segunda-feira, 29 de julho de 2024

Contra a realidade

Está uma segunda-feira de sonolência, tecida no nublado dos céus e no calor que teima em descer sobre a Terra, sem que o vento decida intervir para restabelecer a temperatura. O ideal seria uma tempestade. Chuva abundante, raios e coriscos, mas a realidade nunca está pelos ajustes e as excepcionais ideias que me ocorrem são desperdiçadas, sem sequer existir uma explicação. Por isto se percebe que a realidade não pertence a um tempo em que o espírito crítico reina. Está, essa realidade, em desacordo com as minhas ideias? Muito bem, mas tem a obrigação de dizer as razões desse desacordo. A realidade tem uma índole inclinada para o absolutismo. Ignora essa coisa de dar explicações, como se fosse uma rainha absoluta, que aliasse a uma beleza imaculada a frieza do mais insensível dos entes que povoam este universo. Faz o que quer porque pode e o poder é a única explicação para as suas decisões. Muito bem andaria essa realidade que se nega, sem explicação, em realizar as minhas mais elevadas cogitações em ler o que o senhor Immanuel Kant escreveu, no ano de 1781, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. Assim como a religião e a legislação, também a realidade não quer submeter-se ao livre e público exame das razões que a assistem quando nega as minhas pretensões e ignora as ideias brilhantes que me ocorrem para salvação do mundo. Não apenas a realidade suscita justificadas suspeitas, como cria a certeza de que não está interessada na salvação do mundo. Agora, dito o que disse, posso continuar a minha sesta, neste dia sonolento, sem tempestades, nem raios e coriscos. Bocejo, é o que a realidade me permite, ela que se recusa a ler Kant, sabe-se lá a razão.

domingo, 28 de julho de 2024

Confiar

Nunca tinha lido e comecei ontem a ler o meu conterrâneo Claudio Magris, disse-me hoje, ao telemóvel, o padre Lodo. É brilhante, ouvi. Concordei de boa vontade. Logo no começo de Danúbio, perante a possibilidade de uma exposição sobre A arquitectura da viagem: história e utopia dos hotéis, ele – referia-se a Magris – escreve O projecto junto – redigido por professores das universidades de Tübingen e de Pádua, articulado segundo uma rigorosa lógica e acompanhado de bibliografia – quer levar à ordem inexorável do tratado a imprevisibilidade da viagem, a confusão e a dispersão dos caminhos, o acaso das paragens, a incerteza das noites, a assimetria de todos os trajecto. Isto é notável, exclamou o padre, pois fala da essência da vida. Não o sabia um essencialista, comentei. Devia, pelo menos, ter desconfiado, respondeu-me. Seja como for, continuou, e Magris nota-o de seguida, a existência é uma viagem, uma peregrinação. Sim, disse eu, uma peregrinatio ad loca infecta. Continua a desconfiar da bondade divina, devolveu-me. Não tanto da vontade divina, mas da qualidade dos materiais do mundo, a começar pelos humanos. Esse cepticismo não lhe faz bem, avisou-me. O cepticismo, caso não seja doentiamente pirrónico, é um modo de estar alerta. Há que desconfiar. Pois, respondeu-me o meu amigo, está enganado. Há que confiar. A confiança é fundamental. Voltei à citação de Magris e chamei-lhe a atenção de que o comentário do autor reflecte uma desconfiança estrutural no projecto académico, desconfia da redução do borbulhar existencial à arquitectura de um tratado ou mesmo à ponderada organização de uma exposição. É verdade, mas ele fá-lo porque confia mais no borbulhar da existência. Talvez tenha a esperança, acrescentei eu, que Leibniz tivesse razão ao afirmar que este é o melhor dos mundos possíveis. O padre riu e acrescentou que em breve estará por aqui, onde me encontro, e que no melhor dos mundos possíveis está aquela brasserie junto ao mar, uma das melhores mesas deste país. Para que dia marco o jantar, perguntei.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Jogos

Leio, num livro que não vem ao caso, a frase Não foi o homem que inventou o jogo. E esperei de imediato uma revelação extraordinária. Porém, apenas tive direito a uma citação de Schiller, é o jogo, e apenas o jogo, que torna o homem completo. Há coisas piores do que citações de Schiller, claro. Eu preferiria, contudo, uma continuação mais ousada, como afirmar foi o jogo que inventou o homem. Embora se saiba que não é possível encontrar uma essência – isto é, uma característica comum – partilhada por todos os jogos, essência cuja presença nos anunciaria de imediato estarmos perante um jogo, podemos afirmar que um elemento essencial dos jogos é o acaso. Ora aquilo que nós somos, as nossas características físicas e, possivelmente, não só, recebemo-las através da chamada lotaria genética. O espermatozóide paterno que fecundou o óvulo materno, por acaso disponível, foi aquele, mas poderia ter sido outro. Se assim fosse, já não teríamos vindo à existência, mas um outro cuja existência lhe pareceria tão natural como a nossa nos parece. Se isto é assim quanto aos indivíduos, talvez ainda seja mais quanto às espécies. Há aquela história darwiniana da evolução para adaptação ao meio. Parece fornecer uma regra, mas, na verdade, não elimina o acaso. O caminho adaptativo foi este, mas é plausível pensar que poderia ter sido outro, um caminho, por exemplo, que tivesse poupado a Terra à presença de uma espécie como a nossa. Imaginemos o futebol. A princípio um conjunto de seres humanos brincam com uma bola, correm, chutam, agarram-na, tudo de um modo caótico. Depois, lentamente, começam a introduzir regras. A ideia é eliminar o caos original, embora o acaso, por mais regulado por leis do jogo e tácticas competitivas que esteja, nunca desaparecerá. O mesmo acontece com cada um de nós e com a espécie a que pertencemos. Somos fruto desse acaso e este não é mais do que o jogo que a natureza joga consigo mesma. O jogo só torna o homem completo, como pensava Schiller, porque nós somos uma invenção do jogo. No fundo de nós, por mais que lutemos contra isso, existe um princípio de arbitrariedade. Antigamente, um homem de carácter era aquele que aparentava ter eliminado de si essa arbitrariedade originária, o que mostra que as antigas modas educacionais estavam assentes em puras aparências.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Traduções

A Áustria foi, no final do século XIX e no início do XX, um vespeiro de grandes escritores. Eis uma metáfora de péssimo gosto, como se os grandes escritores austríacos fossem vespas ou pessoas traiçoeiras e de má índole. Imagino, todavia, que um grande escritor austríaco posterior, Thomas Bernhard, não desdenharia da metáfora, aplicada não aos grandes escritores, mas aos austríacos em geral. Bernhard sofria dos pulmões, chegou a viver em Portugal por causa disso, mas sofria ainda mais pela a natureza da sociedade austríaca, que ele via composta por nazis dissimulados pelo catolicismo e a social-democracia. Não era de Bernhard que queria falar, mas de um poeta, um grande poeta que morreu jovem, aos 27 anos, de overdose de cocaína. Georg Trakl. Há uma tradução de poemas seus, mas que desconhecia até há pouco. Hoje, mergulhado na ociosidade, decidi fazer experiências e, usando o DeepL, o ChatGPT e um dicionário alemão-português, traduzir alguns poemas, entre eles o ciclo de A Jovem Criada (Die junge Magd). A experiência não me desagradou e, confirmei, o decisivo não é a tecnologia usada, mas a experiência pessoal, no caso a experiência de leitor de poesia, de quem a usa. Nos poemas assim lidos, consegui aproximar-me – tenho essa ilusão – da atmosfera poética que se desprende da obra de Trakl, talvez mais do que se os lesse na tradução portuguesa publicada. A razão é simples. Fui obrigado a reconstruir as traduções, sempre diferentes, que o tradutor automático e o chatbot ofereciam. Quando se está perante um texto traduzido por um ser humano e publicado em livro há uma tentação de conformismo perante o que está apresentado, o que gera uma leitura passiva, ao contrário daquela que me senti obrigado a fazer. Um dia, os dispositivos de tradução substituirão com vantagem o tradutor humano, porque terão mais capacidade, e mais velocidade, para apreender o espírito de uma obra do que um ser humano, mesmo especialista, e vertê-lo, ao espírito da obra, para outro idioma. Esse dia, imagino, ainda estará longe, mas a cada dia que passa estou menos certo dessa lonjura.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A génese

Por vezes, talvez não poucas, perpassam em mim pensamentos completamente parvos. Ao deparar-me com a data de hoje, 24 de Julho, pensei que coisa tão estranha haver um dia com nome de uma avenida de Lisboa. Este pensamento, porém, é mais aceitável do que pensar que existe um dia com o nome de uma praça, a praça 5 de Outubro, por exemplo. O 5 de Outubro ainda se vai sabendo as razões de haver ruas e praças com o seu nome, mas o 24 de Julho é mais associado a uma certa vida nocturna de há tempos. Contudo, foi a 24 de Julho que as tropas liberais, depois de derrotarem as miguelistas na Cova da Piedade, entraram em Lisboa. Daí haver uma avenida com esse nome na capital, que era absolutista e se tornou liberal. Imagino que não exista uma 24 de Julho no Porto ou em Aveiro. Mesmo em Coimbra ou Setúbal seria uma anormalidade. Contudo, como estamos em Portugal, podemos esperar toda a espécie de anormalidades, pois não nos falta talento para o anormal. Por exemplo, o meu talento para a anormalidade consiste em ter pensamentos parvos, isto é, não apenas insignificantes, mas também pequenos. A explicação deste texto reside nas temperaturas assombrosas que tive de suportar neste 24 de Julho. Os graus são tantos que começaram a infiltrar-se no corpo, passaram para a corrente sanguínea e quando chegara, há pouco, ao cérebro transformaram-se neste texto. Eis a génese da coisa.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Tudo tem um tempo

Retenhamos a abertura de Vida à Venda, de Yukio Mishima. Quando Hanio recuperou a consciência, tudo resplandecia à sua volta com um brilho tão intenso que pensou estar no céu. Mas sentia uma forte dor na zona da nuca. E não é possível ter dores de cabeça no céu. É o último período que me atormenta. Mesmo numa obra de ficção, será ultrapassar os limites da experiência possível e fazer afirmações peremptórias sobre lugares onde nunca se esteve. Deixemos de lado a questão de saber se existe ou não um céu. Imaginemos que existe, mas o seu acesso é só possível acabada a vida por aqui. Aceitemos, pois essa é a melhor explicação, que aqueles que chegam ao céu, jamais voltam aqui para contar a realidade do além. Ora, como podemos afirmar que não é possível ter dores de cabeça no céu? Um argumento seria afirmar que no céu não se tem corpo, o que implica não ter cabeça. Depois, conclui-se que não pode doer aquilo que não se tem. Contudo, este argumento esbarra na experiência trivial das pessoas que sofreram amputações de membros, as quais continuam a queixar-se, muito tempo depois, de dores no membro que não têm. Isto abre uma janela para a compreensão da morte. Morrer seria uma amputação global do corpo. Se assim é, então, mesmo no céu, pode-se ter dor de cabeça, de barriga, de peito e até de cotovelo. Esta, todavia, por simbolizar a inveja, pode não ser muito bem vista no paraíso celeste e, talvez, não seja conveniente levá-la para lá. Retornando a Hanio, Mishima diz-nos que ele, ao sentir dor de cabeça, percebeu que falhara a sua tentativa de suicídio. São coisas que acontecem. As pessoas querem apressar a amputação do corpo e, na precipitação, falham. Não perceberam uma questão essencial da vida fora do paraíso. Tudo tem um tempo.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Prazo de validade

