quarta-feira, 10 de julho de 2019

Cirurgia ocular

Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos, a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial, como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera, fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente, por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada. Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Ainda é cedo

Combinando esplendor e volúpia, as árvores da avenida lançam uma sombra lenta e furtiva sobre a brancura calcária dos passeios. Vejo-as de cima, a exuberância da copa batida pela aragem, o verde tisnado pelo sol de Julho, e respiro fundo. A tarde caminha como uma rameira fugitiva, mas muito ainda terá de penar até se entregar, não sem prazer, nos braços da noite. São assim os dias por aqui. O peso do céu esmaga a terra e as pessoas vão rua fora, oficiando paciências, esperando que a vida resolva o que nunca resolverá. Perambulo pela casa como se fosse personagem de um romance de Xavier de Maistre e descubro sempre um motivo de interesse. Um livro de que me esquecera fora do lugar, um CD que não oiço há muito, a fotografia de algum neto, outra em que estou ao colo da minha avó materna. Entre avó e neto vão cinco gerações, penso enquanto me aproximo de outra janela. Na praceta, lá em baixo, não se vê vivalma. Ao longe, os carros estacionados no Hospital reverberam, enquanto as paredes do edifício escurecem sob o peso das colónias de fungos. Encaminho-me suavemente para o sítio onde, benevolente, a loucura me aguarda. Ainda é cedo, digo ao olhar para o relógio.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Estados de alma

O mais assisado é não ter estados de alma. Este tipo de pensamento acomete-me muitas vezes, principalmente quando sou confrontado com as coisas inúteis que o destino me destinou. Ora, se o destino as destinou, quem és tu, pobre mortal, para te insurgires? Nada de insurgentes, diz-me a consciência. Então, antes de me irar, recorro à ataraxia, essa tranquilidade de ânimo ou ausência de inquietude. Faço-o, não porque o ânimo me seja tranquilo por natureza ou porque, em verdade, não seja inquieto. Faço-o porque gosto da sonoridade do vocábulo. Os antigos cultores da ataraxia tinham um objectivo moral. Eu tenho uma razão estética, o som da palavra. Por outro lado, com esta idade, irritar-me é uma coisa desagradável. Por isso, levanto-me e, à janela, fico a olhar demoradamente o horizonte. Este não me defrauda. Mantêm-se inalterado e não me pede nada que não seja olhar para ele. Ali em baixo, as pessoas passam e também elas desejam não ter estados de alma, mas não sabem o que é a ataraxia e a alma, tomada de inquietações, logo lhes salta dentro do corpo.

domingo, 7 de julho de 2019

Novas pedagogias

Entardeço nesta tarde de domingo. O corrector ortográfico do Word solidariza-se comigo e sublinha a vermelho a palavra entardeço. Um erro. Ainda bem que já não estou na escola primária, onde a partir de três erros o professor se entretinha a aplicar uma reguada por cada nova ofensa à ortografia, uma senhora então muito digna de respeito. Era um exercício didáctico da melhor qualidade, que o digam aqueles – eram sempre os mesmos – que cada vez que calhava haver um ditado saíam de lá com as mãos a arder. A eficiência era nula, mas o prazer – prazer pedagógico, note-se – do professor devia ser imenso. O corrector do Word pertence já a uma nova mentalidade educativa, talvez influenciada pela OCDE. Sublinha a ortografia desviada a vermelho e a sintaxe inovadora a verde. Dá conselhos em vez de reguadas. Na verdade, é um corrector patriótico e republicano, preocupado em que não esqueçamos a bandeira nacional, admoestando-nos com bonomia e espírito liberal. Seja como for, tenho de lhe agradecer. Não me reconhece a possibilidade de me tornar tardio. Eu que sempre fui serôdio em tudo, que tenho por sina chegar tarde aonde os outros só chegam cedo, não posso entardecer. No entanto, o mesmo corrector permite-me escrever amanheço sem sublinhar o vocábulo. Talvez haja aqui uma insinuação, cujo significado prefiro ignorar.

