Uma fístula, veja lá. E agora tem de ser operado para a
fecharem. Coitado, uma fístula entre a traqueia e o esófago. Ele há cada coisa.
Se há, pensei, enquanto as duas mulheres se afastavam de mim, para se perderem
no outro lado da estrada, arrastadas por um cão insignificante, desejoso de ir
cheirar os troncos húmidos pelas últimas chuvas ou por alguma cadela transida
de cio. Têm razão, concluí, enquanto elas se dissolviam na atmosfera espectral
que a noite derrama no frio dos dias de Dezembro. Não há nada pior do que
fístulas, podem crer. Aliás, o mundo não passa de uma rede fístulas por onde
comunicam coisas que nunca deveriam comunicar. Se houvesse menos comunicação,
os dias seriam mais fáceis, asseverei a mim próprio, talvez sem me convencer. E
enquanto seguia o meu caminho, ia arquitectando todo um sistema de oclusão de
canais. Via-me já como um grande cirurgião especializado em tratar das fístulas
do mundo que põem, para desgraça universal, toda a gente em comunicação com
toda a gente. E assim cheguei à porta do prédio onde moro. Uma, duas, três
vezes, e nada. Não consegui abri-la. Malditos códigos, não há nada como fechaduras
com chaves. A fístula que me haveria de levar da rua ao elevador estava obstruída.
São cruéis os deuses, meditei inquieto. Não perdem uma oportunidade para nos
fazerem a vontade.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2017
domingo, 10 de dezembro de 2017
A faca
O dia cresce como uma faca espetada no peito. Oiço-o a
rasgar a carne, enquanto a pulsação enfraquece e a respiração entrecortada faz-me entrar num estupor, talvez a esperança de que imobilidade do corpo arraste
a do tempo, e tudo fique suspenso nesta glória eterna. Os domingos são
traições à esperança na eternidade, penso. Por isso, os homens iam à Igreja
para se lamentarem da fraqueza da carne. Ou talvez fossem para ver as mulheres
ou nem isso. Sei lá o que ia ou vai na cabeça dos outros, se nem na minha sei o
que se passa. O pior é a carne dilacerada pelo tempo que passa, como se este
fosse uma conspiração do espírito para sublinhar a sua superioridade perante a
falência sem fim do corpo. Agora, gostaria muito de moralizar, mas falece-me o
talento e a vontade. Bem na minha frente, a alguns passos, uma mulher compõe o
cabelo, passa nele a mão húmida e assenta-o, como se ainda tivesse um poder
para amainar os ventos. Não tem. E nem ela nem eu o temos para parar a grande
faca do tempo a ranger nos músculos deste domingo. O melhor é não ser
complacente.
sábado, 9 de dezembro de 2017
A rapariga cega
Os dias deslizam para o Natal e a minha memória resvala para
territórios que o tempo corrompeu. Na rua, carros e pessoas passam esmagados
pelo peso da quadra que se aproxima. E eu olho-os da minha janela e finjo-me
inocente de tantas preocupações. Depois, a minha avó chega-me apressada à casa
da memória. Vem com os cabelos brancos que sempre lhe vi, e eu recordo-me dos
dias em que brincava na despreocupação do quintal que havia na sua casa térrea.
Nessas alturas haveria por lá um ou outro primo, mas tudo era muito diferente
de hoje, o cobalto do céu era mais vivo e nada ainda tinha caído na ruína da
recordação. O quintal era dividido de um outro, talvez por uma paliçada de
canas ou por um muro, não sei bem, pois o que recordo é a cobertura, a que
chamavam enleio, de campânulas roxas e que a tudo ocultava. E foi desse outro
quintal que veio o objecto do meu primeiro amor. Uma voz feminina. A pronúncia,
o ritmo, as próprias palavras fascinavam-me, tão diferentes do que me era dado
ouvir, e eu, sem o saber, era tocado por Eros, desejando o meu coração, mais
que o corpo imaturo, que aquela voz não se apagasse e desabasse em silêncio
dentro de mim. Um dia soube, não sei bem como, que quem assim falava era uma
rapariga bem mais velha e, digo-o ainda com emoção, cega. Fiquei atónito. Como
seria possível que aquelas palavras saíssem da boca de alguém que não via? Os
primeiros amores, esses que não sabemos sequer que o são, trazem já consigo a ferida
narcísica que rasga a carne para que a realidade entre pelos olhos dentro.
