terça-feira, 31 de dezembro de 2024
Fim de ano
segunda-feira, 30 de dezembro de 2024
Uma lógica insurreccional
Foi em Vico que li, como título de um capítulo de Ciência Nova, a expressão lógica poética. O conteúdo desse capítulo não vem ao caso, mas apenas a expressão. Poética surge como uma qualificativo da lógica, permitindo pensar que existem lógicas que não são poéticas. Isso conduz à questão de saber o que constitui a poeticidade de tal lógica. O melhor caminho, porém, será partir da poesia e tentar descobrir nela a lógica que a ordena. O discurso poético é uma insurreição contra a semântica, a sintaxe e a própria lógica que preside ao discurso corrente. Rasga o sentido corrente das palavras, cultivando a ambiguidade através da anfibologia, da metáfora, da sinédoque ou da metonímia. Subverte as regras sintácticas ordenadoras do discurso usando hipérbatos, anástrofes ou, de modo radical, sínquises. Apaga os imperativos dos velhos princípios lógicos ao cultivar oxímoros, paradoxos, antíteses e contradições. Há uma profunda coerência no ataque poético ao discurso corrente e à lógica que preside ao pensamento correcto. Poderíamos dizer que há uma coerência na produção da incoerência semântica, sintáctica e lógica. O estranho é que, apesar desta insurreição contra a coerência do discurso, a poesia não é destituída de sentido, nem de ordem sintáctica ou de lógica. Um poema abre o pensamento, a linguagem e a experiência para um além que estava oculto pela semântica, a sintaxe e a lógica correntes. A poesia é dotada de uma lógica insurreccional contra os limites semânticos, sintácticos e lógicos que determinam o horizonte do pensamento e da experiência dos homens. Oferece pontos de fuga e vislumbres de mundos possíveis que, por norma, parecem impossíveis.
domingo, 29 de dezembro de 2024
A fria vingança
Como é sabido – a teoria da literatura não esquece de o referir – há uma descoincidência entre autor e narrador. Apesar destes textos não serem literários ou, no melhor dos casos, serem exemplos de má literatura, também há neles não apenas um desencontro entre autor e narrador, mas um verdadeiro conflito de pontos de vista. Eu, pobre narrador, sou uma criação ficcional de um autor anónimo, o qual não me permite fazer coisas que ele faz. Por exemplo, falar de política. Ora, descobri há pouco uma enorme colecção de artigos do autor sobre esse tema. Crónicas publicadas num jornal regional, de acordo com a sua natureza provinciana, para não dizer paroquial ou mesmo tacanha. Estive a ler textos de 2012 e de 2024. Senti-me recompensado e vingado. Ele envelheceu. Os textos de 2012 eram muito mais vivos e acutilantes do que os actuais. Não foi só o corpo dele que envelheceu, o olhar que perdeu fulgor, mas a sua verve e o modo como expressa as suas extraordinárias – quero dizer, disparatadas – ideias sobre a coisa pública também envelheceram. Falta-lhes a jovialidade e sobra-lhes o cansaço. Enquanto narrador, dava-lhe um conselho. Dir-lhe-ia: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. E quando ele me perguntasse o que deveria fazer hoje, dir-lhe-ia: deixar de escrever para jornais. Isto, porém, é impossível, pois é um autor despótico que nunca se permitirá escutar o que um narrador tem para lhe dizer. Assim, e para vingança, vou deixá-lo patinar no seu envelhecimento, que será também o seu envilecimento, até que os seus escritos não sejam mais do que um longo exercício de decrepitude. A vingança serve-se fria.
sábado, 28 de dezembro de 2024
Poeta, não profeta
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Por amor ao dever
As festividades natalícias estão consumadas, o que é um grande alívio. Hoje, já me pude sentar à minha secretária, sem que obrigações – informais, por