As árvores do passeio em frente foram podadas. Parecem agora
mãos disformes erguidas aos céus e não sei se elas se abrem numa súplica ou se
mostram as garras afiadas em ameaça. São cada vez menos as coisas que sei,
constato não sem alegria. Por debaixo delas passam, indiferentes, pessoas e
cães. Um casal, de mão dada, arrasta-se, ela presa a uma mala excessiva e ele de
passo incerto, deixando, a cada instante, a perna esquerda um pouco mais para
trás. Talvez a felicidade deles resida naquela mala demasiado grande ou no
esforço de trazer a perna ao seu lugar. Nunca sabemos o que torna os outros
felizes. E o melhor é não o saber. Umas persianas abrem-se e da janela chega a
imagem de uma mulher. Acende um cigarro. O fumo sai-lhe pela boca e pelas
narinas. Talvez a felicidade que lhe cabe nesta vida esteja toda nesse fumo que
o corpo deseja para logo o expelir. E sigo pela rua fingindo não ver aquilo que
vejo. Toda a virtude, concluo, está em fingir não ver o que se vê. Virtude e
sabedoria.
terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018
Desprezo
Fiquei todo o dia a tratar de expediente escolar, enquanto,
lá fora, o sol se abria sobre a cidade e caía delicado nos prédios, soprado por
um vento insípido. As nuvens, julgo que serão cúmulos, navegam lentamente pelo
oceano bonançoso do céu, alheias aos homens. Envelhecer será, penso-o agora,
contentar-se com a indiferença com que a natureza acolhe os meus desejos. Não
há nela nenhum projecto para os frustrar, apenas a sabedoria de os não tomar em
consideração. E é este desprezo pelas ânsias da humanidade, admito-o, aquilo
que ela terá de mais admirável.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
Na hora anunciada
Mesmo se sombrios, são gloriosos os domingos, os que não
possuem uma segunda-feira no horizonte, pensei ao chegar à janela. O céu
cinzento não é uma ameaça mas uma promessa, ilusória como toda a promessa, de uma
eternidade mesmo ali ao alcance da mão. E recolhi-me nessa fantasia, ruminando
projectos e arquitectando obras, semeando o porvir de esperanças para as quais,
sei-o bem, ele não está disponível. Um pombo lacera o céu, plana de asas hirtas
como se não houvesse gravidade, sustido pelo vento e pelos meus olhos que não
se desprendem daquele voo. E nesse breve instante a eternidade manifestou-se,
suspendendo o tempo, e falou com a sua língua de fogo para que eu a escutasse.
Fechei os olhos e ao abri-los não havia pombo, nem língua de fogo, nem a eternidade
falava dos seus segredos no fundo do meu coração. É domingo e a segunda-feira
já se ergueu para pôr os pés ao caminho e chegar aqui na hora anunciada.
sábado, 10 de fevereiro de 2018
Signum citationis
Por vezes deparo-me com expressões que têm o condão de salvar o dia. Não que ele esteja perdido ou que eu sinta a sua queda iminente, mas está embaciado por algum desejo que turba o coração ou ofusca a luz da razão. Sento-me e olho para a rua. O sol persiste em iluminar a terra, reverbera nos vidros dos carros que passam. Um dia ainda será acusado de contumácia no crime de trazer a luz, prognostiquei. Leio alguém que fala sobre esse sinal equívoco que tem o nome de aspas. A dado momento, escreve, referindo-se-lhes, signum citationis. Fiquei siderado a olhar para a expressão e deixei que ele quase cantasse em mim. Só a música nos pode salvar, pensei então, deixando-me embalar pelas aliterações e assonância presentes naquelas duas palavras de uma língua morta. O vento empurrava a ramagem do arvoredo sem que a música se desvanecesse. E de súbito percebi a vida como uma citação de um texto apócrifo, umas vezes marcada pela musicalidade do signum citationis, outras exibindo-se como um plágio sem pudor.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
Carnaval
Quando se aproximam os dias de Carnaval sinto crescer a desolação. É
possível que outrora tenha existido uma qualquer relação de continuidade com as
Saturnais romanas ou com grandes festas dionisíacas. Agora são dias em que o
próprio sol se envergonha e, quando brilha, fá-lo quase com pavor de iluminar a
terra. De manhã, aqui ao pé de casa, crianças de uma escola desfilavam ao som
de uma música abrasileirada. Pais e avós olhavam embevecidos, tiravam
fotografias, filmavam. E toda aquela alegria era tão triste e tão desolada, que
o coração se apiedou e a razão, misericordiosa por uma vez, não se esqueceu de
recordar que em breve tudo terá passado.
