quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Meditações linguísticas

Acabei de dar uma vista de olhos pela imprensa online e vislumbrei – pobre de mim, simples narrador sujeito à vontade do autor – o motivo que leva a que conversas sobre política estejam aqui rigorosamente proibidas. Imagino que na cabeça do autor exista uma férrea censura a uma linguagem que se degradou. Os gregos antigos pensavam que os grandes homens, e os políticos seriam grandes homens, teriam também grandes palavras. A grandeza vinha das acções e do discurso. Ora, o discurso político, nos dias que correm, reduziu-se à berraria inflamada para explorar emoções primárias ou a uma linguagem estereotipada cuja finalidade é dizer o menos possível, pois pouco se tem para dizer. O discurso político é uma linguagem em quarto minguante, à beira de chegar à lua nova. Este empobrecimento linguístico é também um modo de empobrecimento da realidade em que se age. A oclusão do horizonte da pólis é fruto de uma linguagem que se degradou. Uma das teses do autor, sobre a qual eu, narrador, tenho dúvidas, se não mesmo completa discordância, é que a degradação do discurso nasce da ideia tonta, para usar a sua classificação, de que a linguagem é, antes de mais, um veículo de comunicação. Se assim é, então quanto mais simplória for a linguagem mais facilmente estabelece comunicação. A linguagem, todavia, só acessoriamente tem uma função de comunicação. Ela é uma forma de trazer à luz aquilo que é. Na linguagem, as coisas mostram-se na sua especificidade e diferença. Aquele que fala é um mediador e um revelador da realidade na sua profunda complexidade. A linguagem mostra o incomum. Quando se reduz à comunicação fica presa ao comum, isto é, à trivialidade. O discurso político reduziu-se à trivialidade comunicacional. Tornou-se impotente para manifestar aquilo que na vida da pólis é incomum. Isto, porém, são pensamentos do autor, que o narrador não partilha. Depois desta arenga sem sentido nem necessidade, podemos escutar, a primeira estrofe de um poema de Maria da Saudade Cortesão: Oh Posêidone / deus de cabelo dissoluto e azul / a cadência das marés surge / de teus braços fluidos, oh Taureus. / Pelo sacrílego perjúrio de Minos / a tua vingança cai, como é uso dos deuses, / sobre uma vítima alheia àquela culpa.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Um pré-moderno

Afinal, não será uma patologia, mas o eco persistente de um hábito que os tempos modernos vieram destruir, talvez sem o conseguir por completo. Estou a falar por enigmas? É possível, mas são estes o sal da vida. Referia-me à vexata quæstio da insónia que, com regularidade, me atormenta. Uma entrevista, na excelente Electra (Inverno 2022/23), a Roger Ekirch, autor de At Day’s Close: Night in Time Past, descubro que a ideia de que o padrão consolidado do sono é o de oito horas contínuas não passa de uma invenção moderna, demasiado moderna. O autor descobrira que, antes da Revolução Industrial e da iluminação nocturna, o sono era bifásico, havendo uma interrupção de cerca de uma hora, entre o primeiro e o segundo sonos, na qual as pessoas se entregavam às mais diversas actividades. Quais, perguntar-se-á. Bem, actividades que não exigissem grande iluminação. Como por exemplo? Certas tarefas domésticas, ou meditar, rezar, ter relações sexuais. Constato que as possibilidades tinham certa variedade, embora algumas fossem de compatibilização se não impossível, pelo menos difícil. A não ser que se fosse um cultor do Tantra, como se poderia compatibilizar o sexo e a meditação? E o que tem isso que ver com a insónia de que padeço? Segundo a tese de Ekirch, a insónia a meio da noite é um eco persistente desse anterior padrão de sono. Talvez isto seja um sintoma de que o meu tempo não é este, mas um que já passou, aquele em que a escuridão induzia a um sono bifásico (outra tese do autor). Em resumo, fui atingido pelo ferrete da obsolescência. Não há dia que não descubra mais um indício do estado em que me encontro. Definitivamente, sou um pré-moderno.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Pensamentos ociosos

Há muito tempo que não oiço as Hochzeitskantaten, de Bach. Por acaso, ou por uma determinação cujas causas desconheço, peguei num CD em que Christine Schäffer as interpreta, acompanhada pelo Musica Antiqua Köln, dirigido por Reinhard Goebel. Uma edição da Deutsche Grammaphon. Que razão me terá levado a esse disco e não, por exemplo, à Sinfonia “Kullervo”, de Jean Sibellius, ou a Kagel by Mauricio Kagel. O que me interessa é se o acontecimento foi aleatório ou, parecendo fruto do acaso, alguma secreta inclinação me conduziu, em primeiro lugar, à obra de Bach e, só depois, às outras. Afasto três explicações. A primeira, a tese aleatória, diz que o acaso é mero acaso e não mais do que isso. A segunda diz que uma cadeia causal, vinda dos primórdios do universo e gerida pelas leis da natureza, me levou até àquela obra. Uma terceira sublinha que estava fadado pelo destino a encontrá-la neste preciso momento. O que gostaria de saber é que secreta decisão se deu em mim para que, inconsciente, me dirigisse a ela e a reconhecesse como aquilo que queria ouvir. Portanto, nada de leituras influenciadas pelo indeterminismo da mecânica quântica, nem pela física determinística, nem pela metafísica esotérica. Em que ponto de nós se dá uma decisão que parece ter sido formada antes de se ter dela consciência? Melhor seria falar do estado do tempo, do adiantamento dos trabalhos dos campos ou, então, de um poema que começa assim: De perfil. As rugas por metade. / Mais fundas junto à boca desgostosa. / Nenhuma rosa. / No cristal da idade. O que seria um poema pouco concorde com o espírito nupcial das cantatas de Bach. Nem sempre as terças-feiras são dias propícios à clareza de espírito. Volto para a realidade, essa casa de correcção que trata de pessoas com condutas viciosas e não há coisa mais viciosa do que ter pensamento ociosos.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Puro e impuro

Um dos pares de categorias mais antigo, por isso, mais estruturantes da vida social dos homens, será o de puro e impuro. Por motivos alheios aos meus interesses, mas movido por um certo acaso, deparei-me com uma pequena notícia de 2019 do Expresso. Uma jovem mulher nepalesa morrera sufocada numa cabana sem janelas, onde acendera uma fogueira para se aquecer. Estava isolada, pois, estando no período menstrual, era considerada impura, o mesmo aconteceria se tivesse acabado de dar à luz. Os tempos de impureza implicavam isolamento, o que muitas vezes acabava mal. Este par de categorias talvez esteja na origem de todas as atitudes discriminatórias que compõem a vida da espécie. Podemos pensar, na ignorância que temos dos factos, que num momento muito arcaico da cultura humana, arcaico pois a força dessas categorias parece ser universal, algum acontecimento traumático levou a consciência dos nossos antepassados a fixarem-se no problema da mácula e a construir um terrível jogo de distinções entre o puro e o impuro, o maculado e o imaculado. Estas distinções não tiveram apenas valor cognitivo, mas deram origem a múltiplos mandamentos que ordenam as acções dos seres humanos. Uma irracionalidade, dir-se-á, a que tempos mais esclarecidos acabarão por pôr fim. Disso, este narrador tem fundadas dúvidas. Esse jogo entre o puro e o impuro acontece mesmo – por vezes, com inusitada intensidade – em culturas modernas, marcadas por forte educação da razão. Mesmo um filósofo supinamente racional, Immanuel Kant, não resistiu à atracção que o par puro/impuro exerce sobre o espírito humano, ao escrever a sua mais célebre obra, a Crítica da Razão Pura. Também ele pretendeu isolar numa cabana destituída de janelas o uso da razão contaminado pela sensibilidade. Ora, se o expoente do pensamento iluminista caiu na armadilha do puro/impuro, o que haverá de suceder connosco, pobres mortais, cujo pensamento não se eleva às alturas onde habitava o senhor Kant, enquanto dava aqueles célebres passeios pela velha Konigsberg e as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem?

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Da tristeza

Domingo. A tristeza da tarde escorre das paredes batidas por um sol pálido. Na avenida, pessoas passam devagar. Duas mulheres, talvez amigas de longa data, caminham com lentidão, para que a pele receba ainda a luz solar. Um homem passeia um cão minúsculo. Outro entra no bar da esquina. São assim os domingos de província, quando já não há cinema e ninguém vai ao futebol ver jogar a equipa da terra. Poderá haver outros eventos mais animados, mas esses escondem-se dos olhos públicos, e daquilo que não se dá à publicidade, o mais sensato é não falar, não vá o desconhecimento cobrir com o véu escuro da mentira a verdade daquilo que acontece. Sobre a tristeza, Montaigne começa assim o ensaio que lhe dedica: Conto-me entre os mais isentos desta paixão, que não amo nem aprecio, pese embora os homens a terem honrado, como que por convenção, com um favor particular. Vestem com ela a sabedoria, a virtude, a consciência; néscio e monstruoso ornamento! Os Italianos baptizaram-na mais convenientemente com o nome de malícia. Há no texto do pensador francês uma dificuldade. Começa por dizer que a tristeza é uma paixão. Ora, paixões são coisas que se sofrem, nas quais somos passivos. Podemos resistir-lhes, mas não está na nossa mão evitar que nos atinjam. Depois, faz notar que os homens vestem com a tristeza a sabedoria, a virtude, a consciência. Se o fazem, então essa tristeza resultada de uma decisão. Se assim é, então a tristeza não será uma paixão. Se, no entanto, for realmente uma paixão, aquilo com que os homens revestem a sabedoria, a virtude, a consciência não será a tristeza, mas um simulacro. Simulam-se tristes para adquirirem uma gravidade que temem não possuir. Um domingo de província não é uma simulação da tristeza, mas a tristeza em acto. Os dias são mais autênticos do que os homens, coincidem consigo mesmos, enquanto nós nunca coincidimos connosco. Entre nós e nós existe sempre uma fenda. Talvez a vida seja essa tentativa vã de preencher o hiato. Ou talvez seja outra coisa qualquer de que não sei o nome, nem conheço o sentido, nem descortino a que se refere. Isto, porém, não é motivo de tristeza, mas de júbilo.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Do sofrimento das palavras

Esteve, está ainda, um magnífico dia de Primavera, apesar do Inverno oficial estar mais ou menos no meio. Está a faltar à estação fria resiliência, para utilizar uma palavra que, caso tivesse poder para tal, aboliria. Em si mesmo, o vocábulo é inócuo, mas ao cair nas bocas do mundo, tornou-se jargão de homilias insuportáveis. Pergunto-me, não poucas vezes, sobre o mal que terão feito certas palavras para terem assim um destino tão atroz. Depois, é verdade, passada a fase pandémica, voltam à normalidade, entrando a mais das vezes no esquecimento. Uma outra é paradigma. Não há cão nem gato que não se veja perante uma mudança de paradigma. Como é que uma noção polémica vinda da história da ciência, da interpretação das transformações nos campos científicos, se propagou nas vãs bocas deste mundo? Sabe-se lá. O mais interessante é que o autor da ideia de aplicar paradigma à mudança científica, sete anos depois altera o nome de paradigma para matriz disciplinar, mais conforme com os seus intentos e reservou o termo, agora mágico, para outra coisa bem mais modesta e que não vem ao caso. O mal estava feito. Agora, andamos sempre, cheios de resiliência, a mudar de paradigma, prova de que os paradigmas estão cada vez menos resilientes. Tenho de me preparar para observar como chega a noite, para compreender aqueles versos de Homero referindo-se ao deus Febo Apolo:  Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta; / aos ombros do deus irado as setas chocalhavam / à medida que avançava. E chegou como chega a noite. É uma extraordinária analogia. Os deuses chegam como chega a noite. Homero, porém, estaria a explorar uma ciência comum que existiria nos homens, a de saber como chega a noite, ou, pelo contrário, pretendia explorar a mais banal das ignorâncias, aquela que nasce de o hábito da noite chegar, mas nunca deixar de ser um mistério o como ela chega? Em que paradigma o semiverso de Homero deve ser colocado? É melhor acabar, não me ponha por aí, resiliente, a semear uma seara de interrogações.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Toponímia

