Há uma forma de fazer filosofia, hoje com as acções em alta no mercado de valores intelectuais, que dá uma importância desmesurada às classificações. Em qualquer assunto proliferam uma quantidade indefinida de espécies catalogadas por nomes que, em geral, terminam com o sufixo -ista. A filosofia é então uma tarefa infinita de sufixação e criação de categorias para lá incluir a fauna que se dispersa numa selva que não pára de crescer. Parece ser o único sítio no planeta em que a vida selvagem não se encontra em perigo. Ter pensamentos destes antes de um almoço de domingo não é sintoma de grande saúde mental. Por outro lado, estas coisas não interessam a ninguém a começar por mim, embora eu seja um exemplo acabado de pessoa que se interessa por coisas que, na verdade, não a interessam para nada. No sítio onde estou, avisto uma chaminé antiga, daquelas redondas, feitas de tijolo, que se elevam, impantes, sobre a pequenez do casario e que indicam a existência de um forno. Espero ver o fumo sair dela, mas a minha esperança é defraudada. À sua exuberância fálica corresponde uma esterilidade de facto. O almoço parece atrasado, as vozes lá de dentro sussurram e eu, sem saber o que fazer, sigo a pista dos contigentistas e dos necessitistas, como quem segue no rasto de animais exóticos, embora sem esperança de criar um zoo e cobrar entradas aos excursionistas de domingo e a deslumbradas turistas de telemóvel em punho. O talento para os negócios foi uma virtude que a divindade achou por bem não distribuir pela minha pobre pessoa. Não fora isso e abriria um jardim zoológico.
domingo, 25 de agosto de 2019
sábado, 24 de agosto de 2019
Pescadores de paciência
Passei uns dias num sítio – em Portugal, note-se – onde a temperatura recusa afrontar-me. Pelo contrário, sempre foi cordata e raramente me desmentiu a sensação de estar num daqueles países do norte, de onde imagino que há muitos séculos um desconhecido antepassado teria saído e aportado por aqui, para distribuir uns genes que, apesar de trambolhões e naufrágios, chegaram a mim, fazendo-me sonhar com paisagens frias sob a névoa, bosques e frutos silvestres, que só naquelas paragens haveria. Isto, porém, não merece confiança, pois sou dado a imaginar coisas e à prática da hipérbole. Nesses dias, de manhã, dava longos passeios perto do mar. Fazia parte da digressão entrar por um molhe e ir até ao farol. No molhe, encontrava invariavelmente uns quantos pescadores à linha, com as suas cadeiras, as canas, os anzóis, sacos e cabazes misteriosos. Quase sempre solitários. Por vezes, levantavam-se, recolhiam a linha manejando o carreto, que grasnava não sem gravidade. Depois, executavam um movimento de corpo, um balanceamento de trás para a frente, quase um passo de dança que lhes permitia lançar mais longe o anzol e logo se sentavam, a olhar hipnotizados as águas ou a fumar distraídos um cigarro. Nunca vi um peixe que fosse. Talvez eles se dediquem à pesca apenas como exercício de paciência ou para pagar alguma promessa, pensei numa altura. Agora que falo disto, lembrei-me de mim. Também eu sou um lançador de anzóis a que nenhum peixe morde o isco. Deveria ir pescar para outro lado, mas é tarde e o crepúsculo não deixa de ter o seu encanto.
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
Questões de pombos
Há pouco, na esplanada onde fui tomar café, entraram dois ou três pombos, que se saracotearam, de peito feito e cauda trémula, por ali, entre o prazer de uns e o nojo de outros. Em quase tudo, a humanidade reparte-se e, se o assunto toma dimensão, logo se formam partidos, onde gente açulada por algum chefe se prepara para degolar os oponentes. No caso dos pombos, eu era neutro, verdadeiramente apolítico. Nem prazer, nem desprazer. Achei-os, como sempre que os vejo andar, completamente ridículos e um pouco raquíticos. Mais o branco que os cinzentos, pois o peito era menos exuberante e a penugem parecia amarfanhada. Como é de desconfiar, não sei nada de pombos, a columbofilia nunca tocou sequer o círculo mais longínquo dos meus interesses. Falo agora deles porque, apesar de tudo, não é tão desolador quanto falar da espécie humana. Eles, honra lhes seja feita, não ostentam a designação de animal racional, que nós humanos tão orgulhosamente exibimos, embora isso pouco corresponda à realidade. E não se pense que estou a colocar-me fora da humanidade, num lugar sobranceiro para alardear a minha suposta mas nunca provada racionalidade. Pelo contrário. Que racionalidade haverá em escrever sobre pombos que entram numa esplanada? Nenhuma, dirá o leitor, e eu concordo de imediato. Eles lá se foram embora, num passo hesitante, depois levantaram voo e eu fiquei sem assunto. Também é verdade que podia falar sobre a mistela que uma mulher já entrada na casa dos trinta ia levando à boca. Agora, porém, seria eu que ficaria enojado e pronto para tomar partido a favor de alguma forma de abolicionismo. Tenho de me precaver destes impulsos.
quinta-feira, 22 de agosto de 2019
Desastres manuais
É um trauma antigo. Tenho uma relação difícil com os tubos
de cola. Fundamentalmente, com aqueles minúsculos de onde sai uma substância
translúcida que consegue até grudar o céu ao inferno, imagino eu. Exigem uma
perícia no manuseamento que a natureza ou Deus decidiram não me conceder ou,
para persistir no registo religioso, o diabo me roubou. O certo é que, sempre
que me aventuro em unir aquilo que o tempo ou o descuido desuniu, fico com os
dedos lambuzados com a maldita mistela, a qual, sem me dar tempo para reagir,
seca e forma uma película sobre a pele. Irrita-me a insensibilidade digital a
que fico sujeito. Não una o homem aquilo que foi desunido, parece-me uma
injunção a não desprezar. Suspeito que haverá um produto que dissolva a
mixórdia que me envolve os dedos, mas nunca me lembro de o comprar, caso
exista. Fico assim cativo da minha inabilidade estrutural. Quando isto
acontece, como há pouco, olho para as minhas mãos, como se contemplasse a mola
propulsora de um desastre. Depois, rio-me. Nem disso, por pequeno que fosse,
seriam capazes. Os trabalhos manuais sempre foram uma penitência excessiva e se
oiço a palavra bricolage afasto-me de imediato, num exercício de verdadeira
prudência.
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
Do falhanço como obra de arte
Falhar a vida é uma tarefa meticulosa, um exercício contínuo que exige uma persistência sem limites. Apesar da péssima fama com que a turba, acicatada pelos funâmbulos do mérito, acolhe o falhado, este pode ser altamente criativo. Não é descabido pensar a falência existencial como obra de arte. O candidato a falhado pega na matéria da vida e trabalha com ardor sobre ela. Estica-a, encolhe-a, testa-lhe a plasticidade. Um golpe aqui, uma pressão acolá, um corte mais além. Sempre que suspeita um plágio, uma citação ou até uma mera referência, ele retorce a sua vida, até que a torna incompreensível. Nessa altura, quando a obra se torna inédita, de uma originalidade irrecusável, começam a sussurrar nas costas do artista do falhanço. Crescem os dedos acusadores. De tanto se alongarem, alguns destes dedos transformam-se em verdadeiros estiletes. Os sussurros são já a vozearia que a alcateia não consegue calar, mas como há quem se faça eunuco por amor do reino dos céus, também o falhado se faz surdo por amor da sua falência. Com o meu falhanço às costas, deixo que Setembro se aproxime e com ele me seja atirado à cara o daguerreótipo da minha vida. Há sonhos que se deveriam apagar mal acordamos, penso enquanto me preparo para ir ver como está o mundo lá fora.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
A vida quotidiana
Um brilho áspero desce dos céus e poisa impenitente sobre os ombros dos transeuntes. Estes caminham ajoujados ao peso dos raios solares, suspiram e limpam o suor a lenços sujos e já gastos. Em sentido contrário vem uma mulher coberta de folhos, saracoteando-se no pequeno palco que a rua lhe oferece. Alguns olhos, tomados por uma febre raquítica, prendem-se aos requebros e imaginam desfolhadas. É difícil perder o atavismo rústico, pensei. Por fim, fez-se silêncio lá dentro. As vozes incomodavam-me a visão. Abro a janela e deixo entrar o ar vindo da rua. Com ele chegam as imagens do que se passa lá fora. O escritório torna-se um hall onde se encontram as mais inusitadas pessoas. Olham-se desconfiadas, garras afiadas, aturdidas por se encontrarem ali. Um homem baixo, olhar velhaco, tira uma navalha do bolso, enquanto a mulher dos folhos pára os bamboleios. Prepara-se para gritar. Um pombo aproxima-se da janela, mas afasta-se de imediato assustado. Também ele viu aquilo que só eu vejo. Bato as palmas, aquela gente sai pela janela, que fecho de imediato. Lá em baixo, o homem de olhar velhaco esconde a navalha, enquanto as ancas da mulher dos folhos retomam o seu ondular campestre. Então, enlouqueço lentamente. O melhor será cobrir os móveis com gualdrapas, digo, mas ninguém quer saber daquilo que eu digo.
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Um cavalo desenfreado
Olho para o relógio e sinto na face um ricto de desagrado. A tarde correu mais depressa do que tinha pensado. O almoço prolongou-se, sem que uma fronteira definida o colocasse perante um fim imperativo. Nestes dias em que os grilhões do dever se abrem para criar uma ilusão de liberdade, relógios e calendários são tomados por uma imprecisão nefasta, banhando-se no negro oceano da vagabundagem. O tempo, assim liberto da vigilância apertada, é tomado por um galope desenfreado, como se fugisse de uma maldição ou perseguisse uma recompensa rara e irrecusável. São estes pensamentos que me atormentam em Agosto, o mais difícil dos meses. Viajo sempre com grande dificuldade na paisagem que este mês oferece, vítima de um dilema que ainda não estou em condições de resolver ou sequer de partilhar. Abro um livro e leio: «As raparigas mantinham-se fascinadas, com o olhar vidrado». A ideia de um olhar proveniente de olhos de vidro cativa-me de imediato. Só esse olhar poderia deter o tempo, aprisioná-lo, suspender-lhe o vício de se mover sempre para a frente. Depois, penso na infelicidade das raparigas com olhos de vidro. Comovo-me e devolvo-lhes o olhar animal que era o delas. O tempo desata logo num galope desenfreado, até que as raparigas, arrastadas pela fúria do cavalo, morrem de velhice. Lá fora, os carros passam indiferentes ao meu luto, à dor de tão rapidamente o tempo ter levado com ele as promessas do meu amor.
domingo, 18 de agosto de 2019
Pensamentos lúgubres
Há palavras que detesto, mais por uma questão estética do que ética, e outras de que gosto, porventura pelas mesmas razões, mas não estou certo. Gosto da palavra deriva quando usada na expressão à deriva. Há em mim uma inclinação para simpatizar com todos os que andam ao sabor das ondas ou da corrente, daqueles a quem a vida não concedeu poder para governarem o precário bote da existência. Sinto com eles uma espécie de irmandade, um vínculo indissolúvel. Estar à deriva é a autêntica condição humana, digo para mim mesmo. Estes, porém, são pensamentos lúgubres para um domingo de Agosto. Há dias que imagino como seria bom ser um profeta do Antigo Testamento e fazer sair da minha boca a cólera que habita no coração divino, mas temo que, caso alguém me escutasse, acabaria por rir-se de mim. O tempo dos profetas coléricos acabou e os que restam andam ao sabor da corrente. Como não sabem nadar, acabam por se afogar. Estes, todavia, continuam a ser pensamentos sombrios. Ao passar diante de um espelho, este devolveu-me a imagem de um profeta rubicundo e irado. Antes mesmo de começar a distribuir anátemas sobre o mundo, ri-me de mim mesmo.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
O canto do galo
Nestes dias tenho ouvido um galo cantar por volta das seis da manhã. Para honrar um modo de vida que está a ser rapidamente rasurado, levanto-me e vejo o alvorecer do dia. É uma hora assombrosa. A realidade parece ter saído há momentos dos dedos do criador e, mesmo a mim, um pessimista velho e contumaz, tudo parece ainda possível. A aurora traz consigo um excesso de promessas que o corpo e a vontade são incapazes de cumprir. Muitas vezes, os homens tomaram a aurora como símbolo de um mundo novo a vir, esquecendo que ela não era mais que o resultado de uma prestidigitação astral, da ilusão do sol orbitar o lugar que nos foi dado para viver, ou do mais prosaico rodopiar da terra em torno do seu eixo. Naqueles instantes, porém, não quero saber nada disto. Aspiro o ar fresco da madrugada, embebedo-me de promessas e quase elevo aos céus uma oração, para que os poderes do alto suspendam o tempo. Não sou convincente, os deuses não me escutam, e não me resta senão ir de novo para a cama, para acordar numa hora menos dada a ilusões e promessas que não se hão-de cumprir.
terça-feira, 13 de agosto de 2019
Aves e anjos
Nos fios do telefone conto seis andorinhas. Há alguns dias que as vejo naquele lugar. Estão ali suspensas sobre a terra. Parecem descansar ou, então, têm uma missão que não consigo vislumbrar. Não há por aqui ninhos que justifiquem a sua presença, mas o meu conhecimento de ornitologia, como praticamente de tudo, é nulo, o que me impede de compreender os seus hábitos, movimentos e modos de vida. Na minha mesa tenho um livro sobre metafísica e lógica modal. Encolho os ombros e penso que melhor fora ter um tratado de angelologia. Apesar de ninguém se interessar pelo assunto, não há saber mais profícuo que aquele que nos informa sobre a natureza, o papel e as divisões taxionómicas desses intermediários entre os homens e Deus. Se percebesse os anjos, ocorreu-me, talvez fosse capaz de captar o sentido das andorinhas insistirem em ficar paradas nos fios de telefone. E, não há como evitar a hipótese, num qualquer mundo possível, as andorinhas serão mesmo anjos disfarçados que, necessariamente, vigiam os nossos actos. Podia bater as palmas e elas voavam, pensei, mas não tenho direito de distrair os anjos quando estão em missão.