Julgo que nunca a vi, talvez ela não saísse de casa, e a sua voz, que um dia
foi em mim o murmúrio de Afrodite, foi-se extinguindo até não ser mais do que um
amontoado de palavras partilhado na insipidez de uma rede social.
sexta-feira, 8 de dezembro de 2017
Humidade
Há um véu de humidade sobre as ruas. As pessoas caminham
pelo Outono com trejeitos de invernia. Piso as folhas e lembro-me dos plátanos
de uma casa onde vivi. Já vivi em tantas que lhes perdi a conta. Algumas ainda
pesam como uma sombra. Perderam as portas e as janelas, perderam a configuração
do espaço que tiveram na minha vida, mas ainda ressoam nelas as vozes dos que
já morreram. Há dias, como o de hoje, em que me levanto e penso nos meus
mortos. Talvez precise de falar com eles. Ou eles precisem de me dizer alguma
coisa. Mas continuamos obstinados. Eles no seu silêncio; eu na minha surdez. E
assim desabamos no embaraço da saudade e da obstinação. Aquilo de que queria
falar era de árvores no lume brando destes dias, mas já não sei o que hei-de
dizer. Passa por mim, esbaforida, uma mulher. Trauteia uma melodia que
desconheço. Vejo-a a afastar-se e percorrer o grande corredor do Outono onde,
percebo-o bem, abrirá a porta do Inverno. Esta é a minha cidade e ninguém, além
de mim, sabe o seu nome, uma palavra feita de humidade e luz, bela como uma lâmina
a deslizar na rasura da pele.
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
Dogmas
Ao atravessar a cidade, já a tarde tinha declinado na
escuridão da noite, lembrei-me de que amanhã será feriado. E fiquei grato ao
Papa Pio IX e à sua Bula Ineffabilis Deus, onde declara, pronuncia e define a doutrina da Imaculada
Concepção de Maria. Contrariamente ao que ensino aos meus alunos, a quem louvo
os méritos da razão crítica e da submissão do dogma ao colírio da dúvida, há em
mim um certo culto pela dogmática, uma espécie de licença sabática para os devaneios
da razão. E ainda mais maravilhado fico se um dogma tem tanto poder que consegue
roubar os homens aos afazeres que a corveia da necessidade lhes impõe. Meditando
assim no mérito da bula papal, deixo o carro deslizar, enquanto olho para as
iluminações de Natal, onde alguns dos adereços quase fazem lembrar um
crescente. Não chego a ficar perplexo, pois tenho de entrar numa rotunda,
acautelar-me de algum condutor imprevidente, e logo o pensamento me foge em
direcção à bênção, ou à graça, que, no longínquo ano de 1854, Pio IX decidiu
derramar sobre todos nós. Amanhã suspendo a razão e deixo deslizar, com demora,
o dogma pelo meu dia. Assim o espero.
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
Verdade e versos
Olho a rua e sinto toda a verdade que se esconde num verso
de Eugénio de Andrade. “Com o sol a trepar pelas árvores”, escreveu, há muito,
o poeta. E é isso que vejo, nesta manhã, antes de ser tragado pelos monstros
que, dia após dia, devoram a vida dos homens. Olho pela janela e os monstros
desaparecem, refluem para o lago que, subterrâneo, desliza dentro de mim,
tecendo, com zelo, a minha perdição. O sol trepa pelas árvores, penso. Por
vezes, canta nos verdes outras sussurra nos amarelos, mas nunca deixa de trepar
ramos acima, mostrando a verdade de cada árvore na verdade de um verso. Rio-me
ao pensar na mistura de verdade e versos. Deveria seguir a lição de Platão e
expulsar o poeta da cidade, ficaria mais tranquilo. Nada pior do que ficções,
recordo. E nesse instante, entre o verso de Eugénio de Andrade e a indisposição
de Platão para com a poesia, penso que o próprio Platão seria o poeta que
deveria ser expulso da cidade. Assim como o sol trepa pelas árvores e eleva-se
aos céus, também os homens dizem, as mais das vezes, o contrário daquilo que
sentem. Se fossem árvores, não o diriam, e eu não escreveria estas palavras sem
utilidade, nem propósito, nem verdade.
terça-feira, 5 de dezembro de 2017
Castanheiros
Quando cheguei a casa descobri que me tinha esquecido dos
óculos de ler na escola. Nada a fazer senão mergulhar na noite e atravessar a
cidade. Havia muita gente em trânsito. Os carros deslizavam devagar e os peões eram sombras que se desvaneciam nos passeios. Os castanheiros da avenida estão agora lacrimosos.
