terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Necessidades

Os dias passam, agora, cada vez mais rapidamente, numa cavalgada sem freio. Por vezes, tento agarrar as horas, mas nunca se deixam prender. Quando parece que as tenho bem seguras nas mãos, elas escapam-se-me pelos dedos, incomodadas pelo aperto a que tento submetê-las. Nem sempre as horas foram assim. Lembro-me de um tempo muito antigo em que elas pareciam intérminas. No relógio, o ponteiro dos minutos deslocava-se com uma lentidão que me enlouquecia, enquanto o das horas parecia imobilizado na eternidade. Esse desejo imaturo de que o tempo passe mais depressa nunca devia ter sido desejado. O tempo, esse que então não passava, tratou de o realizar, dando-me horas feitas de minutos tomados pela febre da velocidade. Foi devido a isso que perdi hoje uma reunião. O tempo passou tão depressa que nem dei pela sua passagem. A reunião foi-se. Devia dizer não que perdi uma reunião, mas que a ganhei. Para quem nasceu com alma avessa a certo tipo de convivialidades, perder uma reunião é ganhá-la. As pessoas – refiro-me à generalidade e não a todas – amam reuniões, assembleias, congressos. Marcam presença e ficam convencidas de que existem. Nada pior do que pessoas que precisam de se convencer da sua existência. A minha existência, por exemplo, é coisa por provar. Se penso, se escrevo, se falo, não existo? Provavelmente. Se existisse realmente, que necessidade teria de pensar, de escrever, de falar?

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Um dia difícil

Uma segunda-feira cheia de ocupações. Foi a melhor maneira de esquecer que hoje começa realmente a semana útil. A ideia, subjacente à ordem do mundo, é a de que nos enterremos de tal modo nas coisas úteis até que nos tornemos completamente fúteis. Há, entre a utilidade e a futilidade, um nexo sólido, uma cadeia de aço inoxidável, muito difícil de corroer. Aço inoxidável? Não. Cadeia de titânio, de tungsténio, de zircónio. Não sei o que me levou para esta deriva sobre metais, dos quais, para além do nome, nada sei, e mesmo o nome tem fortes possibilidades de ser sabido num dia e esquecido noutro. Contudo, titânio, tungsténio e zircónio são vocábulos que se adaptam bem a poemas concretos, os quais não posso reproduzir aqui devido às regras estritas que orientam este blogue. Texto corrido, sem parágrafos, sem intervalos além do espaçamento normal entre palavras, sem qualquer inovação. Estes textos são blocos, mesmo quando falam de coisas diversas. Formam um tijolo, embora não sirvam para fazer paredes ou muros. São inúteis, e é pela sua inutilidade que este narrador narra o que narra. Um dia difícil, o de hoje.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Estranho e absurdo

Agora que estamos em pleno Advento e que o Natal se aproxima, a que coisa responde esse acontecimento do nascimento de um Menino no presépio de Belém? Faz-se esta pergunta porque todos os acontecimentos podem ser encarados como respostas a perguntas, embora não tenhamos clara consciência do facto. Os cinco primeiros versos do poema Paraíso Perdido, de John Milton, dão-nos uma resposta: Da rebelia adâmica, e o fruto / Da árvore- interdita, e mortal prova / Que ao mundo trouxe morte e toda a dor, / Com perda do Éden, ‘té que homem maior / Nos restaure, e o lugar feliz nos ganhe.  O que está em jogo é a restauração daquilo que os homens eram antes da rebelião adâmica e da prova do fruto da árvore proibida. O Natal é o nascimento do Adão restaurador, mas a restauração só se dará pela sua morte, pois foi através de Adão que a morte veio ao mundo. O acontecimento de Belém é apenas o início do fechamento de um ciclo, o qual só estará concluído na ressurreição desse Adão que expirou no Gólgota. Da vida plena à morte e à vida degradada, e desta, de novo, à morte e à vida plena. Não admira que Tertuliano tenha afirmado Credo quia ineptum est, isto é, Creio porque é absurdo. A interpretação da frase terá arrastado longas controvérsias, como é habitual no mundo humano das ideias, mas ela sublinha que se está perante uma implausibilidade, tendo em conta a ordem conhecida da natureza. É irrelevante a interpretação que se faça do dito de Tertuliano, como é irrelevante sublinhar-se uma eventual oposição entre o absurdo e o plausível ou razoável. Toda a razoabilidade humana, toda a racionalidade, se funda numa dimensão não razoável e não racional, numa dimensão absurda. A razão é aquela faculdade que os homens receberam – ou desenvolveram – para encontrar um sentido naquilo que, por natureza, é destituído dele, mas que tem uma força propulsora da vida. Daí as inúmeras interpretações desse estranho ciclo que liga o Éden e a árvore do conhecimento, o nascimento em Belém, a morte no Gólgota e a ressurreição ao terceiro dia. Este ciclo manter-se-á vivo enquanto a sua estranheza e o que tem de absurdo para a nossa razão assim se mantiver, estranho e absurdo.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Recordações

