sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Feridas

Os dias crescem e as noites minguam. Depois, tudo se inverterá, os dias reduzir-se-ão e as noites haverão de se dilatar. E depois? Bem, depois sempre descobrimos que o equilíbrio na natureza é feito de desequilíbrios. Podemos pensar que o justo seria dias e noites serem sempre iguais. A natureza tem outro critério. A igualdade entre dias e noites nasce do somatório das desigualdades que existem entre ambas. No lugar da constância temos uma lei da compensação. Isto funciona nas realidades cíclicas, e durante muito tempo também os homens pensaram que a sua vida se inscrevia nessas realidades. Os ciclos festivos, com os seus rituais, ordenavam a vida desse modo, o que dava a ilusão de eternidade. O senhor Sigmund Freud, num momento inspirado, descreve a história do homem moderno a partir de três feridas narcísicas. A primeira, vem com Copérnico e a descoberta de que afinal não vivemos no centro do universo. A segunda, trazida por Darwin, coloca a nossa espécie como uma entre muitas outras. O que ela é não resulta de qualquer eleição, mas da mera evolução adaptativa ao meio. A terceira ferida é descoberta do próprio Freud. Ao sermos sobredeterminados pelo inconsciente nem sequer somos senhores de nós próprios. Por interessantes e dramáticas que sejam esta feridas, a única ferida real, a chaga verdadeiramente viva que nos atormenta, é a descoberta de que não somos seres cíclicos, mas entidades lineares que percorrem uma linha recta, por sinuosa que pareça, entre o nascimento e a morte. O que nos cabe não é a eternidade, mas o tempo, e um tempo sempre demasiado curto. A tomada de consciência plena do que é ter uma natureza histórica, um processo tardio na nossa espécie, é uma ferida de tal dimensão que ao pé dela as feridas provocadas pelas descobertas de Copérnico, Darwin e de Freud parecem fantasias de crianças. Para a ferida de se ser temporal não há constância no devir nem lei da compensação que a cure. E é assim, com estas meditações sem nexo, que entro naquela parte do ciclo semanal que tem por centro os benévolos dias da sagrada inutilidade.

5 comentários:

  1. Só a poesia consegue subverter as três primeiras feridas. Ela é a quarta ferida. A incurável.

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    1. Santa Hildegarda podia ser um Galgo-afegão, heterodoxo, fêmea, idade média.

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    2. Não sei, a minha cultura canina é ainda mais diminuta, muito mais, do que sobre outras coisas, das quais também pouco ou nada sei.

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    3. Não sei se os galgos afegãos ladram, há raças pouco ou nada reivindicativas, educadas para ver e ouvir e calar, como os cães ancestrais chineses, do séc.II, os cães dos palácios imperiais, empoleirados em jarrões muito antigos (como aquele que o príncipe de O Idiota, derrubou e partiu), e que era o único que não podia derrubar nem partir.

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