sábado, 6 de julho de 2019

Uma tarde de Julho

O telemóvel informa-me que aqui mesmo estão 28º e o céu parcialmente nublado. É verdade, pelo menos as nuvens cobrem o sol. Num sábado de Julho as coisas não estão más. O normal seria estarem uns 38º ou 40º, as pessoas afogueadas, a arrastarem-se pelas sombras e a maldizer S. Pedro, o verdadeiro mentor dos estados do tempo. O santo tem sido condescendente. Talvez ele próprio ande um bocado desregulado, tenha perdido a tramontana e esquecido as noções básica de espaço e tempo. Mesmo que seja grande a sua santidade, também os santos se gastam. O que eu queria dizer é que estou grato pela amenidade climática. Esta temperatura só me dá sono, mas não me desregula o humor e não me faz pensar em coisas que uma pessoa de bem nunca deve pensar. Enumero as tarefas inúteis que ainda tenho para fazer. São algumas, constato. Hei-de fazê-las, pois o bem da humanidade depende delas. Oiço os latidos de um cão. Oiço palavras cujo sentido me escapa. Oiço a arenga de um pássaro que não se cala. A tarde desliza devagar e, não tarda, a cabeça vai pender, os olhos fecharem-se e hei-de ressonar em harmonia com o que oiço. Longínquas estão as tarde de Verão em que uma voz imperiosa me mandava dormir. Eu fechava os olhos, contava os minutos, cheio de inocência, e nunca dormia. Abominava a tortura. Agora é o que se vê.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Das semelhanças

Passei por uma pessoa conhecida, uma mulher que se aproximará da casa dos cinquenta, que não via há muito. Surpreendeu-me que se tivesse tornado tão parecida com a mãe, como se o tempo se aplicasse a seleccionar aqueles traços que, durante décadas dissimulados, estabelecem uma relação com o passado e assim tentasse eliminar os que diferenciam e são arautos de um salto na estirpe. A natureza, ponderei enquanto trocava algumas palavras de circunstância, é mais cuidadosa do que se pensa e tem horror ao desconhecido. Poderia ter evitado este antropomorfismo, mas não me apetece. Hoje acordei e ao ver a paisagem coberta por uma bela neblina comecei a atribuir sentimentos e objectivos humanos à pobre natureza, pura e inocente de todos esses pecados. Uma pessoa prudente evitaria atribuições dessas, passou-me pela cabeça, enquanto me despedia. Logo segui o meu caminho e esqueci as semelhanças, a natureza e a própria prudência. Na paisagem árida da minha mente, talvez motivadas pelo vazio, passam muitas ideias que melhor fora nunca tivessem vindo à existência. O pensamento, porém, é um cavalo selvagem e a mim faltam-me os dotes e a paciência para o domesticar.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Inconstância

Chego à janela e olho lentamente o céu. Os dias continuam nublados e isso é uma bênção. As pessoas protestam porque o Verão parece ter sido adiado. Protestariam se ele tivesse vindo exuberante, aninhando-se no desconchavo dos dias e daí lançasse uma cortina de fogos, que haveria de lembrar o inferno, com anjos caídos, horrendos, negros como baratas. Por falar em anjos caídos, sempre poderia dedicar-me a escrever uma angelologia. Dividir os anjos entre fiéis e rebeldes, e discutir a magna questão se Adão foi criado ou não para que os homens substituíssem no céu o lugar daqueles anjos que se deixaram levar pela empáfia e sofreram, mesmo destituídos de corpo, os efeitos terríveis e inexoráveis da gravidade. Como se vê, sou inconstante de objectivos. Comecei a propor-me falar de anjos e logo mudo de opinião e quero discutir a origem dos homens. Desconfio que, a continuar assim, ainda acabo a perguntar-me sobre a génese dos percevejos. Seja como for, o céu continua cinzento. As nuvens não deixam que se avistem os anjos bons e os maus, como se sabe, andam demasiado ocupados a sugestionar os pobres mortais, semeando-lhes searas de armadilhas para que eles, levados pelo descaso, se percam e a sua alma fique mais escura que um tição.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Julho

