Cheguei a pensar que hoje era dia 18, mas percebi que não, que o tempo não tinha acelerado, que até agora a natureza se mantivera idêntica ou uniformemente regular. Não permite saltos no tempo, pois terá medo de cair num abismo qualquer. Quando percebi que ainda estávamos a 17, decidi ir espairecer, caminhar pelas ruas da cidade, acumular pontos cardio, observar, enviesando os olhos, o movimento, que era intenso. Intenso, neste lugar quase esquecido pelos deuses, será uma hipérbole, mas, comparado com outras horas do dia, a figura de estilo não será errada. Naquela hora crepuscular, a cidade tingia-se de sombras e um cinzento prateado que descia do céu foi, ao longo do meu passeio, escurecendo. Entrei em casa quando chegava a noite. Rousseau, o genebrino Jean-Jacques, deixou para publicação póstuma e inacabada, as Rêveries du promeneur solitaire. Como ele, também eu sou um passeante solitário. Como ele, também eu sou acometido por rêveries, mas são tão insípidas que logo as esqueço. Se um acaso me proporciona alguma meditação que poderia partilhar com o mundo, o facto de não a poder prender em mim faz com que ela se desvaneça. Poderia gravá-la no telemóvel enquanto ia caminhando, mas temo que achem que enlouqueci e chamem uma ambulância para me internar. Assim, finjo que vou concentrado nos caminhos, mas deixo a mente perdida em fantasias de pouco relevo. Chegado a casa, sento-me e tudo se apaga, como se fosse um sonho nocturno que o espírito, pela manhã, recorda, mas que logo se apaga. Estou pouco inspirado, vou continuar a minha leitura. Sua Alteza Real, Nicolau Henrique, anda a arrastar a asa à menina Imma Spoelmann. Será que a Fraülein se disporá a abrir o coração ao arrastador? Tenho ainda umas dezenas de páginas para o saber. Não se trata de uma novela de má fama, mas do romance Sua Alteza Real, de Thomas Mann, onde, perante os olhos do leitor, a velha aristocracia perde o sentido da sua existência. Coisa que acontece a tudo o que existe. Primeiro perde o sentido e depois a própria existência.
sexta-feira, 17 de novembro de 2023
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
Uma mulher
Aos sessenta e nove anos era uma bela mulher, o tempo poupara-a e a pele ainda não cedera ao poder das rugas. Vejo-o numa fotografia. Contemplo longamente os seus olhos azuis, a pele branca, o cabelo cendrado. No rosto, há vestígios de um calvinismo que o tempo não terá conseguido apagar e nos olhos uma hesitação entre a melancolia e a altivez. Imagino-a alta e fantasio os olhares dos homens que, ao passar, ela prende, mesmo quando os setenta anos lhe batem à porta. Descubro que a infância e a adolescência não terão sido fáceis, o mundo nem sempre é afável para com as pessoas, mesmo se lhes foi dado o dom da beleza. Olho pela janela do escritório, descubro que o Verão de S. Martinho acabou, e o dia repousa na cinza outonal que cobre a cidade. As folhas das acácias entregam o verde que as cobria num amarelo cor de limão. Tinha um compromisso às duas e meia da tarde, mas adormeci. Quando acordei, sorri e, em vez de ver no caso uma humilhação trazida pela idade, julguei que o meu corpo inclinado para o sono era muito mais sensato que a minha razão submissa a obrigações. Volto à fotografia e imagino aquela mulher aos quarenta anos ou no dia em que comemorou os vinte. De súbito, descubro-lhe, no devaneio, os traços de Eduína, essa amiga que me deixou em herança três cadernos escritos que vou lendo muito lentamente, com a relutância de quem é tocado pelo pudor perante os segredos dos outros, mesmo que a herança seja uma forma de confissão.
