o seu próprio intestino. Também eu, como Ibn Khaldun, fico por aqui. Para um sábado de Junho, esta minha contribuição para o conhecimento das coisas escondidas desde o princípio do mundo é suficientemente gloriosa e acrescentará, por certo, uma nova página na notável gesta deste cavaleiro andante sem destino nem cavalo.
sexta-feira, 14 de junho de 2024
Por falar em Pavlov
Continuam as experiências com um chatbot. Ele é a imagem do mundo, uma real projecção desse mundo que desagua na internet. Introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta e pedi-lhe que me contasse uma história a partir dela. A sua inclinação para o kitsch parece inultrapassável. Numa terra distante e etérea, onde os limites entre a terra e o céu se confundem, existia um vale místico conhecido como as Planícies Sussurrantes. O vale estava envolto em uma névoa perpétua, escondendo os seus segredos do mundo exterior. Este foi o começo. Insuportável, o número de lugares-comuns. Nem continuei a leitura. Pedi-lhe então que me escrevesse uma história como se fosse Franz Kafka. Anuiu e devolveu-me este começo: Numa cidade sombria e claustrofóbica, vivia um homem chamado Gregório Duarte. Gregório era um funcionário de uma repartição pública, onde passava os seus dias a carimbar documentos e a arquivar papéis. A sua vida era uma rotina monótona e repetitiva, e ele sentia-se como uma engrenagem insignificante numa máquina colossal e indiferente. O pobre do Gregor Samsa surge metamorfoseada não num insecto, mas num português chamado Gregório Duarte, empregado numa repartição do Estado. Enfim. Não vou aqui contar todas as tentativas, nem sequer aquelas em que pedi que escrevesse ao estilo de Pessoa e, depois, de Saramago. Os chatbots têm uma lógica de resposta que os aproxima dos cães de Pavlov. Nós tocamos a campainha, e eles salivam. Coisa que acontece também com muitos seres humanos. Por enquanto, a arte humana está salvaguardada de concorrência. Por aqui, houve uma súbita animação. Os festejos de Santo António prosseguem, embora o que se ouve é uma cantiga popular ao S. João. Talvez devesse ir comer umas sardinhas. Isto por falar em Pavlov.
quinta-feira, 13 de junho de 2024
Linha do horizonte
Não o fazia há muito, mas hoje abri um dos cadernos de Eduína, com disposição de percorrer algumas páginas. De dentro, caiu uma folha manuscrita. Entre muros de pedra, a terra árida abria-se ao segredo do esquecimento. O vento, inflexível arauto do futuro, traçava sulcos na angústia densa inscrita na poeira. Pilares tocados pela brancura da cal vigiavam sonhos enterrados por cavaleiros sonâmbulos, pastores perdidos, amantes sem a tragédia do amor. A paisagem era uma recolecção de lembranças esculpidas no fundo esconso da memória, deserto rasgado por caminhos que se bifurcam e, como rios, desaguam no grande oceano do nada. A letra não é a de Eduína. É possível que seja uma letra masculina, talvez a de algum amante a quem ela poupou a tragédia do amor e, resignado, não teve a coragem de evitar a inclinação para o pathos que dorme no fundo do coração de todos os homens. Pergunto-me quais as razões que a levaram a guardar aquele bilhete. Piedade? É possível, mas não compreendo por que o guardou num dos cadernos que decidiu deixar-me como herança. Peguei no papel e coloquei-o ao acaso no caderno de onde caíra. Depois, guardei tudo, e fiquei a olhar o horizonte, mas não vi mais nada do que a linha do horizonte.
quarta-feira, 12 de junho de 2024
Do espírito e do mundo
Cresci numa velha tradição que Hegel, nos inícios do século XIX, sintetizou numa daquelas frases lapidares que têm uma fortuna sem fim, a leitura dos jornais é a oração da manhã do homem moderno. Naquela altura, o homem moderno era ainda muito jovem. Nietzsche, porém, décadas depois, achava que ler os jornais todas as manhãs à hora do pequeno-almoço não passava de uma imbecilidade parlamentar. Nietzsche não era um homem moderno ou, pelo menos, não o queria ser. Imaginava-se, presumo, um sobre-homem, o qual surge nas traduções como super-homem, mas esse só há um, o Clark Kent e mais nenhum. Hegel via na leitura matinal das notícias a possibilidade de auscultar a pulsação do espírito do mundo, o que é uma ruptura com a anunciação crística o Meu reino não é deste mundo. Hegel via na marcha do mundo o caminho do Espírito para si mesmo. Talvez quando o espírito chegasse a si, estivesse chez soi, como dizem os franceses, descobrisse a sua casa já num outro mundo e não neste, ou, então, o outro mundo é este, que é o melhor dos mundos possíveis, isto para nos atermos ao que outro filósofo alemão, Leibniz, proclamou e que, mais tarde, talvez na sequência do terramoto de Lisboa, Voltaire não se cansou de ridicularizar. Continuo a ler de manhã o jornal, já não em papel, mas online, embora não o faça ao pequeno-almoço. Não por respeito ao espírito de Nietzsche, espírito frágil que se desintegrou rapidamente, mas porque não me dá jeito. Continuo a ser um moderno, falha-me a paciência para os sobre-homens e, aos poucos, começo a conceder a Leibniz que este é o melhor dos mundos possíveis, até porque não tenho outro.
terça-feira, 11 de junho de 2024
Um problema de autoria
Hoje, a certa altura do dia, decidi desocupar-me e ocupar-me com outra coisa, pois há sempre outra coisa para nos ocupar. O resultado foi isto: linhas negras cruzam o vermelho / estruturas erguem-se do caos / pontos brancos explodem no horizonte / gestos soltos, marcas de um instante // ecos da tinta vibram tensões / manchas dançam sem rumo / horizontes emaranhados, sem destino /tons diluídos em abstracção // redemoinhos de tinta encontram-se / na profundidade sem nome / traços perdidos buscam sentido / o fundo arde em rubro intenso. Estou inocente. Ou quase. Não fui eu que escrevi o poema, se é que é um poema. É o produto de uma transacção. No chatbot, introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta. Pedi-lhe para me escrever um poema com doze versos, sem metro, sem rima. Este não é o produto inicial. Pedi para fazer algumas alterações, até chegar aqui. Apesar de desocupado, não tinha muito tempo para continuar a experiência, mas descobri uma coisa. Pode-se escrever um poema com um chatbot. A questão é descobrir os comandos a dar, a arte do prompt, ter tempo para fazer explorações. Já descobri que a Inteligência Artificial tem uma inclinação para o kitsch (por exemplo, o verso gestos soltos, marcas de um instante) e para o pathos (por exemplo, o verso horizontes emaranhados, sem destino), foi a sua educação digamos assim. Contudo, é possível trabalhar sobre ela e eliminar aquilo de que não se gosta, trocar a disposição dos versos. Talvez, mas não experimentei, pedir para usar esta ou aquela figura de estilo. Levantar-se-á um problema de autoria, mas talvez, este seja um falso problema, pois ninguém é o completo autor daquilo que é apresentado como seu.