Só hoje dei por Julho ter chegado. Sabia que o calendário indicava que estávamos em Julho, mas este ainda não se apresentara diante de mim, mostrando-me credenciais e comprovativo de existência. Esta frase fez-me lembrar uma peculiaridade da burocracia nacional, a certidão de nascimento. Apresento-me, identifico-me com o bilhete de identidade, mas alguém diz: prove que nasceu. É um exercício difícil provar que se nasceu. Vale-nos a certidão. Também Julho apresentou a sua certidão de nascimento. Isto não torna as coisas mais fáceis. Pelo contrário. Há pouco peguei num livro onde um filósofo actual me informa que “jamais poderemos ter a esperança de tornar as nossas palavras perfeitamente precisas”. As pessoas esperam pouca coisa, pensei. A minha esperança é que as palavras se tornem perfeitamente imprecisas. Assim ao dizermos uma coisa, o leitor suspeita que estamos a dizer outra e isso parece-me muito consolador. Acabariam os mal-entendidos. Olho o céu, e uns cirros mancham a pureza do azul. Cá em baixo, na terra, os homens apressam-se pela avenida. Temem chegar tarde ao comboio que os há-de levar a Agosto.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Ares de família

Respiro fundo e penso que este é um belo exercício para clamar a vinda da paciência. Estou há horas numa tarefa repetitiva, destituída de sentido, fabricada por gente misericordiosa, sempre activa na descoberta da melhor forma de fazer da vida dos outros um exercício de penitência. Talvez eu mereça, mais que qualquer outro, essa penitência. A estupidez é um pecado capital que se paga caro e eu não me distingo particularmente pela inteligência. Decidi acompanhar o ir e vir do látego com as sonatas para piano de Beethoven. A certa altura, estas tornaram-se também elas repetitivas. Não percebia já o movimento da música, apenas ouvia, como se viesse de outro mundo, o martelar ameaçador das teclas. Parei. O Youtube ofereceu-me, então, as sonatas de Schubert pelo Claudio Arrau. Olho para a fotografia deste e acho o seu rosto, marcado pela idade, uma estranha combinação entre Nietzsche e Arnaldo Matos. Não estou bem, pensei. Levanto-me, esfrego os olhos, dou uns passos pela casa. Chegou a hora das alucinações. Troco o Beethoven pelo Schubert e volto à expiação. Antes de recomeçar ainda me pergunto: Nietzsche, Arrau e Arnaldo Matos seriam primos? As voltas que a vida dá.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A verdadeira arte

Podia vir aqui contar a história do faroleiro Richard Garman, mas não o faço. Há que evitar o excesso de ficção e, desse modo, propagar histórias falsas por esse mundo fora. Já basta o que basta. Também é verdade que não haveria quem a ouvisse. Inspirado por Santo António, sempre a poderia contar aos pássaros meus vizinhos, mas estes parecem-me demasiado ocupados para se entreterem com o que lhes pudesse dizer. Esvoaçam diante da janela, poisam no parapeito, fazem tangentes arriscadas à esquina do prédio. Acima de tudo, não se calam e eu não sou santo o suficiente para lhes fazer entender a minha língua. A luz desta segunda-feira tem o condão de me irritar. Há nela um sintoma de falsidade, uma mancha esbranquiçada que alastra pelas paredes e telhados, um odor a trevas mascarado de brilho. Não sou daqueles que na natureza vêem o metro da virtude. Também ela é dissimulada, pronta a fazer-nos cair numa armadilha. Eu sei que o que estou a escrever não tem nexo, mas também eu perdi há muito o norte. Acima de tudo, esforço-me por adiar aquilo que tenho de fazer. Ainda oiço o sagaz conselho que estava num daqueles livros de instrução pública que me calharam em sorte: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Pobre sagacidade e infeliz conselheiro. Há coisas que o melhor é nunca as fazer. Procrastinar é uma arte. A verdadeira arte.

domingo, 30 de junho de 2019

Ruminações

Nestes dias não tenho deixado de ruminar na descoberta da minha obsolescência. Hoje também não foi diferente. O que me valeu foi a visita do meu neto. Com os seus sete meses e meio arrasta-se por onde o deixam, movido por objectivos determinados, quase sempre traduzidos na tentativa de capturar um telemóvel esquecido ou de alcançar qualquer coisa que brilhe. Ainda não chegou o momento em que há-de passar pelas estantes e puxar livros e CD para o chão a grande velocidade, como se soubesse que está a fazer uma patifaria. Talvez esta propensão que os netos têm, quando começam a andar, de desarrumar os livros e a música seja um sinal que só agora começo a perceber. Os livros que leio e a música que oiço são coisas que já não fazem sentido, o melhor é desocupar as estantes para que alguém mais de acordo com o espírito do tempo as encha com aquilo que lhe há-de interessar. A ideia consola-me, assim como me consola o vento que ameniza a temperatura por estes lados. O domingo progride, o meu neto já se foi embora, restam-me os livros fora de época e a música que ninguém mais há-de querer ouvir. Não há coisa pior que criar expectativas que a realidade, sem benevolência, se encarregará de desmentir. Às vezes, penso nos meus dois avôs e sinto uma grande tristeza por eles terem morrido bem antes de eu nascer. Nunca pude chamar por eles e descobrir o que tinham para me ensinar.