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
Pôr-se a caminho
Devia pegar em mim e pôr-me a caminho. Melhor, pôr-me no caminho, que é o sítio onde se caminha, o que, consta, faz bem à saúde. Talvez ainda seja cedo para que a caminhada tenha uma tonalidade romântica. Um pouco mais tarde e poderei dizer caminhei ao crepúsculo. Para adensar o romantismo poderei mesmo dizer um ser crepuscular caminha ao crepúsculo. A preguiça, contudo, diminui-me a veia romântica e deixo-me estar sentado, enquanto a soprano Ingrid Kappelle, acompanhada pelo pianista Håkon Austbø, canta melodias de Olivier Messiaen. Recordo-me bem qual foi a primeira peça que ouvi do compositor francês. A sinfonia Turangalîla, mais tarde fascinou-me o Quatuor Pour la Fin du Temps. Desconfio que Messiaen é muito mais forte do que a ideia de caminhar. Fico sentado, a música, como o tempo, esvai-se, e eu deslizo com ela e com o tempo para esse lugar onde todas as caminhadas encontram a sua meta. Observo as metamorfoses do céu, a declinação da luz, o crescer das sombras à procura da escuridão que lhes trará a paz da noite. Hoje já tive a minha dose de videoconferências, pratiquei com afinco aquilo que não leva a lado nenhum. Para ser mais exacto, tornei-me num asceta da inutilidade. Por vezes, considero que falhei a existência. Deveria ter dado em trapista ou cartuxo. O problema, porém, é que teria de renunciar à minha condição de narrador e no caso plausível de optar pela Cartuxa, deveria cultivar o silêncio. Isso seria um bem para o mundo, menos uns disparates lançados por aí, mas talvez um mal para mim, pois narrar é libertar-me das ideias absurdas que se desenham na minha alma. Escolhendo o silêncio, o absurdo acumular-se-ia em mim e correria o risco de explodir. Um espectáculo degradante. Vou caminhar e levo o Messiaen no telemóvel.
terça-feira, 14 de novembro de 2023
Tarde de Verão
Tarde é o que nunca vem. Eis uma sensata expressão da sabedoria popular. Ora, o famoso Verão de S. Martinho acabou por chegar, trazendo sobre a cidade uma luz viva, apesar de esbranquiçada. Faltou ao encontro marcado com o dia de festejo do santo, mas veio em silêncio como se não fosse nada com ele. Estamos perante um caso de manifesta subversão na hierarquia dos poderes celestes. S. Martinho terá descido nela, mas talvez não tanto quanto se pensava. É preciso estar atento aos sinais e praticar com cuidado uma hermenêutica rigorosa e atenta ao conflito das interpretações. Aproveitando uma aberta nos afazeres, desloquei-me a uma loja que também vende livros para levantar dois que tinha encomendado online. Em frente do estabelecimento comercial há um bar que vende uns óptimos pastéis de nata. Dirigi-me a ele, antes de ir buscar os livros, mas não estava ninguém por detrás do balcão. Fui buscar os livros e voltei. Ninguém, apenas uns belos pastéis de nata a rirem-se para mim. Esperei um pouco, e descubro um papel no balcão dizendo: Peço desculpa, volto já. Aceitei as desculpas, esperei mais, mas quem devia voltar não voltou. Fui-me embora. Que hermenêutica fazer destes acontecimentos? Que não devo comer pastéis de nata? Que não os devo comer quando compro livros? Que não devo comprar livros? É isto que se chama conflito das interpretações. Há outras hipóteses que não eliminam estas. Por exemplo, o funcionário foi abduzido por extraterrestres para lhes ensinar como se vendem pastéis de nata. Outra hipótese é ter desistido do emprego e, para mascarar a situação, deixou aquele aviso. Temendo que ele tenha sido mesmo abduzido, passado um minuto, fui-me embora, antes que os extraterrestres voltassem e me levassem a mim para lhes explicar o que é o gosto de um pastel de nata. Uma decisão sábia, pois não fui abduzido e posso estar agora a narrar estes acontecimentos. E os livros? Bem, julgo que os extraterrestres já passaram a fase da leitura de livros e pouco interessados estariam em Irène Némirovsky ou Henrik Pontoppidan. Está uma tarde de Verão. De S. Martinho, claro.
