segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O meu vento

As segundas-feiras tornaram-se muito cansativas. As coisas pioram se há calor, como hoje. Quando chego a casa e me sento à secretária, o corpo, de imediato, inclina-se para uma sesta tardia. Umas vezes cedo, outras resisto. Hoje resisti um pouco e cedi um pouco. Se tivesse ido caminhar o dilema não se punha, mas estava demasiado quente. Agora, enquanto escrevo, vou espreitando o céu e a aproximação do crepúsculo, essa hora em que a luz indecisa não sabe se há-de retornar ao dia ou se mergulhar nas trevas da noite. Depois, um férreo determinismo leva-a para a longe, para retornar com a aurora, não sem que uma nova fase crepuscular se exiba, embora com um desfecho contrário. Na avenida, os carros passam lentamente, as pessoas apressam-se nos passeios e o vento toca com dedos suaves a melancolia das tílias. Por vezes, recordo-me do modo como o vento soprava junto à primeira escola que frequentei. Era de uma maneira especial, que nunca encontrei em qualquer outro lado. Indescritível para os meus parcos poderes literários. Essa escola há muito que não é escola, mas o vento, estou certo, ainda corre da mesma maneira que corria nos dois anos que a frequentei. Várias vezes, durante a vida, fui lá só para comprovar que não era uma fantasia infantil ou uma ilusão sensorial. Nunca saí defraudado. Aquele é o meu vento.

domingo, 29 de setembro de 2024

Um domingo na província

Está um autêntico domingo de província. A frase anterior, desconfio, é destituído de conteúdo. Não quer dizer nada, pois domingos de província deverá haver muitos e para diferentes gostos. Quanto à autenticidade, a coisa ainda é mais espinhosa. Como se poderia falsificar um domingo provinciano desde que ele esteja certificado pelo calendário e pelo mapa? Poder-se-á argumentar que calendários e mapas são coisas sobre as quais poderá recair justificada dúvida. Não são os calendários produtos convencionados pelos poderes humanos? Não são os mapas, apesar dos esforços técnicos, susceptíveis de erros? É verdade, mas devemos confiar nas convenções que subsistem há tanto tempo, assim como no trabalho técnico que insiste, em múltiplas versões, em mostrar que esta cidade, que se engrandeceria caso fosse promovida a vila, não é a capital deste velho país, um dos mais velhos do mundo, saliente-se. Confiantes na gestão tradicional do tempo e do espaço, dizer, quando se está na província a um domingo, que está um autêntico domingo de província é falar – neste caso escrever – para não estar calado. Talvez seja o resultado de um almoço em família ou com parte da família. O resultado é a rasura dos assuntos. Contudo, posso contar uma coisa. Descobri há dias um autor polaco com o nome Stanisław Ignacy Witkiewicz (1885-1939). Terá sido um génio de múltiplas facetas. Pintor, dramaturgo, romancista. Além disso ainda realizou um filme e escreveu sobre Filosofia da Arte. Fazia parte do imenso oceano da minha ignorância. Parece que o seu romance Nienasycenie (Insaciabilidade), de 1930, é uma obra-prima modernista. Não está traduzida em português e de polaco sei tanto quanto de chinês. Poderia encomendar a tradução francesa, o que, por precipitação, fiz. Repousa diante de mim. Contudo, ocorreu-me outra estratégia. Como as obras Witkiewicz estão no domínio público, talvez as conseguisse encontrar num site polaco. O que confirmei em pouco tempo. O passo seguinte foi ir traduzindo, com a ajuda da inteligência artificial, o romance para português. Está traduzido cerca de um quarto das quase seiscentas páginas do romance original. Mais uns dias e estará completamente traduzido. Lê-lo-ei em português. O resultado da tradução automática é melhor, muito melhor do que poderia esperar. Por vezes, comparo um ou outro trecho com a tradução francesa e vejo que o chatbot se sai bastante bem. Não será perfeito, mas eu também não. E nesta tradução foi-se parte do meu domingo autenticamente provinciano.