Quando se aproxima o Natal, descarregam sobre eles uns fios semeados de
pequenas luzes, como se isso os tornasse mais adequados a uma época que não é a
deles. O que vale é que, estóicos, suportam tudo, mesmo os desvarios dos
homens. O seu reino virá mais tarde quando florirem. É isso que lhes importa.
Como os castanheiros, também os homens deveriam apenas preocupar-se com o que lhes
importa, com essa hora em que hão-de florir, especulei ao deixar a avenida.
Como sempre sou dado a ilusões e deixo-me arrastar por analogias cujo sentido
logo me parece bizarro. Por que razão haveria de florescer um ser humano? Nem
flores nem frutos, pensei. E apressei-me para descobrir onde tinha deixado os óculos.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2017
Segunda-feira
As segundas-feiras, com o seu excesso de realidade, não
deixam de ser dias enigmáticos. São como uma rede desmedida que captura os
homens no mar do ócio e os descarrega no porão do trabalho, onde prestam o
forçoso tributo à necessidade. Também eu sou levado na rede e, ao cruzar-me com
outras vítimas da grande captura, nunca deixo de me espantar com o seu ar de
felicidade. São múltiplas as causas que movem os homens, penso então, perdido nestas
manhãs de frio cortante. O melhor é entregar a felicidade de cada um àquilo que
o anima e deixar-me de enigmas com temperaturas tão baixas. Metáforas não
aquecem ninguém e, numa sala sombria, haverá gente à minha espera, para que eu
lhe fale de coisas que ninguém quer ouvir e que eu, se não tivesse tanta
propensão para a irrealidade, me absteria de dizer. Não são dias fáceis as
segundas-feiras. E o pior é que não chove.
domingo, 3 de dezembro de 2017
Domingo
Quando, esta manhã, saí de casa assaltou-me uma dúvida. Esta não nasceu da falta de luz. Pelo contrário, havia aquela luz exuberante dos dias frios, uma luz que, ao derramar-se sobre a terra, consegue enganar até os menos incautos, segredando-lhes que não se caminha para o Inverno mas para o Verão. A dúvida, porém, não tinha a ver com a luz terminal do Outono, mas com o domingo, o sétimo dia, aquele que Deus escolheu para descansar do trabalho da criação, tão satisfeito estava, pois tudo o que tinha fabricado era bom. Se Deus, em vez de ter criado o mundo quando o criou, o fizesse hoje, pensei, será que descansaria ao domingo, mesmo que este fosse o sábado dos judeus? Trabalharia ele, o grande operário, por turnos ou cumpriria um horário regular, entrada às oito e saída às dezassete? O sol, apesar do brilho, não me aquece a alma e, ao caminhar, entrego-me a estas meditações plenas de heresia. O melhor seria não as partilhar, mas já é tarde para conseguir uma reputação aceitável. Encontro pessoas endomingadas e outras perdidas na contagem dos dias da semana e penso na minha infância. Nesses dias, tudo era claro. Um domingo era um domingo. Com a mãe, ia à missa. Com o pai, ao futebol. E Deus olhava-nos com benevolência entre a homilia e um penalti falhado. Agora, a mãe assiste à missa na televisão, o pai há muito que decidiu, para minha tristeza, perder os jogos por falta de comparência, e Deus, ora o que se há-de dizer dele? Ficou cego? Cansou-se? Há quem diga que foi de férias e que, endomingados ou não, proclamou que já era tempo de tomarmos conta da nossa vida. O sol, concluí, engana-nos e faz-nos pensar em coisas que não lembram a ninguém.
sábado, 2 de dezembro de 2017
Flatland
De tarde, ao sair de casa, estava um sol frio, um sol natalício.