segunda-feira, 13 de novembro de 2023
Peroração
Desconfio que me precipitei no retorno a estas tristes publicações. Os afazeres acabam sempre por se avantajar, até ao ponto em que olhamos para eles e vemos gigantescos monstros. Um dia cheio e ainda não acabou. Só há pouco pude dar uma vista de olhos pela informação, o que contraria a prédica de George Wilhelm Friedrich Hegel, que não se coibiu de afirmar que a leitura do jornal é a oração da manhã do homem moderno. Imagino, no meu caso, que talvez não seja um homem moderno, talvez nem um homem, mas apenas um simulacro de ser humano. A quem oraria esse homem moderno ao ler o jornal, a que deus? Ao Espírito do Tempo, ao Espírito do Mundo? E que tipo de oração seria essa, uma oração peticionária? Como se vê, é sempre possível encontrar mil enigmas por baixo de cada pedra que, por distracção, pontapeamos no meio da rua. Magoamos os dedos do pé, mas, em contrapartida, somos assaltados por mil questões que, se as resolvermos, nos trarão a fama entre os sábios e a glória do mundo. Por hoje chega de peroração. Interlúdio musical.
domingo, 12 de novembro de 2023
Início de noite
O Outono progride invernoso, deixa um rasto de melancolia nos céus e abre as almas, no caso de existirem, à sofreguidão da tristeza. Esta é sôfrega de lutos e pesares, ávida de dores, para poder compor um ramo de crisântemos que irá deixar nalgum lugar onde a morte seja objecto de culto, com as suas procissões de flagelantes e rituais de abominação das alegrias da vida. Retomei o gosto da hipérbole, como se tivesse uma recaída num vício por vezes serenado, mas que continua a espreitar o momento em que se pode manifestar e mostrar o império que tem sobre o paciente. Imagino que para me irmanar com o espírito do dia, deixo correr, na aparelhagem, a voz de Charles Aznavour, também ela tocada pelo vírus do desgosto, Que c'est triste Venise au temps des amours mortes / Que c'est triste Venise quand on ne s'aime plus. Não é, porém, a canção do cantor franco-arménio, de que mais gosto. Essa tem outro espírito, como se pode ver : La bohème, la bohème / Ça voulait dire on est heureux / La bohème, la bohème / Nous ne mangions qu'un jour sur deux. Não é que seja dado à boémia, mas isto é o retrato de um tempo e de uma geração que, não sendo a minha, ainda me tocou. Nunca fui sensível ao rock, mas sempre gostei de uma certa música francesa. Hoje nem se sabe que os franceses também cantam. A noite caiu, e calado Aznavour, mudo de agulha. Oiço Dietrich Fischer-Dieskau e Alfred Brendel, no ciclo Die Winterreise. Isso está a impedir-me de voltar para Sua Alteza Real, um romance de Thomas Mann, na velha edição da Portugália Editora. Um início de noite mergulhado no espírito germânico. Talvez não seja a melhor opção, mas é o que se consegue.
sábado, 11 de novembro de 2023
Mudanças no poder
Nem os santos têm já mão no mundo. Pertenço a um tempo em que S. Martinho tinha uma prerrogativa, imagino que dada pelos céus, e enviava, com a cumplicidade alegre de S. Pedro, o CEO da meteorologia, um Verão merecedor da minha aprovação e estima, eu que raramente aprovo a estiagem e não lhe dedico qualquer admiração. Com o passar dos anos e dos séculos, esse Verão, de súbito incrustado no meio do Outono, acabou por tomar o nome do santo. Verão de S. Martinho. Tempo de castanhas e água-pé, mas também há quem prefira jeropiga, embora nada nessas bebidas exerça sobre mim qualquer atracção. Este ano, porém, os poderes mágicos de S. Matinho foram escassos e o Outono destes dias parece Inverno, com chuva e aguaceiros, o que pode estragar a festa de um concelho deste Ribatejo onde vejo passar os dias que me foram dados. No Ribatejo, note-se, e não no tal concelho festivo. Imagino que na corte celestial tenha havido alguma remodelação, uma tempestade política, e os poderes influenciadores do destino do mundo tenham uma nova figura, na qual S. Martinho perdeu capacidade para defender as suas causas. Seja como for, não estou disposto a ser conivente com essa vil despromoção e não deixarei de participar num magusto em sua honra. Com castanhas, claro, mas sem água-pé e jeropiga, que serão substituídas por tintos ribatejanos, escolhidos para honrar a memória do santo caído em desgraça, ao que parece. Assim seja.