sábado, 28 de setembro de 2024

Ciência na enfusa

Alguém terá confundido ciência infusa com ciência na enfusa. Eis um equívoco desagradável. Por aqui, chama-se enfusa – não se diz, nesta terra, infusa, embora se possa, ou talvez deva, escrever e dizer – a uma espécie de bilha que se enche com água, eventualmente, com outros líquidos. Aliás, nunca cheguei a perceber a diferença entre bilhas, cântaros e enfusas ou infusas. Também, seja dita a verdade, nunca me interessei pelo assunto. Deixemos de lado os preâmbulos e as taxionomias dos recipientes para transportar líquidos e entremos no assunto mesmo. A ciência infusa é aquela que, transcendendo a compreensão humana, Deus decide infundir num mortal eleito. É uma ciência do outro mundo. Já a ciência na enfusa é aquela que um mortal, esquecido de Deus ou esquecido por este, acumula numa espécie de cântaro – aqui chamado enfusa, recordo – que é a sua mente. A primeira é um dom, a segunda, um vício. A realidade diz-nos que são poucos os casos de ciência infusa, mas são legião os casos de ciência na enfusa. Esta, note-se, não é bem uma ciência, como o são a Física, a Química. Trata-se mais de uma recolecção abundante de informações variadas, sem estruturação digna desse nome, cuja utilidade cognitiva é nula e ainda menor é a sua utilidade prática. Tudo isto para dizer que aquilo que se pratica aqui é uma forma severa de ciência na enfusa, já que este narrador – e ainda menos o seu autor – não foi agraciado (de receber a graça) com a ciência infusa.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Uma hipótese

Estou de cara ao lado. Falso. Sinto que estou de cara ao lado, mas não estou. Por causa das dúvidas, postei-me diante de um espelho e a cara pareceu-me normal, embora isso possa ser discutível. Apesar da afirmação inicial ser falsa, o sentimento é verdadeiro. Tenho parte da cara ainda sob efeitos de uma anestesia. O dentista achou por bem desvitalizar-me dois dentes e anestesiou-me. Não senti nada daquilo que ele fez, mas fiquei com esta estranha sensação de lateralidade facial. No fim da consulta, recebi o conselho de não comer nada na próxima hora, não vá morder-me a mim mesmo. Tudo isto serve para demonstrar uma tese sobre o mundo. Mesmo que, por hipótese, o senhor Gottfried Wilhelm Leibniz tenha razão e este seja o melhor dos mundos possíveis, ainda há nele muita coisa a melhorar. Por exemplo, ser anestesiado, sofrer o ataque do Sétimo Regimento de Cavalaria, dirigido pelo tenente-coronel Custer, antes da derrota em Little Bighorn, contra os dentes, não sentir nada, não ter a sensação de cara ao lado e poder comer mal se sai do consultório. Como se vê, há muitas coisas a melhorar neste mundo. Entre as coisas que poderiam ser melhoradas está o nome do senhor Leibniz. Que pai tinha ele para lhe chamar Godofredo Guilherme? Poder-se-ia melhorar o pai de Leibniz. Também os americanos gostariam de melhorar o resultado da batalha em Little Bighorne, onde foram derrotados pelas forças índias comandadas por Sitting Bull e Crazy Horse. Contudo, desde que os homens foram expulsos do paraíso, as melhorias retrospectivas foram descontinuadas e o Leibniz arrastará pela eternidade fora a alcunha de Godofredo Guilherme e o pobre do Custer nunca vencerá qualquer Touro Sentado ou Cavalo Louco. A anestesia talvez afecte o sistema neuronal. É uma hipótese.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Vida quotidiana