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Questões de espírito
Há pessoas pacientes e dadas à extrema minúcia que registam tudo o que julgam digno de nota. A mim sempre me faltou a inclinação para a minúcia e, se pensar bem, o dom da paciência. Por norma, não registo seja o que for. Nunca deixei de admirar aqueles que mantêm longos ficheiros de citações e notas, que elaboram com diligência e espírito de futuro. Na verdade, sempre fui dado a uma anarquia contida, a uma desordem que encontrava a sua raiz numa certa ordem que reside na memória e que me foi dada por herança genética. Era e é neste suporte, na memória, que confiava os meus registos. Se mantivesse um registo de citações não deixaria de lá inscrever a resposta que Madame de Montsousonge deu ao pobre Jan, que, acossado pelo despeito ou pelo ciúme, pôs em causa a sua virtude: «A minha virtude é o meu único luxo». A ambiguidade da última palavra é o segredo da sublimidade da resposta. Será a virtude um objecto de preço elevado? Será ela uma coisa dispensável? Será o sinal de excelência? Será uma mera extravagância? Que pena eu não usar a prática do registo de frases memoráveis, agora que a confiança na memória se desvanece. Em breve esquecerei a frase, depois Madame de Montsousonge. Por fim, o livro onde li tudo isso. É uma pena, pois sempre podia utilizar a frase para parecer espirituoso, eu a quem sempre faltou espírito.
domingo, 11 de agosto de 2019
Adormecer
Há um barulho por aqui que me incomoda o repouso. Parece alguém a bater com um maço numa estaca, mas, tendo em conta que o ruído se prolonga há muito, não é provável que haja um braço tão obstinado. Penso, então, numa conspiração da natureza para me atormentar nestas horas em que deveria entregar-me ao mais escandaloso dos ócios. Se fechar a janela tudo cairá no silêncio, mas não me apetece sair daqui. Tenho dois livros entre mãos. Hesito sobre qual deverei usar como soporífero. Não que sejam desinteressantes e enfadonhos. Não são. Durante muito tempo, se acordava por volta das cinco da madrugada, era tomado por uma insónia que me impedia de dormir as horas que faltavam, o que provocava em mim um pequeno tormento, que só tinha fim quando o despertador dava sinal para sair da cama. Descobri que o melhor remédio é ler. Pego num livro, leio até que o sono chega e eu deixo-o cair. É isso que vou fazer agora. Uma pessoa nunca pensa que chega a este grau de decadência, mas a realidade é o que é.
sábado, 10 de agosto de 2019
Conversas de esplanada
Espreguiço-me devagar por dentro do sábado. A trama inesgotável do mundo cansa-me e há muito que desisti de esperar que alguma sensatez desça sobre a turbamulta. Esta gosta de ulular, o que, não fora o ruído, parece-me muito adequado. Na esplanada, duas mulheres em modo balzaquiano tagarelam de mesa para mesa, sem que cuidem de moderar o débito sonoro. A inevitável excelência das respectivas filhas não me espantou. Raras são as mulheres que, ao falar da prole, resistem à tentação da hipérbole. Se falam dos maridos são mais comedidas, quando não francamente omissas. Nessas alturas a retórica escasseia e a imaginação não encontra combustível com que se ateie. Isto é o meu cinismo a pensar alto sobre a comédia humana. Tento ler uma crónica do Expresso, mas bocejo. Salva-me a ideia de que no Douro alguém envelhece chá chinês em pipa de Vinho do Porto para o vender na China. O mundo é um lugar muito mais perfeito do que aquilo que estou disposto a admitir. O tempo escoa-se entre os dedos. Levanto-me, e as mulheres em modo balzaquiano ainda competem no encómio filial.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Sextas-feiras de Agosto
São elusivas as sextas-feiras de Agosto. Acordam devagar, bocejam, espreguiçam-se e levantam-se como se fossem qualquer outro dia. Não vale a pena sentir-se afrontado com o desplante. Rapidamente, Agosto entregará a alma ao criador e as esquivas sextas-feiras logo perderão o traço fugidio com que agora se disfarçam. Hoje pude consultar a data em que, a partir dela, todas elas serão como as de Agosto. Faltam três anos e nove meses. Encolhi os ombros e fui tomar café a uma esplanada. Há que beber o cálice até ao fim, pensei. Colónias de turistas enchiam o ar com linguajares diversos. Fiquei por ali a ouvir aquela babel, enquanto olhava o horizonte em busca de sinais de chuva. As línguas diferem mais pelo ritmo do que pelas palavras, constatei mais uma vez. Uma tatuagem descia do ombro para o braço, e toda a harmonia e beleza que havia na jovem mulher tatuada se dissolvia ali, na pele maculada por cores soturnas e imagens gastas. Ao pensar nisso ri-me do meu gosto desajustado e conservador. Abri o livro, mas a prosa resistiu às minhas incursões. O concerto das nações impedia-me a leitura. Levantei-me, antes que o dragão da tatuagem se soltasse da mulher e lançasse sobre mim o fogo do seu desprezo.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Da origem da homossexualidade
Estar de férias é uma possibilidade única para aumentar a
cultura científica. Faço os possíveis para não dissipar uma oportunidade. Até
ontem, infelizmente, nunca tinha ouvido falar do bispo cipriota Neophytus da
Igreja Ortodoxa Grega. Não fora o ócio, teria perdido o seu contributo decisivo
para a ciência. Confrontado com a vexata
quaestio da existência de gays,
acabou por dar uma das explicações científicas mais notáveis sobre o fenómeno (ver aqui).
Com modéstia, sua Excelência Reverendíssima explicou que a causa reside nos
pais. Se o pai, num momento desavisado de luxúria, se enganar no caminho natural
e sodomizar a mãe, o rapaz nasce gay.
É o que acontece com pais que sabem pouca Gramática e nunca ouviram falar de
homonímia. Confundem recto caminho com caminhar pelo recto (o sr. bispo
perdoar-me-á a brejeirice e o leitor, o fácil trocadilho). Seja como for, a
sabedoria do alto dignitário da Igreja Ortodoxa é um autêntico ovo de Colombo,
uma evidência mais evidente que a do cogito
cartesiano, uma inspiração para todos. Assim, nem preciso que sua
Excelência Reverendíssima venha explicar por que existem lésbicas. É óbvio, a
partir da sua sábia lição, que se o pai, ignorante em Geografia, perder o norte
e confundir a boca da mãe com a vulva e se se entregar, confuso e desorientado,
à prática da cunilíngua, a rapariga a nascer só pode ser lésbica. As lições
práticas de tal conhecimento científico são fáceis de extrair. Há que estudar Gramática
e Geografia para evitar a homossexualidade. O bispo pode ser Neophytus de nome,
mas não é neófito nenhum na via da ciência.
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
A virtude da preguiça
Quanto mais depressa se aproxima a catástrofe mais rapidamente corremos para ela. Fiquei espantado com a minha sabedoria. É o que dá ler os jornais, essa oração da manhã do homem moderno. O que vale são as férias. Quer lá uma pessoa saber o que pode acontecer amanhã se agora se pode entregar ao exercício virtuoso da preguiça. A Igreja Católica, é certo, decidiu condená-la, mas é uma condenação espúria, para não dizer imoral. Que a Igreja tenha condenado a acídia, compreende-se. Só um espírito maligno pode ficar melancólico por receber bens espirituais, mas traduzir isso por preguiça e meter esta nobre virtude no rol daquilo que há-de perder eternamente uma pessoa é inaceitável. Há quem tenha feito um elogio da preguiça, mas tendo em conta o sogro do autor, o panegírico foi desprezado. A estultícia dos homens nunca acaba. Se estes fossem mais preguiçosos talvez as catástrofes fossem coisas mais longínquas, pensei. Não sei se foi da chuva da manhã, mas hoje só me ocorrem pensamentos sombrios e ideias sem sentido. Talvez não tenha nada para dizer, como é habitual, e o melhor é calar-me.
terça-feira, 6 de agosto de 2019
Fine-tuning
Pouco depois do almoço, antes de adormecer no primeiro sítio
em que me hei-de sentar, dei uma vista de olhos pelas vendas de livros que há
na Internet. Numa propunha-se A Noiva Despida, de autor anónimo, noutra A Viúva
Grávida, de Martin Amis. Não comprei nenhum, mas pude entregar-me a uma
benfazeja meditação. A ordem do mundo é uma das coisas que nunca deixa de me
surpreender e de me maravilhar. Pessoas influenciadas pelo indeterminismo
poderão dizer que tudo se deve ao acaso. Eu, pelo contrário, vejo nisto um
exemplo de fine-tuning, essa sintonia precisa que nos mostra não apenas a
harmonia que reina sobre o caos como a exactidão com que tudo é disposto neste
mundo, para que o desarranjo não leve a melhor sobre a arrumação. É claro que
num universo bem ordenado como o nosso, primeiro despe-se a noiva e só depois
se morre deixando-a grávida. Não faria sentido morrer deixando uma viúva e só
depois desse infausto acontecimento despir a noiva para a engravidar. Ela
poderia ficar perturbada e não conseguir conceber ou, então, o noivo já morto
ser vítima de um despropositado ataque de impotência. Evitemos o absurdo.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
Despoletar
Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço
alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des-
tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo
volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez
por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao
vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do
prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como
qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a
aplicação que me controla o fitness –
meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero
aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez
minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha
da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão,
peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali
para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de
Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.
domingo, 4 de agosto de 2019
As tarde de Agosto
Ontem as netas foram-se embora com os pais. Ao sair, a mais nova voltou-se e, misturando a ironia e o imperativo, disse: agora, os avós não vão chorar. Não sei o que admirei mais, se o atrevimento, se a capacidade para ficcionar, pois nunca os avós choraram quando elas se foram embora. Hoje, domingo, o almoço foi mais tardio. A verdade é que a casa ficou vazia, sem a agitação delas, os pequenos dramas das raparigas e a esperança toda que há dentro de crianças que caminham para adolescência. Também é verdade que deixei de ter bicicletas para levar a remendar furos, uma das minhas actividades nos últimos dias. Eu sei, eu sei, que sempre se podem reparar câmaras de ar em casa. Antigamente, não sei se hoje, havia os remendos Tip-Top, mas não sou dado ao exercício da bricolage e falece-me o talento para a mecânica. Arrumadas as bicicletas, o tempo cresce-me. Assim, posso banhar-me no silêncio e nadar em oceanos de palavras, lembrando-me dos Verões em que as tardes se dilatavam quase até ao infinito e eu lia o Ciclone e o Condor, o Falcão, onde o meu grande herói era o Major da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. Agora que o Major Alveja já não abate nenhum avião da Alemanha nazi, entretenho-me a ler as Memórias de um Morto. O tempo não está para gente tão viva quanto o piloto luso-britânico. Quando o meu neto crescer, hei-de falar-lhe do grande Major, o meu herói dos tempos da escola primária. Tenho que fazer os possíveis para não me esquecer.
sábado, 3 de agosto de 2019
Incongruências em Agosto
De que tecido serão feitos os sábados de Agosto? Não sei porquê, mas esta pergunta assaltou-me há pouco ao chegar a casa. Tenho dias assim, o meu cérebro, devido a algum desarranjo neuronal, dispara à queima-roupa perguntas incongruentes. A incongruência reconhecida da pergunta tranquilizou-me. Teria de lhe dar uma resposta sem sentido, como, por exemplo: os Sábados de Agosto são de popelina, enquanto os de Novembro são de repes. Assim estou dispensado. A rua de onde vim tinha um cheio a férias grandes, uma rua feita de sombras pesadas e ausências notadas quando chegam os dias oficiais para as pessoas se cansarem de tanto descanso. Estamos num tempo em que toda a gente acha que vai ler livros, dar grandes passeios, passar tardes admiráveis entre amigos. A realidade, porém, não há-de estar pelos ajustes. Eu recolho-me em mim e penso num eremitério onde me pudesse excluir da humanidade. Logo me vem à memória a frase o homem solitário ou é um besta ou é um deus. Nunca tendo dado pela existência em mim de um traço divino, inclino-me para a primeira possibilidade. É o que dá ser assaltado por perguntas incongruentes. Tanto quanto sei, mas sei poucas coisas, nunca Agosto fez bem a ninguém.