sexta-feira, 10 de novembro de 2023
Como nascem as monarquias
A criança do lado tem uns óptimos pulmões. Treina-os com frequência e grande empenho. Suspeito que se tornará um déspota na família, submeterá pai e mãe e reinará casa fora. É assim que germinam as monarquias. Alguém nasce com bons pulmões, avança aos gritos, as pessoas vão-se curvando e, a certa altura, as submissas vítimas do tiranete aclamam-no como rei. O que vale muitas vezes é que sua majestade tem de ir à escola e haverá sempre uns colegas mais republicanos que lhe porão um olho não azul, mas verde-rubro. Coisa de republicanos. Poderá acontecer que a parentela de sua majestade, habituada a obedecer-lhe, proteste por o rei não ser reconhecido e tratado como tal, mas nessa altura a questão de regime estará esclarecida. Apesar de estar proibido de falar de política neste lugar, a explicação para emergência das monarquias parece-me uma excelente contribuição para a ciência política e para a história. De resto, não tomo posição nem por monárquicos nem por republicanos, e não se pense que isto é um subterfúgio para esconder uma inclinação anarquista que haja no meu coração. O meu coração é um fiel adepto do leviatã, e não me estou a referir ao monstro bíblico. É um facto que o leviatã pode ter diversas configurações e ser mais ou menos feroz, mas sobre as minhas predilecções nada digo, pois isso seria entrar em confidências que me estão vedadas, e eu sempre dispensei fazer ou ouvir confidências. Não por algum tendência para misantropia, mas por uma questão de pudor. Admiro o meu amigo padre Lodo, pois com a idade que tem, ainda se senta no confessionário para ouvir sabe-se lá o quê, sem alguma vez, nas nossas longas conversas, ter sugerido que aquilo o perturba. O futuro rei calou-se, entretanto. Algum pajem lhe satisfez o capricho, presumo.
quinta-feira, 9 de novembro de 2023
Uma vantagem
Abro ao acaso uma revista, a última Electra, e deparo-me com uma fotografia de Martin Heidegger. Está à janela da famosa cabana de Todtnauberg, na Floresta Negra. Mais do que o eventual génio, vejo ali a aproximação dos oitenta anos. Olha para os caminhos que levam a lado nenhum, vestido com um pulôver, entre o cinzento e o azul, sobre uma camisa branca com gravata cor de vinho. No pulso esquerdo, sob a manga da camisa, desponta um relógio, mas é impossível ver as horas. Não consigo perceber se a luz que ilumina a cena é natural ou a de um flash da máquina fotográfica. Dos olhos não vem sombra de pensamento profundo e no modo como pousa a mão no parapeito de madeira não se vê vestígio do triste discurso do reitorado. Estávamos em 1968, um ano de grandes convulsões, mas atrás do filósofo só se vê escuridão. Um dia também estive junto daquela cabana. Levou-me lá não a prestação de um tributo a um mestre, pois não faz parte das minhas afinidades electivas, mas porque Schwarzwald, Floresta Negra, me tocava a imaginação. Exceptuando a cabana, onde ainda havia, e presumo que haja, reuniões para discutir a obra do antigo proprietário, não vi outros sinais do filósofo. É possível que não os tenha procurado, que me tenha desviado por aqueles caminhos que, segundo ele, levam a lado nenhum, ou, para ser mais exacto, ao não trilhado. Isto, porém, é ficção minha. Todos os caminhos que percorri tinham já sido trilhados vezes sem conta, pois a minha natureza não é a de um inovador ou a de um explorador, mas apenas a de um homem da tradição, embora sem o zelo necessário para cuidar dela. Anoitece, Heidegger continua a sorrir-me na sua fotografia de 1968, sem saber que eu tenho uma vantagem sobre ele. Sei quem ele é, mas ele nunca saberá quem eu sou.
