Acabei de falar com uma sobrinha. Faz hoje anos. Valeu-me a aplicação do telemóvel, que tem a amabilidade de me avisar. Aliás, começa a fazê-lo uma semana antes. Não fora isso, ter-me-ia passado a efeméride. Antigamente, as pessoas usavam agendas, onde colocavam, nos respectivos dias, os acontecimentos que deveriam recordar. Nunca tive agendas. Melhor, tive várias, mas nunca as usei. Por norma, ficavam em branco e esquecidas. As aplicações do telemóvel são coisas mais eficazes para a degradação da memória. Há uns tempos mudei a palavra-passe de uma conta de email que uso na vida real. Como seria de esperar, quando queria aceder à conta, de modo automático, colocava a velha palavra-passe, era-me negado o acesso, mas plataforma informava-me que tinha alterado a senha há x dias. Isso começou a despertar em mim uma curiosidade. Qual seria o dia em que já não me enganaria? Quanto tempo precisava para consolidar na espontaneidade da escrita a nova chave de acesso? Pensei que trinta dias era um prazo razoável para a velha memória ser preterida pela nova. Há pouco, ao tentar aceder à conta, recebo a mensagem de que aquela senha foi alterada há seis meses. Esta questão não é de pouca importância, pois está ligada à natureza dos hábitos. Aristóteles afirmava que estes eram uma segunda natureza, o que significaria mais ou menos que aquilo que resultou de uma escolha ou decisão se tornou numa necessidade. Quanto tempo demorará a trocar uma necessidade por outra? Tem estado um sábado soturno, pouco luminoso, com chuva fria. Não é dia propício para escrever seja o que for. Porém, sempre se pode copiar qualquer coisa de alguém que tenha estado mais inspirado. Numa obra de 1981, com o estranho nome de Introdução à Filosofia, o poeta Fernando Echevarría começa o primeiro soneto do Compêndio de Antropologia com a seguinte quadra: Na memória de Deus se continua / a centelha que fomos de repente. / A nossa sombra segue sendo sua / na suspensão de si que nos consente. Talvez, e isto é uma mera hipótese, possamos recuperar o que perdemos da nossa memória nessa memória que retém a centelha que fomos de repente. O que seria uma forma, usando a linguagem informática, de recorrer à nuvem, embora Deus não seja uma nuvem, mas O que se esconde por detrás da nuvem. O que nos leva a suspeitar que as nuvens informáticas esconderão qualquer outra coisa, talvez um deus virtual.
Nefelibata confessa, imagino Deus estiraçado num nimbo (não, num cúmulo seria redundante), um Deus virtual, sim, um Deus finalmente a navegar no céu.
ResponderEliminarEssa concepção de Deus parece ter um certo odor a heresia.
EliminarNem pensar. Sou apenas crente. Uma crente convertida à democracia. Fernando Pessoa tem, no Livro do Desassossego, uma descrição maravilhosa do que é uma linha helicoidal, ou algo parecido, em três opções, cada uma mais difícil e intelectualizada do que a outra. Pois a minha crença é a linha mais simples e pura. E não é que Ele sabe disso? Sabe e consente.
EliminarFui especialmente sensível a C. S. Lewis, convertido tardio, e às suas espirais de sofrimento, embora eu nunca tivesse duvidado.
EliminarE, já agora, por momentos pensei que tivesse escrito, *odor a maresia*. Aí sim, concordava consigo.
O odor a heresia seria uma contrapartida do odor a santidade. A heresia estaria na afirmação "um Deus virtual, sim, um Deus finalmente a navegar no céu". Isso significa que Deus é possível, uma pura possibilidade, mas não uma necessidade. Ora, uma definição teísta de Deus implica que ele seja pura necessidade (a sua existência é necessária, isto é, Deus não podia não existir) e tudo o resta apenas possível (ou virtual). Isto se não se tomar em consideração o significado informático de virtual. Aí ainda seria pior, seria uma simulação de Deus. Talvez os teólogos tenham outra ideia, mas para mim a teologia, tal como a filosofia são ramos da literatura. Porventura, da literatura fantástica. Aprendi isto com o Jorge Luís Borges.
EliminarO Deus virtual é como o Deus de Espinosa: existe. Mas
Eliminarcomo diz Carlos Fuentes, a propósito de “Deus morreu”, um dia, “Deus teve paciência e sussurrou de um sanatório em Weimar: *Nietzsche morreu.*
Posso considerar-me nietzschiana, portanto, mortal.
Há um poema de Borges que é, sem dúvida, o meu poema primeiro: Limites; e há um pequeno texto, sublime, *Delia Elena San Marco*, do mesmo livro - O Fazedor.