Muitas vezes, quando vou visitar a minha mãe, aproveito por
passar por dentro da cidade. Faço-o como se tratasse de um regresso a casa. Não
encontro nessa viagem de retorno os escolhos que Ulisses encontrou, no regresso
de Tróia, para chegar a Ítaca. Por aqui não há ciclopes de um só olho nem se
escuta o canto das sereias. Tudo se passa como sempre se passou, apenas o tempo
cobriu cada coisa com o seu manto de poeira e não há quem esteja disponível
para limpar o pó. Os conhecidos estão cada vez mais enrugados e os novos,
quando se avistam, são escassos e parecem já envelhecidos, contaminados por uma
nostalgia de não se sabe bem de quê. Talvez este tempo de Quaresma obrigue a um
jejum de novidade e a antiga vila se prepara assim para o grande luto que
antecede o domingo de Páscoa. Ao passar pela velha ponte do Raro espreito o rio.
Corre exuberante. O castelo, sonolento, abre a boca das muralhas e boceja. A
certa altura, na rua da Fábrica, corto à direita. O carro desliza devagar e eu
espero ver-me ali, um pouco mais à frente, nos meus dez anos a jogar futebol em
plena rua. Paro o carro e só há silêncio. Cheguei, mas eu não estou lá.
sábado, 17 de março de 2018
sexta-feira, 16 de março de 2018
Iluminações
“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”.
Assim começa Ovídio as suas Metamorfoses.
Vê-se logo que entrei de fim-de-semana. Ora estas metamorfoses são coisas mais
importantes do que se pensa. Veja-se o caso de Saulo de Tarso, agora conhecido
por S. Paulo. Não fora a súbita metamorfose sofrida por ele na estrada de
Damasco e hoje não haveria cristianismo ou, se houvesse, seria outra coisa,
talvez menos preocupada com o sexo. Também eu, por vezes, sofro uma
metamorfose, não tão dramática quanto a de Paulo, mas também não me ponho a
caminho de Damasco. Limito-me a passar pelas ruas de Torres Novas. Durante
décadas odiei, com determinação, favas. O cheiro deixava-me nauseado. Como em todos
os ódios, também neste o que sobrava em fervor faltava em racionalidade. Há uns
tempos, nem sei bem porquê nem aonde, tive uma metamorfose. Hoje foram, não sem
grande prazer, o meu almoço. A cada um as suas iluminações.
quinta-feira, 15 de março de 2018
Aguaceiros
Os dias incertos do final do Inverno repercutem-se na
indecisão que alastra nos passos dos transeuntes. Não sabem se o seu caminho é
o do sol ou se, daqui a instantes, a água derramar-se-á das nuvens como se a
arca de Noé estivesse pronta e um dilúvio viesse purificar a terra da maldade
humana. Caminho de chapéu de chuva na mão, mas espero que o sol me poupe a um
aguaceiro. A cidade ronrona e furtiva escapa-se-me dos olhos. Passos por
pessoas que cumprimento, mas não consigo já localizar o nome de algumas. A
folhagem da memória é precária e caduca, torna-se pó com excessiva facilidade. À
rua onde passo deram-lhe o nome da revolução, mas nela tudo é sossego e
indiferença, uma ordem sem a cegueira delirante da exaltação. Por ali, apenas
um tribunal, uma farmácia, mais acima, escolas. Nada que lembre a branca
obscuridade do entusiasmo e da fantasia. Os dias são como a vida na província,
passam devagar, mas o tempo, esse corre desalvorado e sem tino, ansioso a todos
entregar, sem demora, à tranquilidade do ataúde. O melhor é abrir o chapéu, uns
pingos grossos anunciam a bátega infernal que há-de vir.
quarta-feira, 14 de março de 2018
Vontade
Chove. O vento inclina as copas das árvores, fá-las desenhar
figuras bizarras, para depois as deixar sonâmbulas, muito aprumadas, ramos a
apontar para o céu. Os campos de jogos da escola em frente estão cobertos por
lençóis de água. Não se avista, da minha secretária, vivalma. Vejo as notícias –
ah essa oração da manhã do homem moderno que ainda não dispenso – e deparo-me
com o anúncio da morte de Stephen Hawking, o físico britânico. Fico a olhar
para a rua e a pensar no que foi a sua vida. Na verdade, muitos dos problemas
dos homens residem na vontade fraca. Ele que deveria ter morrido há quase meio
século viveu em circunstâncias físicas excepcionalmente difíceis e é uma das
grandes figuras do século XX e inícios do XXI. Sim, ele teria uma inteligência
prodigiosa, mas sem uma vontade de ferro nunca o seu nome teria chegado a nós.
Ao olhar os seus dados biográficos, descubro que escolheu bem os dias para
nascer e morrer. Nasceu no dia em que, trezentos anos antes, morrera Galileu
Galilei e morreu no dia em que, cento e trinta nove anos antes, nascera Albert
Einstein. Para completar o quadro, pensei, só falta uma coincidência com Isaac
Newton. A chuva rumoreja e o dia enovela-se numa cinza triste. Indiferentes a
tudo isto, algumas oliveiras permanecem impávidas, como se soubessem de coisas
que nunca imaginaremos.