O dia começou sob intensos aguaceiros, mas as coisas foram-se alterando, de tal modo que agora, enquanto escrevo, há um sol alegre, saltitante, uma luz que anima quem passa. As sombras crescem, esculpem relevos fugidios no alcatrão, e adormecem pisadas pela velocidade dos carros, ansiosos de chegar a casa e deixar o motor descansar. No meu carro, o rádio avariou-se, entrou em greve, fez voto de silêncio. Tenho de ver o que se passa, não eu que de rádios grevistas ou com tendências monacais nada sei, mas alguém que se dedique a essas coisas, nem que seja a de me trocar este por um novo, pouco dado à greve ou ao silêncio dos mosteiros. Daqui a pouco vou aproveitar e caminhar, para apanhar ar e encher-me de imagens destes sítios que conheço de olhos fechados – uma evidente falsidade – e onde amealho pontos cardio, os quais me haverão de ser úteis, caso a Organização Mundial de Saúde não se entregue à mentira. Ela ou quem declama as suas recomendações. Acabei de bocejar e logo um pensamento nasceu em mim sussurrando-me que o melhor era dormir um pouco. Há que resistir.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Em memória

Chove e faz calor. Voltei à minha função de boletim meteorológico. É o que faz a falta de ideias. Imagino que esta esteja ligada à vida sedentária a que o tempo chuvoso me obriga. Se caminhasse por aí, alguma coisa me ocorreria. Assim, nada me ocorre. Há pouco, olhei para os frisos – agora já são dois – de orquídeas. Ainda há três em plena floração. As outras, depois da hora de cintilação, adormeceram, deixando cair as flores, como quem se despe para ir para a cama. Hoje, estive numa longa reunião, em videoconferência. Quando acabou, pensei que já não tinha idade para coisas daquelas. Depois, tive de admitir que nunca tive idade – isto é, saco – para aquele tipo de actividade, onde as pessoas derramam as palavras como se elas não tivessem custado toda uma longa história para se formarem e estarem prontas para o nosso uso. Em memória dessa história, deveríamos ser comedidos na sua utilização. Calo-me.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Passagens

Está um dia de Outono, sereno, melancólico e tocado pelo cinzento-claro dos céus. Uma luz pálida derrama-se sobre a cidade. Indiferentes, as pessoas passam, perdem-se no dia-a-dia. Levar e buscar os filhos ou netos à escola, fazer compras, entrar neste ou naquele estabelecimento, passear à trela um cão. Eu olho e deixo o tempo passar. Virá o crepúsculo e, logo de seguida, a noite escura. Que outra coisa pode um mortal fazer senão deixar o tempo passar? Enquanto passa o tempo, também em nós passam os pensamentos e as imagens. Fluem, arrastados por uma água sem nome, e, se formos atentos, vemo-los passar e podemos dizer: ali vão os nossos pensamentos e as nossas imagens, são como ramos de árvores secas arrastados pela força das águas. E isso dá-nos prazer, pois sentimos que nos libertamos deles, do seu peso e da carga emotiva que têm. Essa ingénua rêverie tem um efeito terapêutico, reconciliando-nos com a passagem do tempo. Uma brisa suave – um poeta antigo diria um zéfiro – toca as folhas das árvores, e elas dançam diante dos meus olhos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Véu da ignorância

Voltou a segunda-feira. Os dias da semana têm este problema, substituem-se uns aos outros com inexcedível regularidade e uma monotonia sem fim. O mais curioso é que a sua invenção propunha-se pôr fim a uma outra monotonia, a da indiferenciação dos dias, os quais se seguiam uns aos outros sem nada que permitisse distingui-los. O Sol nascia, fazia a sua jornada e punha-se, como quem entra no quarto para se deitar e dormir. O pior seria a sensação de que os dias iam diminuindo e que poderiam soçobrar na noite eterna. Há muitas coisas que seria muito interessante, embora ocioso, saber. Imaginemos os nossos antepassados de há cinquenta mil anos. Como se relacionariam eles com o dia e a noite, com a passagem das estações ou com as metamorfoses da luz? Sabemos hoje, graças à análise genética, que sapiens sapiens e neandertais se cruzaram e que parte da humanidade possui genes dos neandertais. Esse cruzamento ter-se-á dado há dezenas de milhares de anos, mas parece não ter ficado registado na memória colectiva, na tradição. Sabemo-lo por recurso técnicas analíticas muito sofisticadas. Isto coloca um outro problema, que é o da duração da memória colectiva. Quanto tempo permanecem, cifrados em mitos e lendas, na memória colectiva acontecimentos memoráveis? Quando penso nisto, tenha sempre uma sensação de tristeza pela ignorância efectiva sobre quem somos. Sabemos alguma coisa até há alguns milhares de anos, mas depois o véu do esquecimento é cada vez mais negro, como se uma parte do que somos se devesse ocultar, talvez para que possamos viver com o que somos.