Estes dias finais de Outono lembram já os de Inverno, quando, de súbito, no meio das chuvas, irrompem dias de sol frios, com noites gélidas, mas iluminados por uma luz vibrante. Uma memória antiga atravessou-me a mente: aqueles velhos – cujo nome esqueci ou nunca soube – sentados no cruzeiro, cismando, sem trocar palavra, banhados na luz solar, vieram da minha infância até a estes dias em que já sou tão velho, ou quase, quanto eles o eram então. Aqueciam o corpo e a alma na cintilação dessa luz. Depois regressavam, devagar, em passo hesitante, apoiados em pobres bengalas, às suas casas, onde as mulheres, um pouco mais novas, os esperavam, não sei se com alegria ou tomadas pelo tédio. Já não estavam no Outono da vida, mas no Inverno. Naquele tempo, as estações da existência eram mais curtas e, apesar da lentidão dos dias, tudo se consumava rapidamente. Os anos eram bens escassos, mais escassos do que são hoje. O meu avô paterno, nascido em 1889, não teve direito a mais do que quarenta e três. Para ele, foi tudo rápido, demasiado rápido e, para mim – imagino que para todos os seus netos –, é uma sombra longínqua, misteriosa, mas que guardamos na memória, pois todos nós, os seres humanos, temos memórias do que não vivemos nem conhecemos. Não teve direito, na sua existência, nem ao Outono nem ao Inverno, atormentado por um coração falível que a medicina da altura não conseguiu reparar. Imagino que nunca se renderia ao Inverno da vida. Talvez por isso tenha tido de se render à precariedade do corpo. Agora, vou ver como a minha neta mais velha enfrenta o positivismo do Círculo de Viena e o falsificacionismo popperiano. Quando tiver a minha idade, que pensará ela de mim?

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Espírito mercantil

As pessoas começam a entrar em ebulição. Aproximam-se as festas – ou deverei escrever as Festas? – e os mortais, aqueles que pertencem a estes festejos e não a outros, azafamam-se nas compras. Entram nas grandes catedrais do comércio, mas também nas pequenas capelas, na ânsia de despacharem o que têm na lista ou de descobrirem qualquer coisa que se adeqúe ao destinatário. O motivo – a desculpa, dir-se-ia – é o do nascimento de um menino num estábulo, na mais vincada pobreza. Como essa comemoração de um nascimento em berço de palha se transformou numa grande época comercial é um caso que a imaginação mercantil saberá explicar, mas que a imaginação não mercantil terá dificuldade em compreender. Talvez por falta de inteligência. Li que no leste da Alemanha, naquela zona que, em tempos, fora – por arbítrio da geopolítica do pós-guerra – independente da parte ocidental, havia um número considerável de nostálgicos dessa antiga Alemanha que, entretanto, se dissolvera no nevoeiro. Ora, os bancos, essas instituições onde o espírito mercantil cintila acima de quaisquer outras, não tiveram meias-medidas e toca de fazer uns cartões de crédito ou de débito – não me lembro bem – com a efígie de Karl Marx. O que terá sido legítimo, sendo Marx alemão, embora do Ocidente, e tendo escrito uma obra designada O Capital. O espírito mercantil tem por essência transformar tudo em mercadoria, isto é, em coisas que se vendem e compram. Por aqui, ninguém sente nostalgia de Marx que leve os bancos a colocarem-no nos cartões com que se pagam os presentes de Natal, mas também não sei que nostalgia haverá daquele nascimento de um menino em berço de palha. Aquilo que anima o espírito natalício é a obsessão de esquecer que, afinal, o menino não nasceu em berço de ouro, o único tipo de nascimento que estamos dispostos a comemorar. De resto, só falhados nascem num estábulo.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Preocupações