Precisava de um medicamento para tomar ao jantar. Fui à farmácia e decidi trazer dois. Cheguei a casa e descobri que nenhum deles era o que estava em falta. Nas manipulações da receita electrónica, no vai e vem do pin de acesso e do pin de opção, na multiplicação de receitas que se acumulam na aplicação, lá troquei um Olmesartan medoxomilo por um Hidroclorotiazida + Amilorida. A coisa podia ser pior, caso tivesse trocado o meu nome por outro qualquer ou me tivesse esquecido do número de contribuinte, baptizado há muito pelo pomposo nome de número de identificação fiscal. O truque é interessante. Passei de contribuinte para alguém com identidade fiscal. Este upgrade na relação com o Estado não foi acompanhado, porém, com um upgrade do meu hardware neuronal e ainda menos pela afinação das competências do software intelectual. Pelo contrário. Isto não é tudo na saga da decadência deste narrador sem narrativa. Desde há dois dias que um mistério vinha a assolar a minha relação com o computador. Do nada, onde quer que escrevesse, começavam a aparecer sequências de pontos finais. Querem ver que fui atacado por um vírus, pensei. Fiz pesquisa, mas não colhi informações sobre um vírus em forma de sequências de pontos finais. Reinicio o computador, mudo de browser, faço isto e aquilo. Por vezes, parece que a coisa pára, mas, quando menos espero, lá voltam as sequências de pontos finais. Tenho de comprar um novo teclado, pensei. Deve haver um problema com a tecla onde se encontra o ponto final. De aparência, porém, parecia de boa saúde. Até que se me fez luz. Tinha colocado uma série de coisas em cima do portátil e como o tenho ligado a um monitor e a um teclado, não me apercebia que essas coisas, em cima daquela espécie de tapete que serve de rato, me estavam a enviar sinais. Que as tirasse dali, guinchavam em forma de pontos. Com o hardware e o software pessoais desactualizados, levei mais de dois dias a compreender uma coisa básica. Isto é muito pior do que trocar o Olmesartan pela Hidroclorotiazida. Um dia destes tenho de verificar o prazo de validade, o meu, claro.

domingo, 21 de julho de 2024

Grande literatura

Samuel Johnson, o Dr. Johnson que terá dito, mas não escrito, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, escreveu inúmeros ensaios, merecedores de leitura, daquela leitura que se faz por prazer e não por dever. O ensaio não é, por norma considerado, como uma das manifestações mais elevadas da literatura, se comparado com a poesia, o teatro ou, a partir dos tempos modernos, o romance. Isso, porém, é um erro. Samuel Johnson, no ensaio Melindre e Rabugice escreve Quando a velhice ou a solidão amargam o espírito das mulheres, a sua malevolência normalmente é exercida numa supervisão rigorosa e odiosa de insignificâncias domésticas. Depois de exemplificar com a conduta de Eriphile ao longo de vinte anos, prossegue escrevendo Ela vive unicamente para manter em ordem a casa e o jardim, não sente nenhuma inclinação para o prazer, nem nenhuma aspiração à virtude, enquanto está absorvida na grande tarefa de conservar a gravilha sem erva e o rodapé sem pó. Perante o grande drama de encontrar o que ler durante as férias deste infausto, caso o seja, ano de 2024, há uma solução. Ler os Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade, de Samuel Johnson, publicados pela E-Primatur em Junho deste ano, seleccionados e traduzidos por Pedro Galvão, professor na Faculdade Letras de Lisboa, no departamento de Filosofia. O primeiro ensaio tem por título Esperança Vã. Começa com uma observação pertinente: Túlio observou há muito que nenhum homem, por mais enfraquecido que esteja pelo tempo que já viveu, está ciente da sua própria decrepitude a ponto de supor que poderá não conservar o seu lugar no mundo por mais um ano. E o ensaio discorre sobre o tema por pouco mais de cinco páginas, dando lugar a um novo ensaio, também de curta dimensão e de grande talento. Não se trata de Filosofia, mas de grande literatura.

sábado, 20 de julho de 2024

Golias e David

Esta a ser um massacre. Não, não se trata de um acto terrorista, mas de um jogo de Râguebi entre um David e um Golias, só que o David não tem funda e o Golias, depois de um acidente de percurso, está a tirar partido da sua força. O Golias é a África do Sul, actual campeã do mundo, e o David é Portugal, que, ao intervalo, está a perder por mais de vinte pontos. Nem vou escrever no fim do jogo, é melhor não ter o panorama todo sob os olhos, pois o resultado pode ser traumático. Diante de mim, tenho um livro publicado em 1970, pela Sociedade de Expansão Cultural. Encontrei-o por acaso e faz parte daquilo a que se dá o nome de literatura colonial. É um livro de contos e novelas de Fernando Reis, com o título Histórias da Roça e transporta para a ficção a experiência do autor em S. Tomé e Príncipe. Tem uma capa excelente do pintor Neves e Sousa. A Sociedade de Expansão Cultural foi uma editora criada pelo escritor Domingos Monteiro. Esteve activa nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta do século passado e teve um papel importante na divulgação de inúmeros escritores. O tempo foi implacável tanto com a editora como com os seus autores, alguns deles ainda a merecerem a ser lidos. Tão implacável quanto o Golias do Râguebi com o pequeno David, o que esqueceu a funda.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

LHS 1140b, a esperança

Estou extasiado e radiante. Foi descoberto um exo-planeta, apenas a 48 anos-luz da Terra, que poderá ter não apenas atmosfera como água líquida. Eis um motivo para o meu êxtase e para a minha radicação. Cansado da má gestão do nosso planeta, tenho agora a oportunidade de ir para outro, ali ao virar da esquina. O que são, se não me enganei nas contas, 454 118 400 000 000 km? Nada. Enquanto uns imigram para a Suíça, para França ou, os mais temerários, para os EUA, eu, montado no meu Rocinante, imigro para o LHS 1140b. Ainda hei-de lá chegar bem a tempo de procurar ocupação e reinventar-me numa nova condição. O meu problema é que não sei o que hei-de levar para a viagem. Haverá, no caminho, restaurantes de beira de estrada? Encontrarei shoppings para comprar roupas, caso rasgue umas calças ou uma camisa? E farmácias haverá? Peço umas receitas aos diversos médicos que frequento, a contragosto, diga-se, e vou-me abastecendo ao longo do trajecto. Levo a família ou vou sozinho, como um batedor? São estes pequenos problemas que ainda me prendem a esta Terra, mas, tenho essa expectativa, acabarei por os resolver, pois um herói resolve não apenas os problemas dos outros, os mais fáceis, mas também os seus, os mais intrincados. Dizer Adeus, ó Terra que o LHS 1140b espera-me é a esperança que me move. O pior é o Flexiban. Dá-me uma soneira diabólica. Posso estar a dormir na estação de saída e ir parar ao centro da Via Láctea e ser deglutido por algum buraco negro.

domingo, 14 de julho de 2024

A tomada da Bastilha

Há pouco pensei que a imperfeição do calendário espoliou os franceses de um dia feriado. Aliás, como é possível comemorar a tomada da Bastilha num dia de descanso. As tomadas das Bastilhas não podem ocorrer nem aos domingos, nem aos feriados, tão pouco aos dias santos, mesmo aos sábados se tornou impossível. Em França, no ano de 1789, ocorreu a uma terça-feira, um dia bom para tomar a Bastilha. Com isto quero demonstrar a imperfeição dos calendários que, apesar da sua regularidade global, sofrem de uma irregularidade acintosa no particular. Qualquer um de nós deveria fazer anos no mesmo dia do mês e da semana. Quem, como eu, nasceu a um sábado, não percebe como pode fazer anos a uma terça-feira. Nesses anos temo que, por um qualquer acaso, se confunda o meu aniversário com o da tomada da Bastilha, apesar de ambos os aniversários estarem afastados no calendário. Há pouco, estive a contemplar as águas do oceano. Estavam cor de chumbo, ao contrário de ontem, que pareciam verdes. Outra irregularidade da natureza. É uma coisa num dia, outra no outro. Uma falta de carácter, uma inclinação para a volubilidade. Tanto os calendários humanos como as disposições da natureza são marcados pela leviandade, o que deixa aturdidas pessoas graves como este narrador, que cultiva a constância e abomina a irregularidade. Pelo menos em certos dias. Há outros, porém, em que o amor pela excepção ultrapassa em muito o da regra. Talvez, por isso, seja um narrador volúvel, mesmo quando enaltece a constância e abrenuncia a desarmonia de tudo o que está fora da regra. Seja como for, nada tenho a ver com a tomada da Bastilha, coisa que ocorre um pouco por todo o mundo, mas na qual os franceses são virtuosos. Sempre que sentem uma indisposição, tomam uma Bastilha. Já os portugueses preferem tomar uma pastilha. Sou exímio em fazer trocadilhos sem tino. Ainda bem que França foi eliminada do Europeu de futebol. Imagine-se que chegava à final e a Inglaterra lhes ganhava. Os franceses teriam de ceder a tomada da Bastilha aos ingleses, o que, como se calcula, os poria indispostos e obrigá-los-ia à tomada da pastilha.

sábado, 13 de julho de 2024

Indirectamente

Pego no livro com cuidado, com uma unha começo a separar, da contracapa, a etiqueta com o preço, a livraria que o vendeu e a data em que a etiqueta foi produzida. Depois, colo essa mesma etiqueta no verso da capa. É um sinal para o futuro. Leio alguns poemas e fico a meditar num. A alga queria ser flor, / a flor queria ser árvore, / a árvore queria ser pássaro. // O homem queria ser asa. Onde está o núcleo onde se gera a poeticidade deste poema, Lição de Botânica, de Ricardo Gil Soeiro? Encontra-se na suspensão da continuidade dos três primeiros versos. Em vez de nos dizer o que o pássaro queria ser, o poeta omitiu a vontade do pássaro, suspendeu o discurso e, ao retomá-lo, o pássaro é apenas referido metonimicamente, asa, como sendo o aquilo que o homem desejava ser. A árvore, explicitamente, pode querer ser pássaro, mas o desejo do homem só se pode enunciar indirectamente, como se todo o desejo trouxesse consigo uma culpa que não permite dizê-lo, mas apenas sugeri-lo. Não pagou caro, Ícaro, o seu desejo de ser pássaro? Há coisas que nunca se esquecem.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Da verdade

Alguém, no afã de persuadir o leitor para o seu campo de ideias, escreve A verdade relativa deve ser dita com prudência e circunspecção, porque ela é incerta pelo facto de não ser absoluta. Ora, há aqui um equívoco na utilização das palavras, uma oposição, como se os termos fossem antónimos, entre absoluto e relativo. Ora, toda a verdade é relativa a alguma coisa. Imaginemos que a seguinte proposição: Este narrador é um idiota.  Sem esforço, imaginemos ainda que a proposição é absolutamente verdadeira, pois descreve com completa exactidão a realidade do narrador. Esta verdade absoluta é relativa. Relativa ao narrador. A proposição só e verdadeira na sua relação com um certo referente. Podemos então afirmar que tudo aquilo que é absoluto é ao mesmo tempo relativo. É uma condição da linguagem na sua função declarativa. O seu dizer é sempre dizer de qualquer coisa, é um dizer que está relacionado com o seu objecto, digamos assim. Contudo, o que é mais interessante na frase é a recomendação de prudência e circunspecção. Eu estou de acordo, mas não pelos mesmos motivos. Não é porque aquilo que possa dizer seja incerto, mas porque a prudência e a circunspecção tornam o mundo melhor. É uma questão prática. Quanto menos se falar, escrever, etc., melhor é o mundo, menos poluído fica com os devaneios que ocorrem a falantes e a escreventes ou, numa linguagem mais religiosa, a escribas e fariseus. Por exemplo, este narrador, que não passa de um escriba farisaico, o que faria de melhor para cuidar do mundo seria omitir aquilo que lhe passa pela cabeça e desce pelos dedos para o teclado. Eis uma verdade absoluta na sua relação ao escriba.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Demónios