Não tarda e o Natal está acabado, pensei. Os carros saíam e entravam para o estacionamento
de uma superfície comercial. Perante a azáfama, fiquei a meditar na estranha
designação. Superfície comercial, como se nós, pobres mortais, pelo acto de
comprar e vender ficássemos reduzidos a seres bidimensionais a viver numa
espécie de flatland. E enquanto
caminhava por dentro do frio, pisando, sem piedade, as folhas ressequidas
espalhadas pelo passeio, meditava na mensagem oculta por detrás de tal
designação. As pessoas passavam por mim, indiferentes à minha meditação, e iam
com o rosto cheio de Natal. O mundo está prenhe de coisas improváveis, coisas
como superfícies comerciais ou rostos cheios de Natal, concluí eu, enquanto me
apressava para fugir da noite que o céu, indiferente, anunciava. As tardes
estão muito pequenas, pensei, mas ninguém ouviu os meus pensamentos. Ou talvez
tivessem ouvido e não soubessem o que responder.
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
As folhas mortas
Sento-me sob o sol desmaiado da tarde e deixo que ele desça
sobre mim. Vejo os ramos do arvoredo a balançar, um vento frio toca-os e, uma a
uma, arranca-lhes as folhas secas. Ao fundo, os carros passam devagar, como se
esperassem mais alguma coisa de um dia que nada mais tem para lhes dar, a não ser
a permissão esquiva de passarem lentamente. Fixo-me nas folhas. O vento açoita-as
e elas entregam-se a uma dança acrobática antes de poisarem, secas, leves e
mortas, tão mortas, no chão. E em cada folha, vejo-me a ser arrastado pelo
vento, vejo-me livre em plena queda que me conduz para a terra que há-de ser a
casa da minha eternidade. Dezembro é um mês frio, pensei. Ergui-me e admiti,
após breve exame, que raramente escrevo sobre pessoas. A minha alma pertence ao
deserto, exclamei, mas não havia ninguém para me ouvir.
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
Frio
Há pouco, perto de mim, alguém dizia que, na ausência de
chuva, houvesse frio. Ao menos, matava-se a bicharada nos campos, o que ajudaria
a lavoura. E eu fiquei espantado com esta sabedoria que me era servida
inadvertidamente. Para mim o frio é apenas ocasião de vestir uma roupa mais quente
e não uma arma de guerra biológica. E foi assim que enfrentei, na rua, a
frialdade com que a noite tomou conta do dia. Imaginei então campos onde mil
hecatombes de pequenos seres é oficiada pela descida das temperaturas. Se eu
fosse um homem do campo, que coisas não haveria de saber e de transmitir aos
outros. Coisas úteis, sérias, profundas, onde se joga a vida e a morte, e não
frivolidades sobre se o homem possui livre-arbítrio ou se devemos determinar a
moralidade dos nossos actos pelo imperativo categórico ou pelo princípio de
utilidade. Em vez de papéis e gente aborrecida à minha frente, haveria campos
de milho e de trigo, talvez um roseiral de onde colheria as rosas que alguém
espera de mim.
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Ignorância
Nomear as coisas é uma arte de difícil consecução, pensei
hoje ainda a tarde era luminosa. Quantas vezes, neste estranho Outono, vou
pelas ruas e fico espantado com as cores que, aos poucos, tomaram conta das
folhas do arvoredo? E se eu quero dizer esse espanto e partilhar o prazer que vermelhos,
castanhos, ocres, amarelos, violetas ou rosas me deram, a empresa morre de
imediato na impossibilidade de nomear as árvores que suportam ainda nos seus
ramos tais catálogos vivos de cor. Estou-lhes grato, digo de mim para mim, mas
não sei o seu nome e temo que, um dia, elas não me perdoem a ofensa. Juro então
que irei dedicar algumas horas ao reconhecimento das árvores, mas logo penso
que talvez seja tarde, que o meu tempo é mais o do esquecimento que o de
adquirir saber. E assim as árvores, essas que tanto prazer me dão, entram na
noite que é a terra dos não nomeados. Ali são todas iguais, todas árvores, que
se confundem na tonalidade pardacenta da minha ignorância.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
O resto
Há pessoas que têm uma estranha propensão. Escolhem fazer
coisas que sabem ir contra a sua natureza. Penso nisto enquanto oiço o Hilliard Ensemble
a interpretar música de Victoria e de Palestrina e me deixo arrastar,
literalmente, para o paraíso. Conheço alguém que estudou filosofia não porque
se interessasse por argumentos mas porque amava a literatura. Nunca lhe perguntei