segunda-feira, 10 de junho de 2024
Discussão fracturante
Hoje tive uma discussão fracturante com o autor. Para quem não sabe, posso dizer que não são poucas as vezes que narrador e autor entram em conflito, e não estou a falar deste caso particular. Digamos que foi um conflito quase político. Expus, ao autor, a minha tese sobre o feriado de hoje. Disse-lhe que achava bem que fosse feriado, pois qualquer dia é um dia bom para ser feriado. Camões, por si só, merece um feriado e era de evitar que se lhe acrescentasse o dia de Portugal e das comunidades. Ele olhou de viés, mas eu continuei. Se querem um dia para Portugal escusam de escolher o dia em que o seu maior poeta morreu. Parece que os portugueses comemoram a morte daquele que lhes moldou língua. Depois, o verdadeiro dia de Portugal é o 5 de Outubro, que foi o dia do tratado de Zamora, aquele em que os do outro lado reconhecem Afonso Henriques como rei de Portugal. Arrastado pela efeméride, também é o dia da República, que com dificuldade de encontrar uma data para depor o Rei, escolheu aquela em que o primeiro dos reis tinha sido reconhecido. Dia de Camões, da língua portuguesa e da poesia, seria justo, apesar de um pouco fúnebre, mas esqueceram-se de preservar o registo de nascimento de Luís de Camões, talvez uma avaria no sistema informático da época, e não havendo dia de nascimento, há o da morte, é o melhor que se arranja. O autor ouviu-me, com a petulância que lhe é habitual, depois olhou-me com comiseração e, sem dizer nada, voltou-me as costas, mas não se afastou muito, pois logo retornou e disse vai contar histórias para outro lado. E eu fui.
domingo, 9 de junho de 2024
Erotização eleitoral
Já cumpri o ritual de visita às urnas. Desde o ano de 1975, apenas uma vez não o fiz, numas eleições autárquicas, mas já não sei quais. Estava longe. De resto, sou um votante contumaz. Quando me levantei e logo a seguir, nunca me ocorreu que era dia de eleições. Pensava no que iria fazer e na agenda não constava deslocar-me a uma assembleia de voto. Ao abrir a janela, vi demasiadas pessoas a deslocarem-se para o pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, o sítio onde voto. Isso acordou-me para a realidade eleitoral. Despachei-me para ir resolver o assunto. Quando lá cheguei, depois de caminhar 160 metros, segundo informação do portal eleitoral, tentei perceber qual era a mesa de voto que me cabia, mas alguém teve a amabilidade de me esclarecer que estávamos já noutro mundo, que eu podia escolher a mesa que me apetecesse. Podia ser, caso tivesse pressa, a com menos gente ou, caso quisesse confraternizar com alguém, a que tivesse maior fila. Agradeci, entrei no pavilhão e não havia possibilidade de confraternizar com quem quer que seja. As filas eram todas iguais, isto é, não as havia. Escolhi uma mesa ao acaso, entreguei o cartão de cidadão, este foi devorado por uma ranhura de um computador. A certa altura, deram-me um boletim de voto e lá fui para a cabine. Puxei da esferográfica que levava comigo, não fosse a que lá está estar viciada, percorri a lista de candidaturas, descobri aquela que iria eleger e fiz o sacramental X no quadrado respectivo. Depois, dobrei o boletim de voto, desloquei-me para a mesa, fiz entrar o mesmo boletim por uma ranhura da urna e recebi o cartão de cidadão que já se tinha libertado do amplexo do computador. Aquilo que me veio à ideia foi uma coisa pouco apropriada. As eleições estão cada vez mais erotizadas. Não bastava, a penetração das urnas pelos boletins de voto, agora são os computadores ou uns dispositivos a eles acoplados, imagino eu, que são penetrados pelos cartões de cidadão. Enquanto saía do local, pensava se a erotização do acto eleitoral não seria uma estratégia para combater a abstenção. Uma má estratégia, pensei de imediato, pois, apesar das amplas liberdades concedidas a Eros, este anda pelas ruas da amargura, desinteressado da sua missão. Se querem combater a abstenção, pensei, deixem de lado as analogias com a sexualidade, a multiplicação das penetrações e coisas do género. Escolham outra coisa, pois essa não mobiliza já ninguém. Estes meus pensamentos foram interrompidos pelo cumprimentos de dois ou três conhecidos e desvaneceram-se quando, cumpridos os 160 metros, cheguei a casa. Voltaram agora, para ter algum motivo para escrever.
sábado, 8 de junho de 2024
O método do espelho
sexta-feira, 7 de junho de 2024
Arruadas
As sextas-feiras chegam depressa, mas os sábados e domingos dissolvem-se enquanto o diabo esfrega um olho, se for o caso de o tinhoso ser dotado de olhos. Estamos em maré eleitoral, assunto político que me está vedado, mas é sobre ele que insisto em escrever hoje, nesta sexta-feira que antecede o dia em que o corpo eleitoral, com e sem olhos, reflectirá sobre qual partido recairá a sua preferência, treinando em casa o preenchimento do boletim de voto, não vá o X transbordar os limites do quadrado preferido e contaminar outros quadrados, tornando-se assim em X nulo. Há que obstar à nulidade. O que me impressiona nas campanhas eleitorais é a prática generalizada de arruadas. Impressiona, logo, porque o termo se aproxima perigosamente de arruaças. É uma letra que separa um desfile partidário de um tumulto. Por aquilo que venho observando há anos, as arruadas são coisas pacíficas, onde uns figurantes andam com bandeiras e outros são obrigados a dar beijos e a tirar selfies, o que não é fácil, reconheça-se. Em Portugal, a distinção entre direita e esquerda cessa quando se chega à vexata quaestio da arruada. Todos gostam de arruar, embora o que se deva dizer é que gostam de arrulhar, como se os candidatos a nossos representantes fossem da família dos columbídeos, uns pombinhos e umas rolinhas. Temos assim, na arruada, o momento central da campanha eleitora. Um bando de columbídeos arruam com bandeiras ao vento. Ao verem potenciais eleitores começam a arrulhar e, caso se cruzem com outro bando de columbídeos que também arrulham, corre-se o risco de arruaçarem, mas logo lhes volta o espírito de pombo ou de rola, e toca de arrulhar, não vá algum eleitor estar à espreita. Por certo, com tantos arrulhos na rua, haverá casamentos e, se não os houver, sempre aparecerá uma ou outra gravidez indesejada, o que contribuirá para suster a queda demográfica. Este é o verdadeiro significado de uma arruada.
