Passei a tarde, com as minhas netas, entre o Arripiado e
Constância. O sol invernoso erguia-se magnífico sobre o Tejo e tudo estava
tingido por uma serenidade que se inclinava para a melancolia. As águas corriam
suaves, um barco desprendia-se do cais para levar os visitantes ao castelo de
Almourol, os chorões, como súbditos perante o senhor, dobravam-se e tocavam com
os ramos no chão. Enquanto as crianças corriam, nada bulia e o espectro da
perfeição perfilava-se no horizonte, uma garantia de que Deus existe e a terra
pode ser um paraíso. Cheguei a Torres Novas já a noite caía. Então, as luzes de
Natal atingiram-me como os estilhaços de uma bomba e acordaram-me da
irrealidade onde o Tejo me tinha mergulhado. Contemplei-as, infeliz. Talvez
Deus não exista e, por certo, aqui não é o paraíso, pensei, enquanto entrava na
garagem.
domingo, 30 de dezembro de 2018
sábado, 29 de dezembro de 2018
Manhã de sol
A manhã deslizou sem
sombras. Saio e o dia anuncia o Ano Novo, como se este fosse uma promessa.
Percorro a avenida. As pessoas trazem ainda no rosto o cansaço do Natal, esse
exercício de penitência disfarçado de alegria. Vou vazio e nenhuma ideia se fixa
na mente. Sou um espelho e reflicto aquilo que passa diante de mim. Um cão a
ganir, os carros em marcha lenta, gentes que entram ou saem dos cafés. Paro
diante de um e hesito em entrar. Vejo, ao fundo, alguém conhecido. Sigo
caminho. Não estou sociável e o sol, o sol de inverno, chama-me. Pertenço mais
ao reino vegetal do que ao social, pensei, não sem contentamento. Vou passeio
fora como se vegetasse, ou fosse um espelho, ou um grão de areia perdido à
beira do oceano. A cidade curva os ombros sob o peso da luz, uma criança corre
num relvado. A mãe olha de dentro do seu desvelo. E isso basta.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Culpa
As minhas netas, montadas nas bicicletas e de capacetes nas
cabeças, voltejavam sem parar no espaço público que separa os prédios da zona
onde vivo. Eu estava ali, especado, a apanhar o sol frio do fim da tarde, com o
duplo papel de polícia sinaleiro e segurança privado. E enquanto ia dando
indicações ao trânsito e vigiava os perigos que poderiam surgir, a minha
memória recordava os dias em que tinha a idade delas e ia para rua. Sem
sinaleiros nem serviços de segurança. Talvez uma mãe por outra assomasse
discreta à janela, mas a última coisa que queríamos era que nos orientassem os
passos ou vigiassem os projectos. A rua era um território livre de ameaças, a
não ser algum polícia que pudesse aparecer para nos levar a bola, como
exercício de autoridade e manifestação de despotismo. O azul do céu de inverno
era, naqueles dias, tão puro como o de hoje, mas as mentes dos adultos de então
eram, incomparavelmente, mais inocentes e límpidas do que as nossas. A culpa
que nos habita faz-nos temer sempre o pior.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
Um passeio na manhã
Nas ruas, um manto de tristeza abate-se nas árvores
desfolhadas pela invernia, enovela-se nas faces de quem passa. Os carros gorgolejam
indiferentes, motores a rezar o responso, faróis como velas a iluminar um altar
sem Cristo nem santos. Os ciprestes anunciam o cemitério e a cinza do dia, tingida
pelos odores oleosos da morte, ergue-se sobre a cidade, rumoreja traições e
desditas, poisa nas casas escalavradas, roídas pelo tempo, suspensas no punhal
do abandono. Encolho os ombros, olho a desventura a porejar em portas que já
não se abrem, vejo a morte a pairar em paredes sulcadas de rugas. Nenhuma
maquilhagem as disfarçará. O tempo é um cavalo negro e corre à desfilada para
dentro do meu esquecimento.
domingo, 30 de setembro de 2018
Confissão
Numa conversa ficcionada, o psicanalista e escritor Irvin
Yalom faz dizer ao dr. Breuer, em resposta a uma pergunta do dr. Freud, que
teve “católicos como pacientes que, embora agnósticos, praticavam a confissão”.
E isso, a confissão, fez-me lembrar o crepúsculo que cai sobre a cidade, esse
momento que ainda buscamos uma réstia de luz antes que a noite chegue. Talvez a
prática da confissão – mesmo por agnósticos ou até por ateus – seja isso, uma
necessidade de agarrar a pouca luz que se tem, não deixar que a noite venha e
tudo se torne turvo, como as ruas que vejo, agora que o sol se pôs e todos os gatos
são pardos.
sábado, 29 de setembro de 2018
Memória
Por vezes, caminho dentro do meu esquecimento. Uma rua onde
não passo há décadas, pessoas que morreram até na minha memória, um dia de
tempestade quando era pequeno, o som que vinha do rádio em casa dos meus pais,
o vento que erguia turbilhões de poeira no pátio da escola. E assim que vou
desbravando essas estranhas avenidas esqueço-me do lugar onde estou, daquilo
que faço, de quem sou. Então oiço um cântico de alegria, mas logo a memória, com
a sua rudeza canalha, atira-me para o presente, empurrando-me para o fundo da
minha própria pele. Talvez sobreviva, penso e calo-me a olhar o horizonte.
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
O castelo
Quando passei na avenida, o castelo espiava a vida cá em
baixo com uma indiferença feita de pedras e anos, um rosto sem ademanes nem
trejeitos, talvez com uma ou outra ruga de comiseração. Terá razão, pensei. Já
viu muitas coisas e há-de pensar que aquilo que nos ocupa e faz ferver de
indignação ou de entusiasmo não passa de poeira, e o pó logo há-de assentar sob
a copa dos castanheiros, sem que alguém se lembre dele. E isso deu-me uma
estranha alegria e a certeza da irrelevância daquilo que me invade os dias ou a
insignificância da minha própria existência. Não há como um velho castelo para
nos devolver à poeira da realidade. Ri-me, grato, e continuei o caminho.
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
O dia que se esconde
Entardece. O dia, exausto e dorido, desliza pelos corpos e
procura a terra onde se esconderá no seio da noite. Foi isto que pensei,
enquanto olhava para um jacarandá em frente da janela e procurava, entre folhagem
e cápsulas secas, descobrir frutos ainda verdes. E enquanto o tempo escorria,
entregava-me a uma contagem silenciosa. Depois, esquecido da aritmética, saí de
onde estava, passei por gente arqueada pelo calor e entrei no carro. Vi um
cachorro de língua de fora, depois por um bando de escolares presos na
exuberância da adolescência, subi um viaduto e entreguei-me ao rally das rotundas. O pensamento sobre o
dia que se esconde na noite voltou-me e eu sorri com a inutilidade das coisas
que me ocupam o espírito. Pudesse eu ter grandes pensamentos, mas só os
pequenos nadas e as grandes inutilidade parecem encontrar casa em mim.
quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Silêncio digital
Muito sofrida deve ser a vida de pessoas que, perante aquilo
que as desgosta, desatam de imediato a insultar meio mundo. Então nas redes
sociais a injúria está à distância de uns movimentos dos dedos. Uma contrariedade
na pequenina ideologia que habita aquelas cabeças e logo salta um chorrilho de
impropérios, uma mão cheia de ofensas, uma incapacidade de conter as emoções no
foro estrito da privacidade. Talvez a vida seja negra e uma necessidade de
gritar razões faça bem ao fígado, talvez. O mundo, porém, seria um lugar melhor
se esta gente calasse os dedos. O silêncio digital como caminho para uma vida
civilizada.
terça-feira, 25 de setembro de 2018
Europeu
Hoje de manhã, ao passar pela avenida, observei os
castanheiros. As folhas começam a amarelecer. Isso poderia ser um bom sinal,
mas não. Olhei para o céu e o sol brilhava raivoso, atiçado por algum deus
vindicativo. Lá anda o Outono disfarçado de Verão, pensei. Na sala de aula, as
temperaturas eram de tal modo elevadas que, desde o primeiro instante, perdi a
esperança de que alguma coisa conseguisse mover os neurónios de quem quer que
seja. Exultei, todavia, com o facto de termos um horário escolar como se
vivêssemos no centro da Europa. Não há nada como ser europeu, disse para comigo,
enquanto insistia em coisas tão interessantes como conceitos e proposições,
teses e argumentos. Os alunos abanavam-se, bebiam água e olhavam para mim com
um olhar de quem pede misericórdia. Resisti à manobra. Um europeu que se preza
não tem calor em Setembro.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Palavras
Oiço vozes lá em baixo e, mais ao longe, ergue-se a gritaria
vinda de uma escola em tempo de intervalo. A inclemência do sol não chega para
tapar as bocas e reduzi-las à sombra do silêncio. Talvez seja esse o problema
da humanidade, a impossibilidade de manter a boca calada. Esse silêncio que
nunca chega aumentaria o valor das palavras, pois haveria um excesso de procura
para a escassez da oferta. Mas não, nunca conseguimos cerrar os dentes
devidamente. Com a produção sem freio que limite o desastre das vocalizações, nem
dadas queremos as palavras dos outros. Para ruído, e não pequeno, bastam as
nossas.
domingo, 23 de setembro de 2018
Começou o Outono
Ainda não me atrevi a pôr um pé fora de casa. O Outono, a
minha estação preferida, chegou rancoroso, pedras de sol na mão, facas afiadas
prontas a entrar pelas costas dos mais descuidados. Noutros tempos, pelo menos
aqueles que guardei na memória, a chegada do Outono, mesmo se havia sol e
calor, era acompanhada por um sentimento de despedida. Alguma coisa estava a
acabar. O que é tormentoso não é o calor, mas chegar ao dia de hoje e
pressentir que tudo vai continuar. Um sol inclemente, as temperaturas bem acima
dos 30 graus, os incêndios a crescer dentro das florestas, o cansaço dos corpos
batidos pelo desvario solar. Chego à janela e espreito a avenida. Os prédios amolecem, as paredes exsudam, as árvores ajoelham-se à procura de água fresca.
Depois, sento-me com um romance de Cormac McCarthy na mão. Olho a capa e vejo nela
uma paisagem de Outono. Atiro-o para cima da secretária e, como um cão exausto,
rosno: estou farto de provocações.
sábado, 22 de setembro de 2018
Uma justiça infalível
Há pouco tive de ir à farmácia. Manter a tensão arterial
dentro de valores aceitáveis é um exercício de minúcia e persistência, um
compromisso entre um ritual religioso e a fé na ciência, pensei ao dirigir-me
ao balcão. Uma rapariga de bata branca atendeu-me com bonomia, talvez com a condescendência
de quem ainda não tem idade perante aqueles cuja idade se mede pelo número de
medicamentos que toma. Também eu já pertenci ao grupo dos sem idade, disse para
comigo, e talvez houvesse em mim condescendência para aqueles que a tinham,
talvez. Na rua, ao caminhar sob a sombra que as árvores projectavam no passeio,
constatei que havia no mundo uma justiça infalível, enquanto me dirigia para
casa com o colírio que me há-de pôr em ordem as fantasias exaltadas do sangue.
