domingo, 26 de fevereiro de 2023

A ordem puritana

Tendo descoberto dois programas de Inteligência Artificial que me permitiam o uso gratuito, entretive-me, durante parte da manhã, a escrever pequenos textos que eram transformados em imagens. Um dos programas, ainda na fase de lançamento, tem já uma vincada personalidade censória. Vincada, pois o texto que lá coloquei não tinha nada de ofensivo seja para quem for, tão pouco palavras que o uso rejeitou como impróprias na conversação social. Uma mensagem informou-me que o texto continha palavras que poderiam gerar imagens inadequadas. Não descobri que imagens seriam essas, mas o pior é que nem sequer discerni quais as palavras que incendiaram, na mente artificial, pensamentos de tal modo escabrosos que ela optou pela censura. Sem se dar por isso, estamos a entrar numa nova era puritana. Apesar dos neopuritanos se encontrarem divididos em grupos inimigos, há uma coisa em que estão todos de acordo, a necessidade e o direito de censurar. Devido à inimizade reinante, podemos prever, sem recurso à profecia ou mesmo à Inteligência Artificial, que o futuro nos trará guerras de censores. Isto não deixa de ser interessante, pois o discurso é tratado como um animal selvagem que há que domesticar. Neste caso, o recuso à Inteligência Artificial parece promissor, pois esta consegue ler o censurável naquilo onde qualquer leitor exímio – embora, humano – jamais o conseguiria encontrar, por perito que fosse na arte hermenêutica. A poesia é o principal inimigo destas hordas bárbaras de puritanos, pois é o lugar onde a insubordinação das palavras gera o selvagem no discurso. Aquilo que era visto como a redenção da linguagem é, agora, tido como uma ameaça à ordem puritana que esbraceja por todo o lado.

5 comentários:

  1. Estou inocente em relação à esperteza artificial. Nem sequer é esperteza. Só se for para apanhar incautos com um discurso repetitivo e monocórdico. Um copianço, como se dizia dantes. A IA é um copianço. É como ler 1984 na novilíngua deste século. Foi um aviso. É perigoso. Recuso-me. Mas, mais do que isso, dá-me vontade de rir. De rir ou de chorar? Se calhar é de chorar.

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    1. O copianço é apenas a primeira fase do processo, tal como acontece na indústria. Depois, terá uma capacidade enorme de criar novidades e de autoprogramação. Teremos de aprender a viver com esta nova realidade, mas a espécie humana está bastante treinada para aprender a viver com novidades.

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    2. Sou como o advogado Derville, perante a fossa de Eylau: *Você vai conhecer todas estas coisas tão bonitas, entrego-lhas; eu por mim vou viver para o campo com a minha mulher, Paris horroriza-me.*
      Não li o livro de Balzac, mas li há uns anos a crónica de Pedro Mexia, se não me engano com o título de A fossa de Eylau. Voltei a ela por ter em mãos Os Enamoramentos, de Javier Marías, de onde retirei este fragmento.

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    3. O problema é que "estas coisas tão bonitas" vêm ter connosco, mesmo no campo, mesmo que lhes viremos as costas. São omnipresentes, além de omniscientes. A Inteligência Artificial é a inteligência do deus virtual que se esconde por detrás da nuvem.

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    4. Sabe (e é a segunda vez que lhe digo “Sabe*, o que é na verdade uma provocação para um sapiente), eu nada sei, mas sei uma coisa muito importante: sei que não quero estar *na cloaca*, citando Marías, que cita Balzac.

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