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Rolar a pedra
Continuo preso ao breviário dos pequenos afazeres. Repetem-se e repetem-se sem parar, sem que se vislumbre a promessa de um fim, a não ser aquele de que não há retorno. Isso transporta-me para o destino de Sísifo. Rolar a pedra até ao cimo da montanha sem nunca lá chegar, para, a cada insucesso, tornar a tentar. Há uma fascinação humana pelo eterno retorno do mesmo. Construir hábitos é uma forma de solidificar em nós essa estrutura de retorno, para que pensemos que, ao fazer uma certa coisa idêntica à que fizemos ontem, pensemos que também nos mantemos idênticos. O hábito, como expressão do eterno retorno do mesmo, é um truque que me permite dizer que eu sou eu, que o nome ao qual respondo assegura que aquele que responde é sempre o mesmo. Eis, porém, um problema que aqui não tenho. O anonimato evita-me essa ilusão, o que também pode ser o indício de que estou destituído de hábitos e, muito plausivelmente, aquele que escreve estes textos nunca é o mesmo. Este vazio de denominação tem a vantagem de poder ser preenchido por qualquer nome, mesmo por aqueles que me seriam os mais repugnantes. Não me apetece, por hoje, falar de repugnância. Chove, a tarde refastelou-se na cinza-chumbo de nuvens iradas como quem descansa numa chaise-longue, e eu, na minha faceta de Sísifo, tenho de continuar a rolar a pedra até ao cume da montanha, mas, já o sei, faltar-me-ão as forças para lá chegar. Amanhã serei outro. Outro Sísifo, entenda-se.
terça-feira, 7 de novembro de 2023
Da invasão da noite
Os dias continuam a decrescer. A noite invade o dia e começa a escurecê-lo por dentro, lançando rajadas de nuvens negras, erguendo cortinas espessas para que a luz seja sustida e evite que a tarde encontre um alento para resistir ao avanço do exército das trevas. Pequenos afazeres pontuam-me as horas. Recolho-os e guardo-os num caderno, como se, de súbito, nascesse em mim uma alma de botânico que me levasse a criar um herbário. Vista da janela, a esta hora, a cidade parece-me um pântano, mas há muito que deixei de confiar nos meus olhos. Vejo uma coisa, mas a coisa é outra, como se a realidade estivesse apostada em iludir-me. Nos bolsos encontro algumas moedas e fico perplexo. Interrogo-me sobre o que estarão ali a fazer, por que razão foram lá parar. Não encontro resposta. Chegará o dia em que um ser humano perguntará para que servem aqueles objectos, cujo nome desconhece. Perdida a função, a memória desaparece, penso não sem uma certa melancolia, pois sinto que também eu estou a caminho de desaparecer das memórias dos outros, agora que a minha função corre para o fim. Somos seres funcionais e perdida a função passamos à categoria de descartáveis. Não faltaram, ao longo da história, tentativas para nos resgatar da funcionalidade, para nos investir com um halo que nos assegurasse a persistência, mas tudo em vão, tantos esforços que conduziram a nada. Somos seres para o esquecimento, coisa pior do que sermos seres para a morte. Ainda bem que é assim, oiço-me dizer. Quem suportaria trazer em si a memória de todos os seus antepassados? Ninguém. O culto da genealogia parece contradizer a minha presunção, mas só na aparência. Por longe que se vá na linha dos ascendentes, será ainda uma viagem muito curta e, não poucas vezes, equívoca. Volto para a lassidão dos meus afazeres.