Decidi fazer uma pequena experiência. Perguntei a um chatbot a razão por que uma língua humana é um cemitério de metáforas mortas. Não se fez rogado e deu uma resposta bastante convincente. Uma das informações que teve a gentileza de me fornecer dizia respeito à palavra relógio. Transcrevo: A palavra "relógio" vem do latim horologium (instrumento que "fala" as horas). O dicionário da Porto Editora é mais comedido e refere que horologiu- significa “que diz a hora”. Ora, entre os relógios latinos e os actuais deu-se uma metamorfose. Os antigos falavam, diziam; os actuais mostram – daí terem um mostrador. Desconheço se os latinos tinham aparelho fonador, mas se falavam, era natural que tivessem. O mundo é composto de mudança. Houve um tempo em que não apenas os animais falavam, mas também os objectos o faziam. O mais loquaz seria, pelo nome, o relógio, mas, por certo, todos os outros se exercitavam no uso da palavra. O mais estranho é que tanto animais como objectos emudeceram. Não sei se isso será a anunciação de que também nós, os mais palradores da criação, estamos a caminho da mudez, ou se eles foram vítimas de uma conspiração que os reduziu ao silêncio. Seja qual for a resposta ao enigma, ela será sempre preocupante.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Colapso do universo

Uma das experiências insólitas trazidas pela idade é a da transformação do tamanho das letras dos livros. Durante anos, décadas, a letra dos meus livros era estável. Tinha uma certa dimensão que se mantinha obstinadamente constante. Não aumentava, mas também nunca diminuía. Eu, ainda que não o dissesse a ninguém, admirava essa estabilidade. Prezava o carácter firme dos caracteres. Há uns anos, todavia, a realidade alterou-se, e esses mesmo caracteres tornaram-se estranhamente volúveis. Talvez não seja esse o termo. Adoecerem e começaram a sofrer de uma qualquer atrofia. É possível que passem fome, chego a imaginar, e por isso perdem dimensão, empequenecem. Presumi que o problema fosse dos meus olhos e passei a usar óculos de leitura, mas isso não tem qualquer efeito nas pobres letras que enxameiam os meus livros, jornais, revistas. Admito que pode haver um retardamento no decréscimo do seu tamanho, talvez uma ilusão provocada pelas lentes. Eles continuam a minguar. As pessoas hão-de julgar que é um problema meu, dos meus olhos, que este texto é a prova de que endoideci. Pura ilusão. É uma transformação na natureza das coisas, o fenómeno é de dimensão ontológica e não biológica. A realidade está a empequenecer, como se se preparasse para colapsar. A diminuição dos caracteres é a anunciação do colapso do universo.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Fazer cenários

