sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Mundos

A médica de medicina familiar com que me consulto ultrapassou, há um bom par de anos, os setenta, mas continua em forma e com um espírito agudo, a que junta uma grande bonomia. Não gosta muito de usar o computador e as requisições – ou serão prescrições? – de exames são manuscritas. Usa uma caneta Montblanc de tinta preta para escrever nas folhas brancas com o símbolo da clínica a azul no canto superior direito. Então, o papel enche-se de uma ondulação de caracteres, enquanto o aparo desliza deixando um rasto vindo de longe, de muito longe. Acabada a requisição e antes de colar a etiqueta – imagino que tenha um nome específico – com o seu nome, código de barras e não sei bem mais o quê, usa uma outra folha como mata-borrão. Nesses momentos, confronto-me com um mundo que acabou, onde as pessoas escreviam com canetas de tinta permanente, preta ou azul, compravam tinteiros para encher o depósito da caneta e tinham mata-borrões nas secretárias. Aliás, uma das estratégias publicitárias de então era oferecer mata-borrões no verso de um postal com os produtos da empresa. Olho para a escrita dela, agora diante de mim, e sinto estar perante um mundo absolutamente confiável. O lado negro desta minha posição foi o comentário que fiz sobre a médica, aliás bastante simpática e cuidadosa, que atendeu a minha mãe numa ida às urgências. Disse: era uma médica pouco mais velha do que a… As reticências indicam o nome da minha neta. Ora, isto é bastante preconceituoso, pois ela teria mais do dobro da idade da… Não escreverá com caneta de tinta permanente, usará o computador com rapidez e eficácia, mas pertence a um mundo que já não é o meu, apesar de eu nunca usar a minha Montblanc e conviver com bastante à-vontade com o mundo digital, de tal modo que muito raramente escrevo à mão. Schubert acompanha-me na entrada da noite desta sexta-feira. O Carnaval aproxima-se e sinto já imensa piedade pelos desfiles carnavalescos nacionais. Isto recordou-me a conversa ouvida hoje de manhã na fila de um hipermercado. Uma rapariga, com idade da médica que atendeu a minha mãe, confidenciava a outra que iria ao Carnaval de… com o namorado. E havia entusiasmo nessa confidência, não sei se motivado pelo namorado, se pela ida, se pela confidência. Não temos de saber tudo.

8 comentários:

  1. Mudando o que há a mudar, lembrei-me do mais charmoso dos médicos, não do carregado Dr Mundo, mas do encantador Mundinho, cuja escrita em cursivo seria, não a azul cobalto, não a negro, mas a sépia, como num postal ilustrado. Suponho que ainda hoje as confidências entre amigas se assemelhem ao que a Malvina e a Gerusa diziam em segredo (no tempo em que as Montblancs, como Mortáguas, receitavam coraminas).

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    1. Provavelmente serão, embora eu não saiba as que Malvina e Gerusa trocavam, pois não li o romance de Jorge Amado nem vi a novela.

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    2. Concordo consigo: “Não temos de saber tudo”.

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  2. Se não viu, nem leu, tenho pena. Eu que vi, sem ler, e que depois li, sem ver, sou testemunha de Homero, de Ulisses, do cão, e de Helena.

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  3. Caro Peregrinatio
    Sabemos que, por vezes, a Deutsche Grammophon não parece a melhor solução para as suas orquídeas, mas, acredite, o nosso sentido de humor é o melhor adubo para a sua floração.
    Com amizade,
    harmonia mundi

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    1. Há dias, já não sei precisar onde, ouvi uma conversa entre duas senhoras bem entradas na casa dos setenta, bem para diante. Falavam de orquídeas. Uma dizia que as dela estavam esplêndidas, que lhes punha um comprimido. Dos quais, pergunta a outra. Daqueles que nós tomamos, responde a primeira. Não tive a ousadia de perguntar que comprimido tomavam. Julgo que será um concorrente ao sentido de humor. Já agora as orquídeas não têm acesso à minha música. Estão noutro lugar. Pode ser falta de música, embora não estejam mal, apenas um pouco atrasadas.

      Com amizade

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    2. Tinha um terrível problema com orquídeas
      odiava-as em tubos de ensaio
      e detestava-as como cascas de banana em flor.
      Agora percebo que nem o words,
      don’t come easy,
      as consegue fazer florir.

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    3. É mais fácil salvar um gato
      Do que uma orquestra.

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