Consta que uma das teorias físicas mais desconcertantes é a mecânica quântica. Numa daquelas leituras inúteis a que, por vezes, me dedico sem que consiga perceber a razão, descobri que o princípio de incerteza de Heisenberg corrobora uma das intuições que guiam o senso comum. O passado está perfeitamente definido, enquanto o futuro é imprevisível. As relações de incerteza dizem-nos que não podemos saber ao mesmo tempo a posição de uma partícula subatómica e a quantidade do movimento, o que terá por consequência não podermos determinar a sua situação no futuro. Contudo, parece ser possível a partir de medidas relativas de um electrão, por exemplo, determinar a sua quantidade de movimento e a sua posição no passado. Isto contraria a pretensão do Marquês de Laplace, matemático e físico que viveu nos séculos XVIII e XIX. Este tinha uma visão determinista do universo e considerava o presente como a consequência do passado e como causa do futuro. Laplace imaginou que se um intelecto, suficientemente poderoso, tivesse conhecimento, a dada altura, de todas as forças que movem a natureza, teria a capacidade de incluir o movimento de todos os elementos que compõem a realidade numa única fórmula e, para ele, nada seria incerto, nem o passado, nem o futuro. Talvez não tenha sido um acaso ter sido dado a esta experiência mental o nome de Demónio de Laplace. Que coisa mais demoníaca poderia haver do que conhecer o futuro? Ora, Werner Heisenberg e Niels Bohr com a sua física insensata, digamos assim, vieram devolver a esperança aos homens. O futuro é imprevisível. Isto coloca um grave problema teológico. Se o futuro é imprevisível, então Deus não pode ser omnisciente, não tem conhecimento do futuro. Problema de fácil solução, e essa não necessita de passar pela negação da existência de Deus. Basta considerar que Deus vive na eternidade, num eterno presente. Logo, para ele, tudo existe como se estivesse no passado. Sendo assim, ele pode saber a quantidade de movimento e a posição de qualquer partícula do universo. É evidente que isto levanta novos problemas. Se Deus pode saber tudo, então tudo está determinado e com isso volta o demónio de Laplace. Não, propriamente. O demónio de Laplace, tal como os homens, move-se no tempo, enquanto Deus está fora dele. Claro, há razões para que o texto de hoje tenha saído este. Uma noite mal dormida. Posso imaginar mesmo um episódio febril, embora seja falso. Se estivesse na posse mínima das minhas faculdades não teria escrito o que escrevi, mas a vida é o que é. Com ou sem demónio de Laplace.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Da benevolência da química

Bendita química, ó aliviadora dos atormentados. Foi isto que pensei quando comecei a sentir os efeitos benévolos do analgésico receitado para enfrentar as dores não tanto da extracção do tal molar, mas da preparação para o implante. Isto imagino eu. O caso é simples. Quando a anestesia, outra conquista da química, começou a perder efeito, o corpo decidiu ajustar contas comigo e começar a vitimizar-se da ablação sofrida. Comprimido tomado, a vingança a afirmar-se, mas a partir de certo momento a situação inverteu-se. A dor, e com ela a vingança, começou a retroceder. Eu sei que ela vai voltar, mas espero estar equipado para a derrotar. Só espero que não sejam esperanças vãs. Não é aconselhado sair de casa, nem fazer exercício. Também me foi proibido o álcool por uma semana, logo agora que tinha comprado uns brancos bem interessantes. Em vez de um belo branco fresco, o aconselhado é fazer gelo de quinze em quinze minutos. Como achei que isso implicaria demasiado movimento, troquei para um prazo de vinte em vinte minutos. Mesmo para um cavaleiro andante, não há maior aventura do que lidar com o corpo, esse amigo que, de um momento para o outro, se enfurece e se torna inimigo. Vou passar a tarde a ler uma peça de teatro do norueguês Knut Hamsun, Aux Portes du Rayume (não existe em português), que faz parte de uma trilogia que inclui ainda Le Jeu de la Vie e Crépucule. Isto, enquanto ponho e tiro o gelo da cara. Também hei-de comer um gelado.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Meditação extraterrestre

Um site anunciava que revelações surpreendentes acerca dos extraterrestres poderão ser feitas até final do ano, melhor, até 18 de Outubro. Portanto, o que é anunciado não são as tais revelações, mas a possibilidade de estas ocorrerem. Se as revelações não ocorrerem a notícia não está factualmente errada. Posso noticiar que Espanha poderá vencer França no jogo de logo à noite. Se França ganhar, a minha anunciação não estará errada. Os órgãos e sites de informação não deveriam fazer profecias, ainda por cima na modalidade do possível. Jornalistas não são profetas nem videntes, mas pessoas que informam sobre factos. O que são factos? São coisas que estão feitas. A palavra facto deriva da latina factu- particípio passado do verbo facĕre, que significa fazer. Os jornalistas apenas deveriam informar sobre o que está feito. Ora, aquilo que está feito – e, por isso, é um facto – consumado está e perdeu o seu poder de mover os ânimos. Então os jornalistas dedicam-se à especulação, desenhando mundos possíveis. Neste caso, um mundo possível é aquele em que não exista qualquer informação relevante sobre a existência de extraterrestres; outro mundo possível é o da existência de informação factual sobre a existência desses tais ET. Pergunto-me em qual desses mundos gostaria de viver. Depois, concluí que seja qual for o mundo em que tenha de habitar, a informação sobre a existência ou não de extraterrestres não me serve para nada e não faço ideia o que me moveu para escrever esta prosa.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

O corpo

O corpo que também somos é uma coisa extraordinária até ao momento em que damos pela sua existência. Damos por ele não quando o vemos ao espelho, pois aí damos apenas pela existência de um reflexo, mas quando alguma coisa desse corpo se torna incómoda. Foi o que me aconteceu hoje com um dente. Depois de uma viagem à capital de distrito, comecei a notar que tinha um molar no lado esquerdo do maxilar inferior. A descoberta não foi motivo de júbilo. Então, perante o meu desagrado, ele começou a ameaçar com uma dor. Pouco depois do almoço, estava sentado na cadeira da dentista para avaliar a situação. A sentença foi a que eu esperava. Este molar já me tinha chamada várias vezes a atenção. Foi de tratamento em tratamento até que hoje recebeu o veredicto: ablação. Antibiótico mais ibuprofeno e quarta-feira será o dia da execução e o início dos trabalhos da substituição. Isto demonstra a minha tese acerca da natureza extraordinária do corpo. Quanto menos se dá por ele, mais extraordinário é. A grande vantagem dos anjos sobre os homens é não terem corpo, para além de não terem sexo. Nunca correm o risco de se deparar com ele num voo malsucedido. Alguém já ouviu falar de um anjo que fosse ao dentista? Ninguém.

domingo, 7 de julho de 2024

A jactância da diferença

Há domingos que se perdem e deles não fica rasto no grande armazém da memória, como, no início do primeiro poema de A Ilha – Mar do Norte, Rainer Maria Rilke nos lembra: A próxima maré-cheia apaga o caminho no baixio, / e tudo se torna em todos os lados igual. Essa estranha disputa que anima os corações humanos, a que opõe a diferença à igualdade, tem sempre a mesma solução. A igualdade acabará por vencer, por grandes que sejam os esforços para a diferenciação, pois o baixio é o lugar dos homens e basta que a maré-cheia venha, e ela nunca deixará de vir, para que tudo retorne a uma mesmidade, onde não há lugar para se inscrever a jactância da diferença. Por isso, eu deveria ser mais comedido na lamentação de um domingo que morre na indiferença. Esse é o destino de tudo e de todos, a começar por mim. Acho que vou sair, caso encontre um restaurante aberto para ir jantar. A indiferenciação dominical cansou-me.

sábado, 6 de julho de 2024

Meter-se na vida dos outros

O que sabemos nós daquilo que move os outros? Foi esta questão que me ocorreu ao ler o que um crítico da revista Illustração, no ano de 1884, escreveu acerca do escritor portuense Alberto Pimentel: O sr. Alberto Pimentel quer ser tudo (…) d'aqui resulta, que querendo ser tudo — o sr. Pimentel não é por emquanto cousa alguma nas lusitanas lettras! E acrescenta na sua verrina crítica: por querer ser tudo, por querer escrever sobre tudo. Quanto melhor não fora que o sr. Alberto Pimentel pensasse apenas em ser poeta, ou em ser jornalista, ou em ser regenerador. Havia de valer alguma cousa, pois que nós não duvidamos um momento do apregoado talento do sr. Pimentel. Mas com a mania de querer ser tudo, de querer fallar e escrever sobre tudo, ha-de cada dia ver mais distante da sua porta a Posterioridade. O crítico da Illustração acertou. Hoje, poucos sabem quem foi Alberto Pimentel e ainda menos são os que o lêem, caso haja alguém. Contudo, quem confiou ao crítico os segredos da alma do escritor? Quem lhe disse que aquilo que o motivava era ser alguma coisa nas letras lusitanas ou acamaradar com a Posteridade? É verdade que Alberto Pimentel escreveu sobre muitas coisas e abraçou inúmeros géneros literários, mas isso pode ser apenas a prova de que o prazer do escritor era o de escrever, o de sentir a pena a ranger sobre o papel, de ver os textos crescerem e tomar forma para que outros os lessem, e havia muitos que no tempo os liam. Este tipo de crítica literária estava todo ele assente numa conhecida falácia, o argumentum ad hominem, o ataque pessoal. Seria pertinente pegar num romance e mostrar as suas inconsistências, mas discorrer publicamente sobre o tipo de vida que alguém decide levar, sem com ele molestar os direitos de terceiros, é uma patologia fundada na crença implausível de que se sabe aquilo que os outros querem da vida.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Jogo de futebol

Depois de uma visita, passei por um supermercado. Os portugueses preparavam-se para o jogo de logo à noite. Também eu me fui preparar. Jantar a ver futebol, os nossos contra os de França, isto é, contra os dos outros. Gostaria que os nossos ganhassem, mas se perderem o ânimo, o meu, claro, não sofrerá alterações. É apenas um jogo entre rapazes e é preciso perceber que, no fundo, não é mais do que isso, apesar das aparências. O pathos que se apropriou do jogo tornou-o popular, pois não há coisa de que o povo mais goste do que emoções. Como tem um stock limitado em casa aproveita aquelas que o mercado lhe oferece. Repare-se como a comunicação social trata os jogos. Um Portugal – França parece uma batalha do exército lusitano contra as hordas napoleónicas. Como em todas as batalhas aquilo que está em jogo é a vida e a morte. Esta hiperbolização oculta a realidade prosaica das coisas. Uns rapazes (também podiam ser raparigas, claro, mas haveria muito menos emoção) de nacionalidade portuguesa jogam com outros rapazes de nacionalidade francesa. A ideia central é colocar a bola dentro da baliza adversária e evitar que os outros repitam a proeza ou que se avantajem na pontaria. Nada disto justifica tamanha paixão, embora pudesse provocar prazer estético ou até racional. O jogo, como todos os jogos, não é destituído de dimensões estéticas e racionais, as quais, por vezes, podem estar intimamente ligadas. Contudo, para as apreciar é necessário fazer uma epochê, isto é, pôr as emoções entre parêntesis e contemplar o jogo como um espectador desinteressado. É evidente que se essa fosse a condição necessária para haver futebol, que os espectadores o contemplassem de modo desinteressado e imparcial, ele nunca se teria tornado na indústria que é. Uma indústria da identidade fundada em emoções. Na verdade, uma indústria poluente. Seja como for, irei ver o jogo. Serei um espectador interessado, mas benevolente. Quero dizer, disposto a aceitar, se for o caso, que os deles são melhores que os nossos, embora gostasse que os nossos fossem melhores que os deles.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Uma recepção calorosa