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Depois de almoço
Podia desculpar-me com o calor afrontoso que persiste em
colonizar este sítio onde me cabe viver. Seria faltar à verdade. A realidade é
que as coisas que me interessam talvez
não me interessem assim tanto. Se num daqueles dias, como o de hoje, posso
sentar-me, depois de almoço, em frente ao computador para ver ou fazer alguma
coisa que me interesse, o certo é que, passados alguns minutos, adormeço. Não
se pense que é por falta de frugalidade na refeição, não é. As coisas começam a
desvanecer-se, os olhos a arder, as pálpebras a cerrarem-se. Então, a cabeça
descai, o queixo choca com o peito e ali fico até que a dor no pescoço se torna
insuportável e acorde, a praguejar com a idade, o mundo e a sua falta de
interesse. Só me falta ressonar, pensei há pouco. Uma voz vinda de outro lado,
como se me lesse o pensamento, tira-me as ilusões. Tens estado a ressonar. Não
ouvi nada, respondo não sem ponta de azedume.
quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Exuberância
Oiço uma voz animada, dentro de
um grupo, no outro lado da rua. Não entendo o que diz, mas não lhe falta
entusiasmo. Os meus olhos saltam da sombra das árvores a crescer do chão para
os gestos de uma das mulheres. O homem, silencioso, parece atento. Talvez já
esteja habituado à exuberância e esteja a fingir que não está a li. Os carros parecem
vermes perdidos na crueza do alcatrão. Uma carrinha, vagarosa, pára e interpõe-se
entre mim e o grupo. Penso que vou perder alguma coisa essencial, mas logo a paisagem
fica desimpedida. Consigo perceber a tonalidade dramática da voz, mas não as
palavras. A outra mulher, por vezes interrompe, mas logo a sua voz morre
afogada no mar exaltado do discurso da primeira. A vida é assim, pensei. Cheia
de dramas e narrativas exuberantes para acrescentar dor aonde ela não existe. O
homem tira as mãos do bolso, diz qualquer coisa e afasta-se. A mulher cala-se,
enquanto as sombras saltam para dentro da minha escuridão. A cidade parece
imutável.
quarta-feira, 19 de setembro de 2018
Resignação
O calor desliza das paredes, ergue-se em direcção ao tecto e
cai sobre as cabeças com um estrondo feito de silêncios, cansaço e um triste
aborrecimento. Começaram as aulas e o país descansa. Os pais podem retomar as
suas vidas interrompidas por essa estranha intromissão que a presença dos filhos em
férias sempre provoca. Eu cumpro com zelo as minhas funções. Falo sobre
conceitos, problemas, teses e argumentos. Proponho exercícios e eles abanam-se,
suspiram, mexem-se nas cadeiras, torcem os dedos e olham-me resignados, como se
soubessem que estão perante uma inevitabilidade. Olho para a rua. Ao longe, a
pedra baça do castelo reverbera sob o chicote da luz solar. Quando a campainha estilhaçou
o silêncio, ao vê-los abatidos pelo calor e submetidos à canga das mochilas, pensei que a resignação é a pedra angular da escola neste pobre país.
terça-feira, 18 de setembro de 2018
Os loucos
Há lugares onde se enlouquece rapidamente ou então que
atraem os que, apesar de não o parecerem, são já loucos. Esses sítios, mais que
um céu nublado e escuro que ofusca a luz, são buracos negros que a tudo devoram.
Os que habitam ali, tenham enlouquecido depois de entrar ou chegado já loucos, trazem
no coração o desejo ardente de espalhar a sua loucura por todo o lado que está
sob o seu império. E como eles gostam de imperativos, como odeiam o que é
diferente, qualquer alternativa à mania que os consome, qualquer vislumbre de
sensatez. Num primeiro momento, ainda ocultam do público a doença, mas logo o
entusiasmo próprio dos maníacos cresce e se abate como uma guilhotina sobre
todos os que pensam. Decapitar, decapitar! Eis a palavra de ordem dos déspotas
da insanidade. E a loucura vai-se expandindo, toma por dentro as instituições,
as pessoas, a réstia de luz que bruxuleia ao longe. Os loucos, possuídos por um
demónio contumaz, não dormem e quanto mais enlouquecem os outros, mais ávido é
o seu desejo por mais e mais demência. Inesgotável é o apetite que os consome.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
De janelas abertas
Abri as janelas para que o ar da manhã refrescasse a casa.
Lá fora, as árvores pareciam petrificadas, sem que uma brisa lhes movesse as
folhas. Em vez de ar fresco, entrou uma mosca e a textura do dia com as suas
garras de luz e calor. Dois pombos voaram de um telhado para o outro, enquanto o
tilintar abrupto de garrafas anuncia que o despejo do vidrão da esquina. Agora,
algumas nuvens escondem o sol e em tudo isto não há glória nem grandeza, apenas
o ronronar monótono da vida sobre o alcatrão do tempo.
domingo, 16 de setembro de 2018
Tarde de domingo
A tarde corre sorrateira, enquanto as pessoas, submetidas ao
império do calor, ruminam vagarosamente o resto de domingo. Amanhã, a vida
espera-as com uma faca afiada, pronta para ser cravada nas costas dos mais incautos.
Não fará sangue, mas não faltarão dores em corações trespassados. Afasto estes
pensamentos, e concentro-me no medrar das sombras. Desprendem-se dos prédios,
das árvores, de qualquer paliçada que separe um território de outro. Algumas
pessoas passam. Vão vagarosas, como se estivessem a chegar de uma longa
jornada. Uma mulher ajeita o cabelo, um cão alça a perna junto ao tronco de uma
árvore e a vida desliza. Ao longe, o ronco de uma moto. Ténue, mas logo aumenta
dentro dos meus ouvidos, como se o grande desígnio fosse ensurdecer-me. A
cidade murmura irritadiça. Em segredo, o poente adolesce, anunciando
uma trégua passageira.
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
Tiranias
O único bem que um ser humano dispõe é o tempo, essa duração
cujo segredo os deuses nunca revelam, ponderei ao sair de casa. A manhã estava
fresca e permitia que o cérebro se dedicasse a pensar, exercício que deveria
distinguir a nossa das outras espécies. Enquanto ia meditando, olhava para as
pessoas. Apressadas, quase corriam, como se temessem não a falta de tempo mas o
calor que, lá mais para o fim da manhã, haveria de irromper para esmagar o
cérebro e o coração de cada um. E enquanto deixava o carro deslizar, o
pensamento fluía como as águas de um rio, por vezes sobressaltava-se, outras
era tomado pela certeza. E assim caminhava, entre dúvidas e convicções, para a
foz, esse momento em que alguma coisa se revela. Não há maior tirania do que
dispor do tempo dos outros a seu bel-prazer, murmurei entre dentes. Pobre país
este em que o prazer maior está em roubar o tempo dos que não se podem
defender. No semáforo, um carro travou mal caiu o amarelo. Quase ia batendo e,
nessa preocupação, tudo se dissolveu. Talvez o pensamento não seja uma vantagem
competitiva, talvez não.
quarta-feira, 12 de setembro de 2018
O que aprender
Agora que o exercício pleno das minhas funções se aproxima,
pergunto-me, enquanto vou cidade fora sob a inclemência do calor, o que seria
mais importante ensinar. E aquilo que desliza pelo meu pensamento, enquanto a
vista percorre a avenida, é simples. A primeira coisa que os seres humanos deveriam
aprender seria não ter expectativas acerca de alguém ou de alguma coisa. A
segunda, a do exercício contínuo do esquecimento da própria possibilidade de se
esperar. Assim, ficariam livres para contar apenas com os seus parcos recursos.
Então, tudo o que lhes adviesse, sem que o esperassem, aceitá-lo-iam como uma
dádiva que se agradece e retribui. Cheguei, paro o carro e saio para o sol. A
escola verga-se sob a aspereza de um calor fugido dos infernos. E o que pensei
há momentos desvanece-se já, como se a verdade apenas pudesse viver no silêncio
do esquecimento.
domingo, 9 de setembro de 2018
Setembro
Fui há pouco à rua e o domingo pareceu-me soturno. Talvez
fosse eu que estivesse soturno, com a despedida das netas, depois de uma semana
animada pelo frenesim da sua presença. Setembro é um mês difícil, pensei. Há
nele sempre uma fonte de desilusão. Quando chega, o corpo saúda-o como um
salvador, mas também o corpo se precipita e vive equivocado. Há pessoas que sonham
outonos eternos, uma temperatura suave, as primeira chuvas, a queda das folhas,
uma melancolia aprazível que fosse uma entrada para o jardim do Éden. Este,
porém, está guardado por querubins de espada flamejante e Setembro é um
repositório de traições. Esconde, no seu íntimo, um punhal terrível que, na
primeira oportunidade, há-de cravar nas costas dos mais avisados. Encolho os
ombros e regresso a casa, pisando calmamente as pedras da calçada, enquanto
observo o recorte das sombras que os prédios projectam no meu caminho. Amanhã
será outro dia, murmurei para comigo. E a banalidade da frase reconciliou-me
com este domingo sem futuro.
sábado, 8 de setembro de 2018
Xadrez e sexo
Há pouco fiquei perplexo ao ler que em Tallinn, Estónia, é
proibido jogar Xadrez durante o sexo. Não pense o leitor que a minha
perplexidade se deve a um acesso de incredulidade que me tenha levado a duvidar
da notícia. Embora não a tenha ido confirmar, estou certo que não faz parte das
célebres fake news que tanto
atormentam certas personagens pouco dadas ao Xadrez. A perplexidade também não nasce de achar bizarros os legisladores
estonianos. Se na Escócia não é permitido conduzir vacas bêbado e em Portugal
não se pode urinar no Oceano Atlântico (o que acho muito bem), então também é plausível
que, numa parte do báltico, não se possa mover o peão enquanto a rainha está a
arfar. Tudo isto é natural e, para qualquer pessoa sensata, bastante óbvio.
