domingo, 10 de dezembro de 2017

A faca

O dia cresce como uma faca espetada no peito. Oiço-o a rasgar a carne, enquanto a pulsação enfraquece e a respiração entrecortada faz-me entrar num estupor, talvez a esperança de que imobilidade do corpo arraste a do tempo, e tudo fique suspenso nesta glória eterna. Os domingos são traições à esperança na eternidade, penso. Por isso, os homens iam à Igreja para se lamentarem da fraqueza da carne. Ou talvez fossem para ver as mulheres ou nem isso. Sei lá o que ia ou vai na cabeça dos outros, se nem na minha sei o que se passa. O pior é a carne dilacerada pelo tempo que passa, como se este fosse uma conspiração do espírito para sublinhar a sua superioridade perante a falência sem fim do corpo. Agora, gostaria muito de moralizar, mas falece-me o talento e a vontade. Bem na minha frente, a alguns passos, uma mulher compõe o cabelo, passa nele a mão húmida e assenta-o, como se ainda tivesse um poder para amainar os ventos. Não tem. E nem ela nem eu o temos para parar a grande faca do tempo a ranger nos músculos deste domingo. O melhor é não ser complacente.