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
Chocolate negro
Hoje atravessei a cidade de lés-a-lés. Estava modorrenta, ainda com menos gente do que é habitual, o casario, aquele mais antigo, não tinha melhorado de aspecto desde a última vez que o vi. Deveria sentir-me deprimido. É a obrigação de qualquer um que um dia a tenha visto vibrante na sua pequenez, a fervilhar de negócios e de gente, mas não me senti. Pelo contrário, estava bem disposto e cheio de bonomia. Até o que está decrépito me pareceu novo. Tudo se deve, porém, ao chocolate negro que por vezes, furtivamente, me tenta. O chocolate negro, informa-me um estudo, pode aumentar o bom humor e aliviar os sintomas de depressão. Eu caio de joelhos agradecido. Só tenho medo que o hábito faça passar o efeito. Ainda hoje, em consulta com o cardiologista, lhe disse que a substância hipotensora, quando a comecei a tomar, tinha um óptimo efeito sobre os meus estados de alma. Tudo o que me aborrecia e irritava deixou de o fazer. Se queriam que o branco fosse preto, eu queria lá saber. Com os anos o efeito passou e quando trocam o preto pelo branco fico irritado. O meu problema é se o efeito do chocolate negro também passa. De que valerá comê-lo se a realidade depressiva me parecer depressiva? Não há coisa pior que a realidade. Seja como for, acho que, nesta terra, toda a gente deveria comer chocolate negro.
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
A libertação dos alienígenas presos
As notícias de Verão não deixam de ser espantosas e Agosto não começa nada mal. Leio que dois milhões de americanos acreditam que há extraterrestres presos numa base militar dos EUA e que um número não especificado quer invadir o lugar para libertá-los. São causas como esta que me fazem acreditar, e muito, na humanidade, no seu espírito generoso, embora as coisas possam não ser tão simples quanto isso. E se os extraterrestres forem inimigos, a sua libertação não configurará um acto de alta traição? Os americanos são assim. Um povo impulsivo. Propõem-se fazer coisas sem pensar nas consequências e não há quem os alerte. É evidente que eu também acho aborrecido que se prendam extraterrestres por dá cá aquela palha, mas como europeu pertenço a uma longa tradição marcada pela prudência, apesar das duas guerras mundiais, e faço parte daqueles que abominam a impulsividade. Se estão presos, os extraterrestre alguma fizeram. Esta é uma sabedoria lusa e, como toda a sabedoria lusa, é profunda. Ainda pensei sugerir aos libertadores tentarem a via judicial. Todo o preso terá direito a um advogado e a um julgamento justo e imparcial. Isto sou eu que o digo, uma pessoa crente no Estado de Direito, mesmo quando se trata de espécies alienígenas. Julgo, porém, que os libertadores se ririam na minha cara. O melhor é evitar humilhações, pois Agosto só agora começou.
quarta-feira, 31 de julho de 2019
Bolas de Berlim
Num sítio que no Verão costumo frequentar havia umas bolas de Berlim que me habituei a comer sem que a consciência me acusasse de qualquer delito. Alguém mais maldoso sempre pode censurar-me de ter uma consciência frágil, mas havia, claro, atenuantes. Só comia bolas sem creme e estas, apesar de fritas, pareciam que quase não tinham passado pelo óleo. Não há nada como a nossa capacidade para fantasiar. Eram muito boas, em resumo. Constou-me que o estabelecimento fechou e ao cerrar portas levou com ele as bolas de Berlim. Tudo o que é perfeito neste mundo acaba, foi o que constatei ao ouvir a notícia e daí extraí a conclusão que o paraíso não pode ser na Terra. Acontecem muitas coisas péssimas neste mundo, eu sei, mas agora nem sei se hei-de voltar ao sítio. Gosto imenso de praia, desde que não haja muito sol, pessoas e areia. No entanto, ainda não compreendi o que iria fazer a uma praia se o sítio das bolas de Berlim se finou, levado pela voragem do tempo, deixando-me a rememorar a glória de antigas expedições para incrementar o colesterol. A saúde é uma dura penitência.
terça-feira, 30 de julho de 2019
Lugares para medíocres
Estava a ler a apresentação de As Lojas de Canela, de Bruno Schulz, feita por Aníbal Fernandes,
quando deparo com a resposta que terão dado ao escritor polaco perante a oferta
que este fez dos seus préstimos literários à revista Novos Horizontes: “Não
precisamos cá de Prousts”. O engenho da estupidez humana, apesar de tudo, nunca
deixa de ser espantoso. Uma revista literária que não quer um Proust é como uma
equipa de ciclismo que só aceite quem mal saiba andar de bicicleta. A analogia
não é brilhante, eu sei. Que coisa essa de misturar as belas letras com um
desporto popular. Foi, porém, o que me ocorreu. Se eu tivesse capacidade de
fazer analogias soberbas seria um Proust. Com esta minha falta de talento, porém,
talvez tivesse sido aceite na revista onde Schulz foi rejeitado. Não há lugar
onde um medíocre não possa entrar.
segunda-feira, 29 de julho de 2019
Coisas de avô
Ao mexer no telemóvel deparei-me com uma fotografia minha com o meu neto ao colo. Eu olho para a câmara, um pouco formal; ele, para o lado, como se nos seus oito meses já soubesse demasiado do mundo e não estivesse para se submeter aos ditames do fotógrafo de ocasião. É a vantagem da inocência. Estar voltado para a frente ou para o lado é indiferente. O importante é que não o deixem cair e saibam que ele existe. Não sei se foi a visão da foto que desencadeou as saudades ou se foram estas que, sem eu dar por isso, me conduziram àquela. Ser avô é uma condição especial que, antes de se ser, é inimaginável. Mal se vêem, avô e neto estabelecem laços secretos de continuidade, que depois têm de ser cultivados com esmero e persistência, mas que são uma afirmação exuberante da vida. Aquela que começa a declinar sente-se redimida por aquela que acaba de chegar. Não se trata de uma espécie de justiça cósmica à maneira do célebre fragmento de Anaximandro, mas do estabelecimento de uma continuidade que rompe as densas paredes do futuro. Para o que me haveria de dar, por causa de uma fotografia? O melhor é fazer-me à vida. Enquanto os pássaros meus vizinhos continuam as suas cantatas nupciais, eu ponho o telemóvel no bolso, arrumo uns papéis e preparo-me para enfrentar o dia. Julho apresta-se para entregar a alma ao criador, não tarda receberá a extrema-unção e dará o último suspiro entregando-se nos braços descarnados e ressequidos de Agosto. Nesse momento, do herbário do tempo, cairá mais uma folha morta.
domingo, 28 de julho de 2019
Atrasos
Hoje acordei confuso. Havia uma ânsia em mim motivada, por certo, por um daqueles sonhos matinais que têm o condão de serem sonhados num estado em que vigília e sono se misturam, o que lhes dá uma mais forte aparência de realidade. Havia qualquer coisa para fazer, muito urgente, mas desconhecia o quê e o onde. Sabia apenas que deveria ser agora, mas agora estava na cama, despreparado para tarefa tão imperativa. Isso acrescentava desnorte à confusão. O barulho de uma sirene, porém, devolveu-me à realidade e pensei que era domingo. Suspirei e levantei-me. Tudo começou a entrar no grande castelo do esquecimento até que, ao chegar aqui, vejo uma velha fotografia de um jogo de futebol realizado muitos anos antes de eu nascer. Uma reminiscência, porém, começou a desenhar-se em mim e o sonho voltou-me à memória. A urgência de me levantar talvez estivesse ligada a esses tempos iniciais em que, ao domingo, tinha de ir à missa da catequese e, depois, a esta. O que tem isto a ver com a fotografia? Tudo. A partir de certa altura troquei as injunções à santidade do catequista pela visita ao campo que aparece na fotografia, onde rapazes um pouco mais velhos do que eu lutavam com denodo – e pouca santidade, diga-se – por uma bola de couro, que, por vezes, caía no rio. O que me entristece é não saber se, no sonho, estava atrasado para a missa ou para ir ver o jogo de futebol.
sábado, 27 de julho de 2019
Uivar à lua
Os dias de sábado nem sempre são dos mais promissores. A esplanada estava composta, na mesa ao lado uma família fazia-se ouvir. A rapariga não sem desenvoltura falava nos concertos a que queria ir. A maioria dos nomes eram-me desconhecidos, mas o que recebeu um maior ênfase foi o de Quim Barreiros. É universitária, pensei, não sem que uma sombra de tristeza me invadisse. Ao que se chegou, meditei, para que um universitário seja reconhecido por este tipo de gosto. Mais à frente, a conversa confirmou-me o prognóstico. Encolhi os ombros e abri o jornal. O mundo nunca nos desilude. É constante na sua venalidade. Houve um tempo em que se teve a ilusão de que uma maior educação tornaria as pessoas mais civilizadas, refinaria o gosto e, em momentos de maior fantasia, até se pensou que as tornarias melhores. A realidade, porém, resiste. A família continuava a declinar as suas preferências, com o orgulho de uma velha estirpe que rememora antepassados. Fechei o jornal, paguei e saí para o silêncio que há dentro de mim. Talvez tenham razão, porventura a realidade não será mais que umas brejeirices debitadas ao microfone. Um anjo passou. Dei por ele porque um cão começou a ladrar desaustinado. Também a mim me apetece ladrar ou uivar à lua.
sexta-feira, 26 de julho de 2019
On s'habitue c'est tout
“On s’habitue c’est tout”, foi isto que pensei enquanto
bebia um copo de sumo de toranja. Quando introduzi este ritual na minha pacata
existência, o sabor agreste – para não dizer amargo – da toranja era ainda uma
revelação que me dava um prazer especial. Os anos passaram, a cerimónia matinal
consolidou-se e, hoje em dia, confesso que o sabor do sumo começa a parecer-me
demasiado doce. Foi por causa disso que me lembrei do verso da canção de Brel.
Uma pessoa habitua-se e é tudo. Como sou um tipo anacrónico, quando era novo,
enquanto os outros rockavam por tudo e por nada, eu ouvia música francesa e,
entre todos os grandes da canção francesa, o de que mais gostava era do Brel,
que por acaso não era francês, mas belga. Ainda hoje gosto bastante, mas aquele
pathos do “ne me quites pas” não me comove
ou não cai bem com a minha disposição de ânimo. Tudo isto pertence a um tempo
em que eu tinha tão pouca idade que pensava que era existencialista. Lia os
romance do Sartre e do Camus, sonhava com a rive
gauche e achava que não poderia haver melhor coisa no mundo do que estar
condenado à liberdade. Isto alguma influência teve na minha vida, mas é melhor
nem pensar nisso. Agora, bebo sumo de toranja pela manhã e lembro-me de restos
de canções do Brel. “On s’habitue c’est tout”.
quinta-feira, 25 de julho de 2019
A nova santidade
O tempo não deixa de ser um motivo inesgotável de conversa.