domingo, 4 de fevereiro de 2018
Enredos
As noites de domingo são lugares vazios onde qualquer coisa
pode encontrar abrigo. Um sentimento, um desejo, a emoção que se escapou ao
controlo feroz da razão. Por vezes, chegam memórias antiquíssimas e recolhem-se
no desvão com que o fim-de-semana termina. Não sei porquê, lembrei-me da
atenção com que, na casa de uns tios-avós, se ouvia no rádio, num tempo em que as
televisões eram raridade, a informação sobre as previsões do estado do tempo.
Isso seria quase tão importante, penso agora, como ir à missa ao domingo. Talvez
estivessem interessados autenticamente no que iria acontecer, se precisariam de
chapéu de chuva ou se o calor iria trazer o fogo como ameaça. Prefiro, porém,
imaginá-los a registar a previsão para depois verificarem se ela se cumpria ou
não, uma atitude de vigilância aos prognósticos da meteorologia. E é na esteira
desta memória que entro na noite de domingo. Deixo-a trabalhar dentro de mim,
tento lembrar-me das faces desses meus tios, dos seus gestos, das palavras.
Silêncio e escuridão. Foi há tanto tempo que tudo isso foi rasurado e dizimado
pela voragem com que a vida, como um romance, se enredou.
sábado, 3 de fevereiro de 2018
Viagens genéticas
Talvez uma parte dos meus genes tenha feito uma grande
viagem, vindos de paragens setentrionais frias e pouco luminosas. Do que sei
deles, não há indicação que tal tenha acontecido, mas a minha sabedoria, com
tudo o que essa sabedoria tem de precário, não vai muito para além dos dois
séculos. A verdade é que cheguei à janela e vi uma tarde cinzenta, sombria, a
chuva a cair. Enquanto olhava com prazer para a rua, algo em mim sussurrava:
esta é a tua pátria, uma terra de sombras, dias pequenos e frios. As pessoas
corriam para se abrigarem da chuva e eu pensava que raramente sentia saudades
dos dias de calor, dessas orgias de luz, abulia e transpiração. A chuva parou. A
tarde declina e sento-me como se este lugar fosse outro, longe daqui, sem que
uma ameaça de fogo sobre ele impendesse, logo que a primavera se aproxima da
tormenta estival. Sabemos lá de onde vêm os nossos genes.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
A escada rolante
A semana fechou-se no escuro da noite, deslizou sorrateira para os
braços do esquecimento, para o porto onde os homens, depauperados pela
inutilidade dos dias, aguardam o festim do sábado, o grande baile em que
dançam, dançam, dançam na sala vazia da solidão. As noites de sexta-feira são promessas
que o tempo nunca cumprirá. Sento-me, cerro os olhos e deixo o pensamento
vaguear. O ideal seria não pensar, parar a corrente de consciência e entrar na
escuridão de mim mesmo, escutar o inaudível que uiva no âmago do corpo,
aproximar-me desse silêncio que as vezes ecoa numa imagem, num gesto, na pétala
de uma rosa que o vento arrasta. Na aparelhagem, um quator solta-se, inunda o ar e cai sobre mim. Também nele o
silêncio ladra, penso e levanto-me. Vou jantar e logo sou arrastado pela escada rolante
do tempo.
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
O promontório e a charneca
A luz de Inverno é um promontório de onde espreito o mundo. As casas
vacilam no meu olhar e as pessoas, tão pequenas se vistas daqui, caminham
oscilantes, com o pensamento ocupado em sabe-se lá que demandas. Protejo-me
nestas escarpas luminosas, tudo o que vejo imagino-o como um oceano matinal,
perdido no ir e vir da ondulação, a rumorejar bravio na pressa do trânsito. O
melhor que a idade traz, penso, é poder confundir tudo, o mar com a cidade, as
pessoas com cristas das ondas, o fluxo do trânsito com o ribombar das águas
salgadas ao bater na escarpa. Quando a luz de Inverno se transformar em luz
primaveril, o mundo começa a tornar-se plano. O promontório de onde espreito
será então uma charneca polvilhada de pedras e desolação.