Desconfio que não tardará e estaremos, mais uma vez, em seca severa. Depois de um Janeiro que, após um começo lacrimoso, se desfez das águas e abraçou a causa do fogo, estamos no terceiro dia de Fevereiro e a tendência mantém-se até, pelo menos, meados da semana que vem. Já floriu a primeira orquídea cá por casa. Outras prometem para breve o abrir-se em flor. Esta expressão, abrir-se em flor, deveria ser evitada. Não me ocorreu outra melhor. O pequeno bosque da escola aqui ao lado é uma mistura de luz e sombra. Na Sá Carneiro, os transeuntes transitam com vagar, gente sem idade que procura as esplanadas onde possa ainda deixar o corpo sorver um pouco de sol. O nome da avenida não se refere ao poeta, mas ao antigo primeiro-ministro. Não é o resultado de um reconhecimento artístico, mas da paixão política. Julgo que a nenhuma rua ou avenida daqui foi atribuído o nome de um grande escritor. Nem Eça, nem Pessoa, nem mesmo Camões. Há uma excepção, a grande referência nacional do século XIX, Alexandre Herculano. Consta que o autor de Eurico, o Presbítero teve tanta glória em vida, quanto Camões ou Pessoa depois de mortos. Essa glória chegou aqui e tomou o nome de uma rua. De resto, as artes e as letras não comovem a comissão toponímica local, uma congregação que imagino secreta, reunindo em conclaves nos quais, com gravidade, se delibera a alteração de nomes existentes ou, se aparece alguma rua nova, o baptismo da recém-nascida. Daqui a pouco, chegam as minhas netas para passar o fim-de-semana. Os novos óculos continuam a oferecer-me uma visão mais nítida da realidade, o que pode não ser um bem.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Próteses

Surpreendentemente, as letras não apenas cresceram como se tornaram mais nítidas. No Word, caderno onde estes textos são escritos, o negro apresenta-se acintosamente retinto. Não imaginava que o preto fosse tão preto. Para esta metamorfose, bastou a troca de óculos. Pena não haver uns óculos para a inteligência. Por certo, tornar-me-ia num cartesiano. Tudo seria mais claro e mais distinto. Uma prótese para o intelecto ser-me-ia ainda mais útil do que para os olhos. Sendo assim, contento-me com o que me saiu na lotaria genética. Saliente-se, todavia, que ver as coisas difusas tem enormes vantagens, pois é provável que quando as coisas se apresentam de modo claro e distinto não consigam disfarçar aquilo que nelas há de repelente. Imagino que um poeta como Herberto Helder tivesse essa compreensão do mundo quando escreveu Os jardins contorcem-se entre o estio e as trevas. Eu veria apenas um jardim agradável, ele vê-o a contorcer-se, em espasmos, talvez mesmo a babar-se. O oculista onde mandei fazer os dispositivos que me aumentam a visão terá a minha idade. Pertence a um género de comerciante em vias de extinção. Lida com cada cliente como se este fosse a pessoa mais importante do mundo, embora não passe nunca a linha da contenção, aquela fronteira que impede a queda no ridículo. Faz-me lembrar uma história contada, salvo erro, pelo historiador britânico, descendente de rabinos lituanos, embora os pais fossem judeus seculares, Tony Judt. O avô tinha um grande armazém e dedicava um dia por semana para estar à porta onde cumprimentava qualquer cliente, rico ou pobre, com a máxima deferência. Para dizer a verdade, não estou certo de que a história seja de Judt e já não sei onde a procurar. Talvez seja do sociólogo norte-americano Richard Sennett, ou de um outro autor que agora não me ocorre. Pena não haver óculos para a memória. Seja como for, juro que a história não é apócrifa.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sub specie aeternitatis

Janeiro, como água, escapuliu-se entre os dedos. O novo mês entrou levemente buliçoso, uma mistura de frio cortante e sol fúlgido. Ontem alguém que conheço muito bem sugeriu-me a candidatura a uma certa actividade, numa certa publicação cujo nome não vem ao caso. Estariam interessados, por certo. Respondi que não. A publicação, apesar de estar na moda, não era do meu agrado, o meu interesse em dar-me a conhecer nulo, o assunto não me comovia, apesar de poder escrever sobre ele muitas páginas e de o conhecer com alguma profundidade. E, acrescentei, que já era tarde para fazer uma coisa dessas, mesmo num lugar que me agradasse. É preciso ter consciência de que todos temos um tempo de validade e o meu passou, acrescentei como argumento final. Os gregos distinguiram duas modalidades de tempo, chronos e kayrós. O primeiro é o tempo banal, aquele que medimos através de relógios e calendários. O outro é o tempo oportuno, a hora propícia para tomar uma decisão ou realizar uma acção. Não sei bem a razão, mas sempre tive dificuldades com ambas as modalidades do tempo. Imaginemos um certo romance que sai. Não olho para ele do ponto de vista da novidade, o que implicaria uma atenção ao chronos e à sua oportunidade de leitura, o kairós, mas sub specie aeternitatis, isto é, tanto faz lê-lo agora como daqui a dez anos. O que acontece com esse imaginário romance, acontece com muitas outras coisas, mesmo as mais pessoais. Olho-as do ponto de vista da eternidade. Isto tem as consequências mais funestas. Por um lado, na dimensão cronológica, tenho uma enorme propensão para o serôdio, num mundo que valoriza o temporão sob a designação de precoce, e, na dimensão kairológica, inclino-me sempre para perder a hora. Se alguém, tomado por alguma insensatez, me pedisse um conselho sobre como agir no mundo, coisa que certamente não ocorrerá, dir-lhe-ia apenas que nunca sobre si deixe que caiam os raios da eternidade. Destroem os relógios, confundem os calendários e escondem o momento certo.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

O colapso das coisas

O admirável mundo das coisas. Hoje estive numa daquelas videoconferências que, com a pandemia, se tornaram marca de modernidade. Intrigou-me ver na janela que me dizia respeito aparecer uma imagem tão difusa que mais parecia a de um vidro martelado que em tempo haveria nas casas de banho. A certa altura, perguntei se me viam a mim ou a outra coisa. Outra coisa, uma espécie de vidro da casa de banho. Confirmei a minha suspeita. Tinha decaído ao nível da vidraça martelada. Tendo sido proferido o ite, missa est, desliguei e fui fazer experiências. Nunca consegui que a imagem, no caso a minha, superasse o nível de vidro fosco de uma casa de banho. Imagino que a câmara colapsou. Aliás, neste computador existem várias coisas a entrar em colapso. Recusa-se a funcionar, enquanto lhe ordeno que funcione, corrompe ficheiros, de preferência Excel, quando eu muito gostaria que os preservasse. Também o microondas se recusou a aquecer o que tinha de aquecer, mas o problema não estava nele, descobri ao fim de alguns dias, mas na tomada onde estava ligada, de onde não tomava energia suficiente para que as microondas microondeassem. Em resumo, as coisas andam em maré de colapso. Quase poderia afirmar, sem exagero, estar perante um apocalipse do mundo material. Para minimizar o efeito da acção dos maus espíritos, oiço Chet Baker, não no trompete, mas a cantar. My Funny Valentine, neste momento. Tenho de fazer ainda um conjunto de coisas esta tarde, pois a realidade nunca pára de se realizar e, ainda por cima, tenho um jantar de aniversário. O sol desta terça-feira está um pouco mais anémico do que o de ontem, todo ele músculo e exuberância.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Desencarnações e encarnações

É numa longuíssima entrevista (272 páginas na edição francesa) publicada em livro, dada a Bénédite Délorme-Montini, que Pierre Manent, um pensador político francês influenciado por Léo Strauss, se afasta deste seu mestre, não tanto na questão política, mas na figura do filósofo. O que marca a figura do filósofo? A indiferença perante as coisas humanas. O olhar imparcial com que ele se deve voltar para o mundo em que vive, implica essa indiferença. É Allan Bloom, se não estou em erro, que abre a compreensão de Pierre Manent para essa figura que, de certo modo, o próprio Strauss encarnava, dizendo-lhe que Sócrates não amava a mulher, não amava os filhos. O eros socrático estaria todo ele concentrado na busca da verdade. A filosofia, desde o seu início, tem um ideal de desencarnação. Platão, o discípulo a quem Sócrates impôs que rasgasse ou queimasse as tragédias que teria escrito, definiu o empreendimento filosófico como um aprender a morrer e a estar morto. É possível pensar que na filosofia exista uma revolta contra a condição humana. Essa revolta mascara-se no desejo de saber que exige a indiferença por aquilo que é humano, demasiado humano, como amar uma mulher ou os filhos. Há também uma outra coisa, uma hübrys, uma desmedida, um desejo insensato de divinização. Tornar-se um deus, pelo desprezo daquilo que é humano. Ora, a coisa mais espantosa é o modo como este impulso grego acabou por se consociar, a certa altura, com outro impulso em que o divino, por interesse excessivo pelo humano, toma carne, na figura de Cristo, para morrer pela salvação dos homens. De um lado, um excesso de indiferença. Do outro, uma atenção excessiva, escandalosa. Talvez tenham podido caminhar juntos, durante alguns séculos, porque se contrabalançavam, porque o impulso da vida em direcção à morte, projecto de toda a filosofia digna desse nome, era equilibrado pelo impulso que da condição mortal pretende extrair ainda uma vida. Nem sempre, ou quase nunca, as segundas-feiras proporcionam as condições para manter um módico de sanidade mental. A noite já caiu. Tenho ainda tarefas à minha espera, pois, a realidade nunca deixa de bater à porta.

domingo, 29 de janeiro de 2023

Meditações

Um domingo de reclusão. Como um monge na cela medita sobre os mistérios da salvação, também eu meditei no escritório, embora os motivos de meditação fossem mais terrenos e inúteis. Durante toda a minha vida, o inútil foi aquilo que mais me atraiu. Não há como um dia inútil para que se medite sobre coisas inúteis. Poderia ser de outra maneira? Claro que podia. O que me impediria de meditar, por exemplo, na terrível Cláusula Filioque? Terrível, pois é uma das razões do grande cisma do oriente. Será que o Espírito Santo tem a sua origem apenas no Pai, como pretendem os ortodoxos, ou no Pai e no Filho, como advogam os católicos? Nada mo impediria e o motivo de tal meditação nunca seria esgotado, pois como poderia um mero mortal conceber um teste que provasse a verdade de uma das teses e a falsidade da outra? O que parece provar essa impossibilidade é que o cisma ocorreu há quase mil anos e, ao que consta, não se avançou um passo na resolução do enigma. Seria, todavia, mais útil meditar sobre a teoria das cordas, sobre essa possibilidade de unificar matematicamente a teoria da relatividade e a mecânica quântica? Tenho as minhas dúvidas. Seja como for, sei tanto de teologia como de física, o que significa que não poderiam, nem uma nem outra, ser motivos de meditação de um recluso de domingo na cela do seu escritório. Também é possível que tudo isto seja mentira e que tenha saído de casa e caminhado pela cidade, acumulando pontos cardio que, segundo a Organização Mundial da Saúde, contribuem para prolongar a vida e o bem-estar. Poderei ainda ter ido em excursão a uma certa aldeia do concelho, onde os agricultores vendem laranjas à beira da estrada, e comprado um saco delas. Um desses proprietários de laranjais, por acaso uma senhora já de alguma idade, também vende toranjas. Isso faz-me lembrar os tempos em que começava o dia com um copo de sumo de toranja. Depois, motivado pela necessidade de tomar um certo medicamento incompatível com esse citrino, abandonei o pequeno prazer diário. Agora, oiço o Quinteto para Piano n.º 1, da compositora polaca Grażyna Bacewicz. Muito gostava de saber pronunciar tal nome.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Publicidades