O carrossel da noite instalou-se há muito. Nele viajam figurantes de um drama, pois essa é a natureza dos homens. Por vezes, o próprio nascimento é um drama. Depois, a saída de cena, mesmo quando há quem se rejubile, não deixa de ser dramática, por mais prosaica que seja. E o que vai da hora do nascimento até à hora da morte nunca deixa de ter os seus dramas. A palavra grega δρᾶμα (drama) deriva do verbo δρᾶν (agir) e significa acção. Contudo, não se deve confundir com acção enquanto πρᾶξις (praxis), que se refere à acção derivada de decisões e escolhas de natureza ética e política. Enquanto acção, drama é uma representação teatral. Ora, quando se diz que a vida, ou partes dela, e a morte são dramas, temos de entender que são representações. Dito de outra maneira, o dramático é dramático porque resulta de uma encenação. A expressão, ao gosto popular, estás a fazer cenários, colhe, na sua crueza jocosa, o sentido da dramaticidade da vida e da morte. Não se pense, porém, que isto é uma crítica aos dramas da vida e da morte. São eles que nos tornam humanos. São jogos rituais que conferem um sentido ao que, na verdade, são meros acontecimentos perdidos num universo sem medida humana. A nossa vida e a nossa morte só têm sentido num universo representacional, num mundo encenado. O carrossel da noite continua a girar. Nele entram e saem figurantes. Na verdade, na grande representação da vida e da morte, não há grandes estrelas; só figurantes.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Estrelas

Os dias continuam a minguar. Saí de casa para ir à farmácia; o exército da noite já tinha tomado de assalto a avenida, agora sujeita à rutilância dos adereços de Natal. Ora, mudando de conversa, se a história do nascimento do Menino fosse nos nossos dias, os Reis Magos não viriam do Oriente, pois, com a poluição luminosa, não conseguiriam descortinar nos céus a estrela que os haveria de guiar. É preciso que a noite não seja incomodada com simulacros do dia, para que certas estrelas – aquelas que guiam os que procuram um destino – possam ser vistas e permitam aos videntes fazerem-se ao ao caminho, sem temor de se perderem por falta do astro benevolente que os norteie, mesmo que seja o Sul que os espera. É certo que existem GPS, o Google Maps e o Waze, mas esses só nos levam, quando levam, a destinos onde não nascem Messias. Se, por acaso, um desses dispositivos ou uma dessas aplicações nos levar a um sítio onde está a nascer um salvador, o melhor será fugir enquanto houver tempo, pois salvadores humanos são coisas – repito, são coisas – que conduzem os pobres homens à perdição. Imagino que estou a dramatizar, mas, com a diminuição constante dos dias, não tarda estaremos mergulhados nas trevas eternas.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Esquecimento

No Público de ontem, José Pacheco Pereira escreve sobre a perda das duas culturas. O que está em causa não é o objecto de Meditação de C. P. Snow num célebre ensaio, de 1959, denominado As duas culturas. Nele, o autor argumentava que a cisão da cultura ocidental entre as ciências e as humanidades – as tais duas culturas – impedia uma compreensão mais profunda da realidade e dos desafios que enfrentamos. O texto de Pacheco Pereira refere-se já não a uma espécie de conflito entre as ciências e as humanidades, mas à perda pura e simples das referências das duas culturas que estão na base daquilo que nós, ocidentais, somos. A cultura greco-latina e a cultura judaico-cristã. Se há 65 anos, o drama estava na separação de dois reinos, hoje ele reside no apagamento da memória constituinte daquilo que somos. Tanto as ciências como as humanidades têm as suas raízes nessas duas culturas, que uma amnésia geral está a apagar. Elas são muito diferentes, mas têm um ponto que as une. São bastante exigentes e propõem, cada uma à sua maneira, um caminho de superação dos limites da nossa humanidade. O esforço é o seu núcleo comum. Foi essa lição que nos trouxe até aqui, mas que estamos a rasurar a toda a velocidade. Platão e Aristóteles não são fáceis. Homero ou Virgílio também não. O caminho do Cristo, com as suas exigências éticas e espirituais, não é um passeio na marginal. Contudo, foram essas dificuldades que permitiram criar um ideal de superação, que nos levou a ir mais longe e mais alto. Se se consumar a perda das duas culturas, resta-nos, primeiro, a cave e, depois, o abismo.