a razão de tal comportamento, nem a pessoa esboçou alguma vez uma explicação
para a sua dissonância existencial. Fui anotando, contudo, ao longo dos anos, episódios
desse seu conflito. Um dia, após um concerto em Leiria, deste mesmo Hilliard
Ensemble, onde ouvimos música de Bach, disse-me que fazia mais pela fé um
concerto de Bach do que qualquer argumento sobre a existência de Deus. Objectei
que esses argumentos não pretendiam fomentar a fé mas determinar se é racional
ou não crer em Deus. Olhou-me divertido. A noite, ao contrário da de hoje,
estava amena. A Primavera era quase Verão. Passados alguns instantes,
respondeu, sem tirar os olhos do chão: a racionalidade ou a irracionalidade da
crença, o que tem isso a ver com Deus ou com a sua existência ou inexistência? Bach
sabia que Deus existia e a sua música é a prova disso, o resto... E não
completou a frase.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Iluminações
Há dias que algumas ruas da cidade foram tomadas pelas
iluminações natalícias. Atravesso-as atónito, não sabendo o que pensar desta proeza
que todos os anos temos de suportar com benevolência e cuja finalidade não
deixa de ser um enigma. Foi para isto que o filho de Deus escolheu vir ao mundo
na penúria do presépio, pergunto-me, enquanto o carro rola ao sabor do
trânsito. Nos passeios, os peões são sombras que a noite vai apagando. Já nem
um mês falta para a consoada, penso, enquanto se insinua a memória dos que nunca
mais estarão presentes. E uma nostalgia de um Natal autêntico assoma. Um Natal
feito de silêncio e de contenção. Um Natal em que os homens pudessem perceber o
mistério que o envolve e os envolve. Faço uma rotunda, endireito o carro. Um
cão ladra distraído, enquanto um casal de namorados passa envolto na tristeza que
é a sua. Quem quer saber de mistérios? Travo numa passadeira e penso que
deveria fazer o caminho a pé. Encolho os ombros. As iluminações gritam numa
girândola de cores, enquanto um anjo desce e diz-me que, se não apagarem as
luzes, não haverá Natal. Com tanta luz, o Menino recusa-se a nascer. Não deveríamos
tentar os deuses, digo para comigo.
domingo, 26 de novembro de 2017
Modalidades
Por um motivo que não vem ao caso, e estando ocioso, comecei
a interessar-me, ainda que incipientemente, por lógica modal, a qual envolve
proposições onde se afirma a necessidade ou a possibilidade de algo. Estava
assim neste ócio, quando olhei para a rua e vi um sol desmaiado a cair sobre os
prédios exaustos, cujo esboço desliza, como uma sombra delida, ante mim. A luz
da lógica é como um sol exuberante, pensei. Contudo, a vida é sombria e o sol,
por vezes, não tem a luz necessária para a iluminar. E enquanto os pombos
voavam de prédio para prédio e as pessoas, lá em baixo, passavam envoltas no
domingo, lembrei-me de um livro de Milan Kundera, A Arte do Romance. Faz ele notar que o romance moderno é
contemporâneo do nascimento da filosofia moderna. À evidência e certeza
cartesianas, o romance traz-nos aquilo que não é necessário, nem certo e muito
menos evidente. Traz-nos o sombrio e o não racional. Não é o romance filho do
Quixote? Ao ouvir uma sirene, uma dúvida, porém, assaltou-me. Há quem pense que
os romances tratam da possibilidade, que os mundos romanescos são mundos
possíveis. Talvez a lógica modal tenha pregado uma partida à arte do romance, e
a tenha reconduzido, apesar da resistência, ao redil da razão. E perante essa
possibilidade, soltou-se da minha boca a jaculatória: valham-nos os oximoros
dialécticos do Pessoa. Amén.
sábado, 25 de novembro de 2017
A pequena heresiarca
Um drama, e não dos pequenos, aqui por casa. A minha neta
mais nova, perante a tarefa de escrever três frases com a palavra cão,
decidiu, na terceira, inovar e entrar pelo perigoso caminho da heresia. “O cão
tem uma capela na escola e tem Jesus”, escreveu. Como sabemos, o Santo Ofício
não é permissivo e não gosta de inovações. Não se comoveu com a conjunção das
proposições simples, nem com a extensão da salvação aos animais, e, entre
admoestações teológicas e considerações de ordem prática sobre a recepção
escolar da frase, usou da borracha para apagar o perigoso erro. O pior é que a
pequena heresiarca não gostou e decidiu entregar-se, inconsolada, a um choro de
protesto. Persiste em mostrar-se amuada, como se a santa censura lhe tivesse
retirado o maior dos bens, a liberdade de expressão. É assim que, na história,
se formam os grandes revoltados.