Falham-me aventuras para vir contar aqui, proezas que, se somadas, haveriam de constituir uma gesta mais elevada que a dos romances de cavalaria. Limitei-me a ir às compras, a deambular de prateleira em prateleira. Notei  que os vinhos se transtornaram com a ideia de que existe inflação. Não apenas acompanham a senhora no seu processo de inflar, como a ultrapassaram largamente, com preços a aumentar entre vinte e cinco e cinquenta porcento. Há casos ainda mais exuberantes, tal a presunção. Talvez fosse por coisas destas que D. Quixote confundia moinhos com gigantes. Diante de mim tenho o romance Aldeia das Águias, de Guedes de Amorim. Faz parte daqueles livros que vou comprando em alfarrabistas online. Por norma, são de escritores portugueses que ninguém lê, que poucas pessoas sabem que existiram e que entraram mansamente no território do esquecimento. Guedes de Amorim, de que apenas li Morfina, faz parte desse imenso grupo de esquecidos do público e abandonados pelos leitores. Ele teve-os, por certo. É uma personagem curiosa, pois começa no cristianismo, no qual terá sido educado, passa pelo agnosticismo e, como filho pródigo, volta à casa paterna, tendo-se tornado franciscano e vivido em conformidade com o ideal de S. Francisco, sobre o qual escreveu uma obra. O que me interessa, todavia, é aquilo que encontrei dentro do livro de 1939, publicado pela Editorial Minerva. E o que encontrei foi um postal dirigido a um certo Exmº. Snr. Dr., imagino que seja o proprietário original do livro, que vivia na rua do Conde Redondo, em Lisboa. Omito o número e o andar. Era um postal publicitário dos Laboratórios Jaba, os quais terão sido vendidos já neste milénio a um grupo italiano. Num dos lados, publicita-se a Nutricina. Quem estivesse com dificuldade de ganhar corpo e aumentar de peso, já sabia, tinha ali um precioso auxiliar composto com suco de carne, oxihemoglobina e glicerofosfatos. Se o problema, porém, não fosse a falta de peso, mas perturbações do sistema nervoso, bastava olhar para o verso do postal e encontrava a solução à base de passiflora incarnata, salix alba e crataegus oxyacantha, que é como quem diz flor-da-paixão, salgueiro branco e pilriteiro, tudo com o extraordinário nome comercial de Calmoflorina. A publicidade a este produto era acompanhada com uma colecção de opiniões de médicos, apenas identificados pelas iniciais, que se concentravam em Lisboa, havendo apenas um que viveria desterrado em Algés. Das cinco opiniões clínicas, uma delas tinha um sabor patriótico, Tenho receitado freqüentes (naqueles dias usava-se o trema) vezes a CALMOFLORINA. É um produto que substitui com agrado o seu congénere estrangeiro. Portanto, era uma questão de prazer, de tornar a coisa agradável. A mais extraordinária, porém, é a última: Experimentei a CALMOFLORINA em minha mulher e fiquei absolutamente satisfeito com os resultados obtidos. Pena que não se tivesse dignado informar quais os resultados que tanto o satisfizeram, mas não se pode saber de tudo o que se passa na vida das pessoas. Uma pesquisa na internet conduziu-me à Ephemera, de Pacheco Pereira, onde encontrei uma colecção notável de mata-borrões publicitários a estes e a outros produtos do mesmo laboratório. O espírito de uma época resumidos em meia-dúzia de imagens publicitárias.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O novo

Frio e sol. De manhã, estava um frio cortante, ainda por cima animado pelo vento norte. O sol, porém, dava – ainda dá – um sinal de que o Inverno não será eterno. A luz fazia cintilar as folhas das árvores, daquelas que não foram despidas pela viagem das estações. O pequeno bosque da escola aqui ao lado é composto apenas por árvores de folhas persistentes. Olho-o e sinto que poderia ser o sinal de uma grande floresta, talvez de alguma que, em tempos muito recuados, por aqui tenha existido. Tanto quanto me lembro, estes terrenos eram campos com oliveiras e figueiras, numa consociação que terá sido o cuidado de muitas gerações. A pequena vila foi durante muito tempo limitada por muralhas imaginárias, pois as reais, construídas ou reconstruídas no tempo de D. Fernando, caíram no terramoto de 1755 e, no início do século XIX, certamente por falta de dinheiros para as reerguer, os escombros foram removidos. Elas, porém, continuaram a existir na imaginação dos habitantes durante mais de um século. Quebrado o sortilégio, a vila transformada em cidade, como se tornou moda a certa altura, cresceu para os terrenos agrícolas, com novas urbanizações que acabaram por liquidar, em termos de ambiência, o velho centro histórico. É no famoso livro de Paul Hazard, A Crise da Consciência Europeia: 1680-1715, que encontrei uma citação de Paul Valéry, que retrata o tipo de consciência que permitiu ultrapassar os limites imaginários das velhas muralhas: O novo, que é, contudo, o transitório por essência, é para nós uma qualidade tão eminente, que a sua ausência nos corrompe todas as outras, e a sua presença as substitui. À custa da nulidade, do desprezo, do tédio, constrangemo-nos a ser sempre mais avançados nas artes, nos usos, nas políticas e nas ideias, e preparámo-nos para só apreciar o espanto e o efeito instantâneo do choque. Foi essa busca do novo que rasgou as paredes caídas e permitiu que o simulacro do mundo urbano invadisse a propriedade rural, como se esta fosse uma afronta ao orgulho dos novos citadinos. Como compensação, talvez como salvação, todos nós continuamos os mesmos provincianos de sempre, presos a uma vida lenta, sem acreditar nas vanguardas que trazem as novidades, seja nas artes, nos usos, nas políticas ou nas ideias. Haja sol para nos passearmos nas manhãs frias de Inverno e isso bastará.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Máscaras

Quando nada se tem para dizer, o melhor não é calar-se, mas fazer uma citação. Por exemplo, esta: Os homens pressentem confusamente a ameaça, mas são cegos e surdos, ou melhor, foram cegados e ensurdecidos. Pressupõe o autor que houve um tempo em que os homens viam e ouviam e que depois, por acção de um agente por identificar, nem os oftalmologistas nem os otorrinolaringologistas lhes valeram. Somos agora todos cegos e surdos. É possível que sim, mas a verdade é que não somos mudos. Posso imaginar que a cegueira e a surdez tenham soltado a língua à espécie, tal o grau de ruído que há por esse mundo fora. A minha experiência, porém, não confirma a citação. Ainda na segunda-feira fui a uma oftalmologista e ela não me diagnosticou qualquer cegueira. Com esta frequência de consultórios médicos, devo já ter material para me dedicar a elaborar uma taxinomia dos descendentes de Hipócrates. Ou será de Esculápio? Arrastado até lá por uma pessoa muito próxima que se fizera operar pela senhora, predispus-me a ser consultado. Deparei-me com uma mulher muito elegante, para quem o tempo fora benévolo, pois não será muito mais nova do que este narrador, sofisticada e com umas mãos belíssimas, talvez as mais belas que vi em toda a minha vida. O rosto estava oculto pela máscara, mas a parte visível indiciava que não desmereceria da visão global. Fiquei, porém, levemente desconcertado ao sentir-me que estava perante uma técnica, que todos os seus gestos e palavras eram técnicos, como se a técnica fosse uma segunda máscara, bem mais eficaz do que aquela que lhe cobria o rosto, um disfarce que ela necessitava de usar. Este desconcerto nascido do confronto entre elegância e técnica foi ontem acentuado ao ver o filme de Ulrich Seidl, Na Cave. É uma obra feita em modo de documentário, onde se mostra as fantasias das pessoas que ganham vida e substância nesses subterrâneos romanescos que são as caves dos prédios modernos das grandes cidades. No filme, não vemos como são as pessoas à luz do dia, mas o que são quando os olhos dos outros se tornam cegos. Não consegui deixar de me perguntar o que haverá na cave de quem usa a técnica como máscara quando a luz do dia incide sobre si e existem olhos que não são cegos e ouvidos que não surdos por perto. Talvez sinta nos outros uma ameaça.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Obsolescência

Peças de arqueologia. Em busca de uma informação, abri um livro. Descobri que em Dezembro de 1989 ainda assinava e datava os livros que comprava. Um desprezível gesto de posse. Uma outra descoberta foi o custo da obra, 2300$00, preço colocado pelo livreiro a lápis. Lá dentro, encontrei um cartão natalício, referente ao Natal desse ano, da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Como chegou até mim, não faço ideia. Nunca tive qualquer contacto com tal instituição. O cartão reproduz um presépio de altar de um artesão de Estremoz. A peça mais interessante que encontrei foi, porém, um postal RSF das Publicações e Livrarias Europa-América. Servia para encomendar, através dos CTT, livros à editora, sem que se tivesse de pagar portes pelo envio da nota de encomenda. Esta estratégia comercial existia um pouco por todo o lado. Desconfio que os editores da altura não imaginavam que em breve se tornaria obsoleta. Talvez seja isso que acontece sempre. É mais do que provável que esteja obsoleto, mas penso que não. Julgo que ainda posso fazer uma ou outra coisa com interesse, mas isso é, na verdade, pura presunção. Há um momento em que se deixa de entender o mundo e este deixa de nos compreender. Isso deve-se a uma transformação do Zeitgeist – uso o termo alemão para parecer erudito – que é impiedoso para com a sua ascendência. Enquanto Cronos – ou Saturno, para quem tenha uma alma mais romana – devorava os próprios filhos, o Zeitgeist devora os seus pais. Esta é uma diferença central entre os tempos modernos e a antiguidade. Nesta, o futuro é uma ameaça. Nos dias de hoje, o passado apavora tanto que tem de desaparecer sem deixar rasto. Tornar-se obsoleto é uma das formas de ser tragado pelo deus da modernidade, o tal Zeitgeist. O resultado é que não encontrei a informação que procurava, mas a caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Desconfio sempre que não terão nada de interessante para me contar. Talvez os próprios emails já estejam obsoletos e ainda não saibam.

domingo, 22 de janeiro de 2023

O humor

Uma longa conversa ao telemóvel, mais de uma hora, com o padre Lodovico Settembrini. Uma parte da conversa é irreproduzível, pois, para meu espanto, o padre Lodo estava particularmente interessado na situação política. Durante todos estes anos, sempre o vira acercar-se desse tipo de questões com a prudência, mesclada de ironia, que é a virtude dos jesuítas. Essa prudência manifestava-se na parcimónia dos comentários sobre a situação de cada momento. Por vezes, dizia que tudo aquilo fazia parte da espuma da vida e que acabaria por ficar nos eixos. E não será preciso que venha alguém para o pôr na ordem, acrescentava, lembrando-se, por certo, de Hamlet. A inércia das coisas acabará por resolver o assunto. Hoje, porém, essa crença na inércia das coisas – uma forma eufemística usada por ele para designar a acção da Providência – parecia senão abalada, pelo menos toldada. Disse-lhe que já não tinha idade para uma crise de fé. Respondeu-me que, para vergonha e perdição dele, sempre desconfiara dos homens. Portanto, não era uma crise religiosa. Depois, mudou de assunto e informou-me que andava a reler os escritos do padre Manuel Antunes. Daí derivou para o modo como nos conhecemos. Estava eu numa aula dessa grande figura da cultura portuguesa do século passado, um jesuíta que dirigiu a revista Brotéria, e saí para vir para o corredor fumar um cigarro. Nesses dias gloriosos, fumava-se dentro das aulas, mas o padre Manuel Antunes estava já muito débil e os fumadores, como forma de reverência, tinham esse pequeno ritual. Saíam da sala de aula, um anfiteatro cheio, para se submeterem ao gesto vicioso. Quando saí fui abordado por alguém com um português estranho, que me perguntou se faltava muito para a aula acabar. Tinha um encontro com o professor Antunes, assim me disse. E ficámos ali a conversar, enquanto eu sorvia o fumo e acrescentava um cigarro ao anterior. Na altura, não imaginei que aquela pessoa fosse, também ela, um jesuíta, pois nada na indumentária, na voz e nos gestos me indicava estar perante um padre. Só, mais tarde, o descobri. Foi nessa altura que nos tornámos amigo. Ao discernir a sua condição de membro da Companhia, disse-lhe: com que então um discípulo de Leo Naphta. Ele olhou-me perplexo, quase furioso. Depois, os músculos da face descontraíram-se e deu uma grande gargalhada e disse com um italiano aportuguesado: é verdade, o humor é uma das coisas mais preciosas que nos foi dada. Faz parte da nossa imagem e semelhança com Ele. Eu respondi que de imagens e semelhanças nada sabia, mas que estava de acordo com a preciosidade do humor.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Inclinações