sábado, 30 de novembro de 2024

Uma ingenuidade

Talvez estejamos a passar por uma época em que a nossa relação com a verdade se está a alterar radicalmente. No século XVII, Thomas Hobbes ainda tinha uma visão ingénua dessa relação: A ignorância sobre o significado das palavras, que é falta de entendimento, dispõe os homens a confiar não só na verdade que não conhecem, mas também nos erros, e, pior, nos absurdos daqueles em que confiam. A ingenuidade reside em fundar a confiança nos erros e nos absurdos na falta de entendimento. O que se passa é que, mesmo com entendimento das coisas, muitas pessoas preferem o errado ao certo e o absurdo à verdade. A verdade e o certo trazem aos homens desconforto, pois tornam-lhes patente as fantasias em que navegam e os erros que cultivam. A verdade do conhecimento e a correção moral humilham a vaidade humana, e não há nada que mais enfureça os homens do que a sua vanglória ser posta à luz do dia. Qualquer candidato a tirano sabe que só será eficaz no seu caminho se alimentar a fantasia e os erros dos homens. Thomas Hobbes ainda vivia na longa sombra de Platão, na crença de que as pessoas fazem o mal porque desconhecem o bem. Ora, as pessoas fazem o mal porque, na maior parte dos casos, querem fazer o mal, mesmo que conheçam o bem.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O alvedrio das coisas

O mundo das coisas é o mais equívoco dos mundos. Estamos convencidos de que elas são destituídas de vontade. Presunção nossa. Já nem falo do arbítrio dos carros, que decidem avariar-se no momento mais impróprio, ou dos pneus, que se deixam perfurar quando mais precisamos deles. Os livros são coisas e, como coisas que são, não se furtam à equivocidade existencial, nem a ostentar um alvedrio que nós, pobres seres humanos, somos incapazes de explicar. Por exemplo, uns tendem a desaparecer. Escondem-se e, por mais que os procuremos, furtam-se à nossa determinação policial. Outros, porém, surgem duplicados. Umas vezes, um ao lado do outro; outras, um num lugar e outro noutro. Uma coisa que acontece com frequência é procurar-se um livro e encontrar-se dois iguais que não se procuravam. No caso de dois iguais, há uma modalidade interessante, que começa a ser recorrente: um deles disfarça-se e apresenta-se com uma capa diferente, mas, por dentro, é igual. O que, a acreditar em Leibniz e na sua teoria da indiscernibilidade dos idênticos, quase nos permite dizer que são o mesmo livro. Lá fora, uma criança canta, baloiçando-se no parque infantil. Em casa, uma música fora dos meus hábitos acompanha a adolescência da minha neta mais nova. O livro que procuro continua a insistir em esconder-se. O que vale é que amanhã é sábado.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Dias nefastos

Os dias estão cada vez mais pequenos, mas a azáfama prolonga-se para lá das horas de luz natural. Depois, num email, a notícia da morte de alguém que se conhece há muito. De seguida, o telefonema de um amigo. Eh pá, estou com cancro de próstata, a biópsia deu positivo. O leque dos possíveis, a contabilidade das hipóteses. Depende, de haver ou não metástases. E o que se pode dizer numa situação destas? Envelhecer também é isto. Ver o que acontece com os outros e ficar à espera que chegue a hora de termos más notícias, sem nada de relevante – isto é, de salvífico – para dizer aos outros e a nós mesmos, se e quando for o caso de as notícias indesejadas serem a nosso respeito. Para completar, uns malditos papéis a preencher para as finanças, mas faltam papéis do banco, que já deveriam ter chegado e não chegaram. E em nada disto há metafísica, por mais que a morte, a doença e a burocracia nacional – uma doença mortífera que nos corrói – gerem meditações metafísicas. A melhor coisa do dia foi o brownie de chocolate preto que comi no café aqui ao lado, esse, sim, pleno de metafísica, pois não há outra metafísica senão a de comer chocolates.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Inclinações poéticas