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Milongas e chacareras
Enquanto entardecia lugubremente, fui buscar o carro à
oficina. Há ali uma sabedoria que me deixa sempre espantado. Talvez não se
saiba da mecânica do mundo, mas a das máquinas é tanta que nunca deixa de me
maravilhar. Circulo pela cidade, para a ver fenecer na tristeza que é a sua e
recolho-me. Que música, pergunto-me, para o cinzento outonal de uma sexta-feira
à tarde. E deixo-me levar por milongas e
chacareras. Não é que me transfira para a Argentina, mas há nestas melodias
qualquer coisa que me lembram que sou português. E assim fico a saborear esta
descoberta espúria. O dia, acobardado perante as potências das trevas,
retira-se, enquanto a iluminação eléctrica chega em ampolas amareladas, para
que a noite seja menos noite, e uma voz rouca e baixa cante uma chacarera, e tudo siga uma ordem e um
desígnio que, penso-o há muito sem o lastimar, nunca compreenderei. A voz
calou-se e a guitarra cedeu ao silêncio. Os cedros, ali ao fundo, erguem-se
hirtos, ansiosos pelo vento que os há-de vergar. Esperam a noite. Ela virá.
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
Chove
Quando saí da escola, já a noite tinha caído. Não que fosse
tarde, mas porque os dias, vergados aos decretos da astronomia, resolveram
minguar. Chovia. E não há nada como a chuva para lavar as almas. Almas são
coisas que se conspurcam com muita facilidade. E não falo desses pequenos
pecados que levam as pessoas, ainda vivas, às prisões, e aos infernos, se a
morte as leva. Pecar contra o espírito, isso sim, é grave. E haverá maior
pecado contra o espírito do que tentar ensinar metafísica a
adolescentes? Talvez a ética nos prescreva o dever de nos abstermos de tal
desígnio. Hoje acordei voltado para as incompatibilidades. Mas, como se sabe, a
carne é fraca e precisa de se ocupar com alguma coisa ociosa. Saí do edifício
e, no caminho para o carro, senti cada pingo de chuva que caiu sobre mim. A
metafísica ficava lá para trás e pensei, arrastado por um lugar comum: comam
chocolates, comam! Olhem que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
E assim de alma lavada, como se tivesse acabado de me confessar, rasguei o
veludo negro da noite e cheguei, sem estados de alma nem inquietações, a casa.
Chove e isso, por agora, basta.
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
Lítotes e hipérboles
Tenho sempre na secretária um livro que, apesar de
fastidioso, consulto, a mais das vezes ao acaso, para minha instrução. Trata-se
de Elementos de Retórica Literária. Abri-o há pouco e vieram até mim as páginas
que tratam da lítotes e da hipérbole. Estas coisas não interessam a ninguém,
mas eu tenho uma acentuada inclinação por coisas que não interessam a ninguém.
Enrolo-me nelas e, enquanto as pessoas sensatas tratam de coisas que interessam
a alguém, eu fico por aí a cultivar inutilidades. Espero que elas me iluminem e
me contem um qualquer segredo, mas elas são avaras. E estava eu de volta da
hipérbole pura e da hipérbole combinada, a meditar no exagero da sua sovinice,
quando, ao mudar de página, caem umas requisições de livros feitas numa
biblioteca de Lisboa há 20 anos. Não apenas me confirmam a minha obsessão pelo
inútil como me atiram para dentro de um passado que se tornou tão inútil quanto
o meu amor, não pequeno, por lítotes e hipérboles. E chegado aqui, hesito se
fico na contiguidade da metonímia ou se vou à janela ver se chove. De
preferência, hiperbolicamente.
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