quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Metamorfoses

Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo, assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável, coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me. Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter. O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa, o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.