Uma das obras do filósofo alemão Peter Sloterdijk tem, na tradução portuguesa, um belo título: Palácio de Cristal. Contudo, quando se procura o título alemão, para nosso desgosto, não encontramos nem palácio nem cristal, apenas um prosaico Im Weltinnenraum des Kapitals. Mesmo para alguém que não sabe alemão, como é o caso deste narrador destituído de narrativa, percebe-se que por ali está a ideia de capital (Kapitals), de mundo (Welt), de espaço (Raum) e de interior (innen). Imagino que seja difícil traduzir Weltinnenraum. O que se passa, porém, é que Portugal é um país de poetas, e os nossos tradutores são poetas em exercício. Esse interior do espaço mundial – ou será do espaço-mundo? – do capital, uma realidade, por certo, bem prosaica, é trocado por uma metáfora: o Palácio de Cristal, autorizada, claro, pelo conteúdo da obra, o título do capítulo 33. Quem olha para a designação alemã fica com uma ideia do que trata a obra. Quem olha para a tradução portuguesa, mesmo com a ajuda do subtítulo Para Uma Teoria Filosófica da Globalização, não sabe bem o que tem pela frente. Talvez isto explique a razão por que os alemães têm uma economia forte e os portugueses têm a que têm. Contudo, há razões para contrariar o meu comentário. A obra de Sloterdijk, esta mesma, está recheada de metáforas, uma ânsia poética em espírito filosófico. Ora, a filosofia, tal como a conhecemos, começou, de facto, com a dupla Sócrates-Platão, e este, para se tornar discípulo do primeiro, teve de rasgar o seu trabalho poético, as tragédias que teria escrito. No Fédon, Platão põe na boca de Sócrates, horas antes de este tomar o veneno, a ideia de que os poetas fazem ficções e os filósofos argumentos. A partir daí o campo ficou dividido, e, mesmo dentro de um palácio de cristal, não será boa ideia ficcionar quando se trata de argumentar. Esta é a minha opinião de hoje. Amanhã posso ter uma contrária. Cada dia com o seu mal.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Metamorfoses

Leio os versos: A nado, na entrada, por um quinto degrau, / acede-se ao algibe. Análoga série de subida / guiando-nos a um cubículo iluminado por cera, / miradouro de sedação, cerimonial gongo de zinco. Pertencem a um poema de Joaquim Manuel Magalhães. O poeta, já bem entrado na idade, quase que renegou toda a sua obra poética. Condensou-a, drasticamente, em Um Toldo Vermelho, publicado em 2010. Em 2018, publicou Para Comigo. O poema citado pertence a Canoagem, de 2021. Tudo editado pela Relógio d’Água, uma das editoras portuguesas com melhor catálogo, embora isto de melhor e de pior dependa do gosto do leitor. Eu sei que esta posição é relativista – melhor, subjectivista – mas, mesmo que exista um critério universal e indiscutível para medir as escolhas estéticas das editoras, ninguém o conhece. Esse desconhecimento, submete este tipo de avaliações ao que agrada ou desagrada a cada um. E se eu oferecer um critério sólido, logo aparecerá alguém a oferecer outro critério tão sólido quanto o meu. Perdi-me. Citei o poema e entrei por critérios de avaliação estética, digamos assim. O que me trouxe à citação do poema foi uma palavra, algibe. Uma palavra de origem árabe – a mesma origem de aljube – e que significa cisterna. Ora, desconhecia a palavra. Ela obrigou-me a ir ao dicionário e o excerto ganhou outro sentido. O efeito poético reside não numa metáfora cintilante, mas na raridade do uso de uma palavra. O estranhamento pode existir na própria literalidade, basta o recurso a um termo em desuso. A escolha de algibe, por outro lado, acaba por estabelecer uma ligação semântica com aljube. O árabe al-jubb não significa prisão, mas cisterna. O que aprendemos, então, é que toda a cisterna se pode transformar num cárcere. O mundo está cheio de metamorfoses.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O que me preocupa