domingo, 28 de janeiro de 2018
Bênçãos
Quando levantei as persianas, a manhã já ia alta, deparei com um sol melancólico, apesar do brilho que os seus dardos faziam cair sobre o casario. Pensei: é um sol matinal de domingo igual a tantos outros dos domingos de Inverno. Então, recolhi-me e deixei os raios solares dardejarem ao abandono. Quando me sentei à secretária, peguei em O Prelúdio, de William Wordsworth, comprado ontem, numa tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Leio o primeiro verso “Oh, uma bênção existe nesta doce brisa”. Então, lembrei-me do meu virar de costas ao sol dominical. Também eu deveria ver ali uma bênção, mas não vi. Depois, olhei a rua através dos vidros da janela. Os carros reluziam e percebi que o tempo do romantismo que permitia ver bênçãos nos elementos naturais acabara há muito. Um carro apitou e ao longe vibra uma sirene. O sol persiste preso à sua melancolia.
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
Chegar e partir
Chegou como se tivesse vindo de muito longe. Parou, rodopiou com calculada lentidão sobre os tacões, sorriu ao sentir o sol a iluminar-lhe o rosto e sentou-se. Não pretendo nada, respondeu quando o empregado lhe perguntou o que desejava. Nada, exclamou este atónito. Isto é uma esplanada. É uma esplanada, confirmou ela. E logo se levantou, o sol bateu-lhe no rosto, tornou a rodopiar com calculada lentidão sobre os tacões. Parou por um instante e partiu como se fosse para muito longe.
quinta-feira, 21 de dezembro de 2017
Ferida narcísica
O melhor seria deixar de ler jornais, pensei ao ver a
notícia do Público. Não há quem não se ache o fruto de uma ocasião única e
especial. Nesta coisas ligadas à identidade e à existência, até os mais
empedernidos socialistas se acham individualistas e, em segredo, liberais,
filhos de projectos racionalmente planeadas para os tornarem naquele ser único
e já pleno de iniciativa ainda mal concebido, especulei ancorado na minha
triste formação filosófica. Acreditamos nisso como as crianças crêem no Pai
Natal ou nesse ser benfazejo conhecido por Fada dos Dentes. E eu por que motivo
haveria de ser excepção? Não era. Não era até hoje. Agora, porém, sinto-me
abatido, terrivelmente. O que descobri
eu? Eu que nasci em Setembro, e por isso me achava tão virginalmente distinto,
fui confrontado, amaldiçoado jornal, com o mais tenebroso dos colectivismos. Um
estudo, feito por entidades respeitáveis, mostra que Setembro – isso mesmo,
nove meses após o Natal – é o mês com mais nascimentos nos países de cultura
cristã no hemisfério Norte. Não bastando isto, o nefando artigo ainda tem a
desfaçatez de afirmar que os ciclos de reprodução humana são guiados pela
cultura e coincidem com estados de espírito colectivos. Meu Deus, que fizeste
tu da singularidade da minha concepção? Foi para me humilhares deste modo que
inventaste o Natal? É assim que nascem, para abater o nosso orgulho pecaminoso,
as feridas narcísicas, concluí eu, lembrando-me das figuras tenebrosas do
Copérnico, do Darwin e do Freud.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
Metamorfoses
Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol
penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo,
assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável,
coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria
Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do
autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim
mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a
invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me.
Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para
comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de
um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o
Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um
intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de
bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um
Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou
longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou
naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter.
O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro
e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se
apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa,
o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é
inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de
inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
Não sei
Da janela do meu escritório, avisto o hospital. Sombrio e
lúgubre. Os fungos da humidade tomaram conta das paredes ainda há pouco brancas
e resplandecentes. Agora é uma nódoa na paisagem, uma mancha que insiste em
cravar as garras da sua solidão no meu horizonte. Bocejo. É o que faz deitar
tarde e levantar cedo, penso. O melhor seria dormir uma sesta, mas estou comprometido
com o baby-sitting das minhas netas.