segunda-feira, 6 de novembro de 2023
Publicidade
Imaginemos uma agência de viagens desejosa de atrair clientes para destinos turísticos desafiantes. Imaginemos ainda que esta semana pretende vender como destino um certo país que, por acaso, é uma ilha. Nos folhetos de promoção, pois a agência ainda opera com papel, mas também no site, o leitor encontra a seguinte descrição publicitária: Mas este país é uma ilha, a que a própria natureza impõe leis imutáveis. É a terra da verdade (um nome aliciante) rodeada de um largo e proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a ponto de derreterem, dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem jamais levar a cabo. É possível que antes de querer saber mais sobre esse país-ilha, se interrogue sobre o publicitário que escreveu o texto. Sem saber a resposta, entrega-se a um longo devaneio sobre como atravessar aquele oceano proceloso, como abrir caminho pela neblina e como evitar o gelo traiçoeiro, para não se deixar enganar por falsas terras e poder chegar são e salvo a esse país verdadeiro, onde poderá admirar a constância das leis e passar umas sossegadas férias sem temer o bulício da mudança e os alvissareiros da novidade. A sua imaginação fica presa naquelas esperanças falazes e nas aventuras que há-de querer viver, e que o publicitário, para estimular o desejo da viagem e os lucros da agência, lhe diz que nunca será capaz de levar a cabo. Pois aquilo que os homens mais amam, eis uma generalização miserável, são as coisas impossíveis, pois das possíveis depressa se cansam. Ora, é na página 257 da Crítica da Razão Pura, que Kant, o publicitário, anuncia esse país do entendimento puro, que ele terá percorrido. Aquilo que ele lá fez, omito-o aqui, mas estou certo de que qualquer viageiro inclinado para a aventura, ao ler a publicidade desse país, fica a sonhar com oceanos procelosos e aventuras de que nunca desistirá e que, pela força da sua vontade e indústria da sua inteligência, como Ulisses, há-de levar a cabo para se encontrar, nessa ilha, com a amada Penélope e matar, com o vigor do seu braço, os incautos pretendentes.
domingo, 5 de novembro de 2023
O velho château
Olho para a rua e penso que o Advento se aproxima. Falta menos de um mês. Não sei, todavia, o que na luz suspensa sobre a cidade me fez lembrar essa época do calendário religioso. Vivemos num tempo em que os calendários religiosos se tornaram assuntos privados e deixaram de regular o ritmo dos dias, dando um sentido comunitário à passagem do tempo. Talvez não seja possível ter tudo. Ganhar liberdade em relação ao peso das tradições e manter um tempo diferenciado, um tempo que se arranca à monotonia rasa e insípida da passagem inexorável dos dias. Até os ritmos da natureza parecem perder a sua capacidade diferenciadora. Por estes dias, ocupo as horas de insónia com a leitura de Au Château d’Argol, o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo de Louis Poirier. Argol é uma aldeia na Bretanha, mas, para desconsolo de eventuais cultores de Gracq, não possui qualquer château. A palavra deve traduzir-se por palácio e não por castelo, penso. Enquanto vou lendo, pergunto-me, nalgum momento de desatenção, como foi possível nunca ter lido Julien Gracq. Só há umas semanas entrei naquele universo. Mais valia ter lido Gracq na juventude do que Sartre, mas isto é uma constatação de quem já perdeu a juventude há muito. Uma presunção sobre o que deveria ter sido o passado. Uma das coisas que me agrada na escrita de Gracq poderá contribuir para que o universo dos seus leitores não seja excessivamente grande. Mais do que narrar, ele descreve. Descreve paisagens, não tivesse ele cursado Geografia, descreve construções humanas, descreve pensamento, emoções. Mesmo as acções e os diálogos, o que constituiria a trama romanesca, são apresentados em forma de descrição. Tudo se torna paisagem e um romance é a construção de um mapa. Não de uma carta que representa um território, abstraindo as paisagens, mas uma que institui todos os territórios, interiores e exteriores, numa paisagem luxuriante feita de palavras, frases, parágrafos enormes. Olho de novo para a rua e a sensação de aproximação do Advento continua viva. Penso que um dia irei a Argol e procurarei o château que nunca existiu, mas que está à minha espera, pois aquilo que nos espera só chega à existência quando o encontramos. Começou a chover e tenho a súbita necessidade de saber se em Argol também chove. Um site meteorológico diz-me que sim. Ao longe, ergue-se para os meus olhos o velho château.