Esta facilidade comunicacional não traz nada de bom. Que o diga a minha neta mais nova: a mais de cem quilómetros de distância, está sob fogo intenso. Consta que vai ter um teste de qualquer coisa — não sei se de Geografia ou de Física — e a avó não lhe dá um minuto de descanso. Ela que acorde, que leia a questão, que oiça. Imagino as caras que fará. Tenho de procurar um restaurante que tenha alguma coisa que lhe agrade para a levar no fim-de-semana, pois vem para cá continuar a saga do estudo. Na semana que vem, terá quatro testes. De facto, a escola é uma fonte de infelicidade inominável. Penso, não poucas vezes, que nunca recuperei do choque de, num dia oito de Outubro, uma segunda-feira, ter nela entrado. Tenho, claro, uma alma inclinada para a irresponsabilidade e levei quase toda a minha vida a disfarçar-me de pessoa absolutamente consciente dos deveres. Se enganei os outros — o que me parece plausível —, nunca me enganei a mim. Nunca acreditei na minha responsabilidade. Fazia o que tinha de fazer, mas sem qualquer fé no sentido daquilo que fazia. Ora, a entrada na escola é o momento em que uma alma livre se submete para sempre aos imperativos soturnos do princípio de responsabilidade. Entra-se nesse campo minado e nunca mais se sai de lá, mesmo quando a escola ficou já bem para trás. A minha neta resiste, mas acabará por se submeter. O que me preocupa, porém, é descobrir um restaurante por aqui que ela ainda não conheça.

domingo, 24 de novembro de 2024

Melancolias

Uma coisa é a melancolia de domingo; outra, bem diferente, é um domingo melancólico. A melancolia de domingo é um sentimento subjectivo que invade os mortais quando o fim-de-semana se aproxima do fim, e a realidade, com os seus imperativos, se anuncia nos dias úteis que estão a bater à porta. Um domingo melancólico é, por seu lado, uma propriedade objectiva de certos domingos, e é independente dos sentimentos que possam ou não invadir os seres humanos. Este domingo tem sido objectivamente melancólico. Só o descobri quando saí de casa e me pus a caminho de uma certa aldeia deste concelho, onde os agricultores vendem as suas laranjas. As últimas que lá comprara eram óptimas. Combinavam a doçura característica da laranja da baía – será que ainda se chamam assim? – com um toque de acidez dado por serem temporãs. Ora ao ir e ao vir, reparei que a paisagem era ostensivamente melancólica. O cinzento do céu, o ar outonal das árvores, a quietação dos campos, tudo isto era a manifestação de um domingo tomado por uma melancolia que provinha da sua própria natureza. Essa melancolia dominical reflectia-se em mim num moderado contentamento, numa vontade de caminhar e de respirar o ar dos campos. Como disse, o contentamento era moderado, pois o caminho foi feito de carro; a venda das laranjas ainda dista alguns quilómetros de casa. Com a vinda da noite, a melancolia do domingo desapareceu, restando apenas umas horas para que chegue uma nova segunda-feira.

sábado, 23 de novembro de 2024

Alienação

Li as primeiras páginas de Caruncho, o primeiro romance da espanhola Layla Martínez. É uma escrita poderosa e sem contemplações, onde o recurso à imaginação se combina com a crueza narrativa. Há nela um pacto entre a força da juventude e a maturidade nascida de uma vida tensa. Pouco sei da autora. Nasceu em 1987 e o romance foi publicado em 2021. Teria 34 anos, na altura. Não sei se aquilo que li é uma transformação literária de uma biografia ou o resultado de uma imaginação poderosa. Não quero saber. Gosto de conjecturar uma completa dissociação entre a vida do escritor e a obra que produz. O ideal seria que alguém criasse obras completamente desvinculadas da sua experiência de vida e da sua personalidade. O autor morreria ao escrever. Platão, através do inevitável Sócrates, dizia que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. O mesmo se pode pensar para a arte: vê-la como modalidade de morte do artista na produção da obra. Morrer, neste caso, significa apagar os traços biográficos do autor, torná-lo ausente da sua obra, deixar que esta, sendo sua produção, seja autónoma em relação ao produtor. A arte não é, assim, a expressão de uma subjectividade, mas um acto de estranhamento, a produção de uma alteridade radical, uma modalidade de alienação. Isto, porém, implicaria um domínio tal dos mecanismos da língua, no caso da literatura, e dos artifícios da poética – que apenas estariam ao alcance de um deus ou de um anjo. E, como sabemos, nem deuses nem anjos se interessam pelas práticas artísticas que inflamam o coração dos homens. De alguns, claro.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Esperemos