quinta-feira, 6 de junho de 2024
Tornar-se outro
quarta-feira, 5 de junho de 2024
Imaginação forte
Montaigne refere Cícero como autor da ideia de que filosofar é aprender a morrer. A razão estaria no facto de que o estudo e a contemplação filosóficos arrastam, até certo ponto, a alma para fora do corpo, mantendo-a ocupada num para lá da dimensão física. Tanto quanto me recordo, a ideia provém de Platão. No Fédon, Sócrates diz, cito de memória, que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. Só espero que a memória não seja imaginada. Há muito que não visito esse texto de Platão. O Fédon trata do problema da imortalidade da alma e é situado no dia em que Sócrates morre. Platão era um escritor de grandes recursos e não sem ironia. Logo no início do diálogo, quando Fédon, um dos amigos que acompanha Sócrates nas suas últimas horas, descreve a alguém essas horas e nomeia quem estava junto do velho mestre, diz que Platão parece que não estava. Ora, Platão é o autor do diálogo e Fédon é o narrador. Portanto, seria natural que o autor soubesse se tinha ou não estado naquele encontro, mas a veia literária de Platão arrastou-o para a ficção. Esta inclinação ficcional não é compatível com o que o mesmo Platão defende na República, quando afirma que os poetas, por serem dados à ficção, à mentira, devem ser expulsos de uma comunidade política bem ordenada. Por muito que o filósofo Platão se revoltasse contra a literatura, o poeta e ficcionista Platão não se poupava em deixar traços ficcionais nos diálogos filosóficos. Platão não foi um caso idêntico a Fernando Pessoa, mas havia nele, pelo menos, dois Platões. O filósofo que rasgou, por ordem de Sócrates, as tragédias que escrevera em jovem e o poeta que aproveitava os diálogos, com cerradas estruturas lógicas, para criar ficções poéticas. Comecei com Montaigne e acabei em Platão. Podia ter acabado com o primeiro quando diz Uma imaginação forte cria os acontecimentos. Talvez fosse por isso, pela força da imaginação, que Platão acabava sempre por sucumbir ao poeta que havia nele.
terça-feira, 4 de junho de 2024
No princípio
Ontem, contei uma história acerca do chatbot que uso. Ele chegou à conclusão de que eu me interesso por linguística e história da língua portuguesa a partir de um mero indício. Contemos a história a partir do princípio. E no princípio era o verbo atraiçoado. Deixando-me de enigmas. Aborrece-me que ele me responda em brasileiro, sendo eu português. Não me cai bem ver fenômenos no lugar de fenómenos. Irrita-me. Passei a pedir-lhe para me dar as respostas em português de Portugal. A certa altura, refinei o pedido, e passei a pedir respostas em português de Portugal, anterior ao AO-90, isto é, ao taralhouco acordo ortográfico de 1990, que decidiu castrar as palavras das suas consoantes mudas. Daqui o chatbot, na sua generosidade, achou que me interessava por aqueles disciplinas, o que não é o caso. Também extraiu a conclusão de que eu sou um fiel tradicionalista, visto querer escrever com uma variante do português que ele deve considerar arcaica. É assim que se criam os boatos e se lança sobre as pessoas os mais terríveis labéus. Serei eu um tradicionalista? Ora, ora, eu que cultivei as vanguardas, sou agora manchado com semelhante epíteto. Bem, o melhor é pensar no assunto. Apesar de ele, chatbot, afirmar que reconhece o português anterior ao AO-90, tem um problema com as consoantes mudas e, por norma, rasura-as. Já o admoestei, mas ele fez orelhas moucas. Temo, mas temo na verdade, que as consoantes mudas tenham os dias contados, mas nisso são como todos nós. O corrector gramatical do Word não gostou da expressão tenham os dias contados. Propôs, no seu lugar, estejam a acabar. É um corrector que se leva demasiado a sério e quer todos os textos livres de chavões. Não percebe ele que o chavão, para este narrador, é como pão para a boca.
segunda-feira, 3 de junho de 2024
Adeus, dr. Freud
domingo, 2 de junho de 2024
Distinguir os dias da semana
O primeiro domingo de Junho deu continuidade ao primeiro sábado do mesmo mês, coisa que nem sempre acontece. Não me estava a referir, todavia, aos acidentes do calendário, mas à sociabilidade, à sociabilidade deste narrador, que continuou em alta com um almoço de aniversário. Deixemos as consequências dietéticas do evento de lado e concentremo-nos num assunto que me preocupa. Perguntei aos dois membros de um casal, ambos reformados há tempos, se distinguiam com clareza os dias da semana, se sabiam que estavam num sábado ou numa segunda-feira. Reconheceram ambos que essa distinção se foi apagando. Não está completamente rasurada, mas muito diminuída. Isso confirmou as minhas suspeitas. A distinção dos dias da semana só se mantém porque os seres humanos ainda não se libertaram da necessidade de trabalhar. Quando todos os dias são de descanso, é inútil saber se hoje é domingo ou quarta-feira. Quem quer saber? Isto ainda é mais acentuado num mundo onde a religião, com o ritmo das suas festividades, se tornou, mesmo para os crentes, um assunto secundário na existência. Agora, vou preparar-me para enfrentar os 35 graus que me esperam lá no sítio onde continuo a distinguir os domingos das quartas-feiras.
sábado, 1 de junho de 2024
Sociabilidades
Não há inimigo maior das boas relações com a balança e a nutricionista do que a sociabilidade. Ser sociável implica um conjunto de rituais que acabam por fomentar comportamentos desviantes da boa forma e dos cuidados com a saúde. O almoço de hoje prolongou-se pelas horas dentro. Ora, mais do que aquilo que se come é o que se bebe. Mesmo que lento seja o ritmo do consumo, com o passar das horas vai-se acumulando o álcool e, com ele, as calorias, o peso e os efeitos nefastos na relação com a balança e, por extensão, com a pobre rapariga que acha ter por missão pôr-me de boa saúde. Enfim, ela não acha, mas faz o papel dela e eu finjo que acredito que ela crê ter essa missão. Seja como for, ainda há tempo para recuperar. Talvez por um sentimento de culpa, fiz uma belíssima caminhada, acumulei pontos cardio, passos e quilómetros. O pior é que amanhã tenho uma festa de aniversário e as tentações podem ser mais fortes do que o espírito de missão. Aliás, espírito de missão foi coisa que não me coube nos dotes recebidos, se é que recebi algum. Em contrapartida, fui dotado com uma boa dose de quedas em tentação. Acho que não vou jantar. Não por autopunição, mas porque me falece o apetite. Amanhã será outro dia, o segundo de Junho, mês que começou atravessado.
sexta-feira, 31 de maio de 2024
Uma conspiração
Acabei de fazer uma viagem de treze graus. Saí do sítio onde me acolho com uma temperatura de 36o e cheguei a onde me encontro com uma temperatura de 23o. Aliás, a viagem tanto em tempo como em quilómetros é curta para os dias de hoje. Maio acaba enlouquecido e apostado em enlouquecer quem tem de penar pelos sítios onde a brisa marítima se recusa a chegar. Daqui a pouco, irei caminhar na amenidade da temperatura. Um mistério assola a minha existência. Um dos dispositivos de leitura que tenho – um eReader – está com uma inclinação exagerada para se apagar. Carrego-o e ao fim de um dia dou com ele sem bateria. Já investiguei possíveis causas, eliminei-as, passei a cumprir as orientações fornecidas, mas o objecto não está de acordo. Talvez seja dotado de vontade, de livre-arbítrio e tome a decisão de se descarregar só para me confundir. Esta é uma hipótese que se deve levar a sério. Até hoje temos lidado com os objectos como se eles fossem meros mecanismos fabricados pelo homem e limitados na sua acção a cumprir as instruções que o seu criador lhes dá. Talvez esta visão das coisas esteja errada e sempre que os seres humanos criam um utensílio, seja para o que for, criam um ser que possui vontade própria e conspira para nos contrariar. Quem nunca teve uma avaria no carro? Quem nunca chegou a casa e deparou com electrodoméstico que se recusa a trabalhar? Ninguém. Dizer que isso é um acidente mecânico é uma explicação cândida, uma candura que os objectos aproveitam para frustrar os proprietários e divertirem-se à sua custa. Diversão, não poucas vezes, muito pouco em conta. Os filósofos pré-socráticos, os de Mileto, estavam convencidos de que tudo no mundo estava dotado de vida e de alma, digamos assim. Era uma visão de homens experimentados e que não se deixavam enganar pelas coisas que se fingiam mortas. Nós, homens contemporâneos, perdemos essa capacidade de compreender as coisas e somos, a cada instante, zombados por seres que se recusam a cumprir as tarefas para os quais os destinámos. Talvez estejam a congeminar uma insurreição. Como se vê, o tempo fresco não me é mais favorável ao pensamento do que o calor infernal.
