domingo, 12 de fevereiro de 2023

Um domingo

Receio que o portátil que me permite escrever estes textos sem nexo esteja com vontade de entregar a alma ao criador. Este deve querer tudo menos a alma da coisa que criou. Nem faço ideia da idade, mas talvez caminhe para os 10 anos. Adquiriu, com o tempo, estranhos hábitos. Por vezes, imita um gato assanhado e sopra desvairado, apesar de a ventoinha ter sido limpa há pouco tempo. Outras, limita-se a suspender tudo o que estou a fazer e fecha-se em copas, sem dizer palavra. As tarefas que lhe peço são triviais, mas a idade ter-lhe-á roubado as forças. Tem havido mesmo casos de boicote, corrompendo ficheiros que não deveriam ser corrompidos. Um domingo a contas com a realidade, isto é, a trabalhar desde as dez e meia da manhã, com poucas interrupções. Dedico-me, não sem brio, à produção de coisas inúteis, mas esse é o destino de todos os seres humanos, produzirem inutilidades. Com isso prolongam a vida, caso contrário morreriam de tédio. A inutilidade é um colírio contra o fastio. Entre uma vida enfastiada e uma inútil, esta é mais confortável. Uma pessoa começa a ler um poema e de súbito é iluminado por um verso, como este de João Miguel Fernandes Jorge: defronta o dia com a laje da noite. Diz tudo o que aconteceu por aqui. A laje da noite, essa pedra pesada de escuridão, caiu e esmagou o dia, até ele desaparecer. Na verdade, apenas se escondeu para se vingar dessa mesma noite e rasgar-lhe as vestes, expondo-a, para sua eterna humilhação, à luz do dia. Não haverá coisa mais aviltante para uma noite do que ser vista à luz do dia.

2 comentários:

  1. Agora percebo porque é que o pobre portátil parece um gato assanhado. Imagine-se que, assustadiço como é, o dia lhe aparece à frente cheio de restos de noite, e a noite o defronta com um frontispício de enorme estrondo. Enfim, não há ansiolítico que lhe valha, nem mesmo uma suite para violoncelo de Bach.

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