Uns dias fora e chego à cidade onde me acolho e sou recebido com 38 graus. Eram cinco da tarde. Tive de sair do carro para ir à farmácia e senti a pele a estalar. Não estalou, mas a sensação foi essa. Parece que no fim-de-semana a temperatura desce para níveis aceitáveis, mas é apenas para ganhar balanço para novas aventuras na antecâmara do inferno. Demorei a ser atendido, mas quase agradeci, pois o ar-condicionado devolvia-me a um mundo normal. Este sítio antecipou as alterações climáticas. Já era um clima alterado e ainda não havia alterações climáticas com origem nos devaneios humanos. Alguém se lembrou de introduzir uma serra, não muito alta, entre o ar marítimo e aquele que se respira por aqui. O resultado é, na verdade, caloroso, demasiado caloroso. Já pensei em sugerir aos autarcas dos concelhos que sofrem os desmandos da serra para proporem a abertura de grandes túneis por onde o ar marítimo entraria para espalhar por estas terras uns dias não direi frescos, mas menos quentes. Depois, equacionei as consequências na indústria e comércio de aparelhos de ar-condicionado e contive-me. Não quis que a minha magnífica ideia fosse culpada de falências e desempregos. Sou um narrador com consciência social, coisa que não é partilhada por muitos dos meus confrades. Gostaria de ir caminhar, mas a temperatura sentida é de 37 graus, embora a real seja de 33. Esta diferença entre a temperatura que faz e aquela que é sentida permitir-me-ia uma bela dissertação sobre o problema do conhecimento, mas estou pouco inclinado para a epistemologia. Prefiro ficar a fazer nada, pois, como se sabe, o nada é uma coisa que dá muito gozo fazer. É um trabalho ontológico.

domingo, 30 de junho de 2024

Teratologia

Ontem, decidi comprar uma trilogia romanesca que terá mais de 1800 páginas. Na verdade, é uma biografia romanceada de um dos governantes mais detestáveis do século XX europeu, embora fosse, em grau de detestabilidade, superado por outros. O século XX europeu, mas não só, foi bastante rico em personagens políticas detestáveis. A segunda metade do século deu a ilusão de que esse tipo de figuras não voltaria ao palco, mas as ilusões acabam por se dissolver e o que há de monstruoso no fundo da alma de cada um de nós acaba por abrir caminho para o retorno dos monstros. Estes chegam, por norma, não parecendo monstros, mas o seu desígnio é a monstruosidade. Estas considerações não são de natureza política, assunto que me está vedado, mas de psicologia. Melhor, de teratologia. O mais sensato seria meditar num ensaio sobre a monstruosidade, não haveria de faltar assunto.

sábado, 29 de junho de 2024

Dilemas

Encontro num prefácio ao romance Somos Todos Assassinos, de Jean Meckert, uma referência à oposição entre o cinema como entretenimento e o cinema como reflexão social e política. A referência ao cinema deve-se a que a obra foi produzida, a pedido de Gaston Gallimard, a partir do guião do filme com o mesmo nome de André Cayatte. Este dilema entre entretenimento e reflexão social e política colocado pelo cinema poderia ser transposto para todas as outras áreas artísticas, desde o romance à música, da pintura à dança. O dilema é falso, mas não apenas porque existam outras possibilidades para a arte, mas porque entretenimento e arte são duas categorias culturais irremediavelmente distintas. Também a relação entre arte e expressão de problemas sociais e políticos será acidental. Retrocedamos a Hegel. Como via ele a arte? Era a manifestação sensível – isto é, através dos sentidos – do Absoluto. Esta definição que hoje em dia será olhada com vincado desprezo talvez seja mais proveitosa do que se está disposto a admitir. Não que a arte seja, na verdade, a manifestação sensível do Absoluto, mas a manifestação da uma perplexidade existencial do homem perante o Absoluto ou perante essa ideia de um Absoluto. Esse encontro entre uma consciência relativa e finita e aquilo que dela difere totalmente, que lhe é incomensurável, é o começo da arte, desse gesto que confere à matéria a perplexidade de um encontro inexplicável.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Alheiras

Enquanto a minha pobre neta se submetia a uma operação ao septo nasal, o avô decidiu almoçar. Coisa rápida, assegurar a função e desalvorar dali o mais depressa possível. Não para a ir ver, pois estaria no recobro, mas porque tinha que fazer. Para despachar, nada melhor do que uma alheira de Mirandela, com ovo e batatas fritas, tudo acompanhado por uma salada de tomate, alface, a que, sabe-se lá porquê, juntam cenoura ralada e cebola. O resultado não é famoso. Duas nódoas na camisa e a constatação triste de que a idade do aparelho digestivo já não se adapta a estas coisas. Os fritos estão a caminho da proibição. Lá consegui fazer aquilo a que me propusera, mas ainda não percebi a razão que me levou a comer o que comi. Uma lição para o futuro, pois a avó da minha neta também terá de ser operada ao septo nasal, uma família de septos tortos. Nesse dia, não me apanharão à volta de alheiras, sejam de Mirandela, sejam de outro lado qualquer, pois não há lugar, desde Trás-os-Montes até ao Algarve e ilhas adjacentes, que não produza alheiras de Mirandela.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Fonte da juventude

Em 1546, Lucas Cranach, o Velho, talvez por ser velho, pintou um quadro com o título Der Jungbrunnen, A Fonte da Juventude. Na época, a lenda de uma fonte cujas águas rejuvenesciam quem delas bebesse tinha um enorme mercado no imaginário das pessoas. O mito, contudo, já seria velho naqueles dias, o que não foi razão suficiente para que não se organizassem expedições para descobrir a fonte. Ora, foi preciso chegar a este ditoso século para que alguém, talvez todos nós, possa beber e mergulhar nas águas da eterna juventude. Há pouco, recebi um email da companhia que me vende os serviços de televisão, telemóvel e internet e descobri que tinha voltado à juventude. És digital? Descobre como receber prémios. Serei um adolescente, em crise de borbulhas, para ser tratado por tu, perguntei-me. Intrigado, fui ver, ao lixo, outras comunicações da empresa e vi que o tratamento por tu era contumaz. Procuras descontos nos melhores equipamentos? Por vezes, são menos interrogativos e mais declarativos: Mergulha numa Net sem limites. Como não tenho o hábito de ver esta correspondência, fui verificar o email com a factura. Também aí continua o tratamento por tu. Pensei em pôr-me de imediato diante do espelho, mas contive-me. Talvez tenha trocado a data de nascimento quando fiz o contrato. Estas coisas sucedem. Fui ver outras companhias que me vendem, ou não, coisas diversas. Também sou tuteado, um verbo que detesto, por todas elas. Afinal, sempre existe a fonte da juventude e não foi preciso procurá-la. Ela vem ter connosco. Não damos por isso, mas a cada dia que passa estamos mais novos, somos todos camaradas de recreio, tu cá, tu lá, nada de tratamentos formais, que isso é coisa para velhos. Bebi a água da fonte que permite que todos me tratem por tu. Isto tem uma consequência na história da pintura. Até aqui pensava-se que Lucas Cranach, o Jovem, era o filho mais novo de Lucas Cranach, o Velho. Falso. Lucas Cranach, o Jovem, era o próprio Lucas Cranach, o Velho, depois de beber a água da fonte da juventude, isto é, quando começou a receber comunicações por email, naquele já distante século XVI.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Do vício e da virtude

Uma longa tradição que tem o seu primeiro momento de exaltação em Platão – mas, por certo, seria bem anterior – faz da vida virtuoso dos indivíduos a condição de possibilidade do bem público, do bem da comunidade. O que se terá passado no mundo para que, cerca de dois mil anos depois, alguém afirme que os vícios privados poderão ser o suporte do bem público? Esse alguém é Bernard de Mandeville que publicou em 1714 A Fábula das Abelhas: Vícios Privados, Benefícios Públicos. A disjunção entre a virtude privada e o bem público não deixou de se aprofundar desse início do século XVIII até aos dias de hoje. Mais, o incremento da viciosidade privada foi visto como emancipação de uma tutela exterior hipocritamente imposta aos indivíduos, como um movimento de libertação, que, ainda no XVIII, recebe o contributo do Marquês de Sade, e tem um dos seus momentos mais espectaculares com o Maio de 68. Alguma coisa se terá alterado drasticamente, no sistema de valores dos europeus, nessa viagem entre a Atenas de Platão e a Inglaterra onde viveu parte da sua vida, apesar de nascido na Holanda, Mandeville. Ou então é um problema de classe, a diferença entre o descendente de reis atenienses e o descendente de comerciantes de Roterdão. Pensamentos inúteis como este são os efeitos colaterais do ataque de um vírus sem nome que ainda não desistiu de me assombrar. Espero que passe depressa, para evitar assuntos tão lúgubres.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Mascarado

Não tarda e terei de ir consultar-me com aquela rapariga que faz de minha nutricionista. Contudo, para ela não me reconhecer, vou de máscara. Minto, vou mascarado porque fui assaltado em plena luz do dia por um vírus incerto, que decidiu usar-me como hospedeiro, trazendo-me incómodos e uma indisponibilidade quase total para fazer seja o que for. Não descrevo os sintomas, por uma questão de decoro estético. O paracetamol devolve-me, por um certo período, a ilusão de bem-estar. Será uma ilusão? É um bem-estar induzido, que passará, mas não deixa de ser sentido como real. Se assim o sinto, assim o será. Quando deixar de sentir, deixará de ser. Será que esta virose tem como efeito secundário tornar-me um sensacionista à maneira de Alberto Caeiro? Tudo se reduz às minhas sensações e não há maior metafísica do que comer chocolates, uma metafísica reduzida às sensações do gosto. Uma virose, todavia, não é compatível com comer chocolates. Agonia-me a sensação de ter sensações a chocolate na boca, mesmo que seja chocolate negro, avantajado em cacau e reduzido em açúcar. Talvez, é uma hipótese, haja uma conjuração entre a nutricionista e o vírus que se apoderou da minha boa disposição. Seja como for, estou determinado, como um Quixote, a enfrentá-la e ver nela um vírus gigante que me há-de dar preciosos conselhos a que prestarei toda a atenção sem me dispor a cumpri-los. Não se pode fazer tudo. Ou se presta atenção ou se cumpre as indicações. Estamos perante uma disjunção exclusiva e ambas não podem ser verdadeiras. O pior é que há muitas coisas que não podem ser verdadeiras e, para nos desgostar, são-no.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Bom-senso