sábado, 4 de novembro de 2023
Do prazer estético
domingo, 22 de outubro de 2023
segunda-feira, 16 de outubro de 2023
Poluir as almas
Passo os olhos pela imprensa, nacional e internacional, a guerra entre Israel e Hamas é apresentada como se fosse um jogo de futebol. Não é caso único. Só falta montarem um sistema de apostas. A comunicação social tem um enorme poder de degradação. Ela dirige-se à massa e explora as pulsões mais baixas que habitam os homens. Fá-lo com grande avidez, pois parece ser difícil viver de informação rigorosa, contida nos limites da decência, mostrando perspectivas rivais, não através de emoções, mas de razões. A ideia reguladora, vinda do Iluminismo, de uma esfera pública assente em informação séria caiu às mãos da exploração das paixões e das afecções para assegurar audiências. Muitas vezes apresentada como o quarto poder, a comunicação social não percebeu que o seu poder é um poder de degradação. Degradação de si mesma, das instituições, mas também das pessoas, da alma das pessoas. Uma guerra não é uma competição desportiva, as metáforas a usar terão de ser diferentes. De preferência, a linguagem deveria ser o mais objectiva possível e evitar o tropo que incendeia a imaginação. Apresentar a guerra como um jogo de futebol é banalizar a guerra. Um exemplo da banalização é o aviso que locutores de televisão fazem: chamo a atenção para a violência das imagens. Estão a falsificar a realidade. As imagens são apenas imagens, como as do cinema ou das séries, nelas a violência está rasurada, pois quem vê a imagem não está em contacto com a realidade. A exibição serve apenas para degradar o espectador, para lhe produzir uma emoção instantânea que será de imediato substituída por uma outra emoção, talvez de um jogo de futebol ou do assalto à ourivesaria da esquina. Um trabalho que nunca acaba de poluir as almas, para utilizar uma palavra caída em desuso.
domingo, 15 de outubro de 2023
O peso do ambiente
Conforme vou lendo o romance, mais ele me recorda O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Refiro-me a A Costa das Sirtes, de Julien Gracq, na tradução de Pedro Tamen. Há na obra qualquer coisa de espantoso. Não se trata da intriga que compõe uma geopolítica imaginária, coisa que podemos encontrar em Ernst Jünger, mas o poder descritivo de Gracq. Muito mais do que pelo diálogo e pelas cenas de acção, é através da descrição das geografias interiores dos protagonistas e das geografias exteriores – sejam edifícios, como o almirantado, sejam as paisagens onde se desenrola a acção romanesca – que o romance se vai desenvolvendo. O uso sistemático da descrição visa criar uma ambiência e, a certa altura, o leitor pergunta-se, tal como em O Deserto dos Tártaros, se não será essa ambiência a verdadeira protagonista da narrativa. O romance moderno, na sequência da afirmação da subjectividade e da descoberta do indivíduo, centra-se em heróis ou anti-heróis, agentes autónomos que buscam os seus fins. O que pode ter ficado de lado no deslumbramento moderno com o indivíduo é a dependência dos protagonistas do ambiente onde vivem, o qual os trabalha e os conduz para que realizem certas acções que não estavam nos seus desejos, mas às quais não puderam escapar. Foi isso que a leitura do primeiro terço do romance me fez pensar. Pode ser, não o nego, o efeito de ler durante as horas de sono. Não é inverosímil que a compreensão da obra esteja a ser afectada pela rêverie que aquelas horas de insónia sempre proporcionam.