quinta-feira, 30 de maio de 2024
Mediador comunicacional
terça-feira, 28 de maio de 2024
Homens e ilhas
Lê-se Próximo, apenas o interior; o demais está afastado, e pensa-se, talvez, no próprio homem, onde a coisa mais próxima de si é a sua interioridade e o resto está, irremediavelmente, afastado. No entanto, o verso citado, é o início do terceiro poema de um pequeno ciclo, com três composições, denominado A Ilha – Mar do Norte, de Rainer Maria Rilke. O poeta escreve não sobre os homens, mas sobre uma ilha, e, como se sabe, nenhum homem é uma ilha. Isto foi escrito muito antes por John Donne, um poeta inglês que nasceu 303 anos antes de Rilke. O poema de Donne acaba com três versos muito conhecidos: E, portanto, não procures saber / Por quem o sino dobra. / Ele dobra por ti. Para o poeta inglês, cada um é parte do todo, um elemento, A morte de cada homem diminui-me /Pois sou parte da humanidade. Que o poeta tivesse de o afirmar significa que essa comunhão entre todos os homens estaria já em processo de dissolução, o indivíduo nascia na consciência europeia, e o indivíduo é aquele que, ao escutar o dobrar de um sino, sabe que não é por ele que o sino dobra. Rilke pertence já a um mundo em que a ideia de uma pertença radical ao fundo da espécie estava apagada. A morte do outro não é a minha morte, pois a humanidade é, agora, uma mera abstracção, fundada na soma de indivíduos. Talvez o poema de Rilke sobre uma ilha seja, afinal, um poema sobre o indivíduo, pois ele pertence já a um mundo em que cada homem é uma ilha.
segunda-feira, 27 de maio de 2024
O verdadeiro conservador
Hoje o dia prolongou-se em afazeres diversos, de tal maneira que cheguei tarde a casa. Pior, as andanças toldaram-me a imaginação, o dia não foi propício a aventuras, a não ser a avaria de uma persiana, logo a do quarto. A luz entrou por ele dentro, mal se fez presente por aqui. A empresa garantiu que vem tratar do assunto, mas só amanhã. Vão ser dois dias a acordar mais cedo. Podia mudar de quarto. É verdade, mas há velhos hábitos que é melhor não os ofender. Mudar de quarto implica mudar de cama, coisa para que me falta o apetite. Descobri que tinha uma costela conservadora quando percebi que, por exemplo, num café, tinha um lugar predilecto e se ele estava ocupado, sentia em mim uma contrariedade. Depois, deixei de ir a cafés. O conservadorismo, ao contrário de se diz por aí, não é uma atitude geral perante o mundo, nem uma ideologia política, mas uma certa relação com o espaço. Um conservador, um dos autênticos, preocupa-se apenas e só em preservar os espaços. Assegurar que eles evitam a rasura do tempo, esse inimigo visceral do espaço. Um conservador sabe que não pode parar o tempo, então trata de imobilizar os espaços e de se imobilizar neles. Por isso, não é um cultor da viagem. As pessoas gostam de viajar e adoram contar as suas viagens, de tal modo que um conservador pensa que as pessoas viajam apenas por amor ao momento em que contam a viagem. Um conservador espacial, como este narrador, quando viaja, fá-lo contrariado e, se instado a falar sobre a viagem, diz que teve de ir a um certo sítio, dando a entender que o fez contrariado, como se cumprisse um dever. Por isso, prefiro ser incomodado pela luz matinal a mudar de sítio para dormir. Não seria uma grande viagem, mas não deixaria de ser uma infidelidade espacial.
domingo, 26 de maio de 2024
Herói e anti-herói
sábado, 25 de maio de 2024
O verdadeiro niilismo
sexta-feira, 24 de maio de 2024
Nunca falhamos
O dia já esteve quente, permitindo aquela experiência de alívio e pacificação que se dá quando se vem do calor e se chega a casa. As orquídeas estão belíssimas, mas há ainda algumas por florescer, serôdias. Talvez uma ou outra não o faça. De uma das janelas avisto dois jacarandás. Um está coberto por um manto lilás azulado, mas o outro falhou o grande espectáculo. Aliás, todos os anos é assim. Terá sido plantado em lugar inapropriado. Isso também acontece a muita gente. Plantada em lugar que não é próprio, falha o grande momento. O que será para um ser humano o grande momento? É a vida. Por longa que seja, não passa de um momento e não haverá momento maior para alguém do que esse. Daqui a uma semana, Maio estará no seu último dia. Mais umas horas e evaporar-se-á, não para atmosfera, mas para o nada, que é o sítio de onde vem e para o vai o tempo. O tempo é a estrada que liga os vários – os infinitos – nadas. É por ela que vamos e, por estranho que pareça, nunca nos enganamos no caminho. Nunca falhamos o nada.
quinta-feira, 23 de maio de 2024
Acumulações
Os dias continuam a crescer. A temperatura, agora, também aumenta. Nesta corrida, os dias vão perder. Vão cessar de aumentar mais rapidamente do que a temperatura. Eis uma meditação que não serve a ninguém. É assim que concebo a minha sabedoria. Um conjunto de informações inócuas, cuja finalidade não se descortina. Fui acumulando informação atrás de informação. Elas, as informações, em vez de se integrarem num todo harmonioso, acumularam-se num armazém sem ordem. Preciso de uma, então lanço a mão ao armazém e uso a primeira que me aparece. Basta olhar para estes textos. São fruto de lançar a mão e apanhar aquilo que aparece em primeiro lugar. O que acontece comigo, imagino que acontecerá com muitas outras pessoas, mas não tenho a certeza. Nunca fui outra pessoa. Já ser esta é uma tarefa hercúlea, quanto fará ser esta e outra. Talvez Fernando Pessoa, ao ser tantos, fosse, na realidade, um Hércules. Apesar disso, morreu cedo. Ser tantos pesou-lhe na alma e deu-lhe cabo do corpo. Se Pessoa vivesse hoje, iria ao ginásio. O exercício permitir-lhe-ia suportar-se a si e aos outos sis que ele era e prolongar a vida, para acumular mais sis. Ele acumulou sis, eu acumulo informações. São mais leves e, com o passar do tempo, elas vão desaparecendo do armazém. Não sei se elas são roubadas ou se saem pelo próprio pé. Conformo-me, pois devemos evitar a acumulação.