O dr. Johnson ficou para a posteridade com o dito, nunca suficientemente citado, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Samuel Johnson viveu no século XVIII, um tempo em que os nacionalismos ainda não tinham vindo perturbar a velha Europa. O dito parece que é isso mesmo. Não aparecerá na sua obra escrita, mas é uma citação de um biógrafo – imagino que James Boswell – que o terá ouvido da boca do seu biografado, que era, segundo ele, um homem de grande estatura e bem proporcionado; o seu semblante obedecia ao molde de uma estátua antiga; a aparência, no entanto, tornava-se estranha e um tanto rústica por causa dos tiques convulsivos, das cicatrizes dessa doença que se imaginou ser curável por um toque real e de um desmazelo no vestir. Via só de um olho, mas o espírito está de tal modo acima das deficiências dos órgãos, chegando mesmo a supri-las, que as suas percepções visuais, até onde chegavam, eram invulgarmente apuradas e precisas. Seria, a fazer fé em Boswell, um homem extraordinário. Chegou-me hoje às mãos uma obra sua agora traduzida em português, numa bela edição da e-primatur, Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade. Fascina-me a manutenção do & (e comercial) no título. O livro é composto por um conjunto de pequenos ensaios, umas dezenas, e, ao primeiro embate, pareceu-me ser uma apologia do bom-senso. Ora, como sabemos desde Descartes, o bom-senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, no dizer do filósofo francês. E como justifica ele a sua afirmação? Dizendo que ninguém quer ter mais bom-senso do que aquele que tem. Toda a gente está satisfeita com a sua sensatez. Imagino que, um século depois, Samuel Johnson não concordou e acabou por fazer uma apologia indirecta desse bom-senso, mas posso estar enganado. Seja como for, seria um bem que Descartes não tivesse razão e cada um de nós se sentisse pobre em bom-senso, desejando ter mais e mais. Essa acumulação de sensatez, ao contrário da acumulação de riquezas, teria uma enorme potencialidade de tornar o mundo, mesmo sob uma temperatura de anunciação do inferno, num lugar mais recomendável para viver. Talvez porque não temos um mundo alternativo, não sentimos necessidade de ter mais bom-senso. Recomendável ou não, é o único mundo que temos. Por mim, reconheço, que precisaria de um pouco mais de sensatez, mas não estou certo que me esforce na sua aquisição.

domingo, 23 de junho de 2024

Decreto divino

Jean Paul, um dos grandes escritores alemães da transição do século XVIII para o XIX, antepõe ao romance Titã um pequeno texto denominado Sonhar a Verdade. Esta não é uma tradução literal, mas talvez a literalidade seja, no caso da arte, uma coisa lateral. De que trata esse texto? De um sonho, claro. Era sonhado que Afrodite e as três graças – Aglaia, Eufrosina e Tália – que faziam parte da sua comitiva estavam cansadas do Olimpo que, apesar de ser radiante, era frio, e desejavam descer à Terra, pois aqui a alma ama mais porque sofre mais e, apesar de ser mais sombria, é mais calorosa. Chegadas à Terra, o Destino, o deus supremo dos deuses e dos homens, decretou que os imortais na Terra se tornariam mortais e cada espírito se transformaria num ser humano. Imaginamos agora a verdade do sonho. Afrodite, Aglaia, Eufrosina e Tália transformaram-se em mulheres, Luísa, Carlota, Teresa e Frederica. As mulheres, apesar de mortais, são, ainda na sua natureza, divindades olímpicas, o que deixa os homens na mais terrível das situações. Ou não reconhecem na mulher a divindade que a habita ou, reconhecendo-o, só lhes resta o confronto com a sua inferioridade ontológica. Ou a ignorância ou a incurável ferida narcísica. Foi este o destino que o Destino terá querido para os homens. Eles rebelam-se, mas quem pode desfazer o que o deus dos deuses e dos homens decretou?

sábado, 22 de junho de 2024

Descansar

Uns dias fora para descansar da realidade, a qual, como se sabe, é particularmente cansativa. Fora talvez não seja a palavra apropriada, pois é difícil sentir-se no estrangeiro quando se está na Galiza. Esta é o prolongamento natural de Portugal, ou este é o prolongamento natural da Galiza. Ali, sempre me senti em casa, talvez mais em casa do que aqui onde é a minha casa. Tanto quanto sei, não há notícia de galegos na ascendência, mas a informação só chega a umas seis ou sete gerações para trás, e o mais plausível é todos termos ascendentes galegos, nem que seja do início da nacionalidade. Saí de lá com temperaturas na ordem dos vinte e dois graus e cheguei aqui quase com trinta. Ontem, em Pontevedra, vi pessoas de cachecol, talvez sofressem da garganta, pensei, ou então são um pouco teatrais. Não estava calor, mas nada justificava certos trajos de Inverno que anotei na memória. Hoje, ao sair do hotel, o empregado da recepção, ao ver que éramos portugueses, não hesitou em tecer um louvor rasgado à língua portuguesa, que ele conhecia muito bem. Percebi que também é tradutor. Disse que, para ele, a língua portuguesa é muito mais espiritual do que o castelhano, tem uma plasticidade muito maior e que o jogo linguístico português, com o sugerido mas não dito, é impossível de traduzir para o castelhano, língua a que falta a ductilidade da portuguesa. Ali, porém, não estávamos em Castela, nem em Leão, nem em Aragão. Ali, portugueses e galegos entendem-se, como irmãos que não se vêem há algum tempo, mas que sabem muitas coisas um do outro e basta uma sugestão para o outro saber do que se está a falar. Agora, vou descansar destes dias de descanso.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Falência narrativa

Estava cinzento o dia quando me levantei. Caso se mantenha, pensei, depois de almoço, aproveitando o tempo sombrio, irei caminhar, o que me permitirá, depois, realizar as tarefas que tenha para fazer sem que a digestão se intrometa entre mim e mim. Não se pense que sou dado a almoços pesados. Pelo contrário, o meu almoço foi frugal, talvez mais frugal do que o de um monge cartuxo. O corpo, porém, tem as suas idiossincrasias. Plano baldado, pois o sol rompeu e pairava no ar a ameaça de calor naquela hora. Entretive-me a fazer isto e aquilo, coisas práticas que me impunham estar de pé, e, depois, voltei para as minhas tarefas. Quando o que um narrador tem para narrar é isto, o melhor que terá a fazer é fechar a loja e inscrever-se no fundo de desemprego da associação de narradores em falência narrativa. Não o faço, pois há sempre a esperança de ter alguma coisa para contar, nem que seja que recebi um vídeo do meu neto a saltar de uma rocha para o mar ou a notícia de que a minha neta mais velha foi fazer análises e um electrocardiograma, pois vai ser operado ao septo nasal. O dia está ventoso, o sol anémico e na rua não passa ninguém, talvez ela tenha sido proibida aos peões, depois de ter sido proibida aos carros. Estou a mentir. Apenas proibiram a circulação nos dois sentidos. As acácias projectam a sombra nos muros da escola aqui ao lado, sombras inquietas, movendo-se para a frente e para trás. O silêncio foi quebrado pelo ladrar de um cão. Ainda é cedo para o crepúsculo.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Chamo-lhe Diotima

A nossa mente, ou a nossa consciência, é um macaco saltitante. Vai de assunto para assunto, numa indisciplina generalizada. Caso as mentes fossem ao serviço militar, nunca aprenderiam a marchar. O que vale é que aquilo que vai para a tropa é o corpo, muito mais fácil de adestrar. A minha mente pensou naquela história narrada por Platão em que um sacerdote egípcio dizia que os gregos eram crianças, faltava-lhes a profundidade do tempo. Não passavam de recém-nascidos. O mundo era, porém, muito mais antigo. Daqui, desta limitação das qualidades dos gregos, a minha mente navegou para O homem sem qualidades, de Musil. Abro o primeiro volume ao acaso e leio E foi sobretudo Diotima quem confirmou nele, por uma via diferente, este sentimento de que a superfície e o fundo da sua pessoa não coincidiam. O ele em que tal suspeita foi considera é Ulrich. No homem sem qualidades, podemos pensar, há uma descoincidência e talvez seja nesse não coincidir entre superfície e fundo, entre aparência e essência, numa versão mais filosófica, que as qualidades desaparecem. Depois, penso que me agrada o nome de Diotima, não que o desse a uma filha ou o desejasse para uma neta, mas enquanto nome de personagem romanesca é perfeitíssimo. Uma coisa estranhíssima, por falar em personagens romanescas. Estou a ler um romance do dinamarquês Henrik Pontopiddan. Tem por título Hans Kvast e Melusina. Pensa-se, de imediato, que a obra se centrará em personagens com esses nomes, mas não parece ser assim. As que surgem, e já li mais de um terço, denominam-se Hugo Maertens e Matilde. A sensação de estranheza é de tal ordem que fui investigar e os dados recolhidos mostram que é mesmo assim. Talvez, lá mais para a frente, surjam Hans Kvast e Melusina. Ou, então, será uma referência cultural que me escapa. Não sou dinamarquês. O romance não está publicado em português. Está no domínio público em dinamarquês e com os modernos meios de tradução consegue-se um resultado muito interessante. Em dois anos a técnica de tradução automática melhorou assustadoramente. E assim, a minha mente, saltando como uma macaca, pulou desde o assunto da mente até aos dispositivos técnicos de tradução. Tenho uma mente indisciplinada. Esta é a verdade crua. Não me parece que seja a melhor das mentes possível. Acho que lhe deveria chamar, à minha mente, Diotima.

domingo, 16 de junho de 2024

Um fungagá

Uma novidade por aqui. A alguém terá ocorrido que as pracetas públicas existentes entre os prédios era o local ideal para organizar uma festa de aniversário de uma criança. Será melhor para a criança e os amigos estarem na rua, correrem, gritarem e guincharem, formas plausíveis de exercitar os pulmões. É aborrecido para terceiros, mas há que ser caridoso. Os progenitores acharam por bem montar um insuflável para a criançada saltar e fazer aquilo que as crianças fazem nesse tipo de coisas. A caridade não se deve suspender aqui. O que é inaceitável é a montagem de uma coluna de grande potência que emite uma coisa que, por certo, chamarão música. Ora, não se pense que é música para crianças. Não é. É o tipo de música que adultos consomem, do pior que se possa imaginar. Suportar guinchos é uma coisa, ter de levar com o lixo sonoro que habita a cabeça dos nossos congéneres é outra. As pessoas não percebem o que é a justa medida. Estão convencidas de que pelo facto não ser legalmente proibido, durante as horas do dia fazer ruídos ou obrigar os outros a ouvir o mau gosto que nos corre no coração, também não é moralmente errado. Podemos distinguir entre ética e moral a partir de duas ideias. A ética refere-se ao modo como habitamos o mundo. A moral relaciona-se com o respeito devido aos outros. As duas coisas estão relacionadas e sempre que se observa o desprezo pelo respeito que se deve aos outros, pode-se desconfiar que a forma como se habita o mundo está longe de ser saudável. Enfim, isto está um fungagá e não é o da bicharada, é mesmo de seres humanos adultos. Terei e fechar a janelas. Ainda não decidi se este é o melhor mundo possível ou se é possível que exista outro mundo onde não se montem fungagás destes.

sábado, 15 de junho de 2024

Uma meditação involucionista

Em Túnis, nasceu ainda dentro do primeiro terço do século XIV um homem que haveria de morrer já no outro século no Cairo, e a quem deram um tão longo nome que não me apetece escrevê-lo. Ficou conhecido, para abreviar, com Ibn Khaldun, e é tido, não sei se com justiça ou se com excessiva generosidade, como um dos pais de diversas disciplinas das áreas das ciências sociais e humanas. A certa altura do seu Discurso sobre a História Universal diz O reino animal desenvolve-se, as suas espécies aumentam e, dentro do progresso gradual da Criação, termina no homem, dotado de pensamento e reflexão. O plano humano é atingido a partir dos macacos, nos quais existe sagacidade e percepção, mas que ainda não atingiram a reflexão e o pensamento. Dentro deste ponto de vista, o primeiro nível humano vem depois do mundo dos macacos; a nossa observação fica-se por aqui. É plausível a existência de quem veja em Khaldun também um precursor do evolucionismo darwiniano, mas o mais inquietante é a declaração final, a nossa observação fica-se por aqui. Será porque não haveria mais nada para observar para além do homem? Será porque o observador se recusa a observar mais alguma coisa? Talvez este contentamento com o observado dissimule um temor, aquele de descrever a existência de muitos homens que não usam nem o pensamento nem a reflexão, limitando-se a macaquear os próprios macacos ou nem isso, pois não é incomum encontrar exemplares da espécie humana a quem falta a sagacidade e a percepção que ele descortina nesses nossos primos. Isso implicaria que a um esboço de uma teoria evolucionista, ele teria de acrescentar o esboço de uma teoria involucionista, que começaria na degradação do homem em macaco, para a qual não faltam exemplos, seria seguida de descrições de quedas cada vez mais fundas, nas quais se chegaria aos homens protozoários e, entre estes, aos homens ameba, aqueles que parasitam o seu próprio intestino. Também eu, como Ibn Khaldun, fico por aqui. Para um sábado de Junho, esta minha contribuição para o conhecimento das coisas escondidas desde o princípio do mundo é suficientemente gloriosa e acrescentará, por certo, uma nova página na notável gesta deste cavaleiro andante sem destino nem cavalo.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Por falar em Pavlov