As sextas-feiras sucedem-se a uma velocidade vertiginosa. Mal acaba uma, já estamos a entrar noutra, como se o resto da semana não fosse mais do que um interlúdio entre elas. Esta modalidade de abolir o tempo entre dois pontos é uma luta contra Cronos, o devorador dos filhos. Dito de outra forma, é parte da revolta contra os titãs, um episódio da titanomaquia. Os mitos gregos assinalam a derrota de Cronos, mas há um equívoco, pois continuamos a guerra contra ele e, até hoje, ainda não saímos vitoriosos. Para tudo haverá um Kairos, um tempo oportuno. Também para liquidar Cronos e matar, de vez, o tempo, haverá um Kairos: uma hora decisiva em que o nosso inimigo não resistirá. Só que essa hora é desconhecida e não vale a pena planeá-la ou pensar nela, pois não se deixará apanhar nas redes dos nossos planos nem nos ardis do nosso pensamento. Apresentar-se-á furtiva como uma sombra e rápida como um raio. Se houver alguém que a perceba, será o novo Teseu ou, para ser mais preciso, o verdadeiro Teseu, pois o Minotauro não é outro senão Cronos, esse tempo que nos devora. Esperemos que encontre a sua Ariadne.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Metanatureza

Os dias continuam a empequenecer, o que implica o engrandecer das noites. Sim, podia ter dito diminuir e crescer, mas perderia o efeito de compreender que os dias estão cada vez mais pequenos e as noites cada vez maiores. Algo ou alguém pode diminuir e, mesmo assim, ficar grande. Também é claro que certas pessoas, por muito que cresçam, não deixarão de ser pequenas. Não me estou a referir à altura. Pergunto-me pela razão que levou a natureza a dispor assim os dias e as noites. Não procuro uma explicação física, mas uma elucidação metafísica. Talvez a natureza temesse que uma distribuição igualitária das horas pelo dia e pela noite, durante todo o ano, acabasse por encher de tédio os seres humanos. Preocupada com isso, decidiu que a distribuição das horas do dia pela luz e pelas trevas seria feita de forma progressiva, que é, ao mesmo tempo, uma forma regressiva. Repare-se: o tormento metafísico da natureza não foi a igualdade – pois a distribuição acabará por ser igualitária – mas o tédio que uma igualdade distributiva contínua e à outrance provocaria. Podem dizer que a natureza é despida de metafísica, que não há mais metafísica do que comer chocolates. A favor poderão, inclusive, chamar a atenção para a palavra física que é a tradução de um termo grego – Φύσις – que significa natureza. Ora, se uma natureza não contiver em si mesmo aquilo que vai para além dela, uma metanatureza, então é uma natureza deficiente, amputada daquilo que a leva a ir para além de si mesma. Dessa metanatureza faz parte ter intenções, preocupar-se com o tédio das espécies que gerou na humidade do seu ventre. Toda a mãe é mais que uma mãe. Por que motivo a natureza seria uma mãe que não era mais que uma mãe? Chega por hoje. Já iluminei, com revérbero cintilante, de modo mais que suficiente a humanidade. Não posso esgotar num simples texto os recursos que a natureza, na sua generosidade, me distribuiu.