sábado, 25 de fevereiro de 2023

Da memória e da nuvem

Acabei de falar com uma sobrinha. Faz hoje anos. Valeu-me a aplicação do telemóvel, que tem a amabilidade de me avisar. Aliás, começa a fazê-lo uma semana antes. Não fora isso, ter-me-ia passado a efeméride. Antigamente, as pessoas usavam agendas, onde colocavam, nos respectivos dias, os acontecimentos que deveriam recordar. Nunca tive agendas. Melhor, tive várias, mas nunca as usei. Por norma, ficavam em branco e esquecidas. As aplicações do telemóvel são coisas mais eficazes para a degradação da memória. Há uns tempos mudei a palavra-passe de uma conta de email que uso na vida real. Como seria de esperar, quando queria aceder à conta, de modo automático, colocava a velha palavra-passe, era-me negado o acesso, mas plataforma informava-me que tinha alterado a senha há x dias. Isso começou a despertar em mim uma curiosidade. Qual seria o dia em que já não me enganaria? Quanto tempo precisava para consolidar na espontaneidade da escrita a nova chave de acesso? Pensei que trinta dias era um prazo razoável para a velha memória ser preterida pela nova. Há pouco, ao tentar aceder à conta, recebo a mensagem de que aquela senha foi alterada há seis meses. Esta questão não é de pouca importância, pois está ligada à natureza dos hábitos. Aristóteles afirmava que estes eram uma segunda natureza, o que significaria mais ou menos que aquilo que resultou de uma escolha ou decisão se tornou numa necessidade. Quanto tempo demorará a trocar uma necessidade por outra? Tem estado um sábado soturno, pouco luminoso, com chuva fria. Não é dia propício para escrever seja o que for. Porém, sempre se pode copiar qualquer coisa de alguém que tenha estado mais inspirado. Numa obra de 1981, com o estranho nome de Introdução à Filosofia, o poeta Fernando Echevarría começa o primeiro soneto do Compêndio de Antropologia com a seguinte quadra: Na memória de Deus se continua / a centelha que fomos de repente. / A nossa sombra segue sendo sua / na suspensão de si que nos consente. Talvez, e isto é uma mera hipótese, possamos recuperar o que perdemos da nossa memória nessa memória que retém a centelha que fomos de repente. O que seria uma forma, usando a linguagem informática, de recorrer à nuvem, embora Deus não seja uma nuvem, mas O que se esconde por detrás da nuvem. O que nos leva a suspeitar que as nuvens informáticas esconderão qualquer outra coisa, talvez um deus virtual.

6 comentários:

  1. Nefelibata confessa, imagino Deus estiraçado num nimbo (não, num cúmulo seria redundante), um Deus virtual, sim, um Deus finalmente a navegar no céu.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Essa concepção de Deus parece ter um certo odor a heresia.

      Eliminar
    2. Nem pensar. Sou apenas crente. Uma crente convertida à democracia. Fernando Pessoa tem, no Livro do Desassossego, uma descrição maravilhosa do que é uma linha helicoidal, ou algo parecido, em três opções, cada uma mais difícil e intelectualizada do que a outra. Pois a minha crença é a linha mais simples e pura. E não é que Ele sabe disso? Sabe e consente.

      Eliminar
    3. Fui especialmente sensível a C. S. Lewis, convertido tardio, e às suas espirais de sofrimento, embora eu nunca tivesse duvidado.
      E, já agora, por momentos pensei que tivesse escrito, *odor a maresia*. Aí sim, concordava consigo.

      Eliminar
    4. O odor a heresia seria uma contrapartida do odor a santidade. A heresia estaria na afirmação "um Deus virtual, sim, um Deus finalmente a navegar no céu". Isso significa que Deus é possível, uma pura possibilidade, mas não uma necessidade. Ora, uma definição teísta de Deus implica que ele seja pura necessidade (a sua existência é necessária, isto é, Deus não podia não existir) e tudo o resta apenas possível (ou virtual). Isto se não se tomar em consideração o significado informático de virtual. Aí ainda seria pior, seria uma simulação de Deus. Talvez os teólogos tenham outra ideia, mas para mim a teologia, tal como a filosofia são ramos da literatura. Porventura, da literatura fantástica. Aprendi isto com o Jorge Luís Borges.

      Eliminar
    5. O Deus virtual é como o Deus de Espinosa: existe. Mas
      como diz Carlos Fuentes, a propósito de “Deus morreu”, um dia, “Deus teve paciência e sussurrou de um sanatório em Weimar: *Nietzsche morreu.*
      Posso considerar-me nietzschiana, portanto, mortal.
      Há um poema de Borges que é, sem dúvida, o meu poema primeiro: Limites; e há um pequeno texto, sublime, *Delia Elena San Marco*, do mesmo livro - O Fazedor.

      Eliminar