O que me deixa perplexo é antes de tudo a magna questão de
saber se à relação entre fazer sexo e jogar Xadrez se aplica, ou não, a
propriedade da comutatividade. Portanto, a minha perplexidade é do âmbito das
matemáticas e não da inverosimilhança da notícia. Será que, neste caso, a ordem
dos factores também não altera o produto? Traduza-se: será a mesma coisa jogar
Xadrez enquanto se faz sexo e fazer sexo enquanto se joga Xadrez? No círculo
dos meus amigos e conhecidos, há quem defenda, e não são poucos, que neste caso
a ordem dos factores não altera o resultado. Tanto faz jogar Xadrez durante o
acto sexual como praticar sexo enquanto, calma e pensadamente, se disputa uma
partida. Se se estiver em Tallinn, o resultado é cometer um crime e,
eventualmente, ser punido pelo duro braço da lei.
Por mim, depois de muito meditar, inclinei-me para a
inexistência de comutatividade no presente caso. Uma coisa é jogar Xadrez
enquanto se faz sexo e outra, muito diferente, é fazer sexo enquanto se joga
Xadrez. Neste caso, não há prejuízo de terceiros. O adversário pode até
beneficiar do seu oponente estar centrado na vexata quaestio do orgasmo e não ser capaz de perceber que o peão
está a preparar-se para comer a Rainha. Eu sei que os peões não devem comer rainhas,
mas a vida é o que é, e a nobreza já não é o que era. Estou em crer que nem os
estonianos seriam capazes de achar isto um crime. Uma coisa bem diferente,
há-de o leitor convir, é estar, depois de passada a provação dos preliminares,
em pleno amplexo amoroso, entre gemidos, sussurros, gritos e murmúrios, com a
tensão a crescer, o desejo a transbordar, a sua parceira ou parceiro a entregar-se a um violento orgasmo e você, ao mover a torre para a casa h8, exclamar não sem uma ponta de cinismo: Xeque-mate! Só
pode dar cadeira.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Ser estrangeiro
Quase no início do seu livro sobre Constantinopla, Théophile Gautier assevera que “para se viajar num
país é preciso ser-se estrangeiro: é a comparação das diferenças que produz as
observações”. Será também isso válido para as cidades? Como poderei observar a
cidade – o castelo, a praça 5 de Outubro, a avenida marginal, as águas do
Almonda, o velho casario – já que não sou estrangeiro? Talvez Gautier, quando publicou
o seu livro, não tivesse ainda idade suficiente para perceber uma outra coisa,
para compreender que “o passado é um país estrangeiro: lá, fazem as coisas de modo
diferente” (Leslie P. Hartley, Go-Between).
E é assim, por ser alguém mais do passado do que do presente, que me sinto
estrangeiro na minha própria cidade, caminho por ela e as observações nascem da
comparação entre essas duas pátrias que o tempo afasta irremediavelmente uma da
outra. A avenida, com os seus castanheiros e o jardim a bordejar o rio, já não
é a mesma avenida, nem a Praça que há pouco vi é a mesma praça que frequentei
há muitos anos. Vim desse passado, onde as coisas se faziam do modo diferente,
e por isso sou cada vez mais um estrangeiro. É só uma questão de tempo para que
qualquer um se torne estrangeiro na sua própria terra.
quinta-feira, 6 de setembro de 2018
As lentes Mercedes
Um oftalmologista desavisado decidiu
receitar-me óculos com lentes progressivas e assim substituir os três pares de
óculos que compunham a minha colecção. Uns para ler, outros para o computador e
outros ainda para ver ao longe. Ainda argumentei que, provavelmente, não me
iria dar bem com a progressividade – ou o progressismo – das lentes, mas ele
insistiu, perorou sobre as manobras que tinha de fazer para gerir tantos
óculos, e eu cedi. Vendo-me vencido acrescentou que tinham de ser umas lentes
de uma certa marca especial e não dessas que saem mais em conta. Deu uma
explicação técnica que me soou como se fosse chinês. Vendo o meu ar incrédulo
ou estúpido, disse-me: olhe, é como comparar um Mercedes com um Renault 5. Num
Renault 5 também vai a Lisboa, mas não é a mesma coisa. Pois não, assenti,
entre divertido e ingénuo, imaginando-me já a conduzir umas lentes topo de gama.
E lá comprei os óculos com lentes tipo Mercedes. O resultado nunca deixa de me
espantar. Se quero ler, deixo o Mercedes na garagem e vou num velho Renault 5, de
lentes riscadas e que só serve para ver ao pé. O pior, porém, não é isso. Há
pouco decidi ir de lentes Mercedes à rua e pensei que tinha enlouquecido. O que
era uma rua normal, agora parecia-me estar cheia de crateras. Ao avançar, via
um grande desnível, calibrava o pé para esse desnível, mas não havia cratera
nenhuma e o passo saía em falso. Por duas vezes ia caindo, enquanto tentava
andar sem espreitar para o chão. Ao fim de cinco minutos, decidi que o melhor
era pôr os óculos de lentes Mercedes de lado e andar mesmo a pé. A viagem é
mais segura e Torres Novas deixou de me parecer uma cidade da Síria após um
bombardeamento.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
As horas
Hoje, ao atravessar a cidade, senti-me perplexo, como se, de
um momento para o outro, me tivesse perdido em ruas que percorri vezes sem
conta. Quando, passados instantes, recuperei o sentido de orientação, não
deixei de me interrogar sobre a razão desta súbita incongruência. As coisas
aqui quase não mudam e quando o fazem é porque se tornam decrépitas. Deixa-se o
tempo marchar sorrateiro sobre as casas e estas, lentamente, começam a
desfazer-se, sem que ninguém dê por isso. Então, tudo se torna tão irreal que,
mesmo o mais sólido dos seres humanos, não resiste e se perde no poço fundo
daquilo que conhece, esse abismo onde a memória se esfarela e se entrega a
corrupção trazida pelas horas, essas deusas vingativas que não largam os homens
e as suas pequenas obras.
terça-feira, 4 de setembro de 2018
Visco
O dia está viscoso, concedi, ao sentir o ar da rua tocar-me
a pele. De imediato se formou uma associação. Esse visco que adere aos corpos é
uma armadilha para capturar que tipo de aves? Será que ainda se sabe que se
utilizava visco para apanhar pequenos pássaros, os quais, de pés colados à
mistela, se entregavam não sem resignação ao destino? Não é que eu o tenha
feito, pois nunca fui dado à ornitologia ou mesmo a qualquer interesse pelo
mundo dos animais, mas havia quem se entretivesse a capturar, com esse ardil de
passarinheiro, pequenas aves. O destino destas nunca o soube. Uma coisa sensata
a de evitar excesso de informação sobre coisas que não nos dizem respeito. E,
perdido nestes pensamento, fui-me encaminhando para uma superfície comercial,
uma daquelas que enxameiam a cidade, cruzando-me com gente desconhecida, o que
me levou à constatação de que são cada vez menos as pessoas que conheço. Entrei
por uma daquelas portas que, guiada por um olho inexorável nascido do cérebro
de um bisneto de Bentham, abrem automaticamente. Fui apanhado pelo visco.
Afinal, o pássaro a capturar era eu, pensei não sem resignada condescendência
para com o meu destino.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
A realidade
Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas
me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos,
passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os
peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da
meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que
me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um
mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o
enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há
muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E
ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja
e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão.
Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o
cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por
mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.
domingo, 2 de setembro de 2018
Um progresso
Felizes são os domingos que esquecemos que o são. Surgem
como uma manhã fresca, absortos e anónimos, para declinarem na preguiça das
horas. A segunda-feira será ainda uma espécie de limbo até que, cansado de
benevolência, o deus abrirá as portas do inferno. Outrora, as pessoas
endomingavam-se. Iam à missa, as que iam, algumas ao futebol ou ao cinema. Era
um tempo severo e as possibilidades de distracção, parcas. Quem viveu esses
tempos, percorre as ruas da antiga vila e imagina que, naqueles dias, era
feliz. Talvez fosse, talvez não. Muitas vezes confundimos a felicidade com a
escassez de anos, ou imaginamos que uma bravata juvenil é um feito só possível
naqueles tempos heróicos, que não voltarão. A passagem dos anos favorece a
tendência para a mitologia, torna até o mais insípido dos homens num mestre
contista, mas a realidade, com o peso do calcário, não deixa de aflorar aos
nossos olhos e de recordar que uma ilusão, por amável que pareça, não deixa
de ser uma ilusão. Seja como for, o facto de os homens se endomingarem menos
não deixa de ser um progresso moral da humanidade.
sábado, 1 de setembro de 2018
Dias assim
Passa pouco do meio-dia e lá fora estão 36o. A
temperatura há-de trepar até aos 40o, vejo anunciado num dos sites
que se tornou, para mim, de leitura obrigatória, o da meteorologia. Setembro,
esse mês em que cheguei aturdido ao mundo, apresentou-se sem máscara nem
misericórdia. Faço figas, penso coisas impróprias, ergo barricadas dentro de
casa, reduzo a luz exterior e só deixo que o mundo entre através do som. É um
universo de rumores, o ronronar dos carros ao longe, algum grito extraviado na
rua, o latido fraco de um cão exausto. Fecho os olhos e vejo o vapor a
evolar-se do alcatrão das ruas. Hoje proíbo-me a visita às janelas e tenho de
inventar aquilo que vejo. Conto as horas para que chegue a noite. Dias assim
são como uma doença. Há que esperar que passem.
sexta-feira, 31 de agosto de 2018
Agosto declina
Agosto chega hoje ao seu último dia. Entrega-se sem acinte
nas mãos de Setembro, mas jura lutar até ao fim. Eu levo-o a sério e deixo-me
tomar por uma nostalgia do tempo frio. A meteorologia promete 38o, o
que denuncia a malévolo intenção que se esconde na beleza do sol matinal. A
cidade está em plena azáfama. Lá em baixo, cortam a relva dos canteiros com um
barulho irritante. A vida nunca é como a desejamos, pensei. Os olhos descaem
para o estranho livro que estou a ler, mas o barulho não desiste. Chego à
janela e vejo um homem de maquineta nas mãos, enquanto o sol toca ao de leve o
cume das árvores que se erguem como uma floresta portátil na escola em frente. A
cidade desliza nos dedos do sol ao som triunfante de um hino da modernidade. Um
concerto para corta relvas e banda magnética, imaginei.
domingo, 17 de junho de 2018
A natureza das coisas
A cidade reencontrou-se com a sua natureza. Um calor seco –
quase que escrevia ‘um calor sórdido’, mas contive-me – caiu sobre as casas e
as ruas, tornando tudo mais lento. Atravessei a antiga vila para uma visita
familiar, mas logo me recolhi em casa. Aproveitei a tarde para acabar de ler Por favor, não matem a cotovia, de
Harper Lee. Nunca tinha lido. Quando as histórias dos Finch se acabaram, pensei
que este era um livro que deveria ter lido há muito, naquele tempo em que as
férias eram exercícios intermináveis e os dias de calor inclinavam o espírito
para a leitura. Há obras que se devem ler ainda num período de certa inocência.