domingo, 22 de setembro de 2024

Mitos e rituais de passagem

Tenho uma neta outonal. Hoje começa o Outono, neste ano de 2024, e ela faz 16 anos. Parece que fazer 16 anos, nos dias que correm, é uma marca importante. Eu não me lembro quando os fiz, mas tenho a certeza de que os 16 não se destacavam dos 15 ou dos 17. Mesmo os 18 eram ofuscados pelos 21, altura em que se atingia a maioridade. Ainda tive de ser emancipado para tirar a carta de condução. Os rituais de passagem mudam com o tempo, mas, o mais decisivo, é que não passamos sem eles. As sociedades modernas, as sociedades desencantadas, colocaram de lado mitos e rituais. O que aconteceu, porém, é que tanto uns como outros se multiplicaram. Por vezes, como ervas daninhas. Não são os grandes mitos e os grandes rituais que dão sentido às existências, mas os pequenos mitos e os rituais insignificantes que assumem esse papel. Por isso, a pequena mitologia, com os seus rituais, do grupo desta minha neta, já não terá qualquer sentido para a irmã, com menos dois anos e meio e muito menos para o meu neto, com menos dez anos. Seja como for, são muito importantes para ela e vou-me despachar para que possa participar numa parte desses rituais e dar força à sua mitologia privada.

sábado, 21 de setembro de 2024

Da autenticidade

Retorno a uma referência anterior, a Gilles Lipovetsky e um título musical de um livro que está na fronteira da Filosofia e da não Filosofia, A Sagração da Autenticidade. A natureza musical deste título deve-se a um empréstimo ao bailado de Igor Stravinsky A Sagração da Primavera. Esta é uma peça musical – e de dança, um bailado originalmente produzido por Sergei Diaghilev e coreografada por Nijinsky – que, durante uma parte da minha vida, considerei como o começo musical do século XX, embora a sua estreia tenha ocorrido em 1913. Nessa altura, considerava que o século XX musical terminava com a terceira sinfonia de Henry Górecky, composta em 1976. Roubava 37 anos ao século, mas sentia que as coisas eram assim. Passei muitas tardes a ouvir a Sagração da Primavera seguida da terceira de Góreky. Há muito que não o faço e deixei de ter qualquer ideia sobre o começo e o fim do século XX musical. Ora, o título do livro de Lipovetsky é uma clara citação da tradução inglesa da peça de Stravinsky, que no original russo parece denominar-se A Fonte da Primavera. Hoje recolhem-se todas estas informações em segundos, desde que se saiba aquilo que se quer perguntar. Ora, sagrar a autenticidade é sagrar um equívoco. O que é ser autêntico? É, ao mesmo tempo, ser sincero – ser uma expressão sincera de si mesmo – e ser autor, autor de si. Por norma, pensamos a sinceridade como expressão espontânea, natural e não fabricada de si, mas isso choca com a autenticidade de ser autor de si, pois esse si já não é espontâneo, mas uma fabricação, ou, melhor, uma ficção. Talvez, e isso salvará o título de Lipovetsky, tudo o que é sagrado o seja por ser equívoco, como o é, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento, o Deus da ira e o Deus da misericórdia.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Cansaços