Saber das suas metamorfoses talvez seja a mais alta sabedoria que se pode
adquirir. Hoje, porém, não vou falar dele. Não é que tenha outro assunto, não
tenho, mas não se deve dar demasiada atenção a S. Pedro. Parece estar a perder
as suas qualidades como gestor meteorológico. Compreende-se. Não é só o peso da
idade. São todas as outras actividades que são distribuídas aos santos. Tendo
em conta o elevado número de pecadores e o diminuto número de santos, até almas
pouco caridosas perceberão que eles, os santos, sempre dados ao sacrifício,
estão à beira do burnout. Deixemo-los
então em paz. Hoje de manhã pus-me a caminhar. Consta que faz bem, o
cardiologista recomendou-me, embora eu não tenha percebido lá muito bem o
sorriso escarninho que arvorou. Ajuda a controlar a tensão arterial, combate o
colesterol, elimina os males provocados por uma vida sedentária, escutei. Incrédulo,
diga-se. Animado pela bondade do exercício, mas sem amor por ele, lá pus os pés
ao caminho. De vez em quando passavam por mim crentes da mesma religião, um
sorriso seráfico e a esperança de chegar ao céu da boa saúde. Só espero que eu
não ostente tal estado patético na cara. Já basta o que ela é, quanto mais ter
nela estampada a beatitude dos altares. Enquanto caminhava, ia meditando sobre
esta nova religião. O pior são os radicais, disse para mim mesmo. Esses não
caminham. Correm, correm, de rosto contorcido, a língua de fora, um aparelho
ligado ao braço, parece que vão explodir. Esperarão também eles setenta virgens
quando chegarem ao paraíso? Sempre que via um desses candidatos a mártires, eu
abrandava o passo. Há que ter cuidado, já não tenho idade para me radicalizar.
quarta-feira, 24 de julho de 2019
O pedalador
Que dia este de Julho, exclamei para mim mesmo. Almocei tarde e deixei-me ficar em frente da televisão a ver a etapa do Tour. Um ciclista fugia, fugia, embrenhava-se estrada fora. Ia sozinho, como se um monstro tortuoso o perseguisse. Talvez a ideia de ser devorado por um dragão lhe desse forças nas pernas e lá ia ele, a subir e a descer, curva e contracurva, indiferente à paisagem, surdo para os incentivos, os olhos no futuro e um medo terrível do passado. Se fosse S. Jorge, por certo, esperava o dragão e matava-o, mas hoje não abundam heróis como aqueles que havia noutros tempos. Os heróis de hoje pedalam, que ped’alma, como escrevia o O’Neil. E enquanto o semideus pedalava eu adormeci em frente ao televisor, adormeci com o meu “passado a tiracolo”. Eu dormia e o ciclista, um italiano, dava às pernas, abandonado, afogueado, “com o provir na pedaleira”. Parecia que lhe tinham chegado fogo ao rabo. Talvez fosse uma baforada do dragão, admito agora que penso no assunto, e o pobre, que não era S. Jorge, toca de se despachar, para chegar à meta que deve ser uma espécie de coito, onde, a quem nele se abriga, nada pode acontecer. Terei sonhado? Terei ressonado? Não ouvi protestos. Quando acordei, lá estava o italiano no coito, protegido contra dragões, à espera que chegasse o camisola amarela, que tinha perdido o comboio e se atrasara vinte minutos, pois também os camisolas amarelas chegam tarde quando os comboios cumprem horário. O melhor é não sair de casa. Pode ser que apareça por aí um dragão e não tenho santidade suficiente para o enfrentar nem força para dar ao pedal, que a pedaleira está enferrujada e o passado a tiracolo pesa-me mais que o futuro.
terça-feira, 23 de julho de 2019
Generalizações precipitadas
A dado passo da entrevista, um historiador e agora romancista, diz que o D. Carlos era um esbórnia. Faria mais sentido dizer que andava na esbórnia, mas sejamos sensíveis às liberdades poéticas. Dado ou não à pândega, teve um destino cruel que sempre julguei imerecido. Quem parece que ficava muito bem no lugar de rei era o último incumbente. As raparigas estavam todas apaixonadas por D. Manuel, o que não deixaria de ser um sinal da sua capacidade política, embora seja possível pensar que há nesta frase uma generalização precipitada. Imaginemos as pobres camponesas do interior, aquelas que nunca puseram os olhos numa folha de jornal, como poderiam imaginar o jovem rei em uniforme militar para que o seu coração se enternecesse e, por causa de sua alteza, se entregasse, tremente, ao sonho melancólico de um amor impossível? A verdade é que todos nós gostamos de fazer generalizações. Pessoalmente, esse prazer nasce-me da inclinação para a hipérbole. Talvez o meu gosto em exagerar a realidade se deva a algum defeito de visão em que nunca tenha reparado. Nem sei por que motivo me pus a escrever sobre os últimos Braganças que ocuparam o trono deste país. Julho nunca é um mês fácil. Também ele é dado a hipérboles e o exagero será a sua razão de existir. Como eu, Julho também terá um secreto defeito na visão.
domingo, 21 de julho de 2019
Sonâmbulos
Os longos domingos de Verão. Os almoços tardios prolongavam-se pela tarde, o calor zunia e as pessoas enfrentavam com estoicismo os desmandos do lugar e do clima. Nesses estios inacabáveis tudo parecia mais perfeito. A inocência do olhar transformava as coisas mais simples em acontecimentos memoráveis. Depois, enquanto o olhar perdia a inocência, a realidade desfazia-se da perfeição, como se, para nos experimentar, um deus nos obrigasse a essa dupla perda. Será isso a que se dá o nome de queda. Olho para as minhas netas e ainda vejo nos seus olhos, tão ávidos de realidade, essa doce ilusão, aquela que faz de um simples nada um grande acontecimento. Também o almoço de hoje será tardio e elas hão-de lembrar-se dos domingos de Verão, dos seus almoços, dos pequenos nadas, das corridas de bicicleta, como eu me lembro de uma entoação de uma tia-avó, de uma sombra que a certa altura se desenhava no quintal da casa onde nasci ou do vento a soprar as folhas das roseiras que ali havia. Na infância, somos sonâmbulos, doença que a adolescência nos há-de curar. Depois, quando a vida começa a declinar tornamo-nos de novo sonâmbulos, evitando, sempre que for possível, que a realidade nos incomode em demasia.
sábado, 20 de julho de 2019
Trabalhos manuais
Peguei num romance que começa com uma descrição de soldados de papel. Os primeiros são os couraceiros cabeças-redondas de Cromwell, os quais acabaram por ajudar ao funesto desenlace que levou Carlos I ao cadafalso. Talvez a decapitação faça parte das prerrogativas reais, pensei. A história está cheia de regicídios, mas hoje é sábado e o melhor é não pensar em coisas dessas. Voltando aos soldados de papel, lembrei-me que havia quem coleccionasse soldadinhos de chumbo. Talvez existisse gente que coleccionava soldadinhos de papel ou, melhor, de cartão. Por falar nisto, lembrei-me de um fatídico acontecimento da minha existência. No meu tampo, havia, para além do exame de admissão, um exame da quarta classe. O mais difícil para mim era, de longe, a prova de trabalhos manuais. Tínhamos de apresentar uma obra construída pelas nossas próprias mãos. Havia quem fizesse navios em madeira e outras coisas que eu nem imaginava serem possíveis. Eu, pobre de mim, não sabia o que as minhas mãos poderiam fazer. Não sei como nem porquê, calhou-me construir um moinho de cartão. Tinha de recortar as figuras e montá-las, fazendo dobragens e colando. Uma tortura. O pior foi que não conseguia colar aquela geringonça. A professora ao aperceber-se da minha inépcia, perguntou-me que cola estava a usar. Ao constatar que o problema não era da cola, deu-me três estalos na cara. Nesse momento devo ter tido pena que ela não fosse Carlos I de Inglaterra e eu, no abandono dos meus nove anos, um Cromwell justiceiro. Não sabia, porém, história de Inglaterra e limitei-me a ficar calado. A verdade, porém, é que a senhora não perdeu a cabeça no cadafalso e eu lá consegui colar o moinho. Nunca deixei de odiar os trabalhos manuais.
quinta-feira, 18 de julho de 2019
Ó sôtoura
Ó sôtoura, como está? E a família? Silêncio. Tudo bem, tudo bem. Ah sim, sim. Silêncio. Tem razão, tem razão. Silêncio. Também sou da sua opinião. Avançamos assim. Silêncio. Claro, claro. Acho que é o melhor, sôtoura. Nada a perder. Silêncio. A minha mulher é da mesma opinião. Silêncio, a mulher ao lado faz um esgar de concordância. Avançamos, avançamos. São indecentes. Silêncio. Pois, pois, logo se vê. Silêncio. Se achar melhor, passo por aí um dia destes. Silêncio. A sôtoura é que sabe. Silêncio. Cumprimentos lá em casa. Prazer em ouvi-la. Silêncio. Nada melhor que estar numa sala de espera de uma daquelas clínicas onde vão pessoas que só se dão com sôtouras e sôtoures e têm negócio entre mãos ou sabe-se lá entre quê, pensei enquanto deixava correr o tempo até que me libertasse da missão que ali me prendia. Nunca deixa de me espantar um certa casta de pessoas que insiste em partilhar com os outros a sua vida, talvez porque julguem que os outros não existem, ou por considerem a sua vida tão gloriosa que nos oferecem o relato para que, nós pobres mortais, sejamos iluminados e participemos, ainda que só por ouvir dizer, daquela glória mundana. Estas pessoas estão sempre a avançar, com tanta edificação, enquanto eu não avanço nem recuo. Mantenho-me parado, tão parado que, ao pé desta gente que avança sem parar, sou uma autêntica e genuína estátua. Ó sôtoura, também eu posso avançar?
quarta-feira, 17 de julho de 2019
Do estado de ânimo
Os ânimos andam agastados por esse mundo fora. Talvez as pessoas não saibam o que hão-de fazer com a vida que receberam e então, para passar o tempo e enquanto a morte não chega, agastam-se umas com as outras, com a pátria e o mundo. Entregam-se a vitupérios e exprobrações, parecem prontas para lançar frondas por tudo e por nada. Nunca na vida imaginei, é curta a minha imaginação, que houvesse tantos cavaleiros andantes. Cavaleiros e amazonas, diga-se, pois também há por aí umas senhoras exaltadas, de prosápia em riste, que, como os justiceiros masculinos, estão dispostas, se crermos no que dizem, não só a tornar patente a estupidez dos outros como a ocupar o lugar da padeira de Aljubarrota, mas agora montadas a cavalo e brandindo a espada da sua inexcedível superioridade. Pensava sobre tudo isto enquanto caminhava pelas ruas aqui perto. Esperava-me uma daquelas tarefas a que não nos podemos eximir ou que decidimos que não nos podemos eximir porque a queremos executar. Contrariamente ao estado do mundo, as pessoas por aqui andam de ânimo calmo, não se lhes nota outras motivações senão aquelas que decorrem das necessidades que a vida impõe. Vão às compras, falam de futilidades, adornam-se conforme podem e caminham devagar sob a luz solar. Daqui, parece-me certo, não partirão exércitos para pôr o mundo nos eixos nem gente para endireitar o que está torto, e isso, confesso, deixa-me feliz e tranquilo. É melhor deixar passar o tempo com bonomia do que entregar-se à exaltação que sempre anima os cavaleiros andantes e as padeiras de Aljubarrota que pululam nesse estranho espaço virtual a que se deu o desditoso nome de redes sociais.
terça-feira, 16 de julho de 2019
Vida civilizada
Se as pessoas não fossem tão susceptíveis, diria que hoje está um dia glorioso. Uma luz suave, um céu densamente nublado e, acima de tudo, sem o calor sufocante de Julho. Sento-me à secretária e faço o que tenho de fazer. Num dia como o de hoje é um exercício menos penoso, quase sou levado a crer que o que faço merece ser feito. Sei que não, mas a capacidade que o tempo me deu para me iludir parece ser um recurso inesgotável. Se não me iludisse, penso de imediato, a vida seria insuportável. A realidade é um monstro malcheiroso e a verdade tem um peso para o qual os ombros humanos não foram feitos. Isto lembrou-me aquelas pessoas que dizem sou muito frontal, digo a verdade na cara de toda a gente. Eu sou um caso perdido. Dispenso frontalidades e evito dizer a verdade sempre que posso. Não é por mal, nem por cobardia, mas por delicadeza. Por que razão hei-de submeter os outros à minha sanha de dizer verdades? A vida civilizada não é mais que um exercício prolongado de esquecimento da verdade. Será que estou a dizer a verdade ou estou, civilizadamente, a mentir? Ainda bem que as nuvens continuam firmes no seu lugar.