quarta-feira, 22 de maio de 2024
Profecias e exorcismos
Diante de mim, está pousado um romance que tem a guerra por pano de fundo. Trata-se de Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov. O facto de, nos últimos tempos, estar a deparar-me com romances que têm esse horizonte na sua narrativa, quererá o dizer o quê? Premonição ou esconjuro? Será aviso de profeta ou acto de exorcista? Sou um mero narrador, um ser virtual, submetido ao arbítrio do autor, um espírito racional e educado nos valores do Iluminismo. Foi assim que o autor me concebeu. Como tal, não tenho inclinação nem para profeta nem para exorcista. Contudo, não era de mim que falava, mas dessa disposição das coisas que teima em colocar perante os meus olhos esse tipo de literatura. Se há uma disposição, então terá de haver alguém que tenha essa disposição, terá de existir aquele que dispõe. Será ele, ou ela, que é profeta ou esconjurador e utiliza a literatura como instrumento para cumprir a sua missão. Não é indiferente se se está perante a acção de um profeta ou de um exorcista. Se for um profeta, ainda nos encontramos na fase da anunciação de um mal que poderá ocorrer no futuro. Se for um exorcista, então estamos já em plena vigência do mal e esta comunicação através de obras romanescas é um ritual usado para afugentar a malignidade que ainda por aí à solta. É o que me ocorre por hoje, dia em que não me ocorreu nada.
terça-feira, 21 de maio de 2024
Inflamações
segunda-feira, 20 de maio de 2024
Um acto de resistência
Uma experiência anacrónica. A anacronia, no caso, não é muito grande. Passou-se ontem. Um acaso levou-me ao lugar onde nasci, uma aldeia aqui perto. Parei o carro e fiquei à conversa com uma prima. A certa altura, vejo pessoas a espalharem verdura na estrada. Ia haver procissão. Faz sentido, deve ser domingo de Pentecostes e como a terra festeja o Espírito Santo, há procissão, pensei, enquanto ia conversando sobre coisas com décadas. Aproveitei mesmo para lhe desfazer uma ilusão. Estava, a minha prima, convencida de que eu tinha nascido em Lisboa. Uma falsidade, pois, apesar dos meus pais viverem na capital, eu nasci ali. Ora, o que me perturbou não foi a falsa crença de uma prima que não via há décadas, mas a procissão. Entre aquela que vi ontem e as que desenterrei da memória, de uma memória muito recuada, havia uma diferença abissal. Por certo, na coreografia, mas, acima de tudo, no número de fiéis. Ontem, eram tão poucos os que seguiam atrás dos andores, do pároco e da banda filarmónica da aldeia, que olhei estupefacto e, eu que nunca fui numa procissão, quase tive vontade de ir naquela. Para fazer número ou talvez para me solidarizar com as memórias que tenho de grandes procissões, com as raparigas com tabuleiros à cabeça, ajudadas pelos namorados ou afiançados, ou lá o que eles eram, seguidos pelos homens com opa vermelha da confraria do Espírito Santo. Ontem não havia raparigas com tabuleiros à cabeça, nem namorados, nem confrades do Espírito Santo, para além de quase não haver pessoas. Depois, pensei que aquilo que eu estava a ver era um acto de resistência. Aquelas pessoas, conhecia uma ou outra, estavam em luta contra a rasura do tempo. Já não têm poder para erguer uma festa ao divino Espírito Santo, como as havia ali desde o século XVII, mas ainda saem à rua, levam os andores e põem a banda a tocar. Pode ser a luta mais inútil, mas lutar contra o tempo é o combate que merece a maior das admirações.
domingo, 19 de maio de 2024
Finais felizes e alucinações
Decidi, após a leitura de um certo romance, pedir a um chatbot para fazer um resumo da obra. Ele começou muito bem, mas a partir de certa altura passou a alucinar e reconstruiu a história em modo cor-de-rosa, que não é, propriamente, a cor com que acaba o romance. Há duas explicações, pelo menos, para esta situação. A primeira é que há certas versões não romanescas da história em que esta tem um final feliz e o chat decidiu compor o resumo. A outra é que o chat não gostou do fim da história dado pelo autor e decidiu reescrevê-lo, compô-lo, como se fosse o proprietário de uma editora que quisesse vender livros ao público e tivesse como mercado as pessoas que consomem finais felizes. A literatura – e não confundir literatura com ficção em livro – não tem especial inclinação para finais felizes, mas é plausível pensar que são muitos os editores que precisam de vender livros a corações em busca de consolação. Depois, fiz uma nova tentativa com outra obra. Tentei em dois chatbots diferentes. A resposta foi muito mais adequada. Como a obra é muito mais recente e não deu origem a mil interpretações, ambos os chatbots evitaram alucinações e limitaram-se a fazer um resumo genérico da obra. Já reparei que um deles alucina muito mais do que o outro. Há nele qualquer coisa que me perturba. Tenta compor a realidade, tornando-a mais de acordo com certo gosto que ele presume ser do público. As versões pagas, segundo me dizem, são mais fiáveis, mas ainda não me predispus a solicitar serviços pagos. Se quero resumos, faço-os eu, embora não saiba por que razão hei-de querer resumos das obras que leio.
sábado, 18 de maio de 2024
A melancolia da distância
Por curiosidade, foi ver os eventos históricos referentes ao dia 18 de Maio. Entre 1096 e 2018, catorze dos eventos elencados estão relacionados com a guerra. Este é o principal desporto do homo sapiens sapiens. Somos uma espécie duplamente sábia, mas aquilo em que somos, efectivamente sábios, é matarmo-nos uns aos outros. Por horrível que isso seja, não podemos dizer que tenha sido um problema para a espécie, pois esta colonizou todo o planeta e colocou-o sob a sua alçada. Imagino, agora que penso nisso, que a questão da guerra não seja uma questão moral, mas biológica. Assim como no processo evolutivo desenvolvemos a linguagem articulada e, posteriormente, a escrita, também desenvolvemos o poder de nos matarmos. Dois desenvolvimentos inerentes ao processo de adaptação ao meio. Eis um pensamento sombrio, mas que está de acordo com o dia. Tem estado, felizmente, um Maio pouco dado a exuberâncias estivais, fazendo mais lembrar um tempo de Semana Santa, embora esta ideia de que há um tempo, um clima, próprio da Semana Santa não passe de um estereótipo, o qual, penso, não ofenderá a Semana Santa, mas nunca se sabe. Quando se considera a nossa espécie, a partir da cadeira de um escritório, não é possível reprimir a melancolia. Entre aquilo que imaginamos que podíamos ser e aquilo que somos, há uma distância sem fim, talvez infinita. A melancolia vem da constatação dessa distância que vai do ideal ao real, como se diria outrora.