Hoje tem chovido. Quase sempre bátegas de água violentas, que logo param, como se as nuvens se cansassem desse esforço de enviar sobre a cidade uma água benevolente que se não lavar os corpos, talvez ajude a branquear as almas. Antigamente, as pessoas preocupavam-se em branquear a alma, que se enegrecia em contacto com a fuligem da vida e o carvão do desejo. Hoje, a preocupação maior é a do branqueamento de capitais. Quem os tem procura branqueá-los e a justiça, que os acha negros como o breu, tenta, talvez com pouco sucesso, localizá-los para tratamento e reciclagem. Estou a desviar-me do assunto. Das bátegas de águas, do céu cinzento, das pessoas a recolherem-se sob varandas, pois ninguém acha decoroso num dia de Setembro andar de guarda-chuva na mão para o que der e vier. Agora, enquanto escrevo esta emissão do boletim meteorológico local, os raios solares encontraram uma abertura entre o chumbo das nuvens e derramam uma luz pálida sobre as paredes cobertas de fungos do Hospital. A semana, refiro-me à útil, acabou, sem que a utilidade tenha deixado um rasto de memória. Houve demasiado calor e a memória dá-se mal com temperaturas elevadas. Um alarme de um carro começou a implorar socorro, mas ninguém parece disposto a estender-lhe a mão. Ah já se cansou, como eu também já estou cansado. Maldição, o alarme recobrou as forças rapidamente. Vou fechar as janelas, recostar-me, fechar os olhos e deixar que a peça Für Alina, de Arvo Pärt, me ajude na meditação.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Valor e preço

Um amigo enviou-me um link para uma entrevista a António Feijó, doutorado pela Brown University e professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras, na área da Literatura, da Universidade de Lisboa. Sobre a universidade e o papel das Humanidades ele diz: A História e a Filosofia são, neste momento, modos de introduzir salubridade no discurso público. Depois, dá as razões. São plausíveis, mas não vêm ao caso. O tema interessante é o da salubridade. A referência é feita numa espécie de contra-argumentação da ideia partilhada por muitos universitários das áreas científicas e tecnológicas de que as Humanidades são dispensáveis, um desperdício, dada a sua inutilidade. Ora, se elas contribuem para tratar de um discurso público de natureza patológica, então têm uma utilidade social, o que as torna dignas de serem mantidas no mundo universitário. Partilho da ideia de Feijó de que uma Universidade sem Humanidades é uma instituição amputada, na verdade uma mera escola profissional, centrada no ensino vocacional. O que me suscita dúvidas é a sua crença de que a História e a Filosofia são modos de introduzir salubridade no discurso público. Platão sempre achou o discurso público, a doxa (δόξα), patológico e a Filosofia representava mais uma fuga da epidemia do que um colírio para tratamento da doença. E a questão não está apenas na natureza estruturalmente patológica do discurso público, mas também no caso de tanto a História como a Filosofia, mesmo as praticadas na universidade, poderem ser focos infecciosos, injectando na opinião pública doses maciças de miasmas. Por mim, deixava de lado a utilidade das Humanidades e centrava-me na glória das coisas inúteis, pois é nesse desprendimento da utilidade que reside a grandeza e o valor da Literatura, da História e da Filosofia. Elas têm valor, as outras áreas têm preço.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Commercium sexuale