sábado, 29 de junho de 2019

Exercícios da paciência

Chegou sábado e não devia estar por aqui. Um excesso de zelo, porém, obriga-me a ficar em casa neste fim-de-semana. Tento ser um taxinomista ponderado e razoável na classificação das espécies. Oiço uma voz. Grita, lá em baixo, golo. Depois o rapazola ri-se, tomado pela euforia. Naquelas idades, nada há mais importante que um golo. Há pouco tive de atravessar a cidade para uma visita de família. Foi uma travessia por ruas lentas, morosas, cheias de paciência. As ruas da minha cidade nunca desesperam. São como tartarugas que sabem muito bem que não haverá Aquiles que as vença. Então deixam-se estar na sua modorra, à espera de transeuntes, e eles lá vão passando, inclinados para si, fechados no pequeno habitáculo da sua consciência, indiferentes ao desvelo acolhedor de cada rua, de cada beco, de cada avenida. Espreito à janela. Dois adolescentes disputam uma bola. Fintam-se um ao outro, fintam-se a si próprios. O terreno de jogo é uma mescla de luz e sombra. Recolho-me e penso que poderiam colocar jacarandás no lugar das palmeiras cortadas. Assim, poderia falar na glória dos jacarandás em Junho. Ou, então, renques de ciprestes, para que os homens não se esquecessem de olhar para os céus. Os jogadores calaram-se e o último golo que eu marquei – eu que nunca tive inclinação desportiva – foi há tantos anos que começo a duvidar que realmente o tenha feito.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Revelação

Tenho uma tarde poeirenta pela frente, o que me dá sempre ensejo para considerações esquálidas. Pensamos, medito, que o momento não chegará, que nunca a nossa obsolescência cairá, como uma evidência irrecusável, diante dos nossos olhos. Haveremos sempre de estar na vanguarda. De um momento para o outro, porém, a realidade muda e os nossos reflexos estão enfraquecidos, o corpo cansado e a vontade gasta. Aquilo que valia deixou de valer, as regras e o jogo são outros. É uma hora terrível. Os que nos rodeiam ainda não sabem, mas nós sabemos que estamos definitivamente ultrapassados. Perdemos a corrida. Os gestos estão mais lentos, as mãos mostram uma pele enrugada e, acima de tudo, há em nós a pior das tentações. Não queremos saber. Aquilo que agora nos ultrapassa e nos revela o quão arcaicos somos não nos interessa, são coisas que se dirigem para o futuro e nós, aquilo que nos falta, é futuro. Sobra-nos o passado e é para lá que nos dirigimos, enquanto a nova vanguarda edifica as suas ilusões e ainda não sabe que também ela está grávida da sua obsolescência. Na praceta aqui ao lado, um adolescente bate uma bola de basquetebol. Inebria-o o som e o movimento. Oiço a batida e fecho os olhos. Ainda tenho que disfarçar durante uns tempos.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

A morte da senhora de Segelfoss

Ao olhar a capa do velho livro que estou a ler, pergunto-me o que terá a literatura para que eu dê uma especial atenção à queda do senhor do domínio de Segelfoss. Eu sei que o senhor e o seu domínio, assim como a própria queda são apenas palavras criadas pelo romancista Knut Hamsun. Nada daquilo se relaciona com uma realidade substancial. Não basta, porém, dizer, como Coleridge, que se suspende a descrença para acompanhar a trama romanesca. O enigma está no motivo por que o fazemos. Interessamo-nos pelo destino de pessoas que não existem, que estão embrenhadas em situações que não existem e que têm destinos que nunca existirão. Estamos conscientes desta irrealidade e, no entanto, não paramos de virar as páginas. Talvez o façamos porque estamos certos dessa irrealidade. Talvez o façamos porque, apesar de termos opiniões sobre tudo o que acontece, não suportamos a realidade. Talvez o façamos porque na morte de Adelheid, a senhora de Segelfoss, pensamos a morte como uma ficção e assim evitamos olhar nos olhos a nossa própria morte.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Popeline