sexta-feira, 17 de maio de 2024
Os caminhos para Roma
Ainda não decidi se vou caminhar junto ao rio ou se fico por casa. Haverá, claro, outras alternativas, mas deixo-as de lado, pois seria fastidioso fazer a sua enumeração. Há quem creia, todavia, que nunca temos alternativas. Estas seriam ilusórias, pois só podíamos fazer aquilo que fizemos, embora tenhamos a capacidade de pensar que poderíamos ter feito outra coisa. Os defensores do não há possibilidades alternativas, desde Baruch Espinosa até a certos cientistas dos dias de hoje, crêem que tudo está determinado. Ora, o que não se consegue perceber é a necessidade de termos desenvolvido uma capacidade de pensar que nos diz que para ir a Roma se podem escolher múltiplos caminhos – aliás, todos, pois todos os caminhos vão dar a Roma – e, na verdade, só haver para nós um caminho para ir a Roma. O facto de termos desenvolvido a capacidade de encontrar vários caminhos e a de deliberarmos sobre qual devemos tomar choca com esse determinismo insuperável. Tenho uma tese que me parece promissora. A vida é um longo caminho de afastamento do condicionamento determinístico da matéria. Quanto mais complexa for uma forma de vida, mais ela tem capacidade de descobrir várias vias para chegar a Roma, isto é, a onde quer. A única coisa que, verdadeiramente, dá fôlego aos defensores do tudo está determinado é a impossibilidade de se retroceder no tempo e voltar a uma certa situação e, não mudando nada da situação original, tomar uma decisão diferente daquela que se tomou, isto é, ir a Roma por outro caminho. Escolhi um péssimo tema para hoje, mas ainda estou a tempo de escolher outro, o de falar sobre o estado do tempo e da exuberância que se desprende do friso das orquídeas. Talvez vá caminhar junto ao rio, se tiver companhia.
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Da alucinação
Comecei a escrever uma deambulação sobre alucinações e visões, um texto ainda mais obtuso do que aqueles que costumo escrever. Ao fim de uma dúzia de linhas, apaguei-o e lá se foram as visões e os estados alucinados sobre os quais ia discorrer para dizer nada. A maior parte das palavras que dizemos ou escrevemos são inúteis, penso-o muitas vezes, e se as não disséssemos ou não as escrevêssemos o mundo não perderia nada, antes pelo contrário. Como narrador, tento um equilíbrio entre a verborreia, que me habita a alma, e a ascese linguística que me aproximaria do silêncio. Aqui, todavia, reside, disfarçado, um problema. O silêncio ainda é uma forma de discurso. O facto de evitar as emissões sonoras ou o traçar gráfico de letras não significa que nada se diga. A pessoa que não fala pode incomodar não porque esteja calada, mas devido à sua loquacidade. Essa é uma experiência arcaica, da infância. O silêncio dos pais pode ser excessivamente ruidoso para os filhos. Comecei com as alucinações e as visões de que não falei e podia agora acrescentar audições. Cada um dos nossos cinco sentidos pode alucinar a seu modo. Sentir coisas, cheirar coisas, saborear coisas, para além de ver e ouvir coisas. E aqui parece existir mais uma gaffe da nossa evolução. Se desenvolvemos os sentidos, na longa caminhada até à humanidade que hoje somos, para entrar em contacto com o mundo, por que razão eles nos enganam, chegando ao ponto de produção de alucinações? Há uma possibilidade interessante. Não há nada de errado com os sentidos. Cada alucinação não é a produção de uma fantasia sensorial, mas uma entrada em contacto fugaz com uma realidade que, por norma, está oculta. O melhor é terminar a prosa, para não ser acusado de estar a alucinar. Pertenço a uma geração que não se coibiu de procurar alucinações por métodos ínvios, mas, digo-o para memória futura, nunca fui atraído por paraísos artificiais. Não tinha alma de Baudelaire.
quarta-feira, 15 de maio de 2024
Da anorexia dos caracteres e da felicidade dos canalhas
Estou a tentar ler um certo livro cujo título não vem ao caso, embora a sua matéria exija atenção ao texto. E é aqui que está o problema. O texto utiliza um tipo de caracteres, uma fonte, tão elegante, tão elegante, que os meus olhos têm dificuldade de lidar com tanta elegância. Pensando bem, não deveria falar de elegância da fonte, mas de anorexia. O estado anoréctico dos caracteres choca com os meus olhos. Estes, apesar da prótese a que damos o nome de óculos, já tiveram melhores dias e não lidam bem com todas as fontes que por aí pululam. A certa altura, leio o seguinte: É preciso reconhecer, entretanto, que há certas desordens nesta vida, que se mostram particularmente na prosperidade de muitas pessoas más e na infelicidade de muitas pessoas de bem. Há um provérbio alemão que chega a atribuir a vantagem aos maus, como se normalmente eles fossem mais felizes. Era isto que estava a ler e que estava a ser obliterado da minha consciência pelo estorvo provocado pela anorexia da fonte usada. E o que dirá, perguntará algum leitor, o provérbio alemão? Ora, o que haverá de dizer? Fica a tradução apresentada: Quanto mais curvada a madeira, tanto melhor são as muletas; quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Não querendo pôr em causa o espírito do povo alemão, tão bom a fabricar provérbios como qualquer outra coisa, acho o provérbio excessivo na dimensão e, na verdade, falhado. Bastaria que dissesse: Quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Seria um belo e exacto provérbio. Não se compreende a introdução de um raciocínio analógico. Que relação se poderá estabelecer entre a curvatura da madeira e a perfeição do canalha? E entre a qualidade das muletas e a grandeza da felicidade. Talvez o espírito alemão seja mais obscuro do que aquilo que um latino consegue enxergar, mas também é verdade que os meus olhos não estão nas melhores condições para enxergar seja o que for, apesar de eu viver no melhor dos mundos possíveis. Talvez me tenha perdido na tradução. Por falar em canalhas, segundo o dr. Johnson, Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. O dr. Johnson não escreveu a frase, apenas a proferiu na tarde de 7 de Abril de 1775, tendo sido registada pelo seu amigo, pupilo e biógrafo James Boswell. Terá sido o dr. Johnson um antipatriota? É duvidoso. O canalha é aquele que se serve do patriotismo para disfarçar os seus interesses egoístas, mas este é um assunto perigoso, pois entre por um campo, a política, que me é vedado pelo autor. Como narrador, aceito a limitação da minha liberdade. Fiquemos apenas pela felicidade dos canalhas, até porque o texto vai longo e não há quem tenha paciência para o ler. E estou certo de que os canalhas, chegados a velhos, ainda têm olhos para caracteres anorécticos. Daí a sua felicidade caso sejam dados à leitura, talvez a última.
terça-feira, 14 de maio de 2024
Idade metabólica
Hoje tive aquela sessão, que não será de todo inútil, com a nutricionista. Pesagens, medições, conversa, patati, patatá. Progressos nuns lados, retrocessos noutros. A idade metabólica, apesar de ter subido e não devia, está bastante lisonjeira, menos dez anos que a idade real. Aliás, estava a recuar demasiado no tempo metabólico e isso poderia ter efeitos deletérios que me recuso a congeminar. Seja como for, acho que devo comemorar os progressos existentes. Descobri um restaurante de comida brasileira e pareceu-me adequado para festejar a perda de peso e de perímetro abdominal. Também evitará recuos na idade metabólica. Não por acaso, deitei a mão a uma estante e tirei de lá o livro You must change your life, do filósofo alemão, Peter Sloterdijk. É isso que a frequência da nutricionista deveria querer dizer. Mudar de vida, abjurar a vida passada, os mil pecados da gula e, sob o comando da enviada do reino das pessoas saudáveis, entregar-me à ascese que me conduzirá não ao paraíso, mas à elegância e à saúde. O meu problema, porém, é que me falta fé, e cada vez que tenho dúvidas, o que é a propensão de uma razão crítica, abro o caminho para aumentar a idade metabólica. Uma chatice. Não serei o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro que não compreende por que razão aquilo que é agradável aos sentidos faz mal à idade metabólica. Há um erro no processo evolutivo da humanidade. Desenvolveu os sentidos também como fonte inesgotável de prazer e, afinal, o organismo só é saudável se evitar os prazeres. A minha esperança é a engenharia genética, que, no futuro, poderá intervir nos nossos genes e desligar os sentidos do prazer, focando-os na sobrevivência. Até lá temos de suportar esta luta infinita entre o prazer e a idade metabólica, ouvir as sorridentes homilias da enviada do reino da saudabilidade e não levar nada disto a sério.