Por vezes tenho inclinações homicidas. Por exemplo, liquidar este blogue. Este é um blogue tardio. Começou muito depois da febre da blogosfera estar debelada. As pessoas transitaram para as redes sociais, onde tudo é mais rápido. Como estou cada vez mais lento e, acima de tudo, como acho a lentidão inerente a uma vida bem vivida, abri esta casa, onde narro a coisa nenhuma que me vai acontecendo, acrescentando e subtraindo pontos aos contos. Também posso registar aquilo que espero fazer no futuro. Por exemplo, daqui a pouco irei ver a minha mãe, que não me reconhecerá e perguntará quem sou. Isto no caso de se dispor a interagir comigo. Depois, mais ao fim da tarde, irei à aldeia onde a minha mãe me deu à luz, sítio onde raramente vou, ao lançamento de um livro de um amigo. Um trabalho de história sobre o culto local do Espírito Santo. Para o jantar, terei a presença do meu neto. Está um espevitadão na conversa, embora não no crescimento. Irá ao quarto dos brinquedos e arrastará uma série deles atrás de si. É possível que brinquemos com as miniaturas de automóveis que por lá estão. Desviei-me na conversa. Oiço o Quator pour la fin du temps, de Olivier Messiaen. A expressão que dá título ao quarteto é equívoca. Pode pressupor uma visão apocalíptica em que este mundo acaba, a intenção de Messiaen, presumo. Pode também dizer apenas que é o tempo que acaba, mas não o mundo. Não consigo, porém, imaginar o que será um mundo sem tempo, mas será mais fácil pensar que tudo colapsa e se afunda no puro nada. Continuo a desviar-me, enquanto as linhas crescem, como metástases, numa fuga ao assunto original, a do homicídio deste blogue. É uma inclinação, mas nem sempre devemos ceder ao que nos inclina. O Quator de Messiaen prossegue, aproxima-se do quinto andamento Louange à la Éternité de Jésus. A peça foi escrita durante o cativeiro na Alemanha, aquando da segunda guerra mundial. Messiaen compôs o Quator, Paul Ricoeur traduziu Husserl para francês, em circunstâncias idênticas. A afrontosa derrota francesa teve o condão de poupar alguns dos seus artistas e intelectuais. Curiosamente, isso não salvou a França de se tornar, nos dias que correm, uma potência cultural irrelevante. A morte da cultura francesa não será resultado de um homicídio, mas talvez de um suicídio. Ou, então, morreu de velhice, isto é, de causas naturais.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Na fronteira

Este dia de Inverno tem uma aparência outonal. Talvez seja da luz, talvez seja da música de Satie que oiço. Talvez seja da imaginária perfeição que atribuo ao Outono. A lentidão das Gnossiennes quase me faz mergulhar num daqueles devaneios onde se dilui a fronteira entre o sono e a vigília. Deambular numa fronteira não é o pior dos males, embora essa linha imaginária possa ser uma terra de ninguém. No caso, nem a pátria onde se sonha, nem a nação onde se vive de olhos bem abertos. As notas deslizam como se fossem pequenas bolas de cristal a descer do céu, num planeta onde a gravidade quase não existe. Começo a preocupar-me com os erros que dou. Quando quis escrever ‘descer do céu’, escrevi ‘descer do seu’. Estas confusões fonéticas estão a tornar-se cada vez mais frequentes. Os dedos encaminham-se para elas sem qualquer pudor. Uma chamada profissional devolveu-me à realidade. Esta não é feita de devaneios, mas de acções que inscrevem na tela do tempo – devia evitar as aliterações na prosa – os alicerces que prendem a vida ao solo deste pobre planeta. Pascal Rogé continua ao piano a dedilhar a música de Satie. Agora, uma pequena peça com o nome Sports et Divertissements: Le Tango. Há nela uma ironia que me faz sorrir e abre a porta para uma nova fuga à realidade. A caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Imagino que as baterias antiaéreas não estão a funcionar.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Profecia e tédio

Na passada segunda-feira, encomendei online um livro numa livraria francesa. Os portes foram idênticos aos cobrados pelas portuguesas e, o melhor da história, o livro estava na caixa de correio quando hoje saí de casa. Entre a encomenda e a recepção mediaram menos de 72 horas, e não foi um envio expresso. Isto significa que a distância entre Paris e esta pequena cidade perdida no Ocidente da Península encolheu drasticamente. O livro, cujo título e autor omito, começa de um modo assaz pomposo: Le destin de la civilisation d’Occident, le destin de l’homme tout court, sont aujourd’hui menacés. Este hoje referia-se ao ano de 1927. Passado quase um século alguém poderia escrever a mesma coisa. Imagino, porém, que a natureza do Ocidente e a do homem seja a de verem constantemente o seu destino ameaçado. Talvez chegue o dia que a profecia se realize ou, melhor, se auto-realize. Oiço farrapos da lição online de Matemática a que a minha neta mais velha, pobre dela, está a ser submetida. Fui-lhe dizer adeus. Mostrou-me o novo cartão de cidadão. Um metro e setenta e cinco centímetros. Não está mal para os 14 anos. Tomado pela preguiça, dei uma vista de olhos pelos jornais. A preguiça transformou-se em tédio. Tal é a repetição da venalidade humana, que esta não gera mais do que um encolher de ombros. A palavra venalidade deriva de venal, que em latim (venāle) significa, como em português, o que se vende ou pode vender. Kant acreditava que os homens, devido à dignidade resultante de serem fins em si mesmos e não meros instrumentos, não tinham preço. Este dizia respeito às coisas. Talvez o filósofo que nunca saiu de Konigsberg estivesse equivocado ou, então, fosse generoso com a espécie a que pertencia. O dia correu sem sobressaltos, a não ser a avaria do termostato que regula o aquecimento. Amanhã, prometeram-me, será arranjado. O amanhã é o mais competente consertador ao cimo da terra, mesmo que, na maior parte dos casos, não passe de um remendão.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Viagem no Inverno

Uma viagem no Inverno. Por vezes, chuva. Outras, um sol brilhante. A uma dada altura, o arco da aliança unia o céu e a terra. Sempre, um frio cortante, mas que tinha um poder revigorador, como se fosse uma memória que me ligasse ao que há de mais essencial na existência, como se esta fosse marcada pelo que há de mais rude e silvestre. Talvez os genes transportem memórias de outras existências, não nossas, mas dos que vieram antes de nós e a que damos o nome de antepassados. Talvez algum dos meus antepassados longínquos tenha vindo das terras frias e tenha deixado em herança aos que vieram depois a nostalgia do mundo em que terá vivido. Mesmo que isso seja falso, não deixa de ser uma conjectura interessante. Sempre se pode imaginar a altura que terá chegado à Península ou que por cá tenha passado e lançado a semente dos seus genes na terra rica que por aqui havia. O passado de cada um de nós é tão susceptível à imaginação quanto o futuro. Imagine-se que na cadeia dos ascendentes se encontra um longínquo avô ou avó que nasceu de um estupro. Em nós repousariam ainda, por diluídos que fossem pelos sucessivos cruzamentos, os genes de um violador e de uma violada. Se se pensa nisso, depressa se tem impressão de que não haverá ser humano que não descenda de um acto desses, tão grande é a cadeia de gerações e tão rudes os costumes. O que teria o corolário de que somos todos descendentes de um não consentimento. O processo de chegar a filhos fruto de um mútuo consentimento deve ter sido muito árduo e encontrado enormes obstáculos. Ainda hoje haverá fortes resistências a esse refinamento das relações humanas, no qual só é possível aquilo que resulta do acordo das partes. Nada disto tem que ver com a viagem no Inverno, mas a vida é mesmo assim, começa-se a falar de uma coisa e não se sabe a onde se vai parar. E só se pára porque a nossa natureza não nos permite continuar. Um homem imortal arrastaria atrás dele uma conversa infinita. Talvez por isso, os deuses conspiraram para que ele se tornasse finito e mortal. Não tinham paciência para tanta conversa.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Liberdade

Num ensaio sobre um romance de Mauriac, Sartre defende que o essencial de uma obra romanesca está na liberdade. Não se refere, claro, nem à liberdade do autor, nem a um panfleto em defesa das liberdades políticas e sociais. Trata-se antes da liberdade das personagens. Que o seu devir na acção romanesca não esteja determinado por condições como a hereditariedade, a psicologia do indivíduo ou a sociedade. Seja, pelo contrário, a manifestação da capacidade humana de iniciar alguma coisa no mundo que a cadeia de nexos causais não seria capaz de prever. Isto assemelhará os seres humanos a Deus. Não porque sejam criadores do universo, mas porque são criadores da sua existência. Imagino que o problema sartriano não será literário, mas filosófico. Uma polémica com os deterministas, que negam que os homens façam escolhas genuínas, estando todas as suas acções determinadas por causas que eles não controlam e que, na verdade, desconhecem. Resta saber se a ideia de se ser senhor das suas próprias acções não será uma manifestação de um orgulho desmedido, uma pretensão que a realidade, se observada com cuidado, desmente. Se se pensar na tragédia grega, descobre-se que os heróis acabam sempre por ser punidos por essa pretensão de se libertarem de uma causalidade estrita. Ora, esta punição infligida pelo destino será uma prova, e não das menores, dessa mesma liberdade. Foi esta ideia de liberdade que me salvou nos verdes anos de uma submissão a certos cantos da sereia que anunciavam um futuro risonho pelo mero desenvolvimento das leis da História, como se esta fosse uma Física newtoniana aplicada ao devir dos homens. Imagino que aquela história de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus se refira a isto, ao facto de podermos ser livres e conformarmos a nossa existência pelas escolhas que fazemos.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A realidade

Passei o dia tão mergulhado na realidade que nem dei pela noite chegar. A realidade, ao contrário do que muitos pensam, tem um poder absorvente que pode ser letal. Por norma, as pessoas criticam o devaneio, a fuga da realidade. Contudo, as artes do devaneio e da fuga são apenas respostas ao peso obsessivo da realidade. Quando nos submetemos de corpo e alma a ela, submetemo-nos ao império das coisas. Das coisas? Sim, das coisas. Realidade deriva de real. Este significa o que existe de verdade, o que não é imaginário. Curvarmo-nos à realidade seria então uma forma de submissão ao verdadeiro. A este opor-se-ia aquilo que é imaginário, isto é, o que está no fundamento das artes do devaneio e da fuga. O que esconde, porém, a palavra real? A sua raiz está no latim res, que significa coisa. Submetermo-nos à realidade é uma forma de submissão às coisas. Devanear e fugir da realidade é então um modo de preservarmos a dignidade de seres que não são meras coisas. Uma emancipação, embora exista quem esteja convencido que é uma forma de alienação. Não vou arguir a causa. Quem gostar do peso da realidade que a ela se submeta. Quem não gostar, ensaie a arte da fuga ou a técnica do devaneio. Agora, retorno para a realidade.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Pobres enganos