Continuam as experiências com um chatbot. Ele é a imagem do mundo, uma real projecção desse mundo que desagua na internet. Introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta e pedi-lhe que me contasse uma história a partir dela. A sua inclinação para o kitsch parece inultrapassável. Numa terra distante e etérea, onde os limites entre a terra e o céu se confundem, existia um vale místico conhecido como as Planícies Sussurrantes. O vale estava envolto em uma névoa perpétua, escondendo os seus segredos do mundo exterior. Este foi o começo. Insuportável, o número de lugares-comuns. Nem continuei a leitura. Pedi-lhe então que me escrevesse uma história como se fosse Franz Kafka. Anuiu e devolveu-me este começo: Numa cidade sombria e claustrofóbica, vivia um homem chamado Gregório Duarte. Gregório era um funcionário de uma repartição pública, onde passava os seus dias a carimbar documentos e a arquivar papéis. A sua vida era uma rotina monótona e repetitiva, e ele sentia-se como uma engrenagem insignificante numa máquina colossal e indiferente. O pobre do Gregor Samsa surge metamorfoseada não num insecto, mas num português chamado Gregório Duarte, empregado numa repartição do Estado. Enfim. Não vou aqui contar todas as tentativas, nem sequer aquelas em que pedi que escrevesse ao estilo de Pessoa e, depois, de Saramago. Os chatbots têm uma lógica de resposta que os aproxima dos cães de Pavlov. Nós tocamos a campainha, e eles salivam. Coisa que acontece também com muitos seres humanos. Por enquanto, a arte humana está salvaguardada de concorrência. Por aqui, houve uma súbita animação. Os festejos de Santo António prosseguem, embora o que se ouve é uma cantiga popular ao S. João. Talvez devesse ir comer umas sardinhas. Isto por falar em Pavlov.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Linha do horizonte

Não o fazia há muito, mas hoje abri um dos cadernos de Eduína, com disposição de percorrer algumas páginas. De dentro, caiu uma folha manuscrita. Entre muros de pedra, a terra árida abria-se ao segredo do esquecimento. O vento, inflexível arauto do futuro, traçava sulcos na angústia densa inscrita na poeira. Pilares tocados pela brancura da cal vigiavam sonhos enterrados por cavaleiros sonâmbulos, pastores perdidos, amantes sem a tragédia do amor. A paisagem era uma recolecção de lembranças esculpidas no fundo esconso da memória, deserto rasgado por caminhos que se bifurcam e, como rios, desaguam no grande oceano do nada. A letra não é a de Eduína. É possível que seja uma letra masculina, talvez a de algum amante a quem ela poupou a tragédia do amor e, resignado, não teve a coragem de evitar a inclinação para o pathos que dorme no fundo do coração de todos os homens. Pergunto-me quais as razões que a levaram a guardar aquele bilhete. Piedade? É possível, mas não compreendo por que o guardou num dos cadernos que decidiu deixar-me como herança. Peguei no papel e coloquei-o ao acaso no caderno de onde caíra. Depois, guardei tudo, e fiquei a olhar o horizonte, mas não vi mais nada do que a linha do horizonte.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Do espírito e do mundo

Cresci numa velha tradição que Hegel, nos inícios do século XIX, sintetizou numa daquelas frases lapidares que têm uma fortuna sem fim, a leitura dos jornais é a oração da manhã do homem moderno. Naquela altura, o homem moderno era ainda muito jovem. Nietzsche, porém, décadas depois, achava que ler os jornais todas as manhãs à hora do pequeno-almoço não passava de uma imbecilidade parlamentar. Nietzsche não era um homem moderno ou, pelo menos, não o queria ser. Imaginava-se, presumo, um sobre-homem, o qual surge nas traduções como super-homem, mas esse só há um, o Clark Kent e mais nenhum. Hegel via na leitura matinal das notícias a possibilidade de auscultar a pulsação do espírito do mundo, o que é uma ruptura com a anunciação crística o Meu reino não é deste mundo. Hegel via na marcha do mundo o caminho do Espírito para si mesmo. Talvez quando o espírito chegasse a si, estivesse chez soi, como dizem os franceses, descobrisse a sua casa já num outro mundo e não neste, ou, então, o outro mundo é este, que é o melhor dos mundos possíveis, isto para nos atermos ao que outro filósofo alemão, Leibniz, proclamou e que, mais tarde, talvez na sequência do terramoto de Lisboa, Voltaire não se cansou de ridicularizar. Continuo a ler de manhã o jornal, já não em papel, mas online, embora não o faça ao pequeno-almoço. Não por respeito ao espírito de Nietzsche, espírito frágil que se desintegrou rapidamente, mas porque não me dá jeito. Continuo a ser um moderno, falha-me a paciência para os sobre-homens e, aos poucos, começo a conceder a Leibniz que este é o melhor dos mundos possíveis, até porque não tenho outro.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Um problema de autoria

Hoje, a certa altura do dia, decidi desocupar-me e ocupar-me com outra coisa, pois há sempre outra coisa para nos ocupar. O resultado foi isto: linhas negras cruzam o vermelho / estruturas erguem-se do caos / pontos brancos explodem no horizonte / gestos soltos, marcas de um instante // ecos da tinta vibram tensões / manchas dançam sem rumo / horizontes emaranhados, sem destino /tons diluídos em abstracção // redemoinhos de tinta encontram-se / na profundidade sem nome / traços perdidos buscam sentido / o fundo arde em rubro intenso. Estou inocente. Ou quase. Não fui eu que escrevi o poema, se é que é um poema. É o produto de uma transacção. No chatbot, introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta. Pedi-lhe para me escrever um poema com doze versos, sem metro, sem rima. Este não é o produto inicial. Pedi para fazer algumas alterações, até chegar aqui. Apesar de desocupado, não tinha muito tempo para continuar a experiência, mas descobri uma coisa. Pode-se escrever um poema com um chatbot. A questão é descobrir os comandos a dar, a arte do prompt, ter tempo para fazer explorações. Já descobri que a Inteligência Artificial tem uma inclinação para o kitsch (por exemplo, o verso gestos soltos, marcas de um instante) e para o pathos (por exemplo, o verso horizontes emaranhados, sem destino), foi a sua educação digamos assim. Contudo, é possível trabalhar sobre ela e eliminar aquilo de que não se gosta, trocar a disposição dos versos. Talvez, mas não experimentei, pedir para usar esta ou aquela figura de estilo. Levantar-se-á um problema de autoria, mas talvez, este seja um falso problema, pois ninguém é o completo autor daquilo que é apresentado como seu.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Discussão fracturante

Hoje tive uma discussão fracturante com o autor. Para quem não sabe, posso dizer que não são poucas as vezes que narrador e autor entram em conflito, e não estou a falar deste caso particular. Digamos que foi um conflito quase político. Expus, ao autor, a minha tese sobre o feriado de hoje. Disse-lhe que achava bem que fosse feriado, pois qualquer dia é um dia bom para ser feriado. Camões, por si só, merece um feriado e era de evitar que se lhe acrescentasse o dia de Portugal e das comunidades. Ele olhou de viés, mas eu continuei. Se querem um dia para Portugal escusam de escolher o dia em que o seu maior poeta morreu. Parece que os portugueses comemoram a morte daquele que lhes moldou língua. Depois, o verdadeiro dia de Portugal é o 5 de Outubro, que foi o dia do tratado de Zamora, aquele em que os do outro lado reconhecem Afonso Henriques como rei de Portugal. Arrastado pela efeméride, também é o dia da República, que com dificuldade de encontrar uma data para depor o Rei, escolheu aquela em que o primeiro dos reis tinha sido reconhecido. Dia de Camões, da língua portuguesa e da poesia, seria justo, apesar de um pouco fúnebre, mas esqueceram-se de preservar o registo de nascimento de Luís de Camões, talvez uma avaria no sistema informático da época, e não havendo dia de nascimento, há o da morte, é o melhor que se arranja. O autor ouviu-me, com a petulância que lhe é habitual, depois olhou-me com comiseração e, sem dizer nada, voltou-me as costas, mas não se afastou muito, pois logo retornou e disse vai contar histórias para outro lado. E eu fui.

domingo, 9 de junho de 2024

Erotização eleitoral

Já cumpri o ritual de visita às urnas. Desde o ano de 1975, apenas uma vez não o fiz, numas eleições autárquicas, mas já não sei quais. Estava longe. De resto, sou um votante contumaz. Quando me levantei e logo a seguir, nunca me ocorreu que era dia de eleições. Pensava no que iria fazer e na agenda não constava deslocar-me a uma assembleia de voto. Ao abrir a janela, vi demasiadas pessoas a deslocarem-se para o pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, o sítio onde voto. Isso acordou-me para a realidade eleitoral. Despachei-me para ir resolver o assunto. Quando lá cheguei, depois de caminhar 160 metros, segundo informação do portal eleitoral, tentei perceber qual era a mesa de voto que me cabia, mas alguém teve a amabilidade de me esclarecer que estávamos já noutro mundo, que eu podia escolher a mesa que me apetecesse. Podia ser, caso tivesse pressa, a com menos gente ou, caso quisesse confraternizar com alguém, a que tivesse maior fila. Agradeci, entrei no pavilhão e não havia possibilidade de confraternizar com quem quer que seja. As filas eram todas iguais, isto é, não as havia. Escolhi uma mesa ao acaso, entreguei o cartão de cidadão, este foi devorado por uma ranhura de um computador. A certa altura, deram-me um boletim de voto e lá fui para a cabine. Puxei da esferográfica que levava comigo, não fosse a que lá está estar viciada, percorri a lista de candidaturas, descobri aquela que iria eleger e fiz o sacramental X no quadrado respectivo. Depois, dobrei o boletim de voto, desloquei-me para a mesa, fiz entrar o mesmo boletim por uma ranhura da urna e recebi o cartão de cidadão que já se tinha libertado do amplexo do computador. Aquilo que me veio à ideia foi uma coisa pouco apropriada. As eleições estão cada vez mais erotizadas. Não bastava, a penetração das urnas pelos boletins de voto, agora são os computadores ou uns dispositivos a eles acoplados, imagino eu, que são penetrados pelos cartões de cidadão. Enquanto saía do local, pensava se a erotização do acto eleitoral não seria uma estratégia para combater a abstenção. Uma má estratégia, pensei de imediato, pois, apesar das amplas liberdades concedidas a Eros, este anda pelas ruas da amargura, desinteressado da sua missão. Se querem combater a abstenção, pensei, deixem de lado as analogias com a sexualidade, a multiplicação das penetrações e coisas do género. Escolham outra coisa, pois essa não mobiliza já ninguém. Estes meus pensamentos foram interrompidos pelo cumprimentos de dois ou três conhecidos e desvaneceram-se quando, cumpridos os 160 metros, cheguei a casa. Voltaram agora, para ter algum motivo para escrever.