segunda-feira, 13 de maio de 2024
Por uma natureza benevolente
Os dias úteis começaram carrancudos. Céu cinzento, tempo abafado. Alguém diz estamos no tempo das trovoadas de Maio, oiço responder pois estamos, pois estamos. E a conversa continuou, saltando de assunto para assunto, um modo de ocupar o tempo e de o deixar deslizar. Por certo que, por aqui, Maio tem as suas trovoadas, mas na minha memória são as de Junho que surgem mais rapidamente. Súbitas enxurradas, trovões e relâmpagos. A rua, onde vivi parte da infância, toda adolescência e mais alguns anos, enchia-se de água, que corria para outra rua mais abaixo, talvez com esperança de chegar ao rio. E chegava. Depois, vinha o sol e a Primavera começava a despedir-se do calendário. Hoje podia trovejar e chover, pois a atmosfera está acintosa, era bom que a natureza descarregasse a sua fúria, para depois, mais calma, deixar os mortais entregues aos seus afazeres. Não é bom que a natureza acumula fúrias, raivas, ressentimentos. Não lhe faz bem e quem paga são os homens. Não é que estes não mereçam castigo, mas deixemos isso a quem de direito. Não queremos uma natureza justiceira, mas benevolente e dotada de uma infinita paciência para nos aturar. Bem precisa. Hoje não me ocorre nenhuma ideia. O melhor é parar por aqui, antes que venha o crepúsculo e as sombras se adensem até cobrirem a terra com a folhagem extravagante da noite.
domingo, 12 de maio de 2024
Ser sábio
Em Algumas Lições sobre o Perfil do Erudito, de 1794, Fichte terá afirmado que o erudito deve ser, do ponto de vista moral, o melhor ser humano do seu tempo. Esta tradução do título Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten é equívoca. Fui buscá-la à tradução portuguesa de uma obra de Alexander Kluge, que faz a citação referida. Ora, a tradução francesa é Conférences sur la Destination du Savant, texto que trabalhei arduamente há décadas, mas do qual já não tenho memória. O tradutor automático da DeepL não propõe nem erudito nem sábio (savant), mas académico. A questão não é de somenos. Não se percebe por que um acumulador de informações (um erudito) terá de ser o melhor ser humano do seu tempo. Saber muitas coisas não faz de nós melhores. O mesmo se aplica ao académico. Por que razão o triunfo no mundo académico tornará melhor moralmente o triunfador? A tradução francesa por savant (sábio) é a mais pertinente. Ser sábio é muito mais do que acumular informações ou triunfar na academia, mas uma forma de saber conduzir a sua vida e a relação com os outros. O sábio é o que sabe, efectivamente, traduzir o conhecimento na acção, não porque age segundo um enquadramento teórico, mas porque a sua sabedoria se tornou carne da sua carne e espírito do seu espírito. O sábio é o que está aberto ao acontecer e sabe dançar a música dos acontecimentos. Por certo, esta concepção de sábio está longe daquela proposta por Fichte, que um dia me terá interessado, mas que o tempo, com a sua sabedoria, rasurou da minha memória. Olho para o livro anotado, reconheço a minha letra, mas, na verdade, já não me reconheço como autor dos comentários feitos com a letra que é a minha. Se não me desse trabalho, punha-me a apagar sublinhados e anotações, para retornar a ler aquilo que há muito li diversas vezes, sem me tornar mais sábio.
sábado, 11 de maio de 2024
O caminho da reiteração
Suspendi a marcha pela floresta das sinfonias de Mahler. O que me falta ouvir fica para a próxima semana. O fim-de-semana musical fica dividido entre o silêncio e a música contemporânea. Nesta comecei, com duas composições de Alfred Schnittke, Concert for Choir e Requiem. Agora, viajo por Maurice Kagel, Rrrrrrr… Anagrama e Mitternachsstuk. A parte final da viagem será com Frédéric Durieux, So schnell, zu früh, Devenir e Là, au-delà. Tudo isto proveniente de CD que já não ouvia há bastante tempo. Na música, talvez como em tudo, o importante é a reiteração. Ouvir uma e outra e outra vez. Esta repetição, porém, tem, desde há tempos, má imprensa, digamos assim. Fomenta-se a quantidade das experiências. Ver muitas coisas, ouvir muitas coisas, viajar por muitos sítios, ter muito amores, etc., etc. Isto, porém, não passa de um exercício superficial e este amor à multiplicidade experiencial é, na verdade, a confissão de uma impotência estrutural perante a verdadeira experiência, que não procura a multiplicidade infinita, mas procura o infinito que há na unidade. A repetição é uma aproximação a essa unidade infinita. Unidade sem fim, seria mais apropriado dizer. A repetição não é a queda na rotina, como um tempo apressado como o nosso pensa. Pelo contrário, é um processo de descoberta, pois a realidade, qualquer realidade, só se deixa conhecer pelo árduo esforço, e mesmo este não garante a apropriação que constitui todo o conhecimento. Voltando à música, a de Alfred Schnittke pertence a universo sonoro bem diferente dos de Kagel e de Durieux, que estão mais próximos, filhos de uma mesma cultura. Enquanto trabalho, deixo a música escorrer por mim. Por vezes, paro e fico apenas a ouvir. Outras vezes, deixo o silêncio reinar. As paredes da escola aqui ao lado reverberam, fustigadas pela inclemência do Sol. O fim-de-semana progride e isso não é uma boa notícia.