Os meus planos, os meus pobres enganos. Isto cantava Chico Buarque de Holanda nos anos sessenta do século passado. Fazia-o por causa da Rita que lhe teria levado tudo, inclusive os vintes anos, e deixado mudo o violão. Ora, também eu faço planos e confronto-me com os meus pobres enganos. Não por causa da Rita, nem dos vinte anos, mas porque ontem fiz planos para hoje de manhã que não passavam pela ida à urgência do hospital aqui da terra. Pobre engano e lá fui eu temeroso das grandes esperas, preparado para rumar a outras paragens. Afinal não havia filas intermináveis, nem sequer filas. Fui triado por uma enfermeira, talvez com a idade dos meus filhos, que me admoestou com benevolência, perguntando, como quem afirma estar perante uma idiotice, como tinha deixado chegar as coisas ali. Fez-me perguntas sérias. Dei-lhe respostas sérias. Expus a causa do mal que me acometia. Um certo medicamento. Não conhecia. Disse-lhe que visava pôr em ordem um coração arrítmico. Há outros disse ela. Evitei responder que o especialista no assunto que me segue lá saberá o que anda a fazer. Depois, colocou-me uma pulseira no braço direito, onde constava o número do processo, o meu nome – melhor, o nome do autor destes textos, mas não o do narrador – a data de nascimento e, para o caso de alguém olhar para o braço e não saber subtrair de 2023 o ano do meu nascimento, estava escarrapachada a idade. Além disso uma bola, que não é bola nenhuma, mas um círculo, verde. Ao mesmo tempo ia dando-me conselhos sobre a alimentação a fazer para evitar estas coisas. Não contente, levou-me a outra sala e deu-me uma beberagem e mandou-me esperar que o médico me chamasse. Eu, confesso, estava por tudo. Bebi, agradeci e aguardei. Pouco. O médico, mal entrei, mandou-me tirar o casaco e deitar-me na marquesa. Obedeci. Fez palpação do ventre. Mandou-me levantar e ir fazer uma radiografia. O segurança que me indicasse o lugar. Lá fui seguindo uma linha azul e no fim desta toquei à campainha, como me fora recomendado. Vieram abrir. Um técnico mandou-me tirar o casaco. Uma técnica mandou-me pôr as calças para baixo e encostar a barriga a uma placa. É um pouco humilhante, achei. Fotografaram, mandaram-me arranjar e que esperasse pela chamada do doutor. Assim fiz, mas não esperei. Está tudo em ordem, é só uma obstipação. Só tem fezes. Tome isto e isto. A receita vai para o seu telemóvel. Muito obrigado e bom dia, disse eu, e escapuli-me. Paguei o que tinha a pagar e fui à farmácia, onde a farmacêutica, mais uma vez com a idade dos meus filhos, me tratou também ela com benevolência e não hesitou em dar-me conselhos alimentares. Evitar o arroz, as pêras e as bananas, fazer exercício. Fiquei-lhe grato. A grande conclusão que tiro desta aventura é que os cursos de farmácia e de enfermagem incluem cadeiras sobre a alimentação e dietas que devemos seguir, enquanto os de medicina evitam o assunto, pois o médico foi a única personagem que não me deu conselho sobre a alimentação. Com tudo isto, entre tantos conselhos, os meus planos para domingo esvaíram-se, embora o mal que me acometia tenha recuado para limiares suportáveis.

sábado, 14 de janeiro de 2023

Preguiça e outros pecados

Está um sábado cinzento e preguiçoso. Acabei por me solidarizar com ele. Também estou acinzentado e entrego-me ao culto dessa deusa menor que é a preguiça. Não sou como o genro do senhor Marx que lhe fez um elogio em forma de ensaio. Prefiro entregar-me a ela do que encomiá-la. Faço-o com moderação, como se fosse um discípulo de Aristóteles. Um pensador católico alemão, Josef Pieper, parece discordar da transformação da pobre preguiça em pecado capital. Argumenta que a preguiça está longe de ser a mesma coisa do que a velha acédia ou acídia. Haveria no facto uma subversão teológica e o dobrar do joelho à ordem da moral capitalista. Para os gregos da Antiguidade Clássica, o ócio não é pai de todos os vícios, mas a possibilidade da virtude, isto é, da especulação filosófica, que também era científica, e tinha uma dimensão prática. Se se pensar nos sete pecados capitais, talvez seja possível ver na sua interpretação um percurso que não será desinteressante. Em primeiro lugar, seriam revoltas contra a ordem divina das coisas, uma negação dessa ordem consumada nas virtudes e uma queda na desordem do próprio ser, uma queda fruto de uma decisão subjectiva. Num segundo tempo, estas condutas viciosas seriam defeitos do carácter. Uma falha educativa, digamos assim. E hoje? Porventura, serão patologias, muito provavelmente de ordem fisiológica ou psicofisiológica. O que é curioso neste percurso, caso ele não seja meramente imaginário, é a diluição da liberdade do indivíduo. De início, a responsabilidade estava na sua liberdade, nas escolhas que fazia. Depois, na dos educadores que não lhe souberam formar o carácter. Por fim, numa desordem orgânica de que ninguém é responsável e da qual todos são vítimas. Originalmente, o objectivo seria devolver a liberdade que se tinha corrompido. Agora, trata-se de restaurar a saúde de um organismo deficiente que empurra o indivíduo para gula, a inveja, a avareza, a ira, a luxúria, a soberba e para a suave e doce preguiça dos sábados cinzentos.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Contadores de histórias

Foi num livro de George Steiner que encontrei a informação. Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que contasse histórias. O ‘para que’ indica uma finalidade, melhor uma causa final. A causa final da nossa existência é a de sermos narradores, contadores de histórias. O antropólogo Lévi-Strauss acrescenta que essa narração é a própria condição do nosso ser. Somos seres eminentemente literários, não porque amemos a literatura, mas porque ela é a nossa maneira de ser no mundo. Existimos narrativamente. Poder-se-ia ser tentado a opor a arte literária a discursos de outra índole, aparentemente, não narrativos. Por exemplo, a ciência ou a filosofia. Duvido que elas não sejam formas de narrativa e não façam parte desse imenso império que é a literatura. Da filosofia, não valerá a pena falar, pois os diálogos platónicos estão aí para o atestar, e como alguém dizia, talvez com exagero, o resto da filosofia não passa de um conjunto de notas de rodapé a esses diálogos. As teorias científicas não deixam de contar histórias e, mais do que isso, empregam grandes esforços para garantir senão a sua verdade absoluta, a sua máxima verosimilhança. A formalização matemática ou o recurso à experimentação podem parecer colocar essas áreas do discurso fora da narrativa, mas talvez as devamos interpretar como estratégias retóricas visando alcançar o consenso sobre a história que uma teoria científica nos conta acerca do mundo. Se se aceitar o que dizem Steiner e Strauss, então não poderia ser de outra maneira. Tudo em nós é o exercício dessa narratividade que nos constitui e nos institui. Imagino que não deveria escrever sobre estas coisas numa sexta-feira, mas a minha natureza impeliu-me para elas. Note-se, todavia, que se a causa final do homem e a sua própria condição é contar histórias, isso não assegura que cada um seja um bom narrador e conte boas histórias. E isto absolver-me-á.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Repetição

No friso das orquídeas, algumas estão quase a florir. Veremos se este lhes é um ano propício. O anterior não foi grande coisa e o espectáculo que elas proporcionaram foi curto e sofrível. Que palavra extraordinárias esta. Entrei em contacto com ela num colégio que frequentei durante três anos. Os professores, ao classificarem os pontos, era assim que se chamavam as provas de avaliação, tinham à disposição, entre o medíocre e o suficiente, o sofrível. Alguns, tanto quanto me recordo, conseguiam intercalar essa classificação entre o medíocre mais e o suficiente menos. Com essa nota, eles pretenderiam enviar uma mensagem: aquilo que escreveste ainda é suportável, ainda se consegue sofrer a afronta de ler essa coisa. Talvez já tenha escrito aqui sobre isto, mas entrei naquela fase da existência em que me é permitido a iteração contínua. Podemos imaginar que o exercício da repetição resulta de uma ausência, no stock das narrativas, de novas mercadorias. É uma possibilidade, mas prefiro outra hipótese. As repetições formaram um hábito que se alimenta a si mesmo. Este hábito tem uma finalidade, tornar-se um ritual, um exercício litúrgico que confere sentido à existência, a expressão de uma camada mítica sobre a qual se edifica o edifício da razão. Uma pessoa repete-se com a esperança de que desse acto possa surgir qualquer coisa de novo. Toda a inovação nasce da repetição, é esta que produz a aparência de fluidez e harmonia naquilo que se faz e que permite descobrir caminhos até aí nunca vistos. Espero apenas que as orquídeas não repitam o espectáculo do ano anterior.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Acaso

Não sei bem a razão, o que também se tem tornado um hábito, mas dei comigo a pensar nas obras literárias que tiveram em mim um peso decisivo, de tal modo que influenciaram – e presumo que continuam a influenciar – o modo como vejo as coisas. Não foi difícil chegar a um top três. Nele estão, por ordem cronológica de criação, Antígona, de Sófocles, O Processo, de Franz Kafka, e A Peste, de Albert Camus. No primeiro caso, o conflito entre a razão política e a razão moral abanou a minha crença ingénua – os verdes anos são isso mesmo – numa continuidade entre moral e política, abrindo-se dentro de mim, mas ainda não tinha linguagem conceptual para o dizer, uma ruptura no campo da razão prática. O texto de Kafka foi entendido como uma metáfora do absurdo da existência, de como ela pode não ter qualquer sentido e aquilo que nela ocorre resultar de motivos puramente aleatórios. É muito curiosa a forma como Joseph K. reage à irracionalidade do processo que lhe é movido. Por um lado, fica desorientado, mas procura dar respostas razoáveis àquilo que é, na sua essência, irrazoável. O que me ficou, assim, foi o choque entre razão e desrazão, como esta é, muitas vezes, mais forte e decisiva na vida dos seres humanos. Se Antígona tinha representado, ainda que de forma inconsciente, uma ruptura no campo da razão prática, O Processo representou uma cesura, mais uma vez inconsciente, no campo da razão teórica. O romance de Camus, por seu turno, trouxe-me a consciência do espaço concentracionário e tornou-me patente que todo o lugar de onde a liberdade humana é evacuada está assolado por uma patologia. A doença aniquila a liberdade. Ninguém escolhe aquilo que o marca. Não escolhi estas obras para que fossem decisivas para mim. Também não vou ter a presunção de achar que elas me escolheram, como quando se diz que as obras escolhem os seus leitores. Haveria já em mim um terreno preparado para elas, um terreno que eu desconhecia em absoluto e que só o soube depois, muito depois, de as ler. Podemos ter duas interpretações destes encontros. Uma interpretação fatalista. As obras estavam-me destinadas. Outra interpretação, agora indeterminista. O acaso conduziu-me a elas. As duas interpretações negam que esse encontro tivesse resultado de um acto livre da minha parte. Entre determinação fatalista e acaso, escolho este.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Da nudez

