segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A promoção da cegueira

Quando pus o carro a trabalhar, para sair da Maria Lamas, a Antena 2 estava a dar um programa sobre os irmãos Grimm. Alguém referia, não cheguei a saber quem era, a forma como os Grimm tinham tornado os contos populares em algo mais aceitável para a moral da sua época. O exemplo usado foi o da Branca de Neve. Originariamente, o conflito não era entre a madrasta malvada e a bela e doce enteada, mas entre mãe e filha, provavelmente uma rivalidade de tonalidade psicanalítica. A idealização, com a clara demarcação entre o bem e o mal, por muito encantadora que possa ser, tem o vício de apagar a experiência que o conto popular traria consigo. Olho para aquilo que me envolve, para as pessoas por quem passo, para a avenida por onde encontro o caminho de casa, e a tentação de envolver a realidade com o véu do encantamento é grande. Os Grimm – e outros como eles – tiveram um enorme papel no treino para nos tornarmos cegos. Não, uma mãe e uma filha não podem rivalizar, isso é imoral. E, por isso, não há nada como esse exercício de cegueira que transforma uma mãe numa madrasta. A realidade tem sempre um peso insuportável.