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Esperança
Fui à caixa do correio e não havia nada. Espera-se sempre alguma coisa, mas a esperança, o mais das vezes, é infundada. Um dia não haverá caixas de correio, nem correio, nem gente que faça esse trabalho de trazer aquilo que a esperança espera. O futuro é uma incógnita, digo-me para me consolar. Olho para a rua e o céu está cinzento e sinto a opressão da atmosfera. Também aqui o corpo reclama, com esperança, uma tempestade. Não daquelas que chega e, num ápice, destrói meio mundo. Queremos sempre coisas à medida, nunca nos contentamos com aquilo que há. Uma tempestade ligeira, com chuva, relâmpagos e trovões, e a opressão desapareceria. Seria libertadora. Tenho de me despachar. Alguém está à minha espera daqui a pouco. Eu não sou mensageiro de boas notícias, constato. Que mania de dividir as coisas em boas e más. A vida passa indiferente às minhas pobres avaliações. É apenas um pulsar cego, sem causas nem desolações. Não espera nada e ri-se de quem, perante o seu império, fala de esperança.
quinta-feira, 11 de julho de 2019
Questões de igualdade
Os irmãos têm uma propensão inextinguível para a igualdade ou, talvez seja mais acertado, um sentido fino e doloroso para as desigualdades que sofrem. Ontem, depois de se combinar com a neta mais velha o almoço de hoje, a irmã, excluída por razões espácio-temporais, reivindicou de imediato o direito de ir almoçar sozinha com os avós. Exclusão com exclusão se paga, pensei. Ficou prometido. Não há nada que requeira mais cuidado e sensibilidade que a gestão das diferenças entre irmãos. Hoje, quando saí para o almoço combinado, o sol caía sobre a pele como uma lâmina afiada, abrindo sulcos por onde o calor penetrava no corpo, para explodir por dentro, liquefazendo o sangue e inundando a pele com um suor insuportável. Não nasci para este tipo de temperaturas, pensava, enquanto a neta exultava com as actividades da manhã, bendizia o facto de estar a jogar à neta única e, para meu pesar, cantava loas ao Verão. Agora que ela voltou para onde estava, tenho de lhe ir comprar um livro, mas já não me lembro do título. As pessoas arrastam-se, procuram as sombras e, apesar da inclinação estival que trazem no coração, talvez tenham uma leve nostalgia dos dias em que o inferno não fazia propaganda na Terra.
quarta-feira, 10 de julho de 2019
Cirurgia ocular
Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá
se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos,
a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial,
como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres
mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava
o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera,
fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude
que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com
as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras
no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão
Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu
a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de
papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente,
por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou
na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres
actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada.
Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.
terça-feira, 9 de julho de 2019
Ainda é cedo
Combinando esplendor e volúpia, as árvores da avenida lançam uma sombra lenta e furtiva sobre a brancura calcária dos passeios. Vejo-as de cima, a exuberância da copa batida pela aragem, o verde tisnado pelo sol de Julho, e respiro fundo. A tarde caminha como uma rameira fugitiva, mas muito ainda terá de penar até se entregar, não sem prazer, nos braços da noite. São assim os dias por aqui. O peso do céu esmaga a terra e as pessoas vão rua fora, oficiando paciências, esperando que a vida resolva o que nunca resolverá. Perambulo pela casa como se fosse personagem de um romance de Xavier de Maistre e descubro sempre um motivo de interesse. Um livro de que me esquecera fora do lugar, um CD que não oiço há muito, a fotografia de algum neto, outra em que estou ao colo da minha avó materna. Entre avó e neto vão cinco gerações, penso enquanto me aproximo de outra janela. Na praceta, lá em baixo, não se vê vivalma. Ao longe, os carros estacionados no Hospital reverberam, enquanto as paredes do edifício escurecem sob o peso das colónias de fungos. Encaminho-me suavemente para o sítio onde, benevolente, a loucura me aguarda. Ainda é cedo, digo ao olhar para o relógio.
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Estados de alma
O mais assisado é não ter estados de alma. Este tipo de pensamento acomete-me muitas vezes, principalmente quando sou confrontado com as coisas inúteis que o destino me destinou. Ora, se o destino as destinou, quem és tu, pobre mortal, para te insurgires? Nada de insurgentes, diz-me a consciência. Então, antes de me irar, recorro à ataraxia, essa tranquilidade de ânimo ou ausência de inquietude. Faço-o, não porque o ânimo me seja tranquilo por natureza ou porque, em verdade, não seja inquieto. Faço-o porque gosto da sonoridade do vocábulo. Os antigos cultores da ataraxia tinham um objectivo moral. Eu tenho uma razão estética, o som da palavra. Por outro lado, com esta idade, irritar-me é uma coisa desagradável. Por isso, levanto-me e, à janela, fico a olhar demoradamente o horizonte. Este não me defrauda. Mantêm-se inalterado e não me pede nada que não seja olhar para ele. Ali em baixo, as pessoas passam e também elas desejam não ter estados de alma, mas não sabem o que é a ataraxia e a alma, tomada de inquietações, logo lhes salta dentro do corpo.
domingo, 7 de julho de 2019
Novas pedagogias
Entardeço nesta tarde de domingo. O corrector ortográfico do
Word solidariza-se comigo e sublinha
a vermelho a palavra entardeço. Um erro. Ainda bem que já não estou na escola
primária, onde a partir de três erros o professor se entretinha a aplicar uma
reguada por cada nova ofensa à ortografia, uma senhora então muito digna de
respeito. Era um exercício didáctico da melhor qualidade, que o digam aqueles –
eram sempre os mesmos – que cada vez que calhava haver um ditado saíam de lá
com as mãos a arder. A eficiência era nula, mas o prazer – prazer pedagógico,
note-se – do professor devia ser imenso. O corrector do Word pertence já a uma nova mentalidade educativa, talvez
influenciada pela OCDE. Sublinha a ortografia desviada a vermelho e a sintaxe
inovadora a verde. Dá conselhos em vez de reguadas. Na verdade, é um corrector
patriótico e republicano, preocupado em que não esqueçamos a bandeira nacional,
admoestando-nos com bonomia e espírito liberal. Seja como for, tenho de lhe
agradecer. Não me reconhece a possibilidade de me tornar tardio. Eu que sempre
fui serôdio em tudo, que tenho por sina chegar tarde aonde os outros só chegam
cedo, não posso entardecer. No entanto, o mesmo corrector permite-me escrever
amanheço sem sublinhar o vocábulo. Talvez haja aqui uma insinuação, cujo
significado prefiro ignorar.
sábado, 6 de julho de 2019
Uma tarde de Julho
O telemóvel informa-me que aqui mesmo estão 28º e o céu parcialmente nublado. É verdade, pelo menos as nuvens cobrem o sol. Num sábado de Julho as coisas não estão más. O normal seria estarem uns 38º ou 40º, as pessoas afogueadas, a arrastarem-se pelas sombras e a maldizer S. Pedro, o verdadeiro mentor dos estados do tempo. O santo tem sido condescendente. Talvez ele próprio ande um bocado desregulado, tenha perdido a tramontana e esquecido as noções básica de espaço e tempo. Mesmo que seja grande a sua santidade, também os santos se gastam. O que eu queria dizer é que estou grato pela amenidade climática. Esta temperatura só me dá sono, mas não me desregula o humor e não me faz pensar em coisas que uma pessoa de bem nunca deve pensar. Enumero as tarefas inúteis que ainda tenho para fazer. São algumas, constato. Hei-de fazê-las, pois o bem da humanidade depende delas. Oiço os latidos de um cão. Oiço palavras cujo sentido me escapa. Oiço a arenga de um pássaro que não se cala. A tarde desliza devagar e, não tarda, a cabeça vai pender, os olhos fecharem-se e hei-de ressonar em harmonia com o que oiço. Longínquas estão as tarde de Verão em que uma voz imperiosa me mandava dormir. Eu fechava os olhos, contava os minutos, cheio de inocência, e nunca dormia. Abominava a tortura. Agora é o que se vê.
sexta-feira, 5 de julho de 2019
Das semelhanças
Passei por uma pessoa conhecida, uma mulher que se aproximará da casa dos cinquenta, que não via há muito. Surpreendeu-me que se tivesse tornado tão parecida com a mãe, como se o tempo se aplicasse a seleccionar aqueles traços que, durante décadas dissimulados, estabelecem uma relação com o passado e assim tentasse eliminar os que diferenciam e são arautos de um salto na estirpe. A natureza, ponderei enquanto trocava algumas palavras de circunstância, é mais cuidadosa do que se pensa e tem horror ao desconhecido. Poderia ter evitado este antropomorfismo, mas não me apetece. Hoje acordei e ao ver a paisagem coberta por uma bela neblina comecei a atribuir sentimentos e objectivos humanos à pobre natureza, pura e inocente de todos esses pecados. Uma pessoa prudente evitaria atribuições dessas, passou-me pela cabeça, enquanto me despedia. Logo segui o meu caminho e esqueci as semelhanças, a natureza e a própria prudência. Na paisagem árida da minha mente, talvez motivadas pelo vazio, passam muitas ideias que melhor fora nunca tivessem vindo à existência. O pensamento, porém, é um cavalo selvagem e a mim faltam-me os dotes e a paciência para o domesticar.
quinta-feira, 4 de julho de 2019
Inconstância
Chego à janela e olho lentamente o céu. Os dias continuam nublados e isso é uma bênção. As pessoas protestam porque o Verão parece ter sido adiado. Protestariam se ele tivesse vindo exuberante, aninhando-se no desconchavo dos dias e daí lançasse uma cortina de fogos, que haveria de lembrar o inferno, com anjos caídos, horrendos, negros como baratas. Por falar em anjos caídos, sempre poderia dedicar-me a escrever uma angelologia. Dividir os anjos entre fiéis e rebeldes, e discutir a magna questão se Adão foi criado ou não para que os homens substituíssem no céu o lugar daqueles anjos que se deixaram levar pela empáfia e sofreram, mesmo destituídos de corpo, os efeitos terríveis e inexoráveis da gravidade. Como se vê, sou inconstante de objectivos. Comecei a propor-me falar de anjos e logo mudo de opinião e quero discutir a origem dos homens. Desconfio que, a continuar assim, ainda acabo a perguntar-me sobre a génese dos percevejos. Seja como for, o céu continua cinzento. As nuvens não deixam que se avistem os anjos bons e os maus, como se sabe, andam demasiado ocupados a sugestionar os pobres mortais, semeando-lhes searas de armadilhas para que eles, levados pelo descaso, se percam e a sua alma fique mais escura que um tição.
quarta-feira, 3 de julho de 2019
Julho
Só hoje dei por Julho ter chegado. Sabia que o calendário
indicava que estávamos em Julho, mas este ainda não se apresentara diante de
mim, mostrando-me credenciais e comprovativo de existência. Esta frase fez-me
lembrar uma peculiaridade da burocracia nacional, a certidão de nascimento. Apresento-me,
identifico-me com o bilhete de identidade, mas alguém diz: prove que nasceu. É
um exercício difícil provar que se nasceu. Vale-nos a certidão. Também Julho apresentou
a sua certidão de nascimento. Isto não torna as coisas mais fáceis. Pelo
contrário. Há pouco peguei num livro onde um filósofo actual me informa que “jamais
poderemos ter a esperança de tornar as nossas palavras perfeitamente precisas”. As pessoas esperam pouca coisa, pensei. A
minha esperança é que as palavras se tornem perfeitamente imprecisas. Assim ao
dizermos uma coisa, o leitor suspeita que estamos a dizer outra e isso
parece-me muito consolador. Acabariam os mal-entendidos. Olho o céu, e uns
cirros mancham a pureza do azul. Cá em baixo, na terra, os homens apressam-se
pela avenida. Temem chegar tarde ao comboio que os há-de levar a Agosto.
terça-feira, 2 de julho de 2019
Ares de família
Respiro fundo e penso que este é um belo exercício para clamar a vinda da paciência. Estou há horas numa tarefa repetitiva, destituída de sentido, fabricada por gente misericordiosa, sempre activa na descoberta da melhor forma de fazer da vida dos outros um exercício de penitência. Talvez eu mereça, mais que qualquer outro, essa penitência. A estupidez é um pecado capital que se paga caro e eu não me distingo particularmente pela inteligência. Decidi acompanhar o ir e vir do látego com as sonatas para piano de Beethoven. A certa altura, estas tornaram-se também elas repetitivas. Não percebia já o movimento da música, apenas ouvia, como se viesse de outro mundo, o martelar ameaçador das teclas. Parei. O Youtube ofereceu-me, então, as sonatas de Schubert pelo Claudio Arrau. Olho para a fotografia deste e acho o seu rosto, marcado pela idade, uma estranha combinação entre Nietzsche e Arnaldo Matos. Não estou bem, pensei. Levanto-me, esfrego os olhos, dou uns passos pela casa. Chegou a hora das alucinações. Troco o Beethoven pelo Schubert e volto à expiação. Antes de recomeçar ainda me pergunto: Nietzsche, Arrau e Arnaldo Matos seriam primos? As voltas que a vida dá.
segunda-feira, 1 de julho de 2019
A verdadeira arte
Podia vir aqui contar a história do faroleiro Richard
Garman, mas não o faço. Há que evitar o excesso de ficção e, desse modo,
propagar histórias falsas por esse mundo fora. Já basta o que basta. Também é
verdade que não haveria quem a ouvisse. Inspirado por Santo António, sempre a
poderia contar aos pássaros meus vizinhos, mas estes parecem-me demasiado
ocupados para se entreterem com o que lhes pudesse dizer. Esvoaçam diante da
janela, poisam no parapeito, fazem tangentes arriscadas à esquina do prédio.