Ao ler um post sobre música deparei-me com a palavra popelina. Há muito que não a escutava  e, tanto quanto me lembro, ouvia-a como popeline. Uma camisa de popeline. Na altura, não imaginava – ou imagino que não imaginava – que a palavra fosse francesa e estivesse em vias de nacionalização lexical. Também o sentido exacto devia escapar-me e, talvez para infelicidade minha, nunca senti curiosidade em saber precisamente que tipo de tecido era realmente a popeline. Aquela era uma linguagem esotérica de uma seita, para mim, fechada. Os tecidos não eram, nem são, o meu forte, se é que tenho algum forte. Um raio de sol, ao fender as nuvens, iluminou-me e pensei que, para pessoas como eu, deveriam existir dicionários ilustrados de tudo e até de tecidos. Fiz uma pesquisa no Google e ele, na sua infinita bondade, devolveu-me vários dicionários ilustrados. Um de moda, uma aproximação, mas também outros mais adequados ao meu presente estado. Um dicionário Ilustrado de fisioterapia e outro de saúde, que terá, por certo, uma secção de saúde mental. Ainda não é agora que vou saber alguma coisa sobre os tecidos que vestem as personagens com que me cruzo na rua, pensei desanimado. O Google, contudo, não dá ponto sem nó e indicou-me um guia prático de tecidos. O problema é que é brasileiro e lá os tecidos hão-de ter um nome que nada terá a ver com o que se usa por cá. Por causa das coisas, o Google ainda me indica, não sem perspicácia, o dicionário Houaiss ilustrado. Infantil, claro. Fico a pensar na insinuação e acabo por aceitar que não faltará muito para que seja esse o dicionário que me é mais apropriado.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O taxinomista que boceja

Tomado pelo sono, bocejo atrás de bocejo, uma tentação quase irresistível de fechar os olhos e deixar descair a cabeça, suspendi a minha função actual de taxinomista. Por vezes sou agraciado com a divina dádiva de me entreter com categorizações, exercícios de ordenação de certos elementos através do jogo das semelhanças e diferenças. Estou a ficar esotérico, o melhor é mesmo, caso não consiga calar-me, falar de outra coisa. Na verdade, há coisas que me incomodam como ir a um restaurante e sair de lá a cheirar a comida. Imprevidência, dir-me-ão. Um juízo precipitado. Era o que estava mais à mão e que me permitia voltar mais rapidamente para a minha função de organizador de taxinomias. Por vezes, as refeições são um incómodo, mas ainda não consigo dispensar o suplemento de energia que fornecem. Sempre podia jejuar ou mesmo fazer como o burro do espanhol, mas conheço o funesto destino do pobre animal. A verdade é que me senti melhor ao sair. Havia uma luz triste a lembrar a melancolia dos sábados à tarde na província. Os carros passavam, as pessoas cruzavam-se, as folhas das árvores, batidas pelo vento, abanavam. Fiquei siderado pela proliferação de pretéritos imperfeitos na frase anterior. O que me vale é que os macacos-prego usam ferramentas de pedra há três mil anos e os chimpanzés do Congo possuem um tipo de cultura diferente de outros chimpanzés. Isto tranquiliza-me e rouba-me à minha solidão. Agora não sei se hei-de voltar para as taxinomias ou ir bocejar para outro lado.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Autossexuais

As coisas que uma pessoa aprende só pelo passar dos olhos pela informação disponível. Uma notícia informa-me que para além dos heterossexuais e dos homossexuais existem ainda os autossexuais. Atraídos por si mesmos, não encontram prazer sexual maior que aquele que retiram de si. Poderíamos ter sobre o assunto uma discussão sobre se deveríamos interpretar o facto mais do ponto de vista psicanalítico, apontando-lhes os dedos e clamando narcisos, narcisos, ou de uma perspectiva filosófica, exibindo-os como amostra de radical solipsismo, se é que tal coisa existe. Isso, porém, poderia conduzir a más interpretações e, nos dias que correm, o melhor é mostrar-se neutro e esquecer qualquer opinião que se possa ter tido sobre sexualidade. O que me consolou, perante esta autocensura, foi outra notícia que me diz ter a NASA descoberto metano em quantidades apreciáveis em Marte. Talvez isso seja sinal de existência de vida microbiana no planeta vermelho. A minha esperança é que os possíveis micróbios sejam verdes e declaro, para memória futura, que não tenho nenhum interesse em saber como se reproduzem nas alcofas marcianas.