terça-feira, 13 de março de 2018
Palavrões
Fui à farmácia comprar um
medicamento que me há-de fazer bem à hipertensão arterial. Um exercício
contumaz que evitará, presumo esperançoso, que a tensão se entregue ao devaneio
da hipérbole. Animado pela perspectiva, saio e, em plena avenida, passa um
bando de pré-adolescentes. Raparigas e, perdido entre elas, um rapaz. Talvez
inconsolado pela sua solidão de género, desdobra-se, em altos berros, em
palavrões. Em busca da masculinidade, pensei, ou talvez fique mais aliviado e esteja
a prevenir alguma doença do fígado. As pessoas passavam, os homens sorridentes,
as mulheres de orelhas moucas. Se tivesse a certeza de que uns palavrões eram,
para a hipertensão, mais eficazes que um beta bloqueante, acho que também eu
desatava a bradar avenida fora. Duvido, porém, da eficácia da metáfora e segui para
casa.
segunda-feira, 12 de março de 2018
A repartição
Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se
observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a
natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de
informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir
ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade
pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que
qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de
tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me
embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo,
num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me
tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência
com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me
numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à
morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em
derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do
incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da
modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas
apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia
observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado,
tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num
Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide
com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos
passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.
domingo, 11 de março de 2018
Tagarelice
Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da
cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas
bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas
do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o
sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos
lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão
ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a
perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas
caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como
sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o
silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por
transformar em tagarelice.
sábado, 10 de março de 2018
Sábados de província
Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.
sexta-feira, 9 de março de 2018
Registo
Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem
apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum
encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem
apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida
na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as
bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o
vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as
varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos
na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E
os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando
alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o
que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a
sexta-feira despeja na cinza da tarde.
quinta-feira, 8 de março de 2018
Realidades
Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos
que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos,
desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios
metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas
com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da
conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que
imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso
idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma
redundância para fim de conversa.
quarta-feira, 7 de março de 2018
Chuva fria
Depois de uma pequena cerimónia,
saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as
pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos
irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os
grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém
acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os
dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados
sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para
vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho
alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo
e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.
terça-feira, 6 de março de 2018
Constrangimento
Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes
de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim
não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente,
lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta
anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi
o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um
dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a
quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma
névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de
alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a
gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também
ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão
constrangidos para mim, pensei.
segunda-feira, 5 de março de 2018
Colégio de Santa Maria
Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há
uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado
e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar
das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida
exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais
tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos
dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza,
um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito
que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões.
Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num
mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas
mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens
e o tecido inútil de tudo o que passou.
domingo, 4 de março de 2018
Leituras
A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que
as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas
leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada.
Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que
pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor,
sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor
intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente
a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas
com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha
propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o
ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não
se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o
prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre
pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do
céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.
sábado, 3 de março de 2018
Deveres
Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar,
recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados
versos Ai que prazer / Não cumprir um
dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece.
Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e,
raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela,
mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que
mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a
chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o
tempo. Mais que isto, lembra o poeta,
É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que
se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse
economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha
janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de
ter os seus deveres.
sexta-feira, 2 de março de 2018
Homofonias
É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia
tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das
minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por
desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no
lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez
notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola
da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas
persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a
descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer
que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de
quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me
angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos
desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?
quinta-feira, 1 de março de 2018
Conservação
Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar
a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura
na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a
verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E
foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a
melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa
melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão
para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos
castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão
ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das
pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de
tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a
semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as
coisas.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Beco sem saída
Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas
lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me
acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir
consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham
sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser
misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas
vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei
ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão
obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez
atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se
precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O
que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até
num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Falar do tempo
Adiar o inadiável, pensei ao ver a chuva cair. Não tarda e a
Primavera chega com o seu cortejo de ilusões, os corpos tomados por uma ânsia
de Verão e eu, temeroso, sinto já a penumbra fumegante com que o calor me
envolve e me lembra, com o estilete do acinte a enterrar-se nas veias, a finitude
e a mortalidade que me constituem. Falar do tempo, penso, é aquilo que cabe a
quem já não tem nada para dizer. Aos negócios humanos sou cada vez mais
estranho e do resto nada sei. Quando não sou capaz de estar calado, sobra-me o
tempo como motivo de conversa. Descrever os dias de chuva, os de sol e os que
não são uma coisa nem outra. Ah se tivesse uma libertação para proclamar ou uma
salvação para anunciar, tudo seria mais fácil. Nunca faltam adeptos, mas como
verdade basta-me a chuva que cai, o sol que brilha, as nuvens que passam, a
monotonia com que a noite se ergue do ventre entumecido do dia. Chove, não é
mau.
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Anjos
Só se ouve um piano, mas o título da peça é “Três anjos
cantavam”. Os meus ouvidos não estão preparados para escutar as vozes dos
anjos, pensei, enquanto deixava o espírito enovelar-se nos acordes musicais.
Talvez o título seja uma metáfora ou uma falsa promessa. Promete vozes de anjos
e escutamos um piano. Também a tarde de hoje é feita de falsas promessas, presumo.
O céu cinzento anuncia chuva, mas ela recusa-se a cair. Olho para a rua e os
transeuntes caminham despreocupados, presos aos seus sonhos, mãos vazias como
se soubessem que a água prometida é uma conjectura sem sentido. Volto para a
voz dos anjos e oiço as notas saídas do piano. Talvez essa voz não seja mais
que o silêncio, esse silêncio que abre o corpo do homem ao segredo da música. Observo
inquieto a rua e ainda não chove. Um anjo poisa no telhado em frente, quase se
desequilibra. Recolhe as asas e canta.
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