Acho que elas preferiam que eu dormisse. Terão as suas razões que, como todas
as razões infantis, são enigmáticas. Conjuram no quarto não sei que aventura e,
como é hábito, não tardam em invadir-me
o escritório, para se sentarem na secretária da avó e brincarem, pobres infelizes,
às escolas. Chegam e uma diz para a outra: vá, diz sim ou não, não sei não é
resposta. E eu fico siderado por tanta autoridade a transbordar de uns sete
anos ainda por fazer. Olho pela janela, o sol esbranquiçado cai em borbotões
sobre a rua e pergunto-me se ela alguma vez irá saber que a única resposta que
temos, seja para o que for, é não sei. Vá, insiste ela, diz sim ou não.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2017
Perfeição
Um
frio glorioso caiu sobre a cidade, cobriu-a de um veludo vítreo e negro, onde,
a custo, se avistam vultos que lutam para chegar a casa. A náusea da repetição,
pensei, de fazer sempre a mesma coisa, dia após dia, semana atrás de semana,
chega a ser uma bênção. Tudo parece ter um destino e cumpri-lo com perfeição.
Também eu pertenço a essa perfeição nauseante, constatei, enquanto o frio se
cerrava sobre a face. Talvez vivamos mesmo no melhor dos mundos possíveis,
passou-me pela cabeça ao atravessar a passadeira, enquanto alguns carros
paravam solícitos, também eles habituados à perfeição com que a vida se regula.
Quem passa por mim vai em silêncio e mal olha para as iluminações de Natal.
Pelo contrário, eu olho-as e sinto uma tristeza tão grande que logo deixo de
crer que se viva no melhor dos mundo possíveis. Sou volúvel, constato ao mudar
de opinião. Se este fosse o melhor dos mundos, poderia haver guerras,
homicídios, violências, coisas que há em todos mundos. Não haveria por certo,
iluminações de Natal que nos inclinam para a tristeza. Aventuro-me em direcção
à farmácia. Ali tudo é claro, nítido e lança sobre o coração do paciente a
ilusão de que haverá sempre, neste ou noutro mundo, uma cura à sua espera. Não
há, e isso, que deveria entristecer-me, tranquiliza-me.
domingo, 17 de dezembro de 2017
A luz branca
A luz branca deste domingo cai sobre a cidade como um véu. E
assim veladas as pessoas passam devagar na avenida, respiram lentamente,
esperam por certo que o sol as aqueça. Algumas deambulam atreladas a pequenos
cães. Há quem corra solitário para alcançar a boa forma que nunca haverá de
chegar. Um ciclista, daqueles que se equipam da cabeça aos pés, apeia-se, abre
o grande caixote do lixo verde e deita qualquer coisa lá dentro e regressa, em
paz com a sua consciência, ao selim e à azáfama de pedalar. As árvores, medito,
têm um singular destino. Umas despem-se no Inverno, enquanto as outras, tomadas
por um pudor ancestral, persistem em manter o folhedo que as cobre. Há quem
diga que possuem folha persistente. Prefiro pensar que sofrem de um embaraço
contumaz. E é para isto que serve a luz branca que cai, naquele segredo
invisível da onda-corpúsculo, sobre as coisas. Para que alguém as possa ver e
descrever, não na sua essência, mas nos acidentes em que elas se manifestam. Os
carros teimam em não deixar de passar. Vão lentos, temerosos, também eles são
um acidente que nenhuma essência salvará. Os domingos são sempre dias
incompreensíveis.
sábado, 16 de dezembro de 2017
A praça
Passei há pouco pela Praça 5 de Outubro. Parece uma viúva a
tiritar de frio, pensei ao olhá-la. Depois, disse para mim mesmo: estas
analogias não têm pés nem cabeça. E fiquei a contemplá-la no abandono que é o
dela, perdida a remoer pensamentos obscuros, a desfiar perfídias e vinganças,
enquanto uma ou outra sombra a atravessavam. Há lugares que gostaríamos que
fossem eternamente aquilo que, um dia, foram para nós. A eternidade, devia
sabê-lo de cor, não é um atributo das coisas humanas, nem sequer dos lugares
que fervilharam de vida. O espírito que em tempos a animou retirou-se, discorri.
Alguém, apressado, acena-me e desaparece no crepúsculo. Demoro-me mais uns
minutos, olho-a lentamente, deixo que uma ou outra recordação venha até mim.