O filósofo francês Luc Ferry destaca, como um dos acontecimentos capitais dos tempos modernos, aquele que marca uma clara diferenciação com outros tempos, a transição do casamento combinado para o casamento por amor. Esta ideia está conectada com uma outra sublinhada, agora por Gilles Lipovetsky, a da sagração da autenticidade. O casamento passou a ser uma expressão autêntica dos sentimentos das partes e não um mero arranjo contratual, para, citando o Kant da Doutrina do Direito, ordenar aquilo que o filósofo nascido em Konigsberg descreve com o requinte que se segue: Com efeito o uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outro é um gozo, pelo qual cada parte se entrega à outra. Isto foi escrito no § 25 Do Direito Doméstico. Não menos interessante é o começo do § 24: A comunidade sexual (commercium sexuale) é o uso recíproco que um homem pode fazer dos órgãos e faculdades sexuais de uma outra pessoa (usus membrorum et facultatum sexualium alterius). Estamos perante transacções comerciais, nas quais o casamento confere um direito – mas um direito recíproco – aos usos dos órgãos sexuais da outra parte. Não admira que Kant nunca tenha casado, se era assim que ele via a sexualidade e o casamento. Parece óbvio que o amor não fazia parte deste universo. O Eros submetia-se a uma regulação jurídica. O casamento por amor, no âmbito da expressão de uma natureza autêntica, vai libertar o Eros. A desregulação deste tem uma consequência agora conhecida por todos, o divórcio. O Eros esfria rapidamente, o amor dissolve-se no quotidiano, o casamento acaba e lá se vai, acompanhado por um alívio, o direito de usar os órgãos e faculdades sexuais da outra parte, os quais, na verdade, se tornaram soporíferos.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Provérbios

Os provérbios são uma forma de sabedoria que assenta na mais pura equivocidade. Lembrei-me disso ao ver uma referência, em Ernst Jünger, a um muito conhecido: A palavra é de prata, o silêncio é de ouro. O provérbio é composto por duas proposições e nenhuma delas é universalmente verdadeira. Este facto não se deve a que ambas as proposições sejam expressões metafóricas, nas quais se predicam qualidades (a prata e o ouro) que, do ponto de vista da experiência, não cabem ao sujeitos palavra e silêncio. Não é isto que falsifica o provérbio, mas uma outra coisa, também ela expressa de forma metafórica. Quantas vezes o silêncio é de chumbo? Por outro lado, quantas vezes a palavra usada ou dada é de um ferro oxidado, de ferrugem? O interessante, e, por isso, os provérbios são, efectivamente, uma forma de sabedoria, é que os falantes de uma língua sabem identificar o momento de usar esse provérbio, conseguem reconhecer quando ele é pertinente e ajustado, isto é, justo, e quando ele não tem qualquer sentido. O que torna, então, um provérbio uma forma de sabedoria não é tanto o seu conteúdo proposicional, mesmo que metafórico, mas a capacidade do falante o usar de modo adequado. É por isso que os provérbios são formas de sabedoria prática e pragmática, pois implicam saber quando se devem usar e em que contexto. Fora de tempo ou deslocados da situação, são apenas risíveis.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Castigos

Quando leio ou vejo as notícias sobre os incêndios que devastam parte do país penso que a revolta da natureza contra a nossa espécie é terrível e inexorável. A partir do século XVII, a civilização europeia assumiu uma dimensão prometaica. Convencemo-nos – e também parte do planeta – de que, guiados pela razão, pela ciência e pela indústria, atingiríamos neste mundo, através de um progresso crescente, a felicidade que a religião prometia para o outro. O símbolo desta crença que nos guia há três séculos é Prometeu, o titã que, na mitologia grega, desafiou os deuses ao roubar-lhes o fogo para o dar à humanidade. O castigo de Prometeu foi imediato, o dos homens diferido no tempo, mas parece mobilizar como instrumento de punição esse fogo que recebemos como dádiva suprema para nossa libertação do império dos deuses. Estes estão a vingar-se. Ora os deuses não são outra coisa senão a natureza que não suporta já a nossa dominação. Os desequilíbrios da meteorologia são o raio de um Zeus furibundo com a espécie dos mortais que decidiram pensar que são imortais e que tudo o que existe está aí apenas para servir os seus apetites. Gostaria muito de crer que a ciência e a tecnologia – uma encarnação do fogo de Prometeu, isto é, da razão – seriam suficientes para pôr as coisas nos eixos e que tudo acabaria por encontrar o caminho para uma vida normal. Cada dia que passa é uma razão a mais para não crer nesse mudar de agulha tranquila na vida dos homens. Não há quem tenha por missão pôr as coisas nos eixos ou endireitar o que está torto.

