quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Ferida narcísica

O melhor seria deixar de ler jornais, pensei ao ver a notícia do Público. Não há quem não se ache o fruto de uma ocasião única e especial. Nesta coisas ligadas à identidade e à existência, até os mais empedernidos socialistas se acham individualistas e, em segredo, liberais, filhos de projectos racionalmente planeadas para os tornarem naquele ser único e já pleno de iniciativa ainda mal concebido, especulei ancorado na minha triste formação filosófica. Acreditamos nisso como as crianças crêem no Pai Natal ou nesse ser benfazejo conhecido por Fada dos Dentes. E eu por que motivo haveria de ser excepção? Não era. Não era até hoje. Agora, porém, sinto-me abatido, terrivelmente.  O que descobri eu? Eu que nasci em Setembro, e por isso me achava tão virginalmente distinto, fui confrontado, amaldiçoado jornal, com o mais tenebroso dos colectivismos. Um estudo, feito por entidades respeitáveis, mostra que Setembro – isso mesmo, nove meses após o Natal – é o mês com mais nascimentos nos países de cultura cristã no hemisfério Norte. Não bastando isto, o nefando artigo ainda tem a desfaçatez de afirmar que os ciclos de reprodução humana são guiados pela cultura e coincidem com estados de espírito colectivos. Meu Deus, que fizeste tu da singularidade da minha concepção? Foi para me humilhares deste modo que inventaste o Natal? É assim que nascem, para abater o nosso orgulho pecaminoso, as feridas narcísicas, concluí eu, lembrando-me das figuras tenebrosas do Copérnico, do Darwin e do Freud.