Depois, rodo a chave na ignição, engreno a primeira e faço o carro deslizar dali
para fora. Não devemos perturbar a viuvez de uma viúva. Exclamei, sem que
ninguém me ouvisse.
sexta-feira, 15 de dezembro de 2017
Esperar
Fechei devagar a porta da sala e saí. Tinha acabado, pelo
menos por uns dias. A tarde começara cinzenta, mas não deixava de ser tocada
por um halo de esperança. O ruído dos intervalos ficava para trás. Quando
passei pelo portão, respirei fundo. Haverá ainda dias de reuniões e papéis, de
actas e do resto, sempre tão elusivo, que é necessário para satisfazer a fome
insaciável do Leviatã moderno. Tudo isso se não servir para mais nada, há-de
valer para a remissão dos meus pecados, ponderei sem entusiasmo. Paro na
passadeira junto ao tribunal. Apressado, um homem, porventura um advogado,
atravessa-a. Aonde o levou aquele passo rápido? Não o cheguei a perceber.
Talvez o esperasse alguém perdido no labirinto de um processo ou talvez fosse a
mulher, impaciente e pouco solícita, com a toga que ele teria esquecido em
casa. Nunca se sabe o que atormenta as pessoas e as precipita mundo fora. No
semáforo, logo a seguir, torno a parar. Como acontece sempre, a Antena 2 perde
o sinal e o carro mergulha no silêncio. Espero. E é tudo o que resta a um
mortal, esperar. O quê? O melhor é não o saber. Lá atrás, ficaram as salas
fechadas, pensei, enquanto o Quator de Messiaen retornava e estendia sobre mim
a luz dolorosa que é a sua. É sexta-feira, pensei.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
Oblívio
Sento-me e pego num livro, do poeta Daniel Jonas, denominado
Oblívio. Como os amores, também há títulos
perfeitos, concluo. Oblívio é a fase da existência em que entrei. Assim como
antes a memória era excessiva, agora o esquecimento progride sorrateiro mas
voraz. E com isto esqueci-me do que queria vir aqui contar. Não sei se um
episódio que me atormentou o dia – mas qual? – se uma descoberta que a noite me
trouxe. E é neste oblívio que tento navegar no mar encapelado da vida. O melhor
seria ir dar uma volta e fumar um cigarro, talvez me lembrasse, mas não sou animal
noctívago e há tempo que não toco em tabaco. Vale-me o título do livro que se
estende para mim como uma mão solidária, como quem diz que, em matéria de
esquecimentos, não estou sozinho no mundo. O melhor, penso, será seguir o
conselho do poeta: “Pedala, vá pedala, não faz mal; / De tanto pedalares, nesse
tour / De igual cenário és um novo
Artur, / Um velho visionário pelo Graal.” E escrito isto, logo me lembrei que,
depois de jantar, não consegui recordar-me se tinha tomado o comprimido para a
tensão arterial.
terça-feira, 12 de dezembro de 2017
O ardil
Dezembro deixou que os dias se contaminassem de
festividades. Nem o frio bastou para evitar a algazarra que de tudo há-de tomar
conta. São dias de alarido, penso, enquanto rasgo a noite com a luz dos faróis.
O calendário é, sei-o bem, uma fortaleza inexpugnável, uma emanação da frieza
cósmica para nos agarrar pela coleira e pontapear para dentro da vida. Ou da
morte, acrescento em silêncio. Ao sair do carro recebo a carícia do vento e
olho para o café ao lado de casa. Há muito que não entro ali. Outrora, sabia o
que poderia fazer num café. Agora, tudo se me estranhou e evito o deambular à
procura de uma mesa. Talvez esteja num processo de regressão vegetal, mas a
humanidade tornou-se muito pesada. A noite está fria e eu olho o café, a luz
que nasce dentro dele para morrer na tristeza dos olhos de quem passa. Se eu
entrasse lá agora? Um casal de namorados entra, enquanto duas senhoras, talvez
casadas, saem. Na verdade, o mundo é feito de estranhas compensações, constato.
Ah se eu entrasse ali, tudo se desequilibraria. O melhor é ir para casa,
resguardar-me de Dezembro e dos pensamento que, como tentações, me entregam ao
ardil do inimigo.
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