domingo, 23 de junho de 2019

De Profundis

Contra o hábito, fui fazer ao domingo compras a uma das grandes superfícies comerciais que, como cogumelos, brotaram por aqui. O dia está cinzento e abafado e eu, por falta de talento ou por conflito com a situação atmosférica, não estou particularmente inspirado para criar analogias. Uso as que estão, como eu, gastas e quase sem préstimo. Na charcutaria, local que também tem a função de takeaway (estas coisas em inglês acentuam o carácter degradante da realidade), um homem que já terá, há muito, ultrapassado a casa dos oitenta, falava com outro, mais novo. Este escutava atento e complacente, enquanto o primeiro, hesitante, de voz quebrada e gestos lentos, ia confessando a mágoa com a vida. Vinha comprar o almoço. Tem de ser, dizia, conformado, com as palavras a saírem manchadas de angústia. Não sei cozinhar e ela, que tão bem o fazia, agora é incapaz de fazer seja o que for. É tarde para eu aprender, tenho de me valer disto. Salvou-me o terem chamado o meu número e a vida, que parecia suspensa naquela conversa escutada inadvertidamente, tomava o seu rumo. Um rumo impiedoso, penso agora que escrevo isto. Do leitor de CD, desprende-se o De Profundis, de Arvo Pärt. Um acaso, penso, enquanto olho pela janela e vejo a calmaria do arvoredo a clamar por uma grande tempestade.

sábado, 22 de junho de 2019

Aliviar o fígado

Atravesso, na passadeira, a avenida. À minha frente vai uma mulher de blusa branca, cintada e que termina no que poderia ser o rodapé de uma página, onde ninguém se lembraria de fazer qualquer anotação. Chegados ao lado de lá, ela segue para um lado e eu para outro. Entro num café e sento-me. Antes de pedir o café e abrir o jornal, oiço uma mãe a encomiar a prole, perante uma pequena assistência silenciosa e constrangida. Nunca deixa de me maravilhar a penetrante visão dos pais que vêem nos seus filhos seres pelo menos ligeiramente superiores em inteligência a Einstein e nunca menos virtuosos moralmente que os santos que enchem os altares. Nessas alturas, bendigo a criação. Chega o café, abro o jornal, a senhora não se cala, tal a abundância de virtudes e o excesso de perspicácia que os filhos receberam, por certo, dos seus genes e daqueles que o seu coração escolheu para produzir deuses. Estas pessoas são perigosas, pois a realidade é desagradável e quando, inexoravelmente, os limites da criançada se revelam, a culpa é dos outros, uns aleivosos incapazes de reconhecer o génio e a superioridade moral. O melhor, pensei, é fechar o jornal e sair. Quando cheguei à rua, as nuvens erguiam uma barreira débil à luz. “Não há nada de novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é eterna repetição dos males”, citei em pensamento, como quem alivia o fígado.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Solstício de Verão

Há pouco atravessei a cidade e senti-me defraudado. As pessoas passavam envoltas no grande véu de indiferença que as cobre, empurravam sem paixão a sua sombra, ninguém tinha cara de ir comemorar o solstício de Verão. Compreendo que gente como eu, filho da névoa e da cinza, que tem uma incompatibilidade visceral com o Estio, se sinta acabrunhada e tente ostentar, só por impertinência, uma cara de enterro. Ora, os meus conterrâneos, que há muito se vestem para receber a estação do calor em apoteose, andarem pelas ruas como se nada fosse com eles, sem uma euforia exteriorizada que anuncie a alegria pela chegada da grande época, é coisa que não consigo compreender. Talvez os mais entusiastas, pensei, tenham viajado para Stonehenge para participar naqueles rituais que se imaginam pagãos, mas que são apenas uma forma de escandir o desespero. Talvez, mas a verdade é que a gente que se cruzou comigo não trazia no rosto a exaltação dos dias de festa. Não era fremente a luz que a iluminava. E como a cidade ou como eu, iam, avenida fora, baços, de asa caída, sem que uma estrela os iluminasse. Um adolescente berra, eu viro-me, mas é apenas uma bravata consigo mesmo. Cala-se e mergulha na nuvem de tristeza que cobre os telhados. Os dias vão começar a diminuir.