De preferência, em dias de calor, quando estamos encerrados em casa, presos ao
rumor silencioso de uma pequena cidade exausta e de ânimo esvaído pela
inclemência do sol.
domingo, 10 de junho de 2018
A província
Este tempo taciturno cobre a cidade com um espesso véu de
melancolia. Atravessei-a há pouco e pensei que tínhamos sofrido uma regressão
no tempo, pois a tristeza que desce dos céus esbate as cores e dá a tudo um ar
cansado e arcaico. Eu sei que é uma ilusão, pois se tivesse havido uma
regressão tudo seria mais brilhante e animado. Observo os castanheiros da
avenida, a sua floração, este ano, é menos exuberante, penso. Nos passeios, um
ou outro transeunte vai temeroso e apressado. A província é um exercício incansável
de nostalgia e ruínas, a memória sombria de um mundo que acabou há muito.
sexta-feira, 8 de junho de 2018
Precariedade
É tudo tão precário, penso ao saber da morte de alguém que
conhecia. Tento prender o tempo com as mãos, mas ele escorre-me entre os dedos.
Um súbito raio de sol ilumina o casario, há paredes a cintilar, mas as brechas
já fazem o seu caminho, marcham hirtas segundo o calendário da ruína. Se passo
no centro antigo da cidade, o desconsolo inunda-me o olhar. Logo a razão me
aquieta. Também as cidades estão sob o império do tempo. O coração protesta,
mas a tirania que rege a vida é mais inflexível do que aquilo que supomos. Uma
nuvem interpôs-se entre o sol e os meus olhos. Onde havia cintilação há agora
uma cinza suave, secreta, precária. Oiço vozes e elas são já um passado que não
retornará, presas na ruína dos seus próprios sons, destroços de um desejo que o
tempo calará.
Um triste dia
Atravessei a cidade envolto no manto de tristeza que se desprende destes dias de Junho. E tudo me pareceu belo, quase perfeito. As pessoas iam e vinham, os carros trotavam vagarosos pela avenida, o castelo erguido contra o tempo. Oiço alguém a lamentar-se da invernia primaveril, mas vejo-lhe no rosto o prazer deste tempo sem calor, de luz turva, de água leve que desce, hesitante como uma virgem, sobre a terra. O rio, esse velho espelho esfarrapado pelo tempo, devolveu-me a música melancólica que me rumorejava no espírito e eu respirei fundo, certo que também a beleza dessa hora se desvaneceria sem deixar uma sombra, um vestígio no vidro da história.
sábado, 2 de junho de 2018
Junho
Junho chegou e nem dei por Maio se ter ido. Foi sem uma
palavra, envolto em festividades, simulacros de um paraíso que se perdeu para
sempre. Os dias passam por mim, vão rápidos, presunçosos, cheios de eternidade.
Sinto a minha lentidão como uma sombra devorada pelo rancor do tempo. Nas ruas,
os transeuntes apressam-se, a festa aguarda-os no bulício da tarde. Esperam no
calor da multidão mitigar o frio que lhes habita a alma. Se alguém me
interpela, eu calo-me. Não por indelicadeza, mas por não ter nada para dizer.
Um pássaro canta na minha janela. Abro-a, o pássaro voa e o silêncio cai sobre
mim.
sábado, 7 de abril de 2018
Presunção
Não cozinhar pode ser uma virtude, mesmo num tempo em que o
saber fazer alcance elevada cotação no mercado em que todos vivemos. Foi o que
me ocorreu quando entrei num takeaway
e me vi rodeado de gente que me fazia passar pela ilusão de ser novo. E
enquanto as empregadas, com zelo e bonomia, iam despachando encomendas e
satisfazendo caprichos, eu sentia que os que me rodeavam, caso tiver sorte, são
o meu futuro. Quando saí para a ira ventosa da rua, ri-me com a minha
presunção. Não, não são o meu futuro. São o meu presente. Fechei a porta do
carro, pu-lo a trabalhar e o rádio devolveu-me uma oratória de Händel, O
Messias, precisamente. Bem preciso de quem me salve, pensei ao desfazer uma
curva em direcção a casa. A chuva caía lúgubre e hesitante. Mais logo, talvez o
sol rompa a muralha das nuvens. O melhor mesmo, para não cair em metáforas
mortas, seria não pensar, pensei.
sexta-feira, 6 de abril de 2018
Elegia
Estava a ver a chuva e a pensar na cadência de um poema. O
segredo da poesia estará em fazer que o poema encarne o ritmo da língua. Então
ele descerá sobre o espírito como a chuva sobre a terra, umas vezes leve e brando;
outras, exaltado ou melancólico. Hoje, a chuva é uma elegia, cai triste,
dolente, dolorosa, e as pessoas olham-na com compaixão e deixam escapar do rosto
o desejo que ela parta. A cidade arrasta-se no cansaço de uma Primavera ainda
inclinada para o mistério do Inverno. Ah se o ritmo do dia fosse outonal, ainda
seria possível crer no paraíso, segredei a mim mesmo, enquanto voltava costas
ao mundo.
quinta-feira, 5 de abril de 2018
Fidelidade
Ontem, ao passar pela Lagoa de Óbidos, lembrei-me das dores que
atormentaram Agamémnon, ao partir para guerra, tão ansioso do sangue dos
troianos e do prazer da vingança. A certa altura, vi umas velas de windsurf
empurradas sem furor pela brisa vinda do mar, enquanto alguns guerreiros, com a
sabedoria dos juncos, se equilibravam sobre as pranchas. Há muito que não via
gente a praticar windsurf, pensei com tristeza ao olhar o descolorido daquelas
velas. Depois, deu-se um curto-circuito e perguntei-me o que sucederia se o
vento desaparecesse e uma acalmia sem fim caísse sobre a lagoa. Haveria uma
Ifigénia para sacrificar por um Agamémnon exaltado? O carro rolava devagar e
dócil como as asas de uma borboleta ao sol da manhã. Ao perder o bando de
velejadores de vista, logo me esqueci de Ifigénia, de Agamémnon e do cruel
destino que foi o deles. A fidelidade é um exercício difícil, dissertei ao
recordar-me há pouco de tudo isso. O melhor será pensar noutra coisa.
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Salvação
Ao fundo, os olhos param nas dunas de Salir. Depois rodam,
rodam e encontram a entrada da baía. O mar, para além do pórtico, está exaltado,
mas tudo na praia permanece tranquilo. Por vezes, vou a S. Martinho do Porto,
nos dias em que suspeito haver por lá pouca gente, e deixo-me cercar pela
lentidão com que as pessoas passeiam pela marginal. Olho as águas paradas, o
balançar quase imperceptível dos barcos, e deixo que o sol caia sobre mim. Ali,
enquanto caminho, posso quase conceber uma teoria da perfeição ou descobrir que
toda a virtude reside na imobilidade. Um pai e uma mãe, com duas crianças e um
cão, talvez alemães, passam por mim. O cão ladra, mas a família segue em
silêncio, ele sorumbático e ela espinafrada, como diria a minha neta mais nova.
E eu silencio-me dentro do silêncio deles. Espero um milagre qualquer, mas ele
não chega. Nunca sei qual é o caminho da salvação.
terça-feira, 3 de abril de 2018
Dias assim
Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan
Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que
não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas
no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se
no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana
santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas
pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de
mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos.
Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas,
felizmente.
segunda-feira, 2 de abril de 2018
Abril
O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e
submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do
longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o
símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança
nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de
calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a
hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de
passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não
soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta
entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça
chover. Abril é sempre um árduo exercício.
domingo, 1 de abril de 2018
Na rua
Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam
como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por
ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica
que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de
anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez
as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à
mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças,
estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro,
o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa
diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia
levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a
noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo
se enrodilhou na ratoeira do silêncio.
sábado, 31 de março de 2018
Leituras
Não leio em cafés ou na praia. Por vezes, tento mas sou de
imediato derrotado. Ainda pensei pegar no livro e ir sentar-me no café ao lado
de casa. Espreitei pela janela e desisti. Um excesso de humanidade alegre e
ruidosa, presa às suas ilusões e ao vazio que nos coube em sorte. Perderia
outra vez. Sento-me à secretária e começo a ler O Fim dos Tempos Modernos. Hoje em dia, desconfio, ninguém lê
Romano Guardini. O livro foi publicado em 1950 com o título Das Ende der Neuzeit. Leio a tradução
francesa de 1953, tudo anterior ao meu nascimento, pensei. Não admira que já
ninguém saiba sequer quem foi Guardini. Inclino-me para o livro, mas as
metamorfoses do sol perturbam-me a leitura. Brilha e logo se esconde atrás de
alguma nuvem, como se quisesse jogar às escondidas comigo ou cantar aleluias. Não
quero. Fico a olhar ao longe, o hospital parece uma alma penada, tragado pelo
bolor. Os cedros do pequeno bosque da escola em frente crescem vigorosos. Pena
que não existam também ciprestes, concluí e peguei no livro.
sexta-feira, 30 de março de 2018
Dia da paixão
Tive de ir fazer algumas compras. As pessoas embrulham-se
nos afazeres que a necessidade impõe, gratas pelo feriado, indiferentes à razão
que lhes permite estarem ali. Vejo gente conhecida há décadas, troco ironias e
amabilidades, desejamo-nos boa Páscoa, submetidos ao império do hábito, e cada
um segue o seu caminho. Chego à rua e o sol hesita entre esconder-se e brilhar,
deixo-me levar pela a aragem e penso que não há metáfora que nos permita
descrever aquilo que vemos nem metonímia que autorize um mortal a explicar a
realidade. Os carros passam e nesta constatação está todo o meu saber e toda a
minha cegueira. O dia desliza lentamente para dentro da cruz de um Cristo
abandonado na prateleira do supermercado.
quinta-feira, 29 de março de 2018
Livros
Fui comprar livros em papel, já não o fazia há algum tempo,
rendido que estou, e há muito, às vantagens dos e-Readers. Não vou argumentar sobre questões de fé. Comprei dois
livros da Agustina Bessa-Luís editados pela Relógio d’Água e três de poesia.
Omito os autores. Saio com os livros num saco de plástico e deixo-me embalar
pelo sol de Março, enquanto as pessoas passam apressadas em direcção ao grande
fim-de-semana. Alguém me cumprimenta, trata-me pelo nome. Retribuo, mas não sei
o nome da pessoa. Mascaro o esforço com um sorriso e desejamo-nos boa Páscoa.
Um final feliz, pensei, não sabendo se me esqueci do nome ou se nunca o soube.