Acima de tudo, não se calam e eu não sou santo o suficiente para lhes fazer
entender a minha língua. A luz desta segunda-feira tem o condão de me irritar.
Há nela um sintoma de falsidade, uma mancha esbranquiçada que alastra pelas paredes
e telhados, um odor a trevas mascarado de brilho. Não sou daqueles que na
natureza vêem o metro da virtude. Também ela é dissimulada, pronta a fazer-nos
cair numa armadilha. Eu sei que o que estou a escrever não tem nexo, mas também
eu perdi há muito o norte. Acima de tudo, esforço-me por adiar aquilo que tenho
de fazer. Ainda oiço o sagaz conselho que estava num daqueles livros de
instrução pública que me calharam em sorte: não guardes para amanhã o que podes
fazer hoje. Pobre sagacidade e infeliz conselheiro. Há coisas que o melhor é
nunca as fazer. Procrastinar é uma arte. A verdadeira arte.
domingo, 30 de junho de 2019
Ruminações
Nestes dias não tenho deixado de ruminar na descoberta da minha obsolescência. Hoje também não foi diferente. O que me valeu foi a visita do meu neto. Com os seus sete meses e meio arrasta-se por onde o deixam, movido por objectivos determinados, quase sempre traduzidos na tentativa de capturar um telemóvel esquecido ou de alcançar qualquer coisa que brilhe. Ainda não chegou o momento em que há-de passar pelas estantes e puxar livros e CD para o chão a grande velocidade, como se soubesse que está a fazer uma patifaria. Talvez esta propensão que os netos têm, quando começam a andar, de desarrumar os livros e a música seja um sinal que só agora começo a perceber. Os livros que leio e a música que oiço são coisas que já não fazem sentido, o melhor é desocupar as estantes para que alguém mais de acordo com o espírito do tempo as encha com aquilo que lhe há-de interessar. A ideia consola-me, assim como me consola o vento que ameniza a temperatura por estes lados. O domingo progride, o meu neto já se foi embora, restam-me os livros fora de época e a música que ninguém mais há-de querer ouvir. Não há coisa pior que criar expectativas que a realidade, sem benevolência, se encarregará de desmentir. Às vezes, penso nos meus dois avôs e sinto uma grande tristeza por eles terem morrido bem antes de eu nascer. Nunca pude chamar por eles e descobrir o que tinham para me ensinar.
sábado, 29 de junho de 2019
Exercícios da paciência
Chegou sábado e não devia estar por aqui. Um excesso de
zelo, porém, obriga-me a ficar em casa neste fim-de-semana. Tento ser um
taxinomista ponderado e razoável na classificação das espécies. Oiço uma voz.
Grita, lá em baixo, golo. Depois o rapazola ri-se, tomado pela euforia. Naquelas
idades, nada há mais importante que um golo. Há pouco tive de atravessar a
cidade para uma visita de família. Foi uma travessia por ruas lentas, morosas,
cheias de paciência. As ruas da minha cidade nunca desesperam. São como
tartarugas que sabem muito bem que não haverá Aquiles que as vença. Então
deixam-se estar na sua modorra, à espera de transeuntes, e eles lá vão
passando, inclinados para si, fechados no pequeno habitáculo da sua consciência,
indiferentes ao desvelo acolhedor de cada rua, de cada beco, de cada avenida.
Espreito à janela. Dois adolescentes disputam uma bola. Fintam-se um ao outro,
fintam-se a si próprios. O terreno de jogo é uma mescla de luz e sombra.
Recolho-me e penso que poderiam colocar jacarandás no lugar das palmeiras cortadas. Assim, poderia falar na glória dos jacarandás em Junho. Ou, então, renques
de ciprestes, para que os homens não se esquecessem de olhar para os céus. Os
jogadores calaram-se e o último golo que eu marquei – eu que nunca tive inclinação
desportiva – foi há tantos anos que começo a duvidar que realmente o tenha
feito.
sexta-feira, 28 de junho de 2019
Revelação
Tenho uma tarde poeirenta pela frente, o que me dá sempre
ensejo para considerações esquálidas. Pensamos, medito, que o momento não
chegará, que nunca a nossa obsolescência cairá, como uma evidência irrecusável,
diante dos nossos olhos. Haveremos sempre de estar na vanguarda. De um momento
para o outro, porém, a realidade muda e os nossos reflexos estão enfraquecidos,
o corpo cansado e a vontade gasta. Aquilo que valia deixou de valer, as regras
e o jogo são outros. É uma hora terrível. Os que nos rodeiam ainda não sabem,
mas nós sabemos que estamos definitivamente ultrapassados. Perdemos a corrida.
Os gestos estão mais lentos, as mãos mostram uma pele enrugada e, acima de
tudo, há em nós a pior das tentações. Não queremos saber. Aquilo que agora nos
ultrapassa e nos revela o quão arcaicos somos não nos interessa, são coisas que
se dirigem para o futuro e nós, aquilo que nos falta, é futuro. Sobra-nos o
passado e é para lá que nos dirigimos, enquanto a nova vanguarda edifica as
suas ilusões e ainda não sabe que também ela está grávida da sua obsolescência.
Na praceta aqui ao lado, um adolescente bate uma bola de basquetebol. Inebria-o
o som e o movimento. Oiço a batida e fecho os olhos. Ainda tenho que disfarçar
durante uns tempos.
quinta-feira, 27 de junho de 2019
A morte da senhora de Segelfoss
Ao olhar a capa do velho livro que estou a ler, pergunto-me
o que terá a literatura para que eu dê uma especial atenção à queda do senhor
do domínio de Segelfoss. Eu sei que o senhor e o seu domínio, assim como a
própria queda são apenas palavras criadas pelo romancista Knut Hamsun. Nada
daquilo se relaciona com uma realidade substancial. Não basta, porém, dizer,
como Coleridge, que se suspende a descrença para acompanhar a trama romanesca. O
enigma está no motivo por que o fazemos. Interessamo-nos pelo destino de pessoas
que não existem, que estão embrenhadas em situações que não existem e que têm
destinos que nunca existirão. Estamos conscientes desta irrealidade e, no
entanto, não paramos de virar as páginas. Talvez o façamos porque estamos
certos dessa irrealidade. Talvez o façamos porque, apesar de termos opiniões
sobre tudo o que acontece, não suportamos a realidade. Talvez o façamos porque
na morte de Adelheid, a senhora de Segelfoss, pensamos a morte como uma ficção
e assim evitamos olhar nos olhos a nossa própria morte.
quarta-feira, 26 de junho de 2019
Popeline
Ao ler um post
sobre música deparei-me com a palavra popelina. Há muito que não a escutava e, tanto quanto me lembro, ouvia-a como
popeline. Uma camisa de popeline. Na altura, não imaginava – ou imagino que não
imaginava – que a palavra fosse francesa e estivesse em vias de nacionalização lexical.
Também o sentido exacto devia escapar-me e, talvez para infelicidade minha,
nunca senti curiosidade em saber precisamente que tipo de tecido era realmente
a popeline. Aquela era uma linguagem esotérica de uma seita, para mim, fechada.
Os tecidos não eram, nem são, o meu forte, se é que tenho algum forte. Um raio
de sol, ao fender as nuvens, iluminou-me e pensei que, para pessoas como eu,
deveriam existir dicionários ilustrados de tudo e até de tecidos. Fiz uma pesquisa
no Google e ele, na sua infinita bondade, devolveu-me vários dicionários
ilustrados. Um de moda, uma aproximação, mas também outros mais adequados ao
meu presente estado. Um dicionário Ilustrado de fisioterapia e outro de saúde, que
terá, por certo, uma secção de saúde mental. Ainda não é agora que vou saber
alguma coisa sobre os tecidos que vestem as personagens com que me cruzo na rua,
pensei desanimado. O Google, contudo, não dá ponto sem nó e indicou-me um guia
prático de tecidos. O problema é que é brasileiro e lá os tecidos hão-de ter um
nome que nada terá a ver com o que se usa por cá. Por causa das coisas, o
Google ainda me indica, não sem perspicácia, o dicionário Houaiss ilustrado. Infantil,
claro. Fico a pensar na insinuação e acabo por aceitar que não faltará muito para
que seja esse o dicionário que me é mais apropriado.
terça-feira, 25 de junho de 2019
O taxinomista que boceja
Tomado pelo sono, bocejo atrás de bocejo, uma tentação quase irresistível de fechar os olhos e deixar descair a cabeça, suspendi a minha função actual de taxinomista. Por vezes sou agraciado com a divina dádiva de me entreter com categorizações, exercícios de ordenação de certos elementos através do jogo das semelhanças e diferenças. Estou a ficar esotérico, o melhor é mesmo, caso não consiga calar-me, falar de outra coisa. Na verdade, há coisas que me incomodam como ir a um restaurante e sair de lá a cheirar a comida. Imprevidência, dir-me-ão. Um juízo precipitado. Era o que estava mais à mão e que me permitia voltar mais rapidamente para a minha função de organizador de taxinomias. Por vezes, as refeições são um incómodo, mas ainda não consigo dispensar o suplemento de energia que fornecem. Sempre podia jejuar ou mesmo fazer como o burro do espanhol, mas conheço o funesto destino do pobre animal. A verdade é que me senti melhor ao sair. Havia uma luz triste a lembrar a melancolia dos sábados à tarde na província. Os carros passavam, as pessoas cruzavam-se, as folhas das árvores, batidas pelo vento, abanavam. Fiquei siderado pela proliferação de pretéritos imperfeitos na frase anterior. O que me vale é que os macacos-prego usam ferramentas de pedra há três mil anos e os chimpanzés do Congo possuem um tipo de cultura diferente de outros chimpanzés. Isto tranquiliza-me e rouba-me à minha solidão. Agora não sei se hei-de voltar para as taxinomias ou ir bocejar para outro lado.
segunda-feira, 24 de junho de 2019
Autossexuais
As coisas que uma pessoa aprende só pelo passar dos olhos pela informação disponível. Uma notícia informa-me que para além dos heterossexuais e dos homossexuais existem ainda os autossexuais. Atraídos por si mesmos, não encontram prazer sexual maior que aquele que retiram de si. Poderíamos ter sobre o assunto uma discussão sobre se deveríamos interpretar o facto mais do ponto de vista psicanalítico, apontando-lhes os dedos e clamando narcisos, narcisos, ou de uma perspectiva filosófica, exibindo-os como amostra de radical solipsismo, se é que tal coisa existe. Isso, porém, poderia conduzir a más interpretações e, nos dias que correm, o melhor é mostrar-se neutro e esquecer qualquer opinião que se possa ter tido sobre sexualidade. O que me consolou, perante esta autocensura, foi outra notícia que me diz ter a NASA descoberto metano em quantidades apreciáveis em Marte. Talvez isso seja sinal de existência de vida microbiana no planeta vermelho. A minha esperança é que os possíveis micróbios sejam verdes e declaro, para memória futura, que não tenho nenhum interesse em saber como se reproduzem nas alcofas marcianas.
domingo, 23 de junho de 2019
De Profundis
Contra o hábito, fui fazer ao domingo compras a uma das
grandes superfícies comerciais que, como cogumelos, brotaram por aqui. O dia
está cinzento e abafado e eu, por falta de talento ou por conflito com a
situação atmosférica, não estou particularmente inspirado para criar analogias.
