segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Cibernética e vida no campo

Quem sofre do vício de comprar livros sabe, um saber de experiência feito, que parte significativa do que compra não será lido. Está aí, ao alcance da mão, e caso seja necessário sabe-se onde encontrar. Descobri há pouco um livro nessas condições. Tinha-o esquecido e no acaso improvável de alguém me perguntar se o conhecia, juraria que jamais ouvira falar dele. Trata-se de La Conscience des Machines – Une métaphysique de la cybernétique, suivi de «Cognition et Volition», do filósofo alemão Gothard Günther (1900-1984). Os motivos que me levaram à compra dissolveram-se, talvez tenha julgado que ali seria dito alguma coisa de importante sobre a essência do nosso tempo, se é que os tempos têm essência, se não são apenas mera existência. Resgatado do esquecimento a que tinha sido votado. Ao lado dele, estavam, nas mesmas condições, dois outros ensaios, The Posthuman, de Rosi Braidotti, e Homo Labyrinthus – Humanisme, Antihumanisme, Posthumanisme, de Frédéric Neyrat. Tudo indica que, a certa altura, alguma coisa me preocupou, mas que o peso da realidade dissolveu o tempo que queria dedicar à preocupação, tendo os livros adormecido até terem sido redescobertos. Agora, sou obrigado a ponderar se a preocupação de então continua a poder ser preocupante. Demorei-me, depois da redescoberta, a olhar as paisagens de João Hogan reproduzidas na Electra do Outono passado. Ali, não se encontra nada de anti-humano ou de pós-humano, pois o humano foi varrido delas. São lugares inóspitos, muito diferentes das paisagens posteriores de João Queirós, onde a ausência do humano não gera a mesma sensação de inabitabilidade, mas traz um sentimento de plenitude da natureza. Num dos textos da Electra, da autoria de Jeff Malpas, é dito o seguinte: Regressar ao campo é reencontrar o sentimento de estarmos no sítio de onde viemos, um sentimento que não se esgota nem é plenamente evidente da cidade por si só. Isto recordou-me uma série da minha infância – ou será da pós-infância? ­– Viver no Campo. Talvez Malpas tenha também visto a mesma série e, na desavença entre marido e mulher acerca da bondade de viver no campo, tenha tomado o partido do marido. Nunca é demais assinalar que nunca se sabe os motivos que nos levam a pensar aquilo que pensamos.

4 comentários:

  1. O que me interessa no campo não é a vida social do campo, mas estar integrada na natureza, fazer parte dela: ter silêncio, ter laranjas e rosas, ter ciprestes e estrelas. Ouvir um pássaro e saber que é um estorninho que está a cantar. Aquecer-me à lareira como ritual diário no Inverno; jardinar na Primavera e Verão. Dentro de casa, ter livros e filmes e música. Ontem, enquanto estava a apanhar gravetos, passou diante dos meus olhos uma charrete puxada por um magnífico e voluntarioso cavalo branco.
    Claro que ajuda, e muito, ter ido ver quem era Jeff Malpas. Tenho de ler o que ele escreve sobre o campo. Talvez tenha também uma ética à maneira dos geómetras.

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    1. Uma ética à maneira dos geómetras só se se estivesse no século XVII, onde dominava o espírito geométrico. Aquele que na altura se decidiu por tal empreendimento não teve grande sorte, embora isso não se devesse à geometria, mas à ética. Quanto ao campo, não partilho da experiência de Malpas, não tenho o sentimento de no campo estar no sítio de onde vim.

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    2. Segundo o que li ontem (e sem recorrer à IA), Malpas interessa-se pela topografia e pela toponímia. Talvez queira provar que nós somos o sítio onde estamos e o sítio onde estamos somos nós. O meu pai era geómetra. Passaram-lhe pelas mãos levantamentos, cálculos complicados, e centenas de mapas de grandes extensões de África, Douro, Algarve. E o que sei sobre ética foi ele que me ensinou.

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  2. Onde está toponímia, é por excesso, queria dizer topologia.

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