Se os antigos não se afrontavam com a representação da nudez humana, a expansão do cristianismo fez cair uma censura feroz sobre o corpo nu. A primeira pintura moderna que representa corpos despidos é um Adão e Eva de Jan van Eyck, datado de 1432. Existe, porém, um desenho sobre pergaminho, de 1425, da autoria de Antonio Pisanello, onde se vêem várias representações de um modelo feminino despido. Estamos, com estes pintores, na aurora de um novo mundo. Um mundo onde os indivíduos afirmam a sua subjectividade, ao mesmo tempo que, nas telas, se vão despindo. É no seu livro sobre pintura, de 1435, que Leon Battista Alberti dá um sagaz conselho. Os pintores devem desenhar pessoas despidas, pois só compreendendo o corpo nu é possível pintar correctamente um corpo com roupas. Em Alberti, a nudez ainda é meramente instrumental, mas ela vai conquistando espaço na representação humana. Nos dias que correm, a nudez tornou-se uma trivialidade. Resta saber se não se perdeu alguma coisa com isso. Não me refiro ao pudor, embora este nunca seja desprezível, mas ao espanto que um corpo nu poderia provocar num ambiente onde a representação da nudez estivesse ausente. Estas palavras constam de um dos cadernos de Eduína, dos quais sou involuntário herdeiro. A seguir ao texto existem diversos desenhos de um corpo humano que se vai vestindo. São esboços a lápis, que começam, de forma muito diluída, a nudez implicaria, segundo a autora, uma existência difusa, e terminam em traços vigorosos, como se um corpo só o fosse plenamente se estivesse vestido.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Videovigilância

Hoje pareço um bombista suicida com um aparelho preso ao pescoço. A finalidade é espiar-me o coração para detectar anomalias. Por vezes, ele decide dançar fora do ritmo programado. Não que entre em grandes delírios, mas o médico acha por bem submeter-me a este tipo de big brother. Aliás, a coisa começou hoje com um ecocardiograma, onde um operador de uma máquina anda com uma espécie de câmara e, enquanto observa, o filme no monitor, faz cortes e medições. Isto entrou-me pela manhã dentro e, de alguma forma, interferiu na trivialidade do meu dia. Apesar de já se notar o crescimento das horas de luz, chegámos ao momento do crepúsculo. Uma luz de cinza cai sobre a cidade. Anuncia a noite. São ainda muitas as coisas que me esperam. Talvez fiquem registadas no aparelho de videovigilância cardíaca. Nunca se sabe.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Escuridões

Tem estado um dia tão cinzento e chuvoso que ainda não pus um pé fora de casa. Os domingos invernosos são um convite à introspecção, ao exame da vida. Consta que o velho Sócrates – ou Platão por ele – terá dito que só a vida examinada vale a pena ser vivida. Resta saber qual a intencionalidade desta máxima. A mais óbvia é a que nos diz que a vida só ganha valor ao ser examinada. Podemos, porém, pensar que só no exame descobrimos o valor da vida, o que implicaria que esta, por si, seria sempre um valor, mas que só se tinha consciência dele caso ela fosse submetida a avaliação. Um animal não-humano limita-se a viver, mas as pessoas precisam de submeter a sua existência a um escrutínio minucioso. Talvez seja por causa disto que existem domingos de Inverno como o de hoje, para que possamos, no recôndito do lar, projectar o crivo da razão sobre a nossa existência. Não foi o meu caso, pois tinha mais que fazer do que olhar para o fundo negro da existência, pois qualquer existência, quando se torna pretérita, não é outra coisa senão um poço escuro. E para escuridão basta o do dia. Tenho de ir arrumar umas coisas, antes que chegue a noite.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Propriedade

As festividades renderam-me um acréscimo de novecentos gramas, segundo informação fidedigna da balança, que só a deu depois de pisada. Não sei por que se submete ela a tal humilhação. Imagino que a balança seja já um dispositivo obsoleto ou a caminho da obsolescência. Deveria bastar uma câmara para calcular o peso. Passava-se sob ela e num monitor aparecia à informação. Recordo-me bem dos tempos que não havia balanças em casa. As pesagens eram feitas na farmácia. Depois, as balanças democratizaram-se para desassossego dos pesados, pois neste tema vale mais ser ligeiro do que pesado. Tem estado um verdadeiro dia de Inverno. Chuva, frio, embora não haja vento. Nas ruas, as pessoas caminham com caras invernais, onde resplandece o incómodo climático. Não me queixo, pois antes assim do que a ominosa canícula que, por aqui, vai, muitas vezes, de Maio a Outubro. Ao arrumar uns livros, encontrei um de Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado. Tem a uma assinatura de posse, a minha, o local de compra e a data, precisamente 2 de Fevereiro de 1987. Em tempos, fazia este tipo de declaração de posse, mas passou-me. Talvez tenha compreendido que, na verdade, nada possuímos. Somos apenas fiéis depositários de certos bens, que depois irão encontrar, caso encontrem, outros fiéis depositários. A ideia de propriedade contém em si uma certa hübrys. Como é que seres transitórios se arrogam a dizer que algo lhes é próprio, se nem a sua vida é propriedade sua. Isto não significa que os bens devem ser comunais. Significa apenas que aquilo que designamos como nosso é apenas uma coisa que está sob o nosso cuidado e, como compensação, podemos usufruí-la. Por exemplo, as balanças que teimamos em pisar para que elas nos insultem com o peso que devolvem.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Considerações intempestivas

Dia de Reis e ainda não comi uma fatia do bolo inventado em honra dos Magos. Confesso que, por aqui, foi substituído pelo bolo-rainha, mas não consta que existissem rainhas-magas. Seria, por certo, uma época em que a magia estaria nas mãos dos machos da espécie, o que pode explicar o carácter ilusória da coisa. Os homens são dados a ilusões, inclinados à idealização, enquanto as mulheres estarão, desde há muito, mais próximas da terra e mais inclinadas a dar atenção à realidade. É provável que estas considerações vão contra o espírito da nossa época, no qual todas as palavras têm de ser não só medidas, como ainda pesadas. Isto assemelha os vocábulos aos recém-nascidos. Nasceu, às quinze horas e três minutos, um menino com quatro quilos e cinquenta centímetros de altura. A linguagem, numa língua com centenas de anos, encontra-se em regressão, aproximando-se da sua existência intra-uterina, que é aquela que antecede o momento em algo vem à luz, para ser medido e pesado. O dia já teve melhor aspecto. Já teve sol. Agora, porém, acinzentou-se e exibe um rosto soturno, uma cara de poucos amigos. Espera-me uma visita, sempre dolorosa. Há que pôr os pés ao caminho, isto é, fazer deslizar as rodas no alcatrão.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Um dia que se ensarilhou

Há dias em que tudo se ensarilha. Foi o caso de hoje. Os meus planos, meus pobres enganos, para citar um certa canção brasileira, perderam o norte e cheguei a esta hora adiantada da noite sem vir aqui registar mais um dia. Talvez estes textos sejam um calendário que se vai construindo. Tem duas características dignas de nota. Por um lado, tem buracos, como se o tempo tivesse hiatos, se suspendesse, para voltar a correr. Por outro, é um calendário que não traz os dias futuros. Só os presentes e os passados. Será um calendário bem mais adequado do que os normais. Imagine-se que se comprou em Janeiro um calendário de 2023. Está ali, naquela construção dividida em meses e semanas, a ideia de que existe um futuro, que ele é uma realidade. Ora, isso é manifestamente falso. Não existe, neste momento, nenhum dia 14 de Maio de 2023. Caso estes textos sejam um calendário, eles são bem mais fiéis à natureza do tempo. Não há textos futuros, mas apenas o texto presente e os pretéritos. O futuro nunca existe, pois, cada momento vivido é sempre presente, e o próprio passado só existe nos textos, como memória. Não sei bem o que Agostinho de Hipona veio fazer para esta conversa, mas que lá veio, ele veio. Talvez seja o cansaço. Ora, o tempo não é uma coisa que neste momento me ocupe. Tenho estado mais interessado no que um certo poeta e teórico literário português escreveu sobre a arte, a arte moderna, no caso a arte literária. A arte seria uma forma de expressão do artista, como modo de se libertar do peso da comunidade, manifestar a sua individualidade, salvando-a da pressão do grupo.  Assenta  a sua posição na dicotomia arte como expressão (a arte estética) e a arte como comunicação (a arte didáctico-recreativa). A primeira não considera o público e centra-se na expressão da singularidade do artista. A segunda visa contentar o público ou, de algum modo, educá-lo. É possível que esta descrição se aplique, de modo muito ajustado, ao século XX e, mesmo, ao XXI. Contudo, se a arte não se deve sujeitar à pressão do rebanho, com as suas normas, incluindo as estético-artísticas, terá de ficar cativa das idiossincrasias do artista? Este dilema tem toda a aparência de ser falso. É plausível que se possa pensar e praticar a arte, sem que esteja sujeita à relatividade do grupo ou à subjectividade do artista. Isto, porém, seria conversa para outra hora, que não esta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O estado a que se chega

Cheguei há pouco a casa, comi meia dúzia de líchias, sentei-me na secretária e adormeci. Isto diz tudo do estado a que uma pessoa chega. Se sonhei, não faço ideia, pois raramente tenho consciência de sonhar e consta que sonhamos todas as noites. Seria um caso espinhoso para qualquer discípulo do velho Sigmund. Como poderia haver sessões de interpretação dos sonhos? Talvez exista uma interpretação psicanalítica para o facto de não ter consciência de sonhar. Aquilo que se oculta no meu inconsciente está de tal modo recalcado que nem no sono se revela, ainda que de forma simbólica. Por motivos que não vêm ao caso, passou-me sob os olhos uma citação do Abade de Sieyès. Talvez o mundo fosse um lugar melhor se esta personagem não tivesse existido, mas não há garantia. É possível que aquilo que ele escreveu andasse no ar do seu tempo e que um outro o tivesse escrito. Nunca sabemos se é o espírito do tempo que conduz a que se digam certas coisas ou se é o facto de certas coisas serem ditas que configura o espírito do tempo. Seja como for, não me é permitido, pelo autor destas linhas, escrever sobre o que escreveu o tal abade. Nestes textos, a política está rigorosamente banida e, como narrador, tenho de conformar-me às volições do autor, apesar de discordar dele em quase tudo. Isto não significa que exista um código narrativo que regula, com a força da lei, as actividades deste narrador. Não se chegou a tanto, mas há uma etiqueta, como um conjunto de regras de boa educação, que orienta o que se pode ou não narrar. Ainda a semana vai a meio e já estou com falta de assunto. Pela janela chega-me a luz crepuscular que há-de conduzir o dia ao sepulcro onde se unirá, em amoroso amplexo, à noite. Um verdeiro noivado do sepulcro. Se não arrepio caminho, ainda dou em ultra-romântico.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Aliteração

Comecemos imersos na aliteração. O retorno à realidade revela-se repetitivo, que raio. As festividades que vão do Natal ao Ano Novo são uma suspensão da realidade, uma visita a um outro mundo que logo se dissolverá. Vivemos numa sociedade que ainda valoriza o trabalho, esquecendo dois dados fundamentais da nossa cultura. Em primeiro lugar, a palavra trabalho tem origem no vocábulo latino tripalĭu, que designa um instrumento de tortura composto por três paus. O trabalho é uma tortura. Do mito judaico da expulsão de Adão e Eva do paraíso faz parte do castigo infligido à espécie humana o trabalho. A linguagem e os mitos têm um fundo poder descritivo da realidade. Basta prestar-lhes um pouco de atenção para compreendermos muito do que se passa. Em certo momento do século XX, a escuta da linguagem e dos mitos era uma metodologia pertinente para interrogar e tentar compreender aquilo que nos envolve e quem somos. Seria uma espécie de arqueologia dos sentidos que o tempo foi depositando em diversas camadas. Talvez tenha caído em desuso porque, na verdade, estava assente na ideia de que aquilo que é mais antigo estará mais próximo da verdade. Isto desmentiria uma concepção da história humana como aproximação progressiva à verdade, fazendo dela um processo de afastamento desse momento auroral em que a verdade se revelou aos homens, para que estes a fossem esquecendo, num processo involutivo que contraria a crença no progresso e na evolução da humanidade. O entardecer está belíssimo, uma luz solar ainda viva a reverberar na copa das árvores que o Inverno não despiu. Na rua, as pessoas, contaminadas pelos raios luminosos, parecem felizes e de ânimo elevado, resistindo, apesar de reféns, ao repetitivo retorno à realidade.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Hidrotecnia