É melhor não me preocupar. Sinto o sol a entranhar-se na pele, as sombras a
crescer para tarde. Estou de passagem, ouvi-me dizer. Encolhi os ombros. Chega
de banalidades. Tenho alguém à minha espera e apresso o passo ao atravessar a
rua.
quarta-feira, 28 de março de 2018
Tempo
As horas deslizam sorrateiras e cravam-se na garganta para
nos sangrarem. Imagino então o sangue a deslizar, a empapar a roupa, enquanto
olho para a rua e vejo um gato à beira do passeio. Hesita longamente e, depois,
dá uma rápida corrida para o outro lado da avenida, enquanto um carro trava e
eu vejo tudo isso, imaginando o sangue a pingar no soalho, os minutos a passar
mais apressados que o gato. Se fosse possível libertarmo-nos do punhal do
tempo, medito sem esperança, tudo teria sentido. Um carro passa apressado,
buzina, e eu perco de vista o gato. É sempre assim, nunca deixamos de perder de
vista aquilo que é mais importante. Talvez chova mais logo, penso ao olhar o
céu cinzento.
terça-feira, 27 de março de 2018
Sol quaresmal
Hoje está um sol de Quaresma, pensei ao sair de casa. Um sol
quaresmal, mas que coisa será essa? É um sol que brilha sem exuberância, que se
derrama sobre os prédios com uma leve tristeza, que toca os espíritos fazendo
lembrar umas vezes a solidão e outras a promessa de um grande acontecimento. A
cidade não sai diminuída com este sol. Estacionei o carro ao lado da Igreja de
S. Pedro. No pequeno percurso que tive de fazer a pé, tudo estava menos
deprimente do que é habitual. Graças ao sol. Eu sei que estamos em tempo de
ressurreição e que não devemos projectá-la na realidade, mas temos de ser
compassivos. Sempre se pode imaginar que a velha vila, aquela que foi
exuberante, há-de ressuscitar ou voltar numa manhã de nevoeiro. Não
ressuscitará nem voltará, claro. As casas estão cansadas, as pessoas exaustas e
o mundo tem mais que fazer do que satisfazer os desejos de quem, tocado pelo
sol, se deixa arrastar pela melancolia que cobre as horas. Não haverá nenhum
grande acontecimento. E isso pode não ser mau.
segunda-feira, 26 de março de 2018
Sono
Se estou exausto, um dos meus sítios preferidos para
adormecer é em frente ao computador. Chego, sento-me, ligo-o e olho para ali
como se estivesse a ver alguma coisa. Não estou. Então, o sono vem sobre mim, a
cabeça descai, o queixo choca com o peito. É provável que ressone. Se me babo
ou não, isso é coisa a que pouparei o leitor. E a máquina, assim enjeitada, ali
fica a trabalhar, com um zelo inexcedível e uma lógica perturbante. Se sonho,
não sei. Sou um deficiente onírico, pois raramente me lembro de sonhar. Este
pensamento alucinado tranquilizou-me. Seria muito desagradável sonhar uma
coisa que entrasse em conflito com o que se passa no monitor. Quando acordo,
dói-me o pescoço, mas não nos dói sempre alguma coisa? Umas vezes, um dedo,
outras, o nariz, ou a alma ou alguma memória desabrida. Não foi para que nos
doesse sempre alguma coisa que nascemos com o pecado original?
domingo, 25 de março de 2018
A glória do dia
Talvez
por lhe ter sido roubada uma hora, sinto este domingo quase como uma promessa.
Eu sei que não se deve viver de promessas, mas nem a passagem pela avenida
marginal, onde, hesitante, a feira de velharias atrai curiosos enfadados, nem a
romagem ao sítio onde se arrasta moribunda a feira de Março conseguiram deitar
cinza e luto sobre o meu ânimo. É verdade que as pessoas passeiam com o mesmo
ar desolado que ostentam nos outros domingos. Um homem caminha apressado,
enquanto, em desespero, tenta com um pente pôr ordem no cabelo. Um pai solitário
arrasta os filhos em direcção ao carrossel. Um anúncio de farturas mistura-se
com a música estridente de todas as feiras destes país. Nada disso, porém, entenebrece o dia e a sua
glória. A segunda-feira será menos dolorosa, creio.
sábado, 24 de março de 2018
Visita de estudo
Passei o dia em visita guiada a Tomar. Quase me tornei templário,
e isso só não aconteceu porque não havia quem me armasse cavaleiro. Assuntos de
cavalaria são coisas sérias e obedecem a regras estritas, e eu não sou de
infringir regras, e não ostento títulos no currículo que não me tenham sido
autenticamente outorgados. O tempo estava borrascoso, uma frialdade das
antigas, uma chuva fria e impertinente, ventos desabridos, como se Éolo quisesse
tirar vingança e abrisse a caixa para punir algum dos viajantes, talvez a mim.
Antes a caixa de Éolo do que a de Pandora, pensei e fiquei mais tranquilo. Entre
claustros e igrejas, lá almocei numa taverna antiqua, onde também não descobri
qualquer cavaleiro dotado com poderes suficientes para me fazer entrar na Ordem.
Inconformado por não me ter sido dado o merecido acesso à Idade Média, exausto
de góticos e manuelinos, lá vim para casa, onde, no conforto do lar, posso
imaginar-me cavaleiro da Ordem do Templo, enquanto escrevo isto e oiço jazz. O
que devia mesmo era ouvir canto gregoriano, disse de mim para mim. Talvez me
fosse mais fácil ser monge beneditino do que cavaleiro de Cristo. Amanhã será
outro dia, espero.
sexta-feira, 23 de março de 2018
Castelos
Agora dou comigo a consultar, com mais frequência, a
informação meteorológica. Estava olhar, de uma das janelas aqui de casa, para
as muralhas do castelo. O céu cinzento escuro agradou-me. Pensei que este tempo
é o verdadeiro tempo de Quaresma e vim ao computador para saber como estará o
humor de S. Pedro na próxima semana. Parece que vai estar melhor do que devia,
constatei não sem um trejeito de desagrado. O melhor é esquecer-me do tempo e voltar
a olhar o velho castelo, agora que ele está limpo e asseado. Para dizer a
verdade, gosto imenso de castelos e por isso sinto-me tocado por uma enorme piedade
quando os vejo assim tão edulcorados, tão mortos, tão prontos para o postal
turístico que ninguém há-de comprar.
quinta-feira, 22 de março de 2018
Anoitecer
Arrefeceu. Ao início da tarde parecia que a Primavera tinha
triunfado, mas com o declinar do dia uma súbita saudade do Inverno tomou conta
das ruas. As pessoas encolhem-se um pouco como se isso servisse de esconjuro
contra o frio e seguem os seus caminhos, como se nelas houvesse um propósito,
uma causa final que as movesse e desse sentido à vida. Parei no passeio e
deixei-me ficar a olhar o que se passa na avenida. As árvores ainda estão
despidas, noto. A iluminação pública já invadiu a atmosfera e a noite, tecida
de tafetá escuro, prepara-se para, gloriosa, cair sobre o dia moribundo. O
melhor será ir para casa, pensei, enquanto alguém me acenava ao fundo e, de
imediato, desaparecia devorado pela pobre penúria da escuridão. Uns
adolescentes passam do outro lado rua como se tivessem toda a eternidade pela
frente, riem alto e assustam um gato que, desconfiado, se esconde debaixo de um
carro estacionado. É noite.
quarta-feira, 21 de março de 2018
Estultícia
Há pouco, quando passei pela avenida marginal a caminho de
casa, perguntei-me, agora que a Primavera se instalou segundo a ordem do
calendário, quanto tempo faltará para essas horas de grande ilusão que são os
dias dos castanheiros em flor. A palavra ilusão desencadeou em mim uma associação
de ideias e fez-me retornar aos primeiros anos em que exerci, vindo da
faculdade, a minha profissão. A ilusão, que eu não sabia que o era, residia em pensar
que o ser professor me iria dar tempo para fazer longas e demoradas leituras.
Nos primeiros anos – seriam os verdes anos profissionais – a ilusão não se
desfez e eu ia partilhando com os meus alunos aquilo que ia descobrindo. Anos
mais tarde descobri que isso era como o florescimento dos castanheiros na
avenida. A ilusão de um instante. A partir de certa altura, ao fim de não sei
quantas reformas, um professor quase está proibido de fazer leituras, pois as
horas da semana são escassas para tudo o que tem de fazer na escola, para além
de ensinar alunos. A forma como a vida escolar se foi organizando, durante a
minha vida profissional – pensei, ao fazer a rotunda onde desagua o viaduto de
Rio Frio –, parece ter como desígnio a estupidificação dos professores. Quando
as árvores florescem a ilusão é magnífica, mas quando a flor cai a realidade
mostra as trevas densas que nela habitam. Deveria ter lido Kafka com muito mais
atenção. Ele bem me avisou, mas a minha estultícia foi mais forte.
terça-feira, 20 de março de 2018
Equinócio
Consta que ocorreu o equinócio da Primavera. Vi que o
acontecimento se deu pelas 16 horas e 15 minutos, segundo informação do
Observatório Astronómico de Lisboa. Não dei por nada, mas fiquei mais
descansado. As coisas ainda não estão de tal modo que equinócios e solstícios –
duas belíssimas palavras, diga-se – se tornem acontecimentos incertos. Quando
saí do lugar onde me suportam para que eu possa ter um modo de vida, a cidade
não me acolheu primaveril. Limitou-se a deslizar com indiferença pelo tempo,
sem esperança nem desespero. E assim também eu passei por ela, sem a olhar nos
olhos nem lhe escutar a respiração, para me vir aqui sentar e escrever coisas
sem nexo, as únicas que nesta vida valem a pena ser escritas.
segunda-feira, 19 de março de 2018
Dia do Pai
Há catorze anos ainda vivemos os dois – o meu pai e eu -
este dia, mas ambos sabíamos que seria, muito provavelmente, o último Dia do
Pai que partilharíamos. Fingimos que o não sabíamos e continuámos a nossa
conversa. Era uma conversa como se tivéssemos a vida toda à frente. Em finais
de Setembro, tudo ficou consumado, o que sabíamos que iria acontecer aconteceu.