domingo, 15 de setembro de 2024

Preguiça

Um dia entregue à preguiça, um estado que teve – e ainda terá – má imprensa. Combinaram-se, para conspirar contra ela, uma transformação na ordem do mundo e o efeito de uma má tradução de um termo latino proveniente do grego. A passagem para os tempos modernos marcou a decadência da atitude contemplativa e a emergência, primeiro, do louvor à acção e, depois, ao trabalho, o que levou Ernst Jünger a dedicar uma obra à figura metafísica do trabalhador. A má tradução tornou a acédia em preguiça e fez entrar esta no rol dos pecados mortais. Os monges do deserto usaram a palavra acédia para designar a falta de cuidado com a vida espiritual. Trata-se de um estado de alma que leva ao torpor do espírito, a um fechamento sobre si do monde, uma não abertura à Graça. Tomás de Aquino, muito depois, integrou-a na lista dos pecados capitais e fez dela o fundamento de todos os outros. A tragédia dá-se na tradução de acédia por preguiça, o que alargou o âmbito do estado pecaminoso. Aquilo que dizia respeito a uma atitude do espírito contaminou o domínio do corpo. A partir destes dois acontecimentos a diligência tornou-se a norma e a preguiça o desvio não apenas vicioso, mas mortal. Foi a isto que entreguei o meu corpo e o meu espírito neste domingo, para além de ter ido almoçar com parte substancial da família. Curiosamente, a preguiça, contrariando a visão de Tomás de Aquino não desencadeou a gula, tendo-me contido, não vá a balança sair por aí desencabrestada aos saltos.

sábado, 14 de setembro de 2024

Movimentos

Raymond Abellio, uma estranha personagem – na estranheza inclui-se a colaboração com o infame governo de Vichy – de um mundo que já acabou, pelo menos ele deixou de ser reeditado, o que será uma espécie de fim do mundo para qualquer autor, num dos seus livros, na parte final, faz uma meditação sobre aquilo que denomina a imobilidade suíça. A certa altura escreve: Mas o que significa esta imobilidade se Rousseau, Wagner, Nietzsche e Lenine se exaltam aqui e, a partir daqui, põem o mundo em movimento? Talvez, penso, a imobilidade acabe por gerar tal frustração que aqueles que vivem nela se exaltam e tentam arrastar, ou arrasar, o mundo. No entanto, este primeiro pensamento é, de imediato, substituído por outro. Essas pessoas seriam, por natureza, uns exaltados, incapazes de compreender o valor supremo da imobilidade. O mundo sempre se movimentou. Nunca faltou gente para atormentar os outros devido à sua ânsia de movimento. Rousseau, Nietzsche, Wagner e Lenine seriam todos eles personagens doentes, que na imobilidade suíça recuperaram forças para cada um, a seu modo, espalhar pelo mundo a patologia que o atormentava. Dir-se-á com razão que sem estes atormentados não haveria história humana. A questão, porém, é a de saber se perderíamos alguma coisa por não haver história. Hegel pensava que a história é o longo processo em que o Espírito, tendo-se alienado na natureza, sai desta e, encarnando no homem, faz uma longa viagem de retorno a si mesmo. Ora, por que razão teremos de ser nós a pagar o preço da viagem do Espírito para casa?