O ano começou sem poesia, mas com fogo-de-artifício, que é uma espécie de poesia para quem não gosta de poesia. Isto não significa que gostar daquilo que os poetas – ou alguns poetas em alguns poemas – escrevem e gostar de fogo-de-artifício sejam incompatíveis. Não são, mas quem espera algum contentamento encontrá-lo-á mais facilmente na pirotecnia no que na arte. Como se vê, começo mal o ano com uma meditação que não lembraria ao diabo, a quem, como se sabe, lembra muita coisa. Ainda não fui à rua este ano. Está um dia sombrio, o vento abana os ramos do arvoredo. Começou agora a chover. Uma chuva forte, enviesada pela ventania, como se trouxesse um desejo de fustigar os incautos que se passeiam na avenida, arrastados por cães minúsculos, a cumprir a sua função de dedicados cuidadores dos bichos que adoptaram. Como é domingo, ainda por cima primeiro dia do ano, o almoço será tarde. Um poema, Fragilidade, de Jorge Gomes Miranda começa assim: Aceito a fragilidade da noite, / o corpo que se vai dissolvendo / no tempo, / mas à mente destroçada / digo não. Parece-me uma presunção destituída de sentido esse digo não. Também eu gostaria de dizer não, mas a mente, como o corpo, está envolta numa fragilidade que não controlo. Poderá o meu corpo ceder antes da mente virar um destroço, mas caso isso não aconteça, é possível que o naufrágio mental se dê sem que eu disso tenha consciência. A chuva intensificou-se, e como sobre meu corpo e a minha mente, também sobre ela não tenho qualquer poder. É uma espécie de água-de-artifício, uma pirotecnia – deveria escrever hidrotecnia – que lava as ruas e as mentes, os corpos se alguém se esquece do seu à beira da estrada.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Rituais

Isto parece estar mau para os profetas. As profecias meteorológicas anunciavam quase um dilúvio, mas as nuvens têm-se mostrado renitentes em conceder a sua graça a quem se entrega a este tipo de augúrios. Pelo menos, por aqui. Pude ir à rua sem guarda-chuva. Constatei que o mundo mudou. Durante muito tempo vi fecharem as padarias, as velhas padarias que alimentaram a população durante décadas. Ora, hoje fui a uma padaria nova com o nome de uma encarnação da divindade hindu. Gente na casa dos quarenta anos, talvez um casal, que nunca vira por aqui, abriu um negócio, como aqueles que existem nas grandes cidades, trazendo uma nova forma de conceber o pão e de o vender. Depois, desta visita à inovação, fui a uma mais antiga pastelaria comprar um bolo-rainha. Encontrei pessoas conhecidas, algumas que envelheceram de forma desmedida. Há muito que não as via. Tomei café com um casal amigo e, no fim, desejámo-nos, mutuamente, um bom ano de 2023, embora toda a gente, conhecida ou não, o faça, se, por algum motivo, entra em contacto com qualquer outra pessoa. Estes rituais, muito deles meramente linguísticos, são importantes, pois é o ritual que salva a existência da usura do quotidiano. As sociedades modernas são máquinas de destruição de mitos e ritos, mas estes lá vão resistindo, reinventando-se para balizar a vida de cada um. Amanhã será dia de Ano Novo e este terá também os seus rituais e a sua própria mitologia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Melancolia e inutilidades

As pequenas cidades de província são um poço de melancolia, mais ainda se se junta a pequenez e a interioridade. E para se estar no interior bastam uns meros vinte ou trinta quilómetros de afastamento do litoral, senão menos. Um inexorável despovoamento, aliado ao défice demográfico e à morte dos centros antigos, conduz a essa sensação de que algo se retirou e não mais voltará. Onde existe atracção turística, as coisas ainda são disfarçadas pela presença de mirones à procura de coisas nunca vistas, mas nos lugares que não atraem esses viajantes sem destino nem causa não se pode evitar a constatação de que a morte urbana progride silenciosa. Foi tudo isto que experimentei ao passar pelo centro da cidade onde me acolho, cidade bem mais desconsolada do que a antiga vila, plena de vida. Também é possível que esteja completamente errado e que sejam os meus olhos que, motivados pela idade e cansados do que já viram, vêem as coisas desta maneira. Não seria a melancolia da cidade que se desdobra diante de mim, mas a minha melancolia que ali se projecta. Ora, determinar o que numa certa imagem ou percepção das coisas pertence ao percebido e o que pertence ao sujeito que percebe dava uma bela, apesar de inútil, discussão. Não é que as coisas inúteis não exerçam grande fascínio sobre mim. Exercem, e toda a minha vida me interessei mais por aquilo que é inútil do que por aquilo que pertence à utilidade. Contudo, não me apetece chegar à hora do crepúsculo preso às cadeias da inutilidade. Amanhã será o último dia do ano. Eis uma informação que pode ter mil préstimos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tristezas

O poema Neve, do livro Ararate, de Louise Glück começa assim: Final de dezembro: eu e o meu pai / vamos a Nova Iorque, ao circo. Ao ler estes versos, tive uma reminiscência de uma ida ao circo com o meu. Não era Dezembro, nem foi em Nova Iorque, nem nevava, mas em Lisboa, no Coliseu, e estava calor, pois lembro-me de comer um gelado e de sujar o casaco da senhora que estava à frente. Isso foi há mais de sessenta anos. Não sei que impressão me ficou dessa experiência, mas o circo sempre foi um espectáculo que me deprimiu. Basta pensar nele para sentir tristeza, mesmo naqueles circos ricos que apareciam na televisão no dia de Ano Novo, ou talvez num outro dia qualquer, que me aparece na memória como sendo o primeiro do ano que começava. Trapezistas, palhaços, ricos ou pobres, equilibristas, engolidores de espadas e de fogo, domadores de feras, por todos eles sinto uma estranha compaixão, como se as suas profissões fossem piores do que todas as outras que por aí há. A origem dos nossos sentimentos é obscura e, por certo, desprovida de racionalidade, pois não há quem pondere aquilo que há-de sentir. Talvez todas as profissões sejam fonte de tristeza, mesmo para aqueles que dizem trabalhar por prazer. Uma outra hipótese é ter compreendido, de forma subliminar, que o circo é uma representação do mundo e que a tristeza que perante ele sinto se refira a uma desolação com o próprio mundo. Isto, porém, infringe a alegria que me assalta perante múltiplos acontecimentos que esse mundo transporta consigo. Acabei de ler um romance de Maria Isabel Barreno, autora de que nunca tinha lido nada. Também o mundo que ela narra me deixou um vestígio de tristeza, daquela tristeza que nos toca perante a consciência de que as nossas ilusões não passam disso mesmo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Complacência

O ano está a chegar ao fim. Não faltarão retrospectivas do que passou e profecias para o que há-de vir. Há muito que imagino ser mais acertado fazer profecias sobre o que se passou e retrospectivas do que ainda não aconteceu. É possível que o resultado fosse o mesmo. A Terra prossegue a sua vida, rodando sobre si e girando em torno do Sol, com olímpica indiferença. Que os homens montem, a partir da sua actividade, calendários, será um problema que não a afecta. Durante algum tempo tirei fotografias. Evitava nelas a presença humana. Talvez fossem, penso-o agora, uma forma de reverência ao planeta que nos acolhe e dá vida. Se alguém achar que isso se deve à misantropia terei de considerar o assunto. Duvido, contudo, que a espécie humana gere em mim um sentimento tão forte. Complacência, sim, mas não ódio. A complacência começa comigo e estende-se ao próximo, mesmo que este esteja muito afastado. Na literatura, a complacência tem má fama. A condescendência é vista como uma falta de carácter, tornando o herói vicioso. Ora, no acto de ser complacente existe benevolência e esta, caso fosse universal, não tornaria a vida pior. Ontem levei as minhas netas ao mosteiro de Alcobaça. Enquanto deambulava por ali, ia pensando que o mosteiro está morto. Existe conservação e restauro, mas aquilo para o qual foi erguido desapareceu. Tornou-se um cadáver que não se corrompe, mas não deixa de ser um cadáver, como o são os corpos de Pedro e Inês, ali sepultados. A ânsia que sentimos de preservação do passado em forma de património é uma negação da realidade, uma recusa em perceber que é o espírito que vivifica e, quando este se retira, o monumento, por belo que seja, é apenas um despojo sem vida preso à terra.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ser risível

A páginas 54 e 55 da tradução portuguesa de A Loucura de Hölderlin, do filósofo italiano Giorgio Agamben, o autor faz notar, quase em modo de lamentação, a ausência de menção no poeta à comédia, enquanto reflecte, por diversas vezes, nos géneros épico, lírico e trágico. Ora, segundo Emil Staiger, em Grundbegriffe der Poetik, referido por Agamben, os géneros poéticos nomeiam também “possibilidades fundamentais da existência humana”. Podemos sem dificuldade pensar em existências trágicas, épicas e líricas, todas elas marcadas pelo respectivo arquétipo literário. Se pensarmos, porém, em existências cómicas, fundadas no arquétipo da comédia, sentimos uma qualquer falsificação da realidade. A pista que se poderá seguir é dada por Aristóteles. Sendo toda a arte imitação, a tragédia imita os homens nobres e superiores, enquanto a comédia imita os homens inferiores naquilo que eles têm de ridiculamente torpe. Ora, a torpeza ridícula é uma possibilidade da existência humana, mas não fundamental. Os homens que vivem vidas ingénua ou vilmente torpes sofrem de uma amputação da sua natureza, um eclipse da sua essência e ficam presos nas possibilidades de superfície. É plausível pensamos duas coisas. Em primeiro lugar, nenhum ser humano foge da risibilidade e, de algum modo, todos somos personagens cómicas. Em segundo lugar, as possibilidades fundamentais dadas na literatura – a épica, a trágica e a lírica – não são mais do que modelos, ou arquétipos, que possibilitam a cada ser humano a elevação da sua condição risível a uma condição superior. Essa elevação, note-se, não é um exercício exterior, mas uma experiência interior, que vai da superfície ao fundo de si, mesmo que isso tenha repercussões na sua persona pública. Estes pensamentos desencadeados pelo livro de Agamben vieram recordar-me longas conversas com Eduína, o que abriu em mim uma ferida que nunca estará verdadeiramente sarada. O seu desaparecimento precoce do meu mundo – mais precoce do que a sua morte – pôs um fim a longas conversas em que sensibilidades distintas e antagónicas encontravam estranhos caminhos de pensamento. Esses eram caminhos feitos de indagações, mas o modo como uma mulher indaga é bem diferente daquele que o homem escolhe, embora entre ela e eu houvesse uma partilha fundamental, a da plena consciência de se ser risível.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Uma questão de vogais

