domingo, 19 de fevereiro de 2023

No observatório

Na avenida, o movimento é reduzido, alguns carros procuram o seu destino, um ou outro passeante espera receber a bênção do sol, embrenhado na liturgia do ar livre. Depois, por instantes, só a solidão ocupa a rua, nem gatos ou cães vadios, se os há, por ali se requebram. Então, uma outra revoada de carros. Voltou-me a inclinação para a hipérbole. Revoada não será, apenas um pequeno bando que nem a meia-dúzia chegará desliza sobre o asfalto para se perder além da rotunda, pois aqui não há avenida que não comece ou acabe numa rotunda, fora aquelas que lhes ficam no meio. Os ramos despidos das tílias deixam ver o sinal, ondas de verde em forma de cruz que vão e vêm, de que a farmácia está aberta, caso seja necessário, encontra-se ali auxílio para a dor, a doença, a indisposição do momento, talvez mesmo para a loucura ou a solidão. Uma pessoa olha de cima, contempla o espectáculo e descobre-se como um ser inclinado ao preconceito. Uma mulher passa, vai entretida na sua caminhada, e logo se desenha uma antipatia por aquela pessoa que não se conhece, de que nem o rosto se consegue perceber os traços. O modo como anda, como as pernas se erguem e os pés pisam o chão, geram um desagrado inexplicável. Depois, um casal arrasta-se no passeio. A esses conheço-os. Nunca tiram do rosto a máscara de tédio que sentem um pelo outro. É um sentimento justo, pois é recíproco. Ainda são relativamente novos, podiam divorciar-se e tornar a vida menos fastidiosa, mas talvez o contrato seja mesmo esse, suportar o peso da sombra e viver entediados até que a morte os separe, e o sobrevivente descubra que o amor também pode tomar a figura do tédio. De um dos prédios, sai um homem segurando uma trela e no fim desta um cão minúsculo. Entre o homem e o cão há uma desproporção inaceitável, uma desatenção ao equilíbrio estético que deverá haver entre pessoas e animais. É o que acontece quando se pensa que tudo é uma questão de gosto pessoal, não percebendo que a harmonia das coisas resulta de medidas objectivas e universais. Há que fazer um esforço para as conhecer. A província caminha por dentro do domingo com a mala a tiracolo. Isto lembrou-me um poema do O’Neil que acaba assim: O homem que pedala, que ped’alma / com o passado a tiracolo / ao ar vivaz abre as narinas / tem o por vir na pedaleira. Na província, porém, não há provir, só pedaleiras, mas nas grandes capitais nem a pedaleira alimenta uma alma.

2 comentários:

  1. O Ciclista
    A homem que pedala, que ped’alma
    com o passado a tiracolo,
    ao ar vivaz abre as narinas:
    tem o por vir na pedaleira.

    Tem, portanto o *por vir*
    Alexandre O’Neill
    Poesias Completas

    A Bicicleta
    O meu marido saiu de casa no dia
    25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
    a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,
    vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
    blusão cinzento, tipo militar, e calçava
    botas de borracha e tinha chapéu cinzento
    e levava na bicicleta um saco com uma manta
    e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
    e uma panela de esmalte azul.
    Como não tive mais notícias, espero o pior.
    Alexandre O’Neill
    Poesias Completas
    Assírio & Alvim

    Deve ser o mesmo ciclista, ao contrário do Dr. Mundinho, que afinal não era médico, mas era muito charmoso. A nossa cabeça trabalha sozinha, não há dúvida.

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    1. Precipitei-me e troquei o por vir pelo provir, o futuro pelo passado. Vi uma coisa e li outra.

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