sábado, 9 de dezembro de 2017

A rapariga cega

Os dias deslizam para o Natal e a minha memória resvala para territórios que o tempo corrompeu. Na rua, carros e pessoas passam esmagados pelo peso da quadra que se aproxima. E eu olho-os da minha janela e finjo-me inocente de tantas preocupações. Depois, a minha avó chega-me apressada à casa da memória. Vem com os cabelos brancos que sempre lhe vi, e eu recordo-me dos dias em que brincava na despreocupação do quintal que havia na sua casa térrea. Nessas alturas haveria por lá um ou outro primo, mas tudo era muito diferente de hoje, o cobalto do céu era mais vivo e nada ainda tinha caído na ruína da recordação. O quintal era dividido de um outro, talvez por uma paliçada de canas ou por um muro, não sei bem, pois o que recordo é a cobertura, a que chamavam enleio, de campânulas roxas e que a tudo ocultava. E foi desse outro quintal que veio o objecto do meu primeiro amor. Uma voz feminina. A pronúncia, o ritmo, as próprias palavras fascinavam-me, tão diferentes do que me era dado ouvir, e eu, sem o saber, era tocado por Eros, desejando o meu coração, mais que o corpo imaturo, que aquela voz não se apagasse e desabasse em silêncio dentro de mim. Um dia soube, não sei bem como, que quem assim falava era uma rapariga bem mais velha e, digo-o ainda com emoção, cega. Fiquei atónito. Como seria possível que aquelas palavras saíssem da boca de alguém que não via? Os primeiros amores, esses que não sabemos sequer que o são, trazem já consigo a ferida narcísica que rasga a carne para que a realidade entre pelos olhos dentro. Julgo que nunca a vi, talvez ela não saísse de casa, e a sua voz, que um dia foi em mim o murmúrio de Afrodite, foi-se extinguindo até não ser mais do que um amontoado de palavras partilhado na insipidez de uma rede social.