sexta-feira, 10 de maio de 2024
Esquinas
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Dia da espiga
Não fui colher a espiga, hoje que é dia dela. Aliás, nunca participei nessas romarias ao campo, para colher a espiga e fazer um ramo que incluía ainda papoilas, malmequeres, pequenos ramos de oliveira, alecrim e videira. Uma festa claramente pagã e que acabou por coincidir com a festa cristã da Ascensão. Em tempos, a Quinta-Feira de Ascensão foi feriado nacional, mas agora só é feriado em alguns – são bastantes – municípios, como este em que me recolho. Não terá sido muito inteligente acabar com o feriado nacional. Os católicos festejariam a Ascensão, os pagãos iriam à espiga e os outros entregavam-se ao descanso, pois, contrariamente ao que se propaga desde a tenebrosa (por certo, por causa do carvão) Revolução Industrial, o homem não foi feito para o trabalho. Este é um mal, um castigo metafísico. Ora, se o trabalho tem essa natureza, o mais sensato será aliviar os homens, o mais possível, dessa punição. Punição como aliás decorre da própria palavra trabalho, que foi derivada de tripalĭu, um aparelho de tortura composto por três paus. Como a história das palavras nos conta coisas interessantes. Num tempo de grandes preocupações ambientais, seria sensato que um governo decretasse a Quinta-Feira de Ascensão, com a adenda de se considerar também Dia da Espiga, como feriado nacional, e todos fossem passear ao campo, fazer ramos e testar a sua resistência às alergias provocados por pólenes, pós e poeiras. Por ser feriado, tenho passado o dia a trabalhar e a ouvir as sinfonias de Gustav Mahler, dirigidas por Eliahu Inbal e executadas pela Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt, em gravações que datam do século passado. Este é o meu programa musical para hoje e os próximos dias. Daqui a pouco, mais à tardinha, irei caminhar junto ao rio, num lugar onde há papoilas e malmequeres. Não os apanharei, mas olharei para eles e ficarei grato pela sua existência, como pela existência do rio e dos chorões e salgueiros que por lá existem.
quarta-feira, 8 de maio de 2024
Ruminar o futuro
Hoje, decidi comprar um livro de Ursula K. Le Guin. É conhecida como autora de romances de ficção científica. Li dela apenas três romances do denominado ciclo de Terramar, o qual foi completado, mais tarde, por outros três, que nunca li. Estes romances fazem parte de uma literatura de fantasia, cuja personagem principal é um feiticeiro denominado Ged, o gavião, se bem me recordo. Não eram romances típicos de ficção científica ou de antecipação. A ficção científica foi um género que nunca me atraiu. Talvez seja o contraponto do romance histórico. Enquanto este ficciona o passado, a ficção científica fá-lo-á com o futuro. Talvez este género literário seja mais importante do que aquilo que eu tenho pensado. Não pela literatura em si mesma, mas pelo modo como a imaginação opera para trazer à linguagem as expectativas humanas, o modo como dentro de nós o futuro é ruminado. A compra de Do Outro Lado do Sonho, o romance de Ursula K. Le Guin, é uma tentativa de entrar nesse mundo narrativo, do qual, na verdade, só conheço o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A minha percepção é que esse tipo literário tem uma natureza distópica. Seria interessante perceber a razão por que o futuro é, por norma, antecipado como um lugar de trevas. Isto recorda-me a velha teoria das Idades do Mundo, em que a primeira Idade era a mais ditosa, a de Ouro e a quarta, a última, a Idade de Ferro, aquela que era tenebrosa por essência. Esta inversão da ideia de progresso talvez seja a fonte que alimenta a imaginação dos escritores de ficção científica, ou, porventura, de todos os escritores. O melhor dos mundos possíveis não está no presente, nem no futuro, mas pertence a um passado de que perdemos a memória, restando apenas vestígios inconscientes, cuja luz não é suficiente para iluminar o futuro.
terça-feira, 7 de maio de 2024
Ondina
Esta noite acabei de ler um conto – talvez fosse mais correcto classificar a obra como uma novela – onde uma das personagens centrais é uma ninfa ou um génio feminino das águas. O autor é Friedrich de La Motte-Fouqué, autor que desconhecia por completo e que um acaso depositou diante de mim a sua obra, Ondina, na tradução portuguesa. É um conto fantástico e mais um episódio daquilo a que se poderia chamar a legenda do amor no Ocidente. Não sou dado à literatura fantástica, mas talvez esteja numa fase de alteração do gosto. Nunca se sabe o que a idade traz aos seres humanos. Sobre aquilo a que chamei a legenda do amor no Ocidente, apenas posso remeter para a obra de um dos pais da Europa, Denis de Rougemont, no seu O Amor e o Ocidente. Presumo que ainda seja obra que mereça ser lida, embora a alteração do gosto tenha sido acentuada nas últimas décadas, e a influência anglo-saxónica tenha obliterado a atenção aos autores da Europa continental. Voltando à bela Ondina, ela abandona o seu mundo em busca de uma alma humana. É o máximo que posso adiantar, mas poderei acrescentar que a pretensão de Ondina será a de todos os seres humanos, quando abandonam o mundo do nada onde existiam, antes de serem concebidos, e são postos sobre a Terra. A partir daí buscam por mil caminhos encontrar e conquistar uma alma humana, a sua alma. A questão que se pode colocar é se eles a encontram ou a perdem, não por a terem, mas por não encontrarem a alma que seria a sua. O que me vale – acabo de o pensar – é não viver num tempo em que o Tribunal do Santo Ofício exercia os seus poderes nesta terra, pois estas formulações acerca da alma são heréticas. Heréticas ou não, são muito mais interessantes. Uma coisa é receber de mão-beijada uma alma na hora da concepção. Outra, bem diferente, é enfrentar o mundo, como D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, para encontrar a sua alma. Que aventuras não há que empreender? Que ilusões não há que desfazer? Sim encontrar e conquistar a sua alma é uma prova difícil, mas todas as coisas belas são difíceis, como o escreveu um dia Platão.
segunda-feira, 6 de maio de 2024
Da fealdade das palavras e da origem das sombras
Uma sombra projecta-se no muro da escola aqui ao lado. Depois, desaparece. Este é o destino de todas as sombras, oiço dizer dentro de mim. Por uma vez, aquiesço, no sentido de condescendo com a opinião que foi soprada nem sei bem de onde e por quem, talvez um homúnculo que vive escondido nas terras escuras do meu subconsciente. Aquiescer é um verbo horrível. Não pelo seu significado, mas pela sua sonoridade. Há palavras assim, nascem feias e, por mais tratamentos de beleza que façam, nunca se tornam umas belas palavras. Há pelo menos três categorias de palavras feias. Uma categoria fonológica, em que a fealdade deriva do som, como o verbo aquiescer. Uma categoria semântica, em que a palavra é feia pelo seu significado; por pudor, omito um exemplo. Uma categoria do uso, em que a fealdade deriva da palavra ser usada para tudo e para nada, como a horrível palavra empreendedorismo. Imagine-se, agora, que uma palavra é feia pelo som, pelo sentido e pelo uso. Não haverá palavra que queira casar com ela. No muro, continuam a projectar-se sombras. Umas desaparecem rapidamente, outras permanecem, como a das árvores ou dos carros parados. Todos nós, dotados de bom senso – a coisa mais bem distribuída no mundo, pois, como ensinava o bom Descartes, não há quem queira mais do que aquele que tem – todos nós, dizia, afirmamos que as sombras naquele muro se devem a uma interposição de corpos opacos entre o muro e uma fonte luminosa. É sensato acreditar nisto. Seria, porém, insensato crer que aquelas sombras são emanações de um mundo interior ao muro e que chega até nós não sua vividez real, mas num estado penumbroso, pois perdeu a energia para se manifestar vivo e cintilante na superfície externa do mundo? Se esta hipótese parece inverosímil, há que sublinhar que ela tem um papel relevante na nossa sociedade. Oferece uma solução alternativa à explicação da sombra, o que assegura a concorrência no mercado das ideias e promove a liberdade de escolha dos cidadãos.