Uso as que estão, como eu, gastas e quase sem préstimo. Na charcutaria, local
que também tem a função de takeaway
(estas coisas em inglês acentuam o carácter degradante da realidade), um homem que
já terá, há muito, ultrapassado a casa dos oitenta, falava com outro, mais
novo. Este escutava atento e complacente, enquanto o primeiro, hesitante, de
voz quebrada e gestos lentos, ia confessando a mágoa com a vida. Vinha comprar
o almoço. Tem de ser, dizia, conformado, com as palavras a saírem manchadas de
angústia. Não sei cozinhar e ela, que tão bem o fazia, agora é incapaz de fazer
seja o que for. É tarde para eu aprender, tenho de me valer disto. Salvou-me o
terem chamado o meu número e a vida, que parecia suspensa naquela conversa
escutada inadvertidamente, tomava o seu rumo. Um rumo impiedoso, penso agora
que escrevo isto. Do leitor de CD, desprende-se o De Profundis, de Arvo Pärt. Um acaso, penso, enquanto olho pela
janela e vejo a calmaria do arvoredo a clamar por uma grande tempestade.
sábado, 22 de junho de 2019
Aliviar o fígado
Atravesso, na passadeira, a avenida. À minha frente vai uma mulher de blusa branca, cintada e que termina no que poderia ser o rodapé de uma página, onde ninguém se lembraria de fazer qualquer anotação. Chegados ao lado de lá, ela segue para um lado e eu para outro. Entro num café e sento-me. Antes de pedir o café e abrir o jornal, oiço uma mãe a encomiar a prole, perante uma pequena assistência silenciosa e constrangida. Nunca deixa de me maravilhar a penetrante visão dos pais que vêem nos seus filhos seres pelo menos ligeiramente superiores em inteligência a Einstein e nunca menos virtuosos moralmente que os santos que enchem os altares. Nessas alturas, bendigo a criação. Chega o café, abro o jornal, a senhora não se cala, tal a abundância de virtudes e o excesso de perspicácia que os filhos receberam, por certo, dos seus genes e daqueles que o seu coração escolheu para produzir deuses. Estas pessoas são perigosas, pois a realidade é desagradável e quando, inexoravelmente, os limites da criançada se revelam, a culpa é dos outros, uns aleivosos incapazes de reconhecer o génio e a superioridade moral. O melhor, pensei, é fechar o jornal e sair. Quando cheguei à rua, as nuvens erguiam uma barreira débil à luz. “Não há nada de novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é eterna repetição dos males”, citei em pensamento, como quem alivia o fígado.
sexta-feira, 21 de junho de 2019
Solstício de Verão
Há pouco atravessei a cidade e senti-me defraudado. As pessoas passavam envoltas no grande véu de indiferença que as cobre, empurravam sem paixão a sua sombra, ninguém tinha cara de ir comemorar o solstício de Verão. Compreendo que gente como eu, filho da névoa e da cinza, que tem uma incompatibilidade visceral com o Estio, se sinta acabrunhada e tente ostentar, só por impertinência, uma cara de enterro. Ora, os meus conterrâneos, que há muito se vestem para receber a estação do calor em apoteose, andarem pelas ruas como se nada fosse com eles, sem uma euforia exteriorizada que anuncie a alegria pela chegada da grande época, é coisa que não consigo compreender. Talvez os mais entusiastas, pensei, tenham viajado para Stonehenge para participar naqueles rituais que se imaginam pagãos, mas que são apenas uma forma de escandir o desespero. Talvez, mas a verdade é que a gente que se cruzou comigo não trazia no rosto a exaltação dos dias de festa. Não era fremente a luz que a iluminava. E como a cidade ou como eu, iam, avenida fora, baços, de asa caída, sem que uma estrela os iluminasse. Um adolescente berra, eu viro-me, mas é apenas uma bravata consigo mesmo. Cala-se e mergulha na nuvem de tristeza que cobre os telhados. Os dias vão começar a diminuir.
quinta-feira, 20 de junho de 2019
Confissões modernas
Durante séculos, pensei ao acabar uma tarefa que tinha entre mãos, as pessoas confessavam-se para aligeirar a consciência e acertarem contas com o bom Deus. Era um assunto religioso, tratava dos negócios da alma e da vida no além. Agora a confissão tomou conta das vidas profissionais sobre a forma de auto-avaliação. Os confessados, todavia, já não se interessam pela salvação da alma nem pelo além. Confessam-se para salvar o pêlo e mostrarem que, num mundo onde transborda o mérito, eles são merecedores, não do céu, mas de uma daquelas recompensas que fazem lembrar a cenoura que se deve pôr à frente dos burros, para que estes se tornem diligentes. O propósito destas confissões é mesmo – meditei, enquanto olhava para as estranhas configurações das nuvens no céu – mostrar que somos excelentes burros e que merecemos se não a cenoura, pelo menos um rabanete. Nas velhas confissões – um dos pássaros meu vizinho não se cala, não sei se estará a confessar-se em voz alta – expunham-se as chagas da alma, os deméritos da vida, a podridão em que as inclinações do corpo depunha o paroquiano. Agora, exibe-se a imaginação no seu poder criador de feitos e milagres. Os confessados de hoje são todos heróis do trabalho e não pecadores contumazes. Burros de carga, para usar uma linguagem coloquial. Não tarda e começo a zurrar.
quarta-feira, 19 de junho de 2019
Manuscritor e profetas da desgraça
Li que foram descobertas mais duas terras. Fiquei apreensivo, apesar da notícia já poder ser antiga. Agora é moda andarem a descobrir terras por dá cá aquela palha. Percebo que os astrónomos tenham de passar o tempo de qualquer maneira, mas descobrir terras não me parece a mais honrosa. Basta olhar para esta que nos coube e afastar, por uns instantes, a cortina das belas paisagens e das boas acções, para logo se ter uma ideia real do que é uma terra. Um sítio que não se recomenda nem a um inimigo. Por falar em coisas pouco honrosas, também eu tive de ir comprar um material de escrita, pois os próximos dias vão obrigar-me a voltar a escrever manualmente. Numa era tecnológica como a nossa, escrever manualmente é prova provada de que se é um indigente de alto calibre. Além do mais, fico com dores nas costas. Pensando nisso, após comprar o material de escrita, um material reles e barato, fui comprar uns analgésicos. Uma pessoa pode ser indigente, mas precavida. Uma coisa, porém, posso assegurar. Escrever manualmente, ainda o farei, apesar de contrariado, mas nunca me apanharão a descobrir terras, a focar telescópios em estrelas e exultar de alegria porque houve uma intercepção na radiação luminosa, por causa de uma miserável terra passar, ofegante e mal educada, em frente da estrela. Manuscritor, ainda vá que não vá, agora profeta da desgraça, nunca.
terça-feira, 18 de junho de 2019
Capital de distrito
Por motivos profissionais, seria lícito pensar que essas razões são penitência por alguns pecadilhos veniais, tive de ir à capital de distrito. Não há nada como capitais e o país está cheio delas, desde as dos distritos até à do fumeiro ou a dos caracóis com urtigas. Se esta ainda não foi criada, certamente sê-lo-á a breve prazo. Sob o céu cinzento a capital do meu distrito estava bisonha, exaurida, bocejava a torto e a direito. Mal escrevo estas últimas palavras o word sublinha-as a verde e informa-me, obsequioso, que formam uma expressão idiomática da linguagem informal. Eu agradeço e o software responde-me com um imperativo hipotético: Pondere o emprego de uma expressão alternativa. Eu ponderar, posso ponderar, mas não deixo de constatar que o mundo se tornou um lugar onde fervilham conselheiros para tudo e para nada. Voltando à capital, lembro-me como ela era garrida e animosa para os olhos que eu tinha na infância e ia lá para ver parte da família. Os olhos envelheceram e a cidade, apesar das inovações no trânsito e a proliferação de rotundas, envelheceu com eles, levando-me a família e os sítios que, na altura e sem o saber, amava. O mundo poderia ser perfeito, mas há nele uma aposta firme e obstinada na imperfeição.
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Estado do tempo
O tempo está mesmo a pedir chuva, pensei. Fui consultar um site de meteorologia e anuncia-se por lá
que ela cairá nos próximos dias. Lembro-me, quando era adolescente, de algumas
pessoas mais velhas se preocuparem excessivamente com o estado do tempo. Havia
uma espécie de ritual na escuta do boletim meteorológico na Emissora Nacional
ou em assistir, no fim do telejornal, à sua emissão na televisão, onde alguém,
comentando uma carta cheia de curvas e sinais esotéricos, anunciava a boa ou má
nova do tempo por vir. Talvez fosse um exercício para determinar o que deveriam
vestir no dia seguinte, imaginava então. Hoje penitencio-me por esses juízos
precipitados. Também eu comecei a interessar-me pelas informações acerca do
estado do tempo, embora nunca pense no que vá vestir amanhã. A minha nova tese
é que o interesse pela meteorologia é um hobby
que se desenvolve a partir de certa idade. Até a esse momento de viragem na
vida, tanta faz que faça sol ou chova. Passada a fronteira, as coisas mudam e
começamos, primeiro de forma encapotada e depois quase maníaca, a consultar a
meteorologia. Principiámos, por certo, a detestar – ou a temer – as surpresas.
domingo, 16 de junho de 2019
Domingos
Os domingos são dias óptimos para surgirem salvadores e venderem-se técnicas de salvação. Na verdade, passam-se poucas coisas ao domingo e a imaginação, fora do controlo que o ganhar a vida impõe, desata a fantasiar. Mesmo há pouco, num dos grandes jornais, encontrei um novo salvador, com uma teoria que nos há-de trazer a definitiva redenção. Para memória futura, fica aqui o registo que o encontrei, que li a prosa remidora. Também é verdade que encolhi os ombros e fui dar uma volta pela cidade. Esta insiste em não encontrar quem a salve e vai enfezando sob o sol. As coisas nunca são como os homens as querem, pensei, enquanto deixava o carro deslizar pelas ruas. As tardes de domingo sempre foram especialmente melancólicas por aqui. Não porque no outro dia seja segunda-feira, mas apenas porque é domingo e as ruas estão desertas, as pessoas fugiram ou mancomunaram-se para criar um ambiente de irrealidade insuperável, como se esse fosse o cenário ideal para uma distopia. O calor é aceitável, valha-nos isso.
sábado, 15 de junho de 2019
Falta de palavras
Uma das coisas que me acontece com frequência é esquecer-me da palavra que estou prestes a proferir. No momento em que a ia mobilizar, ela furta-se à tarefa, foge de mim e, por mais que corra atrás dela, não a consigo apanhar. A sensação com que fico é desagradável. A ausência da palavra é uma lacuna no saber, porque não é apenas o som que me escapa é também aquilo que ele evoca. Estas lacunas devido ao passar dos anos, porém, são menos graves que outras. Olho pela janela e vejo um arbusto cheio de flores que me parecem hesitar entre o rosa e o salmão. Não tenho, todavia, palavra para o designar. Esta falta de palavras para dizer o que se vê pesa-me mais que o esquecimento, mostra-me como eu passo pelas coisas com sobranceria e desdém, sem querer saber-lhes o nome. E se não sabemos o nome delas como falar delas, sem lhes faltar ao respeito? Um pequeno pássaro poisa no arbusto, e é tudo o que a minha pobre linguagem consegue dizer. Deveria passar o tempo a fazer listas dos nomes da flora e da fauna, ou do mobiliário ou, mesmo, dos tecidos. Como se pode falar do mundo se não se tem palavras para ele?
sexta-feira, 14 de junho de 2019
Segundas naturezas
Um pequeno pardal estava pousado no muro da varanda. Parecia
olhar, inclinando a cabeça, para o abismo que havia diante dele. Por vezes,
recuava, com leves estremeções das asas, mas logo se aproximava da borda.
Sentado, olhava-o e perguntava-me se ele saberia voar, se estaria ferido. A ave
recuava um pouco, abanava as asas e dava novos passos para o precipício. O
vento fazia-lhe tremer as penas. Tanta hesitação era sintoma de uma incerteza,
de uma falta de confiança nos seus poderes. A cena prolongou-se por alguns
minutos, até que, num súbito impulso se atirou da varanda para o espaço aberto
diante de si, estendeu as asas, bateu-as e desapareceu. Encontrou-se, naquele,
instante consigo mesmo, pensei. Não tinha outro remédio, a não ser a morte. Aos
homens, porém, é-lhe dada uma terceira hipótese entre encontrar-se consigo mesmos
ou perecer. A de viverem num limbo onde a hesitação e a contingência se tornam a
sua natureza. Não voam nem morrem, ficam a olhar o precipício encolhidos.
Talvez seja isso a natureza humana, uma longa hesitação. As sextas-feiras fazem-me
mal. O pássaro voou, mas eu apenas me deixo divagar, enquanto uma pilha de
livros se ergue perante mim e uma varejeira, que aproveitou o descuido de uma porta
de varanda aberta, choca com o vidro para retornar aos espaço livres, onde
tecerá o seu império. Vou abrir-lhe a janela.