sábado, 8 de junho de 2024

O método do espelho

Saí há pouco e dei com os meus conterrâneos, aqueles que vi, com um ar meditativo. Pensei que era do tempo. Soturno, tempestuoso sem tempestade, céu coberto com areias vindas do Sul, sabe-se lá de onde, talvez de Marrocos. Depois, lembrei-me de que hoje é o sagrado dia da reflexão, aquele em que os portugueses jejuam e fazem abstinência, como purificação da mente, não vão eles, amanhã, impuros para as cabines de voto. A ideia deste dia de reflexão, em que os pronunciamentos partidários estão impedidos por lei, deve-se a uma sábia decisão. Na verdade, essa sábia decisão nada tem que ver com os eleitores. Quem quer saber se um eleitor enviesa o seu julgamento político apenas porque o turbilhão de propostas tem mais um dia para ecoar nas mentes indefesas? O dia de reflexão foi pensado como um dia de descanso dos candidatos. Chegam ao fim das campanhas exaustos e precisam de um dia para descansar. Assim, sempre têm energia para, no dia da eleição, irem votar e, caso sejam importantes, dar uma palavras para as televisões. Se a campanha acabasse hoje, amanhã nenhum dos candidatos votava. Ficavam todos a dormir. Só acordariam lá para as sete da tarde, para saberem os resultados. O legislador quis salvaguardar a imagem das instituições e decretou, para disfarçar, o dia de reflexão dos eleitores. Muitos destes levaram a coisa a sério e compraram espelhos adequados, onde se reflectem e tentam descobrir com que partido está mais adequado o rosto que têm. Não os reprovo, mas conheço gémeos univitelinos que votam em partidos diferentes, apesar de terem rostos iguais. Não sei se o método do espelho é o mais adequado para a decisão de amanhã. Daqui a pouco estarei com o meu neto e não falaremos sobre as eleições europeias, coisa que ainda não prende a atenção dos seus cinco anos e meio, mas sobre o râguebi, pois ele começou a frequentar as escolas de um famoso clube de râguebi lisboeta. Um dia destes, lá mais para Setembro, terei de ir ver um treino dele. O pai anda entusiasmado, terei de ver se o filho também está. O culpado é o avô que levou toda a família a ver um jogo de Portugal com Espanha, jogo que Portugal ganhou, o que é sempre um incentivo para a adesão. É melhor que o método do espelho nas eleições.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Arruadas

As sextas-feiras chegam depressa, mas os sábados e domingos dissolvem-se enquanto o diabo esfrega um olho, se for o caso de o tinhoso ser dotado de olhos. Estamos em maré eleitoral, assunto político que me está vedado, mas é sobre ele que insisto em escrever hoje, nesta sexta-feira que antecede o dia em que o corpo eleitoral, com e sem olhos, reflectirá sobre qual partido recairá a sua preferência, treinando em casa o preenchimento do boletim de voto, não vá o X transbordar os limites do quadrado preferido e contaminar outros quadrados, tornando-se assim em X nulo. Há que obstar à nulidade. O que me impressiona nas campanhas eleitorais é a prática generalizada de arruadas. Impressiona, logo, porque o termo se aproxima perigosamente de arruaças. É uma letra que separa um desfile partidário de um tumulto. Por aquilo que venho observando há anos, as arruadas são coisas pacíficas, onde uns figurantes andam com bandeiras e outros são obrigados a dar beijos e a tirar selfies, o que não é fácil, reconheça-se. Em Portugal, a distinção entre direita e esquerda cessa quando se chega à vexata quaestio da arruada. Todos gostam de arruar, embora o que se deva dizer é que gostam de arrulhar, como se os candidatos a nossos representantes fossem da família dos columbídeos, uns pombinhos e umas rolinhas. Temos assim, na arruada, o momento central da campanha eleitora. Um bando de columbídeos arruam com bandeiras ao vento. Ao verem potenciais eleitores começam a arrulhar e, caso se cruzem com outro bando de columbídeos que também arrulham, corre-se o risco de arruaçarem, mas logo lhes volta o espírito de pombo ou de rola, e toca de arrulhar, não vá algum eleitor estar à espreita. Por certo, com tantos arrulhos na rua, haverá casamentos e, se não os houver, sempre aparecerá uma ou outra gravidez indesejada, o que contribuirá para suster a queda demográfica. Este é o verdadeiro significado de uma arruada.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Tornar-se outro

A certa altura, num livro, leio Esta é uma opinião com a qual concordamos menos agora do que em tempos concordámos. Fico a meditar a frase, pois também eu reconheço que há opiniões com as quais concordo menos no presente do que concordei no passado. Há opiniões a que dava o meu pleno assentimento e, hoje, parecem-me repelentes. O inverso também é verdade. Poderia dizer, não poucas vezes, esta é uma opinião com a qual concordo mais agora do que em tempos concordei. Uma das hipóteses é que eu não seja aquele que no passado tinha opiniões tão diferentes. Eu não me arrependo das minhas opiniões do passado, mas torno-me outro. Tornar-se outro é uma mudança bem mais radical do que o arrependimento ou contrição. Quem se arrepende ou faz um acto de contrição, permanece ainda o mesmo, tomado pelo remorso, seja moral ou cognitivo. Quem se torna outro faz uma mudança ontológica, muda de natureza. Quando o Marquês de Gualdrasco e Villareggio, de nome Cesare Beccaria, escreve o seu famoso tratado Dos delitos e das penas, publicado em 1764, pensa que a função da pena é, também, reabilitar o infractor. Há uma crença na regeneração de uma bondade original que o delito teria posto em causa. A pena serve para restabelecer uma conexão com um passado. O importante seria, porém, que o delituoso se tornasse outro, que deixasse de ser quem era e se tornasse outro, alguém para quem cometer um delito seria inaceitável. Está, por aqui, um típico dia de Junho, daqueles que prometem uma pequena tempestade, mas que não cumpre. Nem sempre é assim. Por vezes, dá direito a queda de granizo, o que deixa um rasto de desgraça pelos campos. Nesse caso, é um Junho delituoso. 

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Imaginação forte

Montaigne refere Cícero como autor da ideia de que filosofar é aprender a morrer. A razão estaria no facto de que o estudo e a contemplação filosóficos arrastam, até certo ponto, a alma para fora do corpo, mantendo-a ocupada num para lá da dimensão física. Tanto quanto me recordo, a ideia provém de Platão. No Fédon, Sócrates diz, cito de memória, que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. Só espero que a memória não seja imaginada. Há muito que não visito esse texto de Platão. O Fédon trata do problema da imortalidade da alma e é situado no dia em que Sócrates morre. Platão era um escritor de grandes recursos e não sem ironia. Logo no início do diálogo, quando Fédon, um dos amigos que acompanha Sócrates nas suas últimas horas, descreve a alguém essas horas e nomeia quem estava junto do velho mestre, diz que Platão parece que não estava. Ora, Platão é o autor do diálogo e Fédon é o narrador. Portanto, seria natural que o autor soubesse se tinha ou não estado naquele encontro, mas a veia literária de Platão arrastou-o para a ficção. Esta inclinação ficcional não é compatível com o que o mesmo Platão defende na República, quando afirma que os poetas, por serem dados à ficção, à mentira, devem ser expulsos de uma comunidade política bem ordenada. Por muito que o filósofo Platão se revoltasse contra a literatura, o poeta e ficcionista Platão não se poupava em deixar traços ficcionais nos diálogos filosóficos. Platão não foi um caso idêntico a Fernando Pessoa, mas havia nele, pelo menos, dois Platões. O filósofo que rasgou, por ordem de Sócrates, as tragédias que escrevera em jovem e o poeta que aproveitava os diálogos, com cerradas estruturas lógicas, para criar ficções poéticas. Comecei com Montaigne e acabei em Platão. Podia ter acabado com o primeiro quando diz Uma imaginação forte cria os acontecimentos. Talvez fosse por isso, pela força da imaginação, que Platão acabava sempre por sucumbir ao poeta que havia nele.

terça-feira, 4 de junho de 2024

No princípio

Ontem, contei uma história acerca do chatbot que uso. Ele chegou à conclusão de que eu me interesso por linguística e história da língua portuguesa a partir de um mero indício. Contemos a história a partir do princípio. E no princípio era o verbo atraiçoado. Deixando-me de enigmas. Aborrece-me que ele me responda em brasileiro, sendo eu português. Não me cai bem ver fenômenos no lugar de fenómenos. Irrita-me. Passei a pedir-lhe para me dar as respostas em português de Portugal. A certa altura, refinei o pedido, e passei a pedir respostas em português de Portugal, anterior ao AO-90, isto é, ao taralhouco acordo ortográfico de 1990, que decidiu castrar as palavras das suas consoantes mudas. Daqui o chatbot, na sua generosidade, achou que me interessava por aqueles disciplinas, o que não é o caso. Também extraiu a conclusão de que eu sou um fiel tradicionalista, visto querer escrever com uma variante do português que ele deve considerar arcaica. É assim que se criam os boatos e se lança sobre as pessoas os mais terríveis labéus. Serei eu um tradicionalista? Ora, ora, eu que cultivei as vanguardas, sou agora manchado com semelhante epíteto. Bem, o melhor é pensar no assunto. Apesar de ele, chatbot, afirmar que reconhece o português anterior ao AO-90, tem um problema com as consoantes mudas e, por norma, rasura-as. Já o admoestei, mas ele fez orelhas moucas. Temo, mas temo na verdade, que as consoantes mudas tenham os dias contados, mas nisso são como todos nós. O corrector gramatical do Word não gostou da expressão tenham os dias contados. Propôs, no seu lugar, estejam a acabar. É um corrector que se leva demasiado a sério e quer todos os textos livres de chavões. Não percebe ele que o chavão, para este narrador, é como pão para a boca.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Adeus, dr. Freud

Fosse eu um modelo de linguagem da inteligência artificial, e tudo seria mais fácil. Bastava acertar no prompt e tinham um texto debitado em poucos segundos. Isto levou-me a uma experiência com o meu chatbot preferido. Pedi-lhe, tendo em conta as minhas interacções com ele, que fizesse um perfil meu. Não se coibiu e, em pouco segundos, disse-me que eu tinha interesses em linguística, história da língua portuguesa, tecnologia e inteligência artificial. Afirmou que eu usava um estilo de comunicação formal, preciso e cuidadoso e que me preocupava com o conhecimento e valorizava a tradição (uma acusação de conservadorismo). Por fim, não se esqueceu de me dizer que eu, este narrador sem nome, era reflexivo, dado aos detalhes (isto é, um chato), curioso e comprometido (na verdade, sou casado e não apenas comprometido; esta é uma piada sem graça, mas cada um tem o talento que tem). Este repertório das minhas hipotéticas qualidades alertou-me para uma coisa. Se alguma vez precisar de um psicanalista, o que começa a ser tarde, o melhor é recorrer ao meu chatbot. Certamente que me interpretará os sonhos, fará associação livre e me ajudará na autodescoberta, levando-me à cena primitiva que estará recalcada no fundo sem fundo do meu inconsciente. Eu não sou um modelo de linguagem, não consigo ter a prontidão discursiva de um desses modelos, mas também sei, descobri-o agora, que, se precisar de me auto-analisar, já sei a que porta vou bater. Adeus, dr. Freud.