sábado, 14 de outubro de 2023
Naturezas mortas
sexta-feira, 13 de outubro de 2023
Libertação
Os dias úteis desta semana dediquei-os a auscultar as minhas possibilidades literárias em diversos géneros. Comecei pelo apocalipse, passei para as teorias da conspiração, espreitei o gag humorístico, experimentei a reflexão filosófica. Tudo debalde. O melhor que consegui foi uma ou outra frase kitsch. Contudo, tal como estão os tempos, o género literário mais urgente é o profético. Dedicar-se à profecia é penetrar no inexistente para encontrar o que ali existe e, depois, como um Papa, anunciá-lo urbi et orbi. Não estou a dizer que os Papas são profetas, apenas que fazem proclamações à cidade e ao mundo. Sofro de uma limitação que impede a dedicação a esse género literário. Cada vez que penetro no inexistente deparo-me com o nada. Isso prova que não tenho um dom para a profecia. O inexistente não é outra coisa senão o futuro. Como vivemos sempre no presente, o futuro é coisa que está para vir, mas que ainda não veio, e não veio porque ainda não existe. Pode-se argumentar contra esta ideia. Imagine-se o seguinte. Alguém está num café à espera de outra pessoa, digamos o amador espera a coisa amada. Enquanto ele espera, ela ainda não chegou, a sua chegada será no futuro e a própria coisa amada é uma promessa que virá no futuro. Isso, porém, não significa que ela, a coisa amada, não exista. Existe. Portanto, há coisas que existem no futuro. Talvez os profetas sejam amadores de grande perspicácia e não se importem de esperar no café que chegue até eles aquilo que está no futuro. Há muito que deixei de frequentar cafés e ainda há mais tempo que deixei de esperar neles que alguma coisa me chegasse vinda do futuro. Tudo tem o seu tempo e o meu tempo de profeta, na duvidosa circunstância de o ter tido, passou. Vale-me hoje ser sexta-feira, fim dos dias úteis desta semana. Libertei-me desta auscultação das minhas possibilidades literárias.
quinta-feira, 12 de outubro de 2023
Preocupações
Preocupa-me, a sério que me preocupa, o mundo. Não o que se passa na Terra, mas no mundo como totalidade. O que me tem estragado o dia é a indecisão em que a minha mente caiu. Será que o mundo teve um começo ou é eterno? Se ele teve um começo, o mais plausível pensar é que terá um fim. Se o mundo tiver um fim, o que poderá acontecer? A resposta mais óbvia é: não vai acontecer nada, pois nada existe que possa sofrer modificação e assim se possa falar de um acontecimento. Se, porém, o mundo é eterno, então instala-se uma monotonia sem fim, pois os acontecimentos sucedem-se sem parar, e por diferentes que sejam, o próprio suceder torna-se monótono. A princípio pode-se achar graça, as pessoas sentem-se num filme de acção onde sempre se passa qualquer coisa de vibrante, mas se o filme tiver mais de duas horas, o espectador começa a mexer-se na cadeira, cansado de tanta acção e deseja que o filme tenha um rápido fim. É isso que acontece connosco, seres humanos. A história do mundo começa a cansar-nos, o trepidar sem fim dos eventos exaure-nos a paciência. É por isso que morremos. A morte deriva directamente da eternidade do mundo, é uma defesa contra a monotonia que uma existência eterna sofreria perante um mundo sem começo nem fim. Pode-se argumentar, e haverá quem o faço, que essa explicação da mortalidade humana só faz sentido caso o mundo seja eterno, mas se não for? Neste caso a explicação muda, claro. Muda porque as condições também são diferentes. Morremos por solidariedade com o mundo. Sendo ele finito, não faria sentido que nós não nos irmanássemos no seu destino, antecipando-o, para dar coragem a esse mundo que um dia irá acabar. Não consegui resolver o dilema sobre se o mundo teve um começo ou se será eterno, mas encontrei duas explicações irrefutáveis sobre a mortalidade humana. Este é o meu contributo semanal para o progresso do conhecimento no mundo.