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Passar o tempo
Junho progride sem glória nem ignomínia. Vai em passo desengonçado e arrasta consigo corpos, casas, ruas, as memórias que começam a desvanecer-se ou os desejos, tomados por súbita aquietação. Têm sido dias ventosos, oiço dizer. Uma mulher confirma a constatação da outra, enquanto passam por mim e se afastam, logo sendo devoradas pelo espaço onde caminham e pelo tempo que passa. Observo os carros da avenida. Alguns aceleram para travar bruscamente ao aproximarem-se das passadeiras, outros seguem vagarosos, enquanto os seus ocupantes devaneiam, como se ainda estivessem naquele limbo que faz a ligação entre o sono e a vigília. Também eu me sinto nesse limbo. Mantenho os olhos abertos, mas a minha vontade é de correr para casa e deixar-me adormecer. Contenho-me e luto contra o demónio da preguiça. O dever chama-me, digo sem ironia e rio-me. Por motivos terapêuticos, comecei por rir-me das coisas que fazia. Agora, sem esperança de cura, rio-me de mim. Cada um passa o tempo como pode.
terça-feira, 11 de junho de 2019
Distracção
Peguei há pouco no romance O Beijo ao Leproso, de François Mauriac. Ainda não o vou ler,
observo-o apenas como objecto físico. É um velho livro da Colecção Miniatura da Edição «Livros do Brasil» Lisboa. Não tem
data, um acidente corrente até certa altura na edição portuguesa, mas o papel
está muito amarelado. O livro, comprado há pouco, nunca foi lido. As páginas
ainda estão coladas por um pequeno lacre branco. A capa e a contracapa
apresentam sinais de sujidade, talvez por terem estado muito tempo em
exposição. Não sei se o hei-de abrir. Tenho a sensação de que, quando acabar de
o ler, todas as folhas estarão descoladas da frágil lombada e hão-de cair para
me obrigarem a restituí-las à ordem. Agrada-me, porém, a estética da capa. Enquanto
penso em todas estas coisas, penso também nos motivos que arranjo para me
distrair. O sol continua, para minha felicidade, anémico, uma luz aguada lava
paredes e telhados, embate nas árvores para que sombras sejam projectadas na
terra, como se fossem reflexos das copas. Não me apetece ver ninguém, mas não
tarda haverá gente à minha espera. Não há distracção que nos salve daquilo que
tem de ser.
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Fora do paraíso
Para fazer uns escassos 100 km, utilizei, para além de um IP, quatro auto-estradas. Estas coisas nunca deixam de me maravilhar e não posso deixar de agradecer aos fundos europeus a misericórdia que têm tido connosco, poupando-nos àquelas viagens homéricas, em que para se fazer aquilo que fiz hoje em bem menos de uma hora, quase se tinha de partir na véspera. Talvez seja para usar tantas auto-estradas que existem feriados como o 10 de Junho. Cheguei ainda cedo, com a cidade banhada por uma luz solar anémica, de tonalidade esbranquiçada, um ar fúnebre. Que peçonha lhe terão dado não faço a ideia. Uns quantos emails caídos fora de tempo lembram-me que a realidade volta amanhã de manhã e o melhor será preparar-me para ela. Respiro fundo, olho para o arvoredo agitado pelo vento e enfrento com denodo a melancolia que se desprende da luz da tarde. Nunca me prometeram que a terra, mesmo com auto-estradas, seria um paraíso.
domingo, 9 de junho de 2019
O contra turista
Deveria
estar a ver o ondular do oceano, sentado numa esplanada, fingindo ser um
turista contumaz. Não estou, há muito que me descobri sem alma turística, coisa
de que não paro de me penitenciar. Encontrei há anos, numa romance de Xavier de
Maistre, o meu ideal de viajante. A literatura não é coisa que faça bem a
ninguém. O título iluminou-me: Viagem à
Volta do Meu Quarto. Li o livro com voracidade, como se tivesse descoberto
no jovem oficial detido no seu quarto uma alma gémea. Sei que isto parece inusitado,
num tempo em que não há quem não viaje, não corra Ceca e Meca, não tenha aventuras
que só o turismo permite para gáudio dos ousados calcorreadores do mundo, que
hão-de contar, sem falha de pormenores reais e inventados, as mil aventuras que
o mundo lhes proporcionou. Tudo para desgraça do ouvinte que, tomado por uma educação
caída em desuso, escuta silencioso, sorrindo como quem faz dura penitência. Eu
não tenho aventuras turísticas para contar, a não ser as viagens sentado à
minha secretária, coisa que omitirei para desprazer dos leitores ávidos de
novidades. O oceano espera-me, mas eu não me espero no oceano.
sábado, 8 de junho de 2019
O começo do futuro
Pego na National Geographic
de Abril e abro-a ao acaso. O tema é as cidades do futuro e desenrola-se à
minha frente um sem número de utopias que nos hão-de salvar da perdição. Fecho
a revista. O futuro cansa-me e mais ainda os profetas, os planeadores e todos
os que têm uma redenção fácil ali mesmo à mão, pronta para nos retirar do
purgatório, ou mesmo do inferno, em que vivemos. Talvez a minha cidade também
tenha um futuro, o futuro de não ter futuro e, assim, se arraste como uma
tartaruga, lenta e pausadamente, sabendo que tem todo o tempo do mundo e que,
por mais vagarosa que seja, há-de sempre vencer o veloz Aquiles. Não sei como é
que a revista veio parar onde está, mas também não me interessa o enigma. Algum
dos filhos a trouxe e a deixou por ali, também ele já exausto de futuro. Os sábados
que têm uma segunda-feira de feriado à sua frente são dias esplendorosos.
Enrolo-me neles e deixo passar as horas, vejo-as desfiarem-se e desaparecerem
nessa garganta funda que é o passado. Nos jornais descubro que, em Nova Iorque,
uma centena de seres humanos se despiram para protestarem contra a censura dos
mamilos femininos no Facebook. Fico mais tranquilo, o mundo, apesar do futuro,
continua a ser o que era. Uns vestem, outros despem. Talvez vá dar uma volta e
procurar o lugar onde, aqui mesmo, começa o futuro.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Os outros
Sentado à secretária, bebo café. Há muito que troquei a errância pela rua em demanda do sítio onde o líquido negro me fosse servido pela comodidade de não sair de casa. Tudo na vida, constato de imediato, conspira para que nos apartemos dos outros, que cortemos o fino arame que nos vincula e faz partilhar crenças e aspirações. Noutros tempos, os outros poderiam ser obstáculos ou aliados, hoje são apenas aqueles que não estão aqui, e o facto de se manterem à distância é motivo se não de júbilo, pelo menos de verdadeiro alívio. Os pássaros meus vizinhos não se calam, parecem repetir, inclementes e obstinados, a mesma sequência de sons, como se quisessem que a mensagem fosse percebida e o seu sentido não fosse vítima de distorções. Para eles ainda parece que existem outros, eu sou quase uma mónada, mas a palavra provocou-me de imediato um refluxo gástrico. O pássaro volta a cantar, enquanto termino o café e sussurro que preferiria ser um grão de areia do que uma mónada. A inércia é um belo exercício.
quinta-feira, 6 de junho de 2019
Uma ilusão
Chove. O vento agita a tarde vestida de cinza e rouba-a à
melancolia dos dias quentes e sem história. Nas persianas fazem-se já sentir as
indisposições atmosféricas, uma depressão a que deram o nome de Miguel, em
honra do temível arcanjo, espero. Recordo as grandes chuvadas de Junho, as
saraivadas indispostas que deixavam as ruas cobertas de granizo e as vinhas
destroçadas. Por vezes, eram acompanhadas por grandes trovoadas, uma atmosfera
tensa e um desejo irracional que tudo desabasse, mas que, por fim, se pudesse
respirar livremente. Com ou sem depressão, a vida continua. Prendem-me à
secretária afazeres inadiáveis, que vou cumprindo com zelo e sem prazer. Um
cedro balança, carros passam, enquanto observo os livros que se acumulam nas
estantes, muitos dos quais não terei tempo para ler. Sinto irritação, não
porque os não vá ler, mas porque ainda julgo que não os ler é uma perda
irreparável. Uma ilusão nefasta.
quarta-feira, 5 de junho de 2019
Insistência
A tarde de voz rouca e agreste desfila como se fosse um
girassol entontecido pela luz. Frases destas enfureciam uma certa seita de
filósofos. Destituídas de sentido, diriam os pensadores tomados pela raiva,
dedos apontados, acusação sem direito a defesa. Como eu os compreendo. Também
os sons da bateria vindos de algum evento festivo aqui perto me chegam
destituídos de sentido. Pressinto o esforço do baterista, o movimento dos
músculos, a cadência das baquetas ao chocar contra pratos e tambores.
Definitivamente, a percussão nem sempre me cai bem. Acontecem as coisas mais
estranhas nesta terra onde nada acontece. A semana desenovela-se com
indiferença. Já esqueceu a segunda e a terça, não tarda aniquilará a quarta. O
baterista ensaia um solo, mas logo desiste. Há pouco corria uma aragem fria,
agora é uma nuvem que tapa o sol. Os músicos insistem e imagino que os ouvintes
resistem. Tocam êxitos do rock dos anos sessenta ou setenta, e eu, suspendendo
o meu ressentimento e incómodo, fico extasiado perante o engenho de quem tenta
parar a roda do tempo e imagina que tem vinte anos e uma vida pela frente. Não
tem, mas também não se cala.
terça-feira, 4 de junho de 2019
Grafias
Olho a capa de uma velha revista e, de súbito, revela-se toda
a perfeição encoberta no limbo do passado. Não por acaso há pretéritos
perfeitos e até mais que perfeitos, apesar de também os haver imperfeitos, como
certas capelas na Batalha. Todas as famílias têm as suas ovelhas negras, foi, à
falta de melhor, a explicação que me ocorreu. A revista, publicada em MCMXXX
pela Litografia Nacional, tem por título Monumentos de Portugal – Cintra. Aí
está toda a perfeição. Que diferença entre a velha Cintra e a Sintra de hoje. O
leitor pode objectar, não sem alguma razão, que a actual é marcada pela dupla curvatura
da linha, ora para trás ora para a frente, de um esse que se contorce, como se
a vila quisesse, nestes tempos de funâmbulos, moldar-se à instabilidade acidental
de qualquer turista. A concavidade da velha Cintra tem, porém, outro carácter.
O cê está ali disponível para acolher dentro de si todas as outras letras e
fechar-se num mistério insondável, que nenhum intruso pressentirá. Enquanto
oiço a algazarra vinda de uma das escolas que há por aqui, medito que só os desavisados
pensarão que a grafia das palavras é coisa neutra, destituída de significado e
das mais terríveis consequências.
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Agustina Bessa-Luís
Afinal, também os imortais morrem. Foi o que me ocorreu ao
tomar conhecimento da morte de Agustina Bessa-Luís. Em tempos, tive com os
livros dela uma relação complexa, um misto de fascínio e ódio. Há na sua
escrita uma crueldade enorme que coloca o leitor de cócoras perante o seu
talento. Lê-la era ao mesmo tempo um grande prazer e um exercício de
humilhação. Ao voltar da página, na luz de uma frase, brilhava um estilete que
deslizava sobre a pele do leitor para se enterrar no lugar de onde brota a
vaidade. Há uns anos conheci alguém que vociferava contra todos aqueles que,
como o inútil que escreve estas palavras, julgavam a escritora genial. Uma
idiotice, asseverava. Como é possível julgar genial alguém que não passava de
um Camilo requentado, uma escritora do século XIX? Esqueci o nome e o rosto
dessa pessoa e nunca dei por que tivesse dado à luz a escrita que haveria de
iluminar o século XXI. Um dia destes voltarei aos romances de Agustina, agora
que as ilusões juvenis murcharam e a realidade crua desceu sobre mim. Por
certo, já não os jogarei ao chão e à parede, como, despeitado e preso ao
feitiço da sua escrita, cheguei a fazer. Mesmo quando os pássaros meus
vizinhos cantam, Junho é um mês difícil.
sábado, 1 de junho de 2019
Tagarela
O culpado de tudo isto é o pobre do Coleridge, caturrei,
que ensinou aos leitores que deveriam suspender a descrença quando lêem qualquer
ficção. Um péssimo trabalho, o do poeta inglês, que gerou mais equívocos do que
qualquer outra patranha que a literatura inventou. Agora tendem a confundir-me com
quem escreve estes textos e atribuir-lhe os pensamentos que são meus. Entre mim
e o autor há uma desconformidade tal que há dias e dias que passamos um pelo
outro e nem trocamos um olhar quanto mais uma saudação. Desconfio que o tipo
nem me suporta. Eu, para dizer a verdade, dispenso de bom grado o convívio, mas
é triste para mim esta confusão, rouba-me a identidade e atribui ao tolo do
autor as descobertas, sensações e exalações que são minhas. Se fosse ele a arvorar-se
dono do que digo e sinto ainda o acusava de plágio, mas ele é burro velho e não
cai na esparrela. Remete-se ao silêncio e deixa-me tagarelar. Tagarela, foi
assim que ele me criou.
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