Mas aconteceu também outra coisa, a conversa não acabou. Ela continuou dentro
de mim e, um dia, espero que continue nos meus filhos, pois trata-se de uma
conversa infinita, aquela que liga um pai e um filho. E mesmo no momento em que
escrevo isto a conversa continua, flui rapidamente. Eu sei tudo o que ele diria
e ele sabe tudo o que tenho a dizer. Este mútuo conhecimento não anula a
surpresa das nossas palavras, pelo contrário. É esse mútuo conhecimento que
permite a contínua surpresa duma conversa sem fim.
domingo, 18 de março de 2018
Os difíceis domingos
Um casal discutia tão alto que não tive maneira de não saber
a dolorosa questão que o animava. Ânimo e entusiasmo parecia não faltar a ambos. Na
verdade, trivialidades que fazem da vida um drama sem fim ou que trazem à luz tragédias
recalcadas, que aproveitam o trivial para simbolizar o terrível. Como não tinha
à mão um comando a que pudesse recorrer para desligar o som, deixei-me arrastar
para a memória de algumas cenas de filmes de Bergman, onde as pessoas dizem
umas às outras coisas terríveis sem levantar a voz. Até para se dizer o
terrível há boas e más maneiras. Não sei se os domingos são mais propícios para
o desarranjo da felicidade conjugal. A perspectiva de mais vinte e quatro horas
partilhadas momento a momento, depois das de sábado, talvez tenha um peso na
propensão para o conflito. Amanhã, com as horas ocupadas pela profissão, tudo
se tornará mais sensato. Penso, muitas vezes, que por detrás dessas felicidades
que se arvoram publicamente há patologias tais que a única maneira de conviver
com elas é criar um grande cenário de vida beata, cheio de corações, sorrisos
abertos e fins felizes. Depois, chega a hora em que a boca já não consegue
mimar o sorriso e a beatitude mostra o inferno. Talvez a ausência de chuva e de
vento tenha serenado os espíritos ou talvez se tivessem cansado. Agora, o
silêncio desliza num raio de luz e incendeia-se sobre pequena mata de cedros
que avisto. É domingo.
sábado, 17 de março de 2018
Regresso a Ítaca
Muitas vezes, quando vou visitar a minha mãe, aproveito por
passar por dentro da cidade. Faço-o como se tratasse de um regresso a casa. Não
encontro nessa viagem de retorno os escolhos que Ulisses encontrou, no regresso
de Tróia, para chegar a Ítaca. Por aqui não há ciclopes de um só olho nem se
escuta o canto das sereias. Tudo se passa como sempre se passou, apenas o tempo
cobriu cada coisa com o seu manto de poeira e não há quem esteja disponível
para limpar o pó. Os conhecidos estão cada vez mais enrugados e os novos,
quando se avistam, são escassos e parecem já envelhecidos, contaminados por uma
nostalgia de não se sabe bem de quê. Talvez este tempo de Quaresma obrigue a um
jejum de novidade e a antiga vila se prepara assim para o grande luto que
antecede o domingo de Páscoa. Ao passar pela velha ponte do Raro espreito o rio.
Corre exuberante. O castelo, sonolento, abre a boca das muralhas e boceja. A
certa altura, na rua da Fábrica, corto à direita. O carro desliza devagar e eu
espero ver-me ali, um pouco mais à frente, nos meus dez anos a jogar futebol em
plena rua. Paro o carro e só há silêncio. Cheguei, mas eu não estou lá.
sexta-feira, 16 de março de 2018
Iluminações
“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”.
Assim começa Ovídio as suas Metamorfoses.
Vê-se logo que entrei de fim-de-semana. Ora estas metamorfoses são coisas mais
importantes do que se pensa. Veja-se o caso de Saulo de Tarso, agora conhecido
por S. Paulo. Não fora a súbita metamorfose sofrida por ele na estrada de
Damasco e hoje não haveria cristianismo ou, se houvesse, seria outra coisa,
talvez menos preocupada com o sexo. Também eu, por vezes, sofro uma
metamorfose, não tão dramática quanto a de Paulo, mas também não me ponho a
caminho de Damasco. Limito-me a passar pelas ruas de Torres Novas. Durante
décadas odiei, com determinação, favas. O cheiro deixava-me nauseado. Como em todos
os ódios, também neste o que sobrava em fervor faltava em racionalidade. Há uns
tempos, nem sei bem porquê nem aonde, tive uma metamorfose. Hoje foram, não sem
grande prazer, o meu almoço. A cada um as suas iluminações.
quinta-feira, 15 de março de 2018
Aguaceiros
Os dias incertos do final do Inverno repercutem-se na
indecisão que alastra nos passos dos transeuntes. Não sabem se o seu caminho é
o do sol ou se, daqui a instantes, a água derramar-se-á das nuvens como se a
arca de Noé estivesse pronta e um dilúvio viesse purificar a terra da maldade
humana. Caminho de chapéu de chuva na mão, mas espero que o sol me poupe a um
aguaceiro. A cidade ronrona e furtiva escapa-se-me dos olhos. Passos por
pessoas que cumprimento, mas não consigo já localizar o nome de algumas. A
folhagem da memória é precária e caduca, torna-se pó com excessiva facilidade. À
rua onde passo deram-lhe o nome da revolução, mas nela tudo é sossego e
indiferença, uma ordem sem a cegueira delirante da exaltação. Por ali, apenas
um tribunal, uma farmácia, mais acima, escolas. Nada que lembre a branca
obscuridade do entusiasmo e da fantasia. Os dias são como a vida na província,
passam devagar, mas o tempo, esse corre desalvorado e sem tino, ansioso a todos
entregar, sem demora, à tranquilidade do ataúde. O melhor é abrir o chapéu, uns
pingos grossos anunciam a bátega infernal que há-de vir.
quarta-feira, 14 de março de 2018
Vontade
Chove. O vento inclina as copas das árvores, fá-las desenhar
figuras bizarras, para depois as deixar sonâmbulas, muito aprumadas, ramos a
apontar para o céu. Os campos de jogos da escola em frente estão cobertos por
lençóis de água. Não se avista, da minha secretária, vivalma. Vejo as notícias –
ah essa oração da manhã do homem moderno que ainda não dispenso – e deparo-me
com o anúncio da morte de Stephen Hawking, o físico britânico. Fico a olhar
para a rua e a pensar no que foi a sua vida. Na verdade, muitos dos problemas
dos homens residem na vontade fraca. Ele que deveria ter morrido há quase meio
século viveu em circunstâncias físicas excepcionalmente difíceis e é uma das
grandes figuras do século XX e inícios do XXI. Sim, ele teria uma inteligência
prodigiosa, mas sem uma vontade de ferro nunca o seu nome teria chegado a nós.
Ao olhar os seus dados biográficos, descubro que escolheu bem os dias para
nascer e morrer. Nasceu no dia em que, trezentos anos antes, morrera Galileu
Galilei e morreu no dia em que, cento e trinta nove anos antes, nascera Albert
Einstein. Para completar o quadro, pensei, só falta uma coincidência com Isaac
Newton. A chuva rumoreja e o dia enovela-se numa cinza triste. Indiferentes a
tudo isto, algumas oliveiras permanecem impávidas, como se soubessem de coisas
que nunca imaginaremos.
terça-feira, 13 de março de 2018
Palavrões
Fui à farmácia comprar um
medicamento que me há-de fazer bem à hipertensão arterial. Um exercício
contumaz que evitará, presumo esperançoso, que a tensão se entregue ao devaneio
da hipérbole. Animado pela perspectiva, saio e, em plena avenida, passa um
bando de pré-adolescentes. Raparigas e, perdido entre elas, um rapaz. Talvez
inconsolado pela sua solidão de género, desdobra-se, em altos berros, em
palavrões. Em busca da masculinidade, pensei, ou talvez fique mais aliviado e esteja
a prevenir alguma doença do fígado. As pessoas passavam, os homens sorridentes,
as mulheres de orelhas moucas. Se tivesse a certeza de que uns palavrões eram,
para a hipertensão, mais eficazes que um beta bloqueante, acho que também eu
desatava a bradar avenida fora. Duvido, porém, da eficácia da metáfora e segui para
casa.
segunda-feira, 12 de março de 2018
A repartição
Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se
observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a
natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de
informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir
ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade
pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que
qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de
tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me
embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo,
num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me
tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência
com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me
numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à
morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em
derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do
incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da
modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas
apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia
observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado,
tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num
Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide
com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos
passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.
domingo, 11 de março de 2018
Tagarelice
Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da
cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas
bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas
do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o
sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos
lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão
ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a
perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas
caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como
sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o
silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por
transformar em tagarelice.
sábado, 10 de março de 2018
Sábados de província
Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.
sexta-feira, 9 de março de 2018
Registo
Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem
apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum
encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem
apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida
na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as
bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o
vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as
varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos
na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E
os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando
alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o
que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a
sexta-feira despeja na cinza da tarde.
quinta-feira, 8 de março de 2018
Realidades
Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos
que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos,
desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios
metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas
com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da
conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que
imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso
idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma
redundância para fim de conversa.
quarta-feira, 7 de março de 2018
Chuva fria
Depois de uma pequena cerimónia,
saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as
pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos
irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os
grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém
acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os
dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados
sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para
vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho
alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo
e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.
terça-feira, 6 de março de 2018
Constrangimento
Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes
de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim
não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente,
lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta
anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi
o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um
dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a
quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma
névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de
alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a
gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também
ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão
constrangidos para mim, pensei.
segunda-feira, 5 de março de 2018
Colégio de Santa Maria
Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há
uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado
e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar
das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida
exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais
tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos
dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza,
um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito
que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões.
Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num
mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas
mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens
e o tecido inútil de tudo o que passou.
domingo, 4 de março de 2018
Leituras
A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que
as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas
leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada.
Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que
pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor,
sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor
intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente
a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas
com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha
propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o
ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não
se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o
prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre
pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do
céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.
sábado, 3 de março de 2018
Deveres
Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar,
recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados
versos Ai que prazer / Não cumprir um
dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece.
Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e,
raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela,
mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que
mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a
chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o
tempo. Mais que isto, lembra o poeta,
É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que
se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse
economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha
janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de
ter os seus deveres.
sexta-feira, 2 de março de 2018
Homofonias
É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia
tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das
minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por
desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no
lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez
notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola
da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas
persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a
descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer
que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de
quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me
angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos
desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?
quinta-feira, 1 de março de 2018
Conservação
Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar
a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura
na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a
verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E
foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a
melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa
melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão
para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos
castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão
ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das
pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de
tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a
semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as
coisas.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Beco sem saída
Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas
lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me
acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir
consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham
sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser
misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas
vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei
ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão
obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez
atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se
precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O
que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até
num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Falar do tempo
Adiar o inadiável, pensei ao ver a chuva cair. Não tarda e a
Primavera chega com o seu cortejo de ilusões, os corpos tomados por uma ânsia
de Verão e eu, temeroso, sinto já a penumbra fumegante com que o calor me
envolve e me lembra, com o estilete do acinte a enterrar-se nas veias, a finitude
e a mortalidade que me constituem. Falar do tempo, penso, é aquilo que cabe a
quem já não tem nada para dizer. Aos negócios humanos sou cada vez mais
estranho e do resto nada sei. Quando não sou capaz de estar calado, sobra-me o
tempo como motivo de conversa. Descrever os dias de chuva, os de sol e os que
não são uma coisa nem outra. Ah se tivesse uma libertação para proclamar ou uma
salvação para anunciar, tudo seria mais fácil. Nunca faltam adeptos, mas como
verdade basta-me a chuva que cai, o sol que brilha, as nuvens que passam, a
monotonia com que a noite se ergue do ventre entumecido do dia. Chove, não é
mau.