Está quase consumada a quadra natalícia. S. Pedro continua muito activo, ele que nos últimos anos se tinha entregado a grandes períodos de greve. Os profetas do tempo indicam, porém, que daqui a pouco ele irá descansar e que a chuva cessará. Como todos os profetas, também os meteorológicos são esquivos e falam numa linguagem ambígua. A equivocidade simbólica dos profetas religiosos foi substituída pela probabilidade. É provável que chova, mas também há uma certa probabilidade que isso não aconteça. As netas afadigam-se, fazem as malas para irem passar uns dias com os avós. Cuidam das toilettes que usarão caso façam isto ou aquilo. Falei no plural, mas parece que é apenas uma que se entrega a estes trabalhos, a outra está presa a uma rede social que os adolescentes usam, no modo que hoje têm de ser adolescentes, pelo menos no Ocidente. Talvez não devesse falar no Ocidente. Tem péssima imprensa. No século XIX, todavia, Cesário Verde pôde escrever um longo poema com o título Sentimento dum Ocidental. Nesses dias, era claro o que significava ser ocidental, hoje talvez não passemos de acidentais. A insignificante troca da vogal inicial traz-nos lições de sociologia que não se poderia suspeitar. Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Isto, porém, era no século XIX, quando ainda éramos ocidentais. Hoje, quando o desejo absurdo de sofrer nos toca, vamos ao psiquiatra, ao psicanalista, quem pode, ao psicólogo, quem não tem dinheiro para, durante anos, se deitar no divã e entregar-se à hermenêutica dos sonhos, à exegese dos actos falhados e ao jogo das associações livres. Também no campo da patologia mental funciona um mercado livre, onde há produtos para todos os gostos e todas as bolsas.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Combater gigantes

As festividades continuam. Este é um tempo que exige uma apurada capacidade de gestão. Um jantar aqui, um almoço acolá, outro jantar noutro lado, ainda o dia 26 com a visita a… É o que dá a multiplicação da espécie, que, com casamentos, divórcios, nascimentos, recasamentos e sei eu lá mais o quê, torna tudo um estranho exercício de cálculo. O Natal é, deste modo, uma espécie de Quaresma, mas no lugar do jejum – quem jejua na Quaresma? – tem por penitência o seu contrário, a possibilidade de engordar com rapidez. Ontem, mantive-me frugal e espero fazer o mesmo nos desafios que ainda tenho de enfrentar. Não é tarefa fácil, os moinhos são mesmo gigantes, mas tenho-me treinado na escola de D. Quixote, embora não passe de um pobre Sancho Pança. Espanta-me sempre como é que a frugalidade do presépio deu origem a estes exercícios pantagruélicos, mas talvez nunca tenhamos deixado de ser pagãos, descendentes dos que se banqueteavam em Atenas ou em Roma. Agora, vou preparar-me para enfrentar os gigantes.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Fidelidades

Mais um Natal quase passado. Foi o que me disse hoje de manhã o padre Lodo, durante o longo telefonema. Desde que nos conhecemos, nunca deixou de ligar na véspera de Natal. Fui acompanhando no decursos dos anos – ou das décadas, para ser mais fiel à realidade – o estado de espírito natalício deste meu amigo. Foi-se transformando, mas, no essencial, manteve-se idêntico. Fiz-lho notar e ele respondeu-me que o Lampedusa tinha razão, que é preciso que alguma coisa mude para que tudo permaneça. A formulação não é bem essa, acrescentou, mas a que fiz serve para descrever a realidade. Mantive-me fiel, continuou, ao que era no início, mas desconfio que nisso não tenho qualquer mérito. Todos são fiéis a si próprios, mesmo que não dêem por isso. Aquele que trai aquilo em que acreditou não deixou de ser fiel a si, pois nele haveria já um não crer. Parece-me, disse-lhe, um discurso herético. Há um determinismo incompatível com o livre-arbítrio, o que contraria a doutrina da Igreja. Talvez, talvez, respondeu, mas é plausível que a omnisciência divina ou a legislação da natureza ainda sejam compatíveis com essa estranha ideia de que possuímos liberdade de escolha. A metafísica, porém, cansou-me há muito. Não era, aliás, nem o meu forte, nem o meu interesse, fazia parte da paisagem onde um jesuíta tinha de viver. A paisagem, porém, transbordava de assuntos, muitos dos quais me interessavam mais do que esse. Depois, mudou de conversa e informou-me que Castorp viria a Lisboa com a mulher e que esperava que nos encontrássemos todos. Sem dúvida, respondi. Antes de desligar, perguntou-me se já tinha comprado os presentes todos ou se tinha guardado algum para a última hora. Respondi-lhe que a vida me tornara previdente. Desejei-lhe um feliz Natal e ele respondeu-me com um santo Natal. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Encontros inesperados

Não só o Outono o foi, como o próprio Inverno chegou invernoso e, segundo vi, promete continuar. Num dos livros que tenho na secretária, encontrei um cartão de um restaurante lisboeta na moda, perto, muito perto, do S. Carlos, e um talão de um depósito em caixa multibanco. Curioso, fui ver a data, 11 de Março de 2002. Um documento histórico. Terei achado que servia para marcar a página de um ensaio sobre espinhosas questões da mais espinhosa de todas as disciplinas que o espírito do homem criou. Do autor, tão espinhoso ele é, omito o nome, pois são lendárias as legiões de seguidores e de detractores. Talvez a personagem não merecesse nem tantos sequazes nem tantos depreciadores, mas como em tudo, também nesse território minado a que alguém um dia terá chamado a rainha das ciências, os seres humanos gostam de se alinhar e, depois de postos na linha, logo começam a marchar. De resto, não faço ideia por que motivo, num mesmo livro, se encontra um cartão recente e um talão antigo, de uma outra encarnação. A vida, porém, é feita destes mistérios. Antes que acabe de escrever, vou arrumar ambos no sítio onde estavam, para que alguém daqui a décadas os encontre. O talão encaixa na perfeição em La question sur l’essence de l’être e o cartão do belo restaurante vai dormir em Sur la grammaire et l’étymologie du mot «être». Que tenham bons sonhos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Movimentos pendulares

Distraído e alienado de tudo o que é essencial, não dei pelo solstício de Inverno. Foi ontem, pelas 21horas e 48 minutos. Estamos na estação mais fria e não me despedi do Outono. Estas coisas são imperdoáveis. Bem faziam os povos antigos que não se esqueciam de assinalar estas efemérides, não fosse o diabo tecê-las. Agora, os dias começam a crescer e as noites a diminuir, pois o ano é regulado por um movimento pendular. Este movimento traz com ele uma mensagem. Por mais que as coisas mudem elas hão-de voltar ao seu lugar. E que lugar é este? Cada um dos pontos que o pêndulo no seu ir e vir vai ocupando. Isso é uma visão muito conservadora, diz um dos homúnculos que habita na caverna da minha consciência, pois não nos podemos banhar duas vezes na mesma água do mesmo rio, acrescentou, alardeando erudição e uma despropositada tendência heraclitiana. Poderia ter-lhe respondido que o fluxo contínuo e a mudança incansável de tudo o que existe não passam de uma ilusão sensorial e de um enviesamento do espírito seduzido pelos dados sensoriais. Evitei, porém, entrar em discussão e mandei-o regressar ao lugar de onde saíra. Não temos um dia luminoso de Inverno, mas uma tristeza sombria a pairar sobre a pequena cidade onde arrasto o peso da existência. O Natal aproxima-se, já que os dias, as horas e até os instantes não sabem fazer outra coisa senão passar, presos a uma ânsia de voltar ao lugar de onde partiram.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Vanitas vanitatum

Chegou a noite com o seu silêncio. A praceta está vazia, o café fechado, os alunos do Centro de Línguas foram para casa. Agora, é o tempo das sombras, a hora dos murmúrios, o instante em que a realidade toma outra direcção, mais secreta, grávida de enigmas. Mais logo terei de sair, para um daqueles jantares que a época natalícia arrasta, como se as pessoas que durante um ano inteiro praticamente se ignoram fossem uma grande família, partilhassem entre si alguma coisa de essencial. Durante muito tempo resisti a este tipo de festividades, mas com o passar dos anos fui cedendo ao espírito da época ou ao amolecimento dos instintos. Bem gostaria de ter aventuras para contar, mas nada me sucedeu digno de nota, a não ser ter caído ao subir umas escadas. Tropecei num degrau e lá fui com joelhos e mãos ao chão. Descobri que ainda dou demasiada importância à minha pessoa, pois antes de me preocupar se me doía alguma coisa, fui ver se ninguém tinha assistido a esta cena humilhante. Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Tranquilizado, dei atenção aos joelhos, doíam, mas pouco, coisa que logo passou. Tenho de começar a subir escadas amparado ao corrimão. Estes dias, diga-se, têm sido dados a moléstias. Consegui combinar uma faringite com uma conjuntivite. Tive de fazer a via sacra dos consultórios. Um para mostrar os olhos, outro para deixar que me espreitassem a garganta. Agora que penso nisso, as duas médicas que me viram ainda são menos novas do que eu. Uma delas pouco usa o computador e prefere escrever com uma caneta de tinta permanente, uma Montblanc. Passa uma receita ou faz uma requisição de análises ou exames manualmente. Depois, usa uma folha branca como mata-borrão, já que os autênticos mata-borrões desapareceram. Devem ter sido descontinuados. Eu que comecei a escrever no tempo dos mata-borrões também tenho uma Montblanc, mas não sei para que me serve. Escrevo em teclados, reais ou virtuais, e quando tenho de escrever manualmente, coisa rara, uso o que estiver à mão. Não tenho nostalgia do arranhar, mesmo que suave e delicado, de um aparo sobre o papel.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Fidelidades

Hoje, o padre Lodovico, no seu habitual telefonema de domingo, estava inclinado para a vexata quaestio de quem será o campeão do mundo de futebol. Não sei, confessou-me, se como europeu devo apoiar a França, se devo ser solidário com o Papa e torcer pela Argentina. Recordei-lhe que o futebol não era uma coisa pela qual tivesse interesse. Eu seu, eu sei, mas eu, com a idade, fiquei pior, tenho uma alma de tifoso, que tenho dominado a custo e com algumas penitências, acredite. O meu problema, continuou, é que as selecções de que seria apoiante natural tiveram o destino que tiveram. Isso parece-me uma tautologia, disse-lhe. Tautologia ou não, a verdade é que a Itália nem entrou em combate e Portugal teve um novo Alcácer Quibir. Sim, respondi, este último caso é preocupante, não venham de novo os Filipes e, agora, um Filipe está no trono de Espanha. Não brinque, disse em tom de admoestação. O problema não será assim tão difícil, sugeri. Depende do grau de fidelidade. Se a maior fidelidade, como membro da Companhia, for ao Papa, deverá apoiar a Argentina. Se o ser europeu se sobrepõe a ser papista, então deverá apoiar a França. Não gosto desse termo papista, mas esse é o meu problema. Sou fiel às duas coisas. Nesse caso, alvitrei, deve acompanhar o jogo dilacerado. Será uma forma de expiação.

sábado, 17 de dezembro de 2022

A ordem das coisas

Já é noite há muito e ainda não li ou vi quaisquer notícias. Desconfio que não terei perdido nada de decisivo, pois as coisas decisivas necessitam de muitos dias e, apesar dessa constância na sua geração, a imprensa raramente – e talvez esteja a ser generoso – dá por elas. As notícias são uma forma de cegueira. Cultivei-a durante décadas, rodeando-me de jornais, e ainda hoje não me furto a ser cego, mas já não sinto necessidade de estar informado sobre o estado do mundo. Outrora, a informação captava com alguma sobriedade a espuma dos dias, hoje desinteressou-se da espuma e aterrou nos sentimentos que a espuma provoca. Não há nada mais penoso do que a exposição pública das dores que atingem os mortais. Chega, porém, ao reino da obscenidade a exploração dos sentimentos de revolta e das emoções nascidas em acontecimentos mais ou menos terríveis. Estive com os meus netos e isso encheu-me o dia. Um interessado em dinossauros, outra na viagem de finalistas – meu Deus, viagem de finalistas do 9.º ano – a Paris, e a outra mais silenciosa, mergulhada no tik-tok, mas exuberante com a nota que vai ter a uma certa disciplina. São estas notícias que agora me preenchem a vida. O mundo não deixa de estar aí, mas cada vez pertenço menos a este mundo. É a ordem das coisas.