domingo, 2 de junho de 2024

Distinguir os dias da semana

O primeiro domingo de Junho deu continuidade ao primeiro sábado do mesmo mês, coisa que nem sempre acontece. Não me estava a referir, todavia, aos acidentes do calendário, mas à sociabilidade, à sociabilidade deste narrador, que continuou em alta com um almoço de aniversário. Deixemos as consequências dietéticas do evento de lado e concentremo-nos num assunto que me preocupa. Perguntei aos dois membros de um casal, ambos reformados há tempos, se distinguiam com clareza os dias da semana, se sabiam que estavam num sábado ou numa segunda-feira. Reconheceram ambos que essa distinção se foi apagando. Não está completamente rasurada, mas muito diminuída. Isso confirmou as minhas suspeitas. A distinção dos dias da semana só se mantém porque os seres humanos ainda não se libertaram da necessidade de trabalhar. Quando todos os dias são de descanso, é inútil saber se hoje é domingo ou quarta-feira. Quem quer saber? Isto ainda é mais acentuado num mundo onde a religião, com o ritmo das suas festividades, se tornou, mesmo para os crentes, um assunto secundário na existência. Agora, vou preparar-me para enfrentar os 35 graus que me esperam lá no sítio onde continuo a distinguir os domingos das quartas-feiras.

sábado, 1 de junho de 2024

Sociabilidades

Não há inimigo maior das boas relações com a balança e a nutricionista do que a sociabilidade. Ser sociável implica um conjunto de rituais que acabam por fomentar comportamentos desviantes da boa forma e dos cuidados com a saúde. O almoço de hoje prolongou-se pelas horas dentro. Ora, mais do que aquilo que se come é o que se bebe. Mesmo que lento seja o ritmo do consumo, com o passar das horas vai-se acumulando o álcool e, com ele, as calorias, o peso e os efeitos nefastos na relação com a balança e, por extensão, com a pobre rapariga que acha ter por missão pôr-me de boa saúde. Enfim, ela não acha, mas faz o papel dela e eu finjo que acredito que ela crê ter essa missão. Seja como for, ainda há tempo para recuperar. Talvez por um sentimento de culpa, fiz uma belíssima caminhada, acumulei pontos cardio, passos e quilómetros. O pior é que amanhã tenho uma festa de aniversário e as tentações podem ser mais fortes do que o espírito de missão. Aliás, espírito de missão foi coisa que não me coube nos dotes recebidos, se é que recebi algum. Em contrapartida, fui dotado com uma boa dose de quedas em tentação. Acho que não vou jantar. Não por autopunição, mas porque me falece o apetite. Amanhã será outro dia, o segundo de Junho, mês que começou atravessado.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Uma conspiração

Acabei de fazer uma viagem de treze graus. Saí do sítio onde me acolho com uma temperatura de 36o e cheguei a onde me encontro com uma temperatura de 23o. Aliás, a viagem tanto em tempo como em quilómetros é curta para os dias de hoje. Maio acaba enlouquecido e apostado em enlouquecer quem tem de penar pelos sítios onde a brisa marítima se recusa a chegar. Daqui a pouco, irei caminhar na amenidade da temperatura. Um mistério assola a minha existência. Um dos dispositivos de leitura que tenho – um eReader – está com uma inclinação exagerada para se apagar. Carrego-o e ao fim de um dia dou com ele sem bateria. Já investiguei possíveis causas, eliminei-as, passei a cumprir as orientações fornecidas, mas o objecto não está de acordo. Talvez seja dotado de vontade, de livre-arbítrio e tome a decisão de se descarregar só para me confundir. Esta é uma hipótese que se deve levar a sério. Até hoje temos lidado com os objectos como se eles fossem meros mecanismos fabricados pelo homem e limitados na sua acção a cumprir as instruções que o seu criador lhes dá. Talvez esta visão das coisas esteja errada e sempre que os seres humanos criam um utensílio, seja para o que for, criam um ser que possui vontade própria e conspira para nos contrariar. Quem nunca teve uma avaria no carro? Quem nunca chegou a casa e deparou com electrodoméstico que se recusa a trabalhar? Ninguém. Dizer que isso é um acidente mecânico é uma explicação cândida, uma candura que os objectos aproveitam para frustrar os proprietários e divertirem-se à sua custa. Diversão, não poucas vezes, muito pouco em conta. Os filósofos pré-socráticos, os de Mileto, estavam convencidos de que tudo no mundo estava dotado de vida e de alma, digamos assim. Era uma visão de homens experimentados e que não se deixavam enganar pelas coisas que se fingiam mortas. Nós, homens contemporâneos, perdemos essa capacidade de compreender as coisas e somos, a cada instante, zombados por seres que se recusam a cumprir as tarefas para os quais os destinámos. Talvez estejam a congeminar uma insurreição. Como se vê, o tempo fresco não me é mais favorável ao pensamento do que o calor infernal.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Mediador comunicacional

Hoje é feriado. Talvez se devesse dizer dia santo de guarda, mas não sei se esta expressão, ouvida há muito, faz sentido. A designação do feriado também é equívoca. Dia do Corpo de Deus. Ora, a definição de Deus implica que, pela sua imaterialidade, Ele não tenha corpo. A designação correcta deveria ser Dia do Corpo de Cristo. Contudo, apesar da natureza religiosa do feriado, não estou capaz de entrar numa meditação teológica, para a qual, além do apetite, me falta a competência. Os dias de calor já chegaram aqui. A temperatura ultrapassou, de modo generoso, os trinta graus. Isto é prova de que nem sempre a generosidade é uma coisa boa. O que se anuncia, porém, é pior. Esta subida de temperatura tem, apesar de tudo, uma vantagem, a de me oferecer motivo para estes textos, segundo a velha máxima: quando não se tem nada para dizer, fala-se do tempo. A máxima pretendia sublinhar a falta de assunto, mas, sem estar no seu horizonte, ela faz-nos uma revelação acerca da essência do tempo, entendido como clima e não como duração. Ele é um mediador comunicacional. Imaginemos que um homem e uma mulher se encontram. A falta de assunto, devido a uma timidez congénita e dupla, pode matar o futuro daquele encontro. Então falam de nuvens, do frio ou do calor, se chove ou faz sol. A partir daí aferem gostos e, sem darem por isso, passa a haver um futuro, pelo menos possível, para aquele par que se encontrou e estava preso numa incomunicabilidade estrutural. Além de mediador da comunicação, o tempo é um aferidor de gostos. Portanto, nunca devemos pensar que falar do tempo é coisa inócua. Não é. Agora, vou ver se está a chover.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Homens e ilhas

Lê-se Próximo, apenas o interior; o demais está afastado, e pensa-se, talvez, no próprio homem, onde a coisa mais próxima de si é a sua interioridade e o resto está, irremediavelmente, afastado. No entanto, o verso citado, é o início do terceiro poema de um pequeno ciclo, com três composições, denominado A Ilha – Mar do Norte, de Rainer Maria Rilke. O poeta escreve não sobre os homens, mas sobre uma ilha, e, como se sabe, nenhum homem é uma ilha. Isto foi escrito muito antes por John Donne, um poeta inglês que nasceu 303 anos antes de Rilke. O poema de Donne acaba com três versos muito conhecidos: E, portanto, não procures saber / Por quem o sino dobra. / Ele dobra por ti. Para o poeta inglês, cada um é parte do todo, um elemento, A morte de cada homem diminui-me /Pois sou parte da humanidade. Que o poeta tivesse de o afirmar significa que essa comunhão entre todos os homens estaria já em processo de dissolução, o indivíduo nascia na consciência europeia, e o indivíduo é aquele que, ao escutar o dobrar de um sino, sabe que não é por ele que o sino dobra. Rilke pertence já a um mundo em que a ideia de uma pertença radical ao fundo da espécie estava apagada. A morte do outro não é a minha morte, pois a humanidade é, agora, uma mera abstracção, fundada na soma de indivíduos. Talvez o poema de Rilke sobre uma ilha seja, afinal, um poema sobre o indivíduo, pois ele pertence já a um mundo em que cada homem é uma ilha.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

O verdadeiro conservador

Hoje o dia prolongou-se em afazeres diversos, de tal maneira que cheguei tarde a casa. Pior, as andanças toldaram-me a imaginação, o dia não foi propício a aventuras, a não ser a avaria de uma persiana, logo a do quarto. A luz entrou por ele dentro, mal se fez presente por aqui. A empresa garantiu que vem tratar do assunto, mas só amanhã. Vão ser dois dias a acordar mais cedo. Podia mudar de quarto. É verdade, mas há velhos hábitos que é melhor não os ofender. Mudar de quarto implica mudar de cama, coisa para que me falta o apetite. Descobri que tinha uma costela conservadora quando percebi que, por exemplo, num café, tinha um lugar predilecto e se ele estava ocupado, sentia em mim uma contrariedade. Depois, deixei de ir a cafés. O conservadorismo, ao contrário de se diz por aí, não é uma atitude geral perante o mundo, nem uma ideologia política, mas uma certa relação com o espaço. Um conservador, um dos autênticos, preocupa-se apenas e só em preservar os espaços. Assegurar que eles evitam a rasura do tempo, esse inimigo visceral do espaço. Um conservador sabe que não pode parar o tempo, então trata de imobilizar os espaços e de se imobilizar neles. Por isso, não é um cultor da viagem. As pessoas gostam de viajar e adoram contar as suas viagens, de tal modo que um conservador pensa que as pessoas viajam apenas por amor ao momento em que contam a viagem. Um conservador espacial, como este narrador, quando viaja, fá-lo contrariado e, se instado a falar sobre a viagem, diz que teve de ir a um certo sítio, dando a entender que o fez contrariado, como se cumprisse um dever. Por isso, prefiro ser incomodado pela luz matinal a mudar de sítio para dormir. Não seria uma grande viagem, mas não deixaria de ser uma infidelidade espacial.

domingo, 26 de maio de 2024

Herói e anti-herói

Hoje é domingo. Uma constatação prosaica e ao alcance da generalidade das pessoas que sabem usar um calendário ou conhecem a designação dos dias da semana e ainda não perderam a conexão com a realidade. O que interessa tudo isso? Eis uma pergunta inútil. Não interessa para nada, será a resposta. Contudo, a vida – pelo menos, a deste narrador – é feita de constatações prosaicas. Em tempos, poderia ser feita de grandes palavras e grandes actos, o que constituiria uma gesta, mas faltou-lhe o talento para ser herói. Ser herói não é uma questão de coragem, mas de talento. Talento para escolher as ocasiões que fazem o herói. Não é apenas o ladrão que produzido pela ocasião, mas também o herói. Os heróis das gestas medievais foram-no porque o mercado das ocasiões para a heroicidade era enorme. Havia muito mais oferta do que procura, por isso, ser herói era barato. Nos decadentes dias em que nos cabe viver, a oferta de ocasiões para a heroicidade diminuiu drasticamente e o preço a pagar pelo título de herói é muito alto, tão alto que só os grandes multimilionários podem aspirar a essa condição, coisa a que, na verdade, não aspiram, deixam isso para uma multidão de descamisados sem eira nem beira. Aliás, o problema já se coloca há uns tempos, desde que na literatura começou a avultar, no lugar do herói, o anti-herói. Este não estava para pagar o alto preço para encontrar uma ocasião que dele fizesse um herói e decidia tornar-se no contrário, o que era gratuito. Portanto, como se pode ver, a transição, na literatura, de uma narrativa centrada em heróis para uma fundada em anti-heróis deve-se a uma questão económica. Ora, esta deriva sobre os mecanismos económicos do heroísmo serviu para justificar por que razão este narrador não é um herói. Contudo, deixa por explicar por que não é ele um anti-herói, mas isso é assunto que poderá vir, se vier, à colação no futuro, caso exista tempo, dele faça parte o futuro e o narrador tenha ainda um lugar neste futuro.