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Anjos
Só se ouve um piano, mas o título da peça é “Três anjos
cantavam”. Os meus ouvidos não estão preparados para escutar as vozes dos
anjos, pensei, enquanto deixava o espírito enovelar-se nos acordes musicais.
Talvez o título seja uma metáfora ou uma falsa promessa. Promete vozes de anjos
e escutamos um piano. Também a tarde de hoje é feita de falsas promessas, presumo.
O céu cinzento anuncia chuva, mas ela recusa-se a cair. Olho para a rua e os
transeuntes caminham despreocupados, presos aos seus sonhos, mãos vazias como
se soubessem que a água prometida é uma conjectura sem sentido. Volto para a
voz dos anjos e oiço as notas saídas do piano. Talvez essa voz não seja mais
que o silêncio, esse silêncio que abre o corpo do homem ao segredo da música. Observo
inquieto a rua e ainda não chove. Um anjo poisa no telhado em frente, quase se
desequilibra. Recolhe as asas e canta.
domingo, 25 de fevereiro de 2018
Memória
Temos uma certa crença fundada em experiências antigas – por
exemplo, o caminho que liga duas povoações e que foi percorrido inúmeras vezes
nos anos setenta do século passado – e estamos certos dessa crença. A certa
altura passa-se, dizemos ufanos a quem nos acompanha, por aqui e por ali. Depois,
descobre-se que não se passa nem por aqui nem por ali e ficamos perplexos sem
saber se já não se passa ou se nunca se passou. A memória é um poder estranho e
pouco confiável. Quando pensamos que ela reproduz uma realidade vivida, ela
logo nos mostra que a sua função é inventar vidas que nunca existiram, caminhos
que nunca foram percorridos ou acontecimentos que nunca aconteceram. Ou talvez
tudo isto seja uma história dominical, onde os caminhos do fim-de-semana não
coincidem, por respeito ao ócio, com os dos dias úteis, subjugados que estão à
corveia que a existência nos impõe.
sábado, 24 de fevereiro de 2018
Vida examinada
Os dias ensolarados de Fevereiro arrastam consigo a triste
propensão de nos darem a pensar aquilo que deveríamos não trazer à memória. Algumas
contabilidades esquivas têm tendência, se nos descuidamos, a colocar-nos
perante o número de anos já vividos. O pior do exercício não será tanto a
compreensão da cada vez mais próxima falência do projecto, com o encerramento
definitivo da aventura. A falência é a contrapartida necessária e incondicional
de as portas terem sido abertas. O pior é aquela linguagem cifrada em livro
razão, balanço, deve e haver. Toda a vida é vista, então, como um acumular de
entradas e saídas, a que o exercício esotérico da contabilidade parece ser
chamado a examinar. Consta que Sócrates, o mestre de Platão, terá dito que uma
vida não examinada não merecer ser vivida. E o anjo negro, aquele que também
habita dentro de nós ao lado do anjo branco, pergunta: e uma vida examinada
será que merece? O melhor é ir apanhar sol e ver se falta muito para os
castanheiros da avenida florescerem.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
Precaução
Não há pior tentação, pensei ao entrar no carro para me
dirigir para casa, que a de tentar corrigir a natureza humana. Quando a ideia nos
toma de assalto, a única coisa que devemos fazer é esperar com paciência que
ela passe. O importante, meditei, não é melhorar a humanidade, mas precavermo-nos
dela, mesmo – ou principalmente – se entre ela e nós não há qualquer diferença.
O sol de sexta-feira tem sempre o condão de me fazer pensar sobre coisas em que
não devia pensar.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
Cegueira
Penso muitas vezes na inevitabilidade das coisas e na
estranha cegueira que cai sobre os mortais. Não estou a falar daquilo que
acontece necessariamente devido a uma lei qualquer da natureza. Refiro-me ao
que poderia não acontecer – e que, muitas vezes, seria desejável que não
acontecesse – mas que acabará por acontecer. Há um momento em que isso poderia
ser evitado, mas a cegueira para o que pode vir é tanta que, quando tudo se
torna manifesto, já é tarde para o evitar. Os que se riam da mera possibilidade
são os primeiros a chorar, como se eles não fossem, por omissão, uma causa do
estado lamentoso a que se chegou. Os deuses são travessos e raramente perdem
oportunidade para se rirem das lágrimas dos homens.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018
Mortais
O tempo é faceto ou, talvez, volúvel. Ainda ontem prometia,
sem pudor, o devir rápido de uma primavera temporã. Hoje, arrependido e tristonho,
enovela-se em sombras, deixando vir uma luz equívoca que, dificilmente,
alegrará o coração daqueles que, soturnos, vejo calcorrear a avenida. A
tonalidade cinzenta da hora parece chumbo que os meus conterrâneos carregam
sobre as suas costas. Cada um, pensei então, é uma encarnação do filho de
Jápeto, o infeliz que foi condenado a suportar, em seus ombros, os céus. Não há
como a mitologia para enquadrar as coisas da vida. O pior, ocorreu-me logo, é a
impossibilidade de ver neles a sombra de velhos titãs conjurados contra um
poder supremo. Sob a copa das árvores passam apenas mortais conciliados com o
seu destino. Antes assim, conformei-me eu também.
domingo, 18 de fevereiro de 2018
Antevisões
Esta luz faz lembrar já os arpejos da Primavera, pensei.
Logo, uma onda de calor desceu sobre mim numa antevisão do que virá. O problema
todo está nesta maldita Idade de Ferro que nos foi dada a viver. Como o velho Ovídio
explica – e outros antes dele – na primeira Idade, a de Ouro, a Primavera era
eterna, mas tendo sido devorado esse tempo, com a passagem à Idade de Prata, as
estações foram divididas e a Primavera, antes infindável, é agora breve e logo
cede o seu reino ao tormentoso Estio. E com esta recordação os raios solares
que descem sobre a avenida em vez de consolo são já uma ameaça tórrida a que
ninguém, contudo, presta atenção, entregues que os homens estão à celebração da
glória luminosa do sol. Recolho-me em casa e tento lembrar-me dessa outra
pátria que haveria de ser a minha se a ordem do frio e do calor, da luz e da
sombra coincidisse com o meu desejo. E em mim não há mapa onde a encontre nem
voz que a sopre aos meus ouvidos.
sábado, 17 de fevereiro de 2018
Transformações
Devido a uns assuntos da profissão dei por mim a meditar
sobre transformações. Como é que um adolescente de 15 anos entenderá a
transformação de um princípio, máxima na linguagem de Kant, que determina
subjetivamente o meu comportamento numa lei universal que haveria de ordenar a
todos os homens, em situação semelhante, a comportarem-se daquela maneira?
Penso muitas vezes que seria muito mais fácil ensinar-lhes o processo alquímico
da transformação do chumbo em ouro do que tornar evidente que a única
singularidade lícita é aquela que coincide com a universalidade. Aos 15 anos,
tanto quanto me lembro, a singularidade é tão esplendorosa que nem se concebe
que para além dela haja outra coisa, quanto mais uma universalidade na qual
deverão coincidir todos os seres singulares, caso seja boa a sua vontade.
Noutros tempos talvez se ensinassem coisas mais interessantes e não menos
profundas. Por exemplo, explicar por que razão a filha de Mínias, Alcítoe, é
ímpia ao negar a Júpiter a paternidade de Baco e, por isso mesmo, afirmar que
este não merece os ritos mistéricos onde é cultuado. É então que, por impiedade
para com o deus que me permite ganhar a vida, chego a pensar que os atenienses
não estiveram mal em condenar Sócrates à morte por corromper a juventude.
Havendo a paternidade de Baco para discutir ou a arte da transformação do
chumbo em ouro para analisar, não será corromper a juventude querer que saibam
que o mistério do comportamento moral reside todo nessa metamorfose do querer
singular numa lei universal que há-de determinar todos os quereres?
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018
Envelhecer
Sentado ao balcão, o homem metia conversa com as mulheres
que passavam. Elas, bastante mais novas, condescendiam em trocar umas palavras.
É penoso envelhecer, pensei, enquanto ia almoçando apressado num canto do bar.
A tarde entrava pela grande vidraça e caía ensolarada e impiedosa sobre as mesas.
A Primavera aproxima-se, até um corpo gasto ainda sente o sobressalto, concluí.
A boca do homem enrolava-se à procura de uma palavra, uma única que pudesse dizer
a memória fugaz do desejo, daquele desejo que se desejaria ter. Quase senti
vergonha de estar ali e de assistir à luta desigual do corpo gasto contra o
tempo. Elas sorriam perante a banalidade, respondiam com outra e seguiam em
direcção à porta, sem que ele esboçasse um protesto. Eram as regras do jogo,
deduzi. A rua esperava-as e, na sua complacência, pressenti o medo que as
habita, esse medo de chegar a hora em que faltam palavras para o desejo, em que
este para se dizer gagueja e descobre as piores, aquelas em que nunca deve ser
dito. É penoso envelhecer nestes dias de sol, em que a Primavera se anuncia e o
deus anda solto e desamparado pelos campos.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018
A seda da noite
As noites nem sempre são boas conselheiras. Envolvem-nos com
a sua tecelagem de equívocos e enganos, arrastam-nos para a turbulência que
habita o centro de toda a bonança, prendem-nos ao risível que nunca se cansa de
aflorar no rosto, no nosso. Então vemos a vida a desfiar-se e raras são as
vezes que gostamos daquilo que se vê. Talvez a noite tenha a virtude de tornar
mais sombria a realidade e de deixar, na boca dos homens, uma trago amargo, o
fel que o passar dos dias foi acumulando. Há pouco, num dos apartamentos aqui
perto ouvia-se um bebé chorar. Agora, são uns saltos que golpeiam o chão de
pedra e ressoam dentro do cansaço que há mim. Espreito pela janela e tudo
parece imóvel. Ao longe ouve-se o frufru da seda da noite. Nada é eterno,
talvez a mulher se tivesse descalçado e a criança adormecido. Pego num livro,
mas sinto os olhos a picar.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018
Quarta-feira de cinzas
Chegou a quarta-feira. Cinzas derramam-se dos céus,
arrastadas pela melancolia do sol, banhadas na água lustral de nuvens que
passam devagar sobre os telhados da antiga vila. E quase sinto saudades
daqueles tempos em que havia Quaresma com jejuns e proibições, uma árdua
preparação para a ressurreição da carne. Volteio pela cidade de carro e penso
que ela, na verdade, entrou há muito tempo na Quaresma e promete por lá ficar,
sem que uma ressurreição se adivinhe no horizonte. É agora um lugar de
melancolia. As pessoas, aquelas que vejo atarefadas e sombrias, atravessam-na
com cuidado, assombradas por um espectro que não sabem identificar. Há muito
que estas ruas e praças, que estas gentes, onde me incluo, entraram numa
irremissível quarta-feira de cinzas.
terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
Não saber
As árvores do passeio em frente foram podadas. Parecem agora
mãos disformes erguidas aos céus e não sei se elas se abrem numa súplica ou se
mostram as garras afiadas em ameaça. São cada vez menos as coisas que sei,
constato não sem alegria. Por debaixo delas passam, indiferentes, pessoas e
cães. Um casal, de mão dada, arrasta-se, ela presa a uma mala excessiva e ele de
passo incerto, deixando, a cada instante, a perna esquerda um pouco mais para
trás. Talvez a felicidade deles resida naquela mala demasiado grande ou no
esforço de trazer a perna ao seu lugar. Nunca sabemos o que torna os outros
felizes. E o melhor é não o saber. Umas persianas abrem-se e da janela chega a
imagem de uma mulher. Acende um cigarro. O fumo sai-lhe pela boca e pelas
narinas. Talvez a felicidade que lhe cabe nesta vida esteja toda nesse fumo que
o corpo deseja para logo o expelir. E sigo pela rua fingindo não ver aquilo que
vejo. Toda a virtude, concluo, está em fingir não ver o que se vê. Virtude e
sabedoria.
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018
Desprezo
Fiquei todo o dia a tratar de expediente escolar, enquanto,
lá fora, o sol se abria sobre a cidade e caía delicado nos prédios, soprado por
um vento insípido. As nuvens, julgo que serão cúmulos, navegam lentamente pelo
oceano bonançoso do céu, alheias aos homens. Envelhecer será, penso-o agora,
contentar-se com a indiferença com que a natureza acolhe os meus desejos. Não
há nela nenhum projecto para os frustrar, apenas a sabedoria de os não tomar em
consideração. E é este desprezo pelas ânsias da humanidade, admito-o, aquilo
que ela terá de mais admirável.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
Na hora anunciada
Mesmo se sombrios, são gloriosos os domingos, os que não
possuem uma segunda-feira no horizonte, pensei ao chegar à janela. O céu
cinzento não é uma ameaça mas uma promessa, ilusória como toda a promessa, de uma
eternidade mesmo ali ao alcance da mão. E recolhi-me nessa fantasia, ruminando
projectos e arquitectando obras, semeando o porvir de esperanças para as quais,
sei-o bem, ele não está disponível. Um pombo lacera o céu, plana de asas hirtas
como se não houvesse gravidade, sustido pelo vento e pelos meus olhos que não
se desprendem daquele voo. E nesse breve instante a eternidade manifestou-se,
suspendendo o tempo, e falou com a sua língua de fogo para que eu a escutasse.
Fechei os olhos e ao abri-los não havia pombo, nem língua de fogo, nem a eternidade
falava dos seus segredos no fundo do meu coração. É domingo e a segunda-feira
já se ergueu para pôr os pés ao caminho e chegar aqui na hora anunciada.
sábado, 10 de fevereiro de 2018
Signum citationis
Por vezes deparo-me com expressões que têm o condão de salvar o dia. Não que ele esteja perdido ou que eu sinta a sua queda iminente, mas está embaciado por algum desejo que turba o coração ou ofusca a luz da razão. Sento-me e olho para a rua. O sol persiste em iluminar a terra, reverbera nos vidros dos carros que passam. Um dia ainda será acusado de contumácia no crime de trazer a luz, prognostiquei. Leio alguém que fala sobre esse sinal equívoco que tem o nome de aspas. A dado momento, escreve, referindo-se-lhes, signum citationis. Fiquei siderado a olhar para a expressão e deixei que ele quase cantasse em mim. Só a música nos pode salvar, pensei então, deixando-me embalar pelas aliterações e assonância presentes naquelas duas palavras de uma língua morta. O vento empurrava a ramagem do arvoredo sem que a música se desvanecesse. E de súbito percebi a vida como uma citação de um texto apócrifo, umas vezes marcada pela musicalidade do signum citationis, outras exibindo-se como um plágio sem pudor.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
Carnaval
Quando se aproximam os dias de Carnaval sinto crescer a desolação. É
possível que outrora tenha existido uma qualquer relação de continuidade com as
Saturnais romanas ou com grandes festas dionisíacas. Agora são dias em que o
próprio sol se envergonha e, quando brilha, fá-lo quase com pavor de iluminar a
terra. De manhã, aqui ao pé de casa, crianças de uma escola desfilavam ao som
de uma música abrasileirada. Pais e avós olhavam embevecidos, tiravam
fotografias, filmavam. E toda aquela alegria era tão triste e tão desolada, que
o coração se apiedou e a razão, misericordiosa por uma vez, não se esqueceu de
recordar que em breve tudo terá passado.
domingo, 4 de fevereiro de 2018
Enredos
As noites de domingo são lugares vazios onde qualquer coisa
pode encontrar abrigo. Um sentimento, um desejo, a emoção que se escapou ao
controlo feroz da razão. Por vezes, chegam memórias antiquíssimas e recolhem-se
no desvão com que o fim-de-semana termina. Não sei porquê, lembrei-me da
atenção com que, na casa de uns tios-avós, se ouvia no rádio, num tempo em que as
televisões eram raridade, a informação sobre as previsões do estado do tempo.
Isso seria quase tão importante, penso agora, como ir à missa ao domingo. Talvez
estivessem interessados autenticamente no que iria acontecer, se precisariam de
chapéu de chuva ou se o calor iria trazer o fogo como ameaça. Prefiro, porém,
imaginá-los a registar a previsão para depois verificarem se ela se cumpria ou
não, uma atitude de vigilância aos prognósticos da meteorologia. E é na esteira
desta memória que entro na noite de domingo. Deixo-a trabalhar dentro de mim,
tento lembrar-me das faces desses meus tios, dos seus gestos, das palavras.
Silêncio e escuridão. Foi há tanto tempo que tudo isso foi rasurado e dizimado
pela voragem com que a vida, como um romance, se enredou.
sábado, 3 de fevereiro de 2018
Viagens genéticas
Talvez uma parte dos meus genes tenha feito uma grande
viagem, vindos de paragens setentrionais frias e pouco luminosas. Do que sei
deles, não há indicação que tal tenha acontecido, mas a minha sabedoria, com
tudo o que essa sabedoria tem de precário, não vai muito para além dos dois
séculos. A verdade é que cheguei à janela e vi uma tarde cinzenta, sombria, a
chuva a cair. Enquanto olhava com prazer para a rua, algo em mim sussurrava:
esta é a tua pátria, uma terra de sombras, dias pequenos e frios. As pessoas
corriam para se abrigarem da chuva e eu pensava que raramente sentia saudades
dos dias de calor, dessas orgias de luz, abulia e transpiração. A chuva parou. A
tarde declina e sento-me como se este lugar fosse outro, longe daqui, sem que
uma ameaça de fogo sobre ele impendesse, logo que a primavera se aproxima da
tormenta estival. Sabemos lá de onde vêm os nossos genes.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
A escada rolante
A semana fechou-se no escuro da noite, deslizou sorrateira para os
braços do esquecimento, para o porto onde os homens, depauperados pela
inutilidade dos dias, aguardam o festim do sábado, o grande baile em que
dançam, dançam, dançam na sala vazia da solidão. As noites de sexta-feira são promessas
que o tempo nunca cumprirá. Sento-me, cerro os olhos e deixo o pensamento
vaguear. O ideal seria não pensar, parar a corrente de consciência e entrar na
escuridão de mim mesmo, escutar o inaudível que uiva no âmago do corpo,
aproximar-me desse silêncio que as vezes ecoa numa imagem, num gesto, na pétala
de uma rosa que o vento arrasta. Na aparelhagem, um quator solta-se, inunda o ar e cai sobre mim. Também nele o
silêncio ladra, penso e levanto-me. Vou jantar e logo sou arrastado pela escada rolante
do tempo.
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
O promontório e a charneca
A luz de Inverno é um promontório de onde espreito o mundo. As casas
vacilam no meu olhar e as pessoas, tão pequenas se vistas daqui, caminham
oscilantes, com o pensamento ocupado em sabe-se lá que demandas. Protejo-me
nestas escarpas luminosas, tudo o que vejo imagino-o como um oceano matinal,
perdido no ir e vir da ondulação, a rumorejar bravio na pressa do trânsito. O
melhor que a idade traz, penso, é poder confundir tudo, o mar com a cidade, as
pessoas com cristas das ondas, o fluxo do trânsito com o ribombar das águas
salgadas ao bater na escarpa. Quando a luz de Inverno se transformar em luz
primaveril, o mundo começa a tornar-se plano. O promontório de onde espreito
será então uma charneca polvilhada de pedras e desolação.
domingo, 28 de janeiro de 2018
Bênçãos
Quando levantei as persianas, a manhã já ia alta, deparei com um sol melancólico, apesar do brilho que os seus dardos faziam cair sobre o casario. Pensei: é um sol matinal de domingo igual a tantos outros dos domingos de Inverno. Então, recolhi-me e deixei os raios solares dardejarem ao abandono. Quando me sentei à secretária, peguei em O Prelúdio, de William Wordsworth, comprado ontem, numa tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Leio o primeiro verso “Oh, uma bênção existe nesta doce brisa”. Então, lembrei-me do meu virar de costas ao sol dominical. Também eu deveria ver ali uma bênção, mas não vi. Depois, olhei a rua através dos vidros da janela. Os carros reluziam e percebi que o tempo do romantismo que permitia ver bênçãos nos elementos naturais acabara há muito. Um carro apitou e ao longe vibra uma sirene. O sol persiste preso à sua melancolia.
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
Chegar e partir
Chegou como se tivesse vindo de muito longe. Parou, rodopiou com calculada lentidão sobre os tacões, sorriu ao sentir o sol a iluminar-lhe o rosto e sentou-se. Não pretendo nada, respondeu quando o empregado lhe perguntou o que desejava. Nada, exclamou este atónito. Isto é uma esplanada. É uma esplanada, confirmou ela. E logo se levantou, o sol bateu-lhe no rosto, tornou a rodopiar com calculada lentidão sobre os tacões. Parou por um instante e partiu como se fosse para muito longe.
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