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Vida quotidiana

Está um calor dos diabos. Foi o que me ocorreu ao acordar de uma sesta involuntária diante do computador. A culpa, para me poupar o sentimento de culpabilidade, atribuí-a ao almoço. Deslocado na capital para tomar conta de netas, chegado pela hora de almoço, aterrei num pequeno restaurante goês. Não é que tenha sido desrazoável, mas com o passar dos anos – ou das décadas, para ser mais exacto – o que seria quase uma refeição frugal transformou-se num excesso que, mal me sentei para escrever, me arrastou para essa figura deplorável de velho a dormir sentado não diante da televisão, mas de um computador. Não sei se fui acometido por algum sonho, mas desde que não tivesse dado sinais exteriores de perturbações oníricas, a situação é suportável. O mesmo não posso dizer caso me tenha entregado ao exercício de ressonar. Estou a tentar disfarçar, a evitar conversas. Enquanto isso, continuo a ouvir Luc Ferry, um filósofo francês que tem um conjunto de minicursos ou de conferências no Spotify. São excelentes, embora num registo que hoje é pouco apreciado em Portugal, onde se dobrou o joelho à filosofia anglo-saxónica. Quem quiser ficar com uma visão global da Filosofia e não tiver problemas com o francês, não será tempo perdido. Além de cursos sobre a história da Filosofia, existem outros sobre problemas contemporâneos onde é o filósofo que fala e não tanto o professor de Filosofia, excelente, diga-se. As netas ainda não chegaram a casa, elas que estão a retomar o ritmo escolar das sextas-feiras. Acabadas as aulas, programas com as amigas. Não tardará e dispensam a presença dos avós. Para piorar a situação, o mais novo já vai no segundo dia de aulas. Quando fizer seis anos, já levará dois meses de submissão à realidade. A realidade, porém, é que continua um calor dos diabos.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ignorância

Abro ao acaso uma obra de Herberto Helder e leio A cerejeira é uma aparição, / a febre devora as macieiras, todas / as árvores se consomem de sonho. São construções vivas, focadas no silêncio, suspensas na luz. Penso que também sou uma aparição, mas ao contrário da cerejeira não me tocou o esplendor de florescer. E podia ainda pensar-me macieira febril ou imaginar que faço parte desse mundo vegetal e sou uma das árvores consumidas pelo sonho. Não sou também atacado pela febre ou por sonhos, dos piores, daqueles que se sonham acordado, suspenso não da luz, mas da inacção? Não é o silêncio a minha casa, a construção mais viva que ergui? Talvez eu seja uma árvore que se perdeu da floresta a que pertencia. Conheço casos, e não poucos, de pessoas que são anjos caídos na Terra. Outros, ainda mais numerosos, de homens e mulheres que deveriam ser um animal, um cão, um gato, mesmo um hipopótamo, mas que, por um equívoco, tomaram a forma humana. Não sei se sou um homem sonhado por uma árvore ou uma árvore que sonha ser homem. A ignorância tomou conta de mim e leva-me pela mão.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ocultações

Hoje fui reler o que escrevi ontem, coisa que muitas vezes não faço. E devia. Numa releitura rápida descobri coisas que não deveriam estar escritas como o foram ou pontuações destrambelhadas. A leitura após a escrita corrige alguma coisa, mas não é suficiente para vencer a cegueira de quem escreve. Esta é uma cegueira muito especial, pois é uma cegueira que vê o que não está lá, mas é incapaz de ver o que está. Poderia adoptar outra estratégia. Escrever o texto do post e deixá-lo a repousar durante um tempo, para o ler de novo depois do descanso e introduzir as correcções devidas. Isso, porém, entra em conflito com a minha natureza e com a minha gestão do tempo. Tarefa começada é para acabar o mais rapidamente possível. Outra solução era deixar-me destes textos, o que tinha a feliz consequência de eliminar todos os erros, enganos e equívocos, todas essas maldições começadas por “e”. Não tenho tempo para pensar nisso. Um súbito silêncio abateu-se por aqui. São cinco da tarde e a máquina que me assombra desde ontem calou-se. Terá sido o fim da função diária ou o operador foi apenas fumar um cigarro e beber um café? Não tarda, saberei. Acabei de reler o que tinha escrito. Descobri que no lugar de texto tinha escrito testo. Fico a meditar nesta troca. É possível que o dedo se tenha equivocado ao bater no teclado. O “s” está acima do “x”. No entanto, há uma explicação mais interessante, de índole psicanalítica. É um acto falhado que denuncia a minha intenção de tapar (esconder) qualquer coisa. Parece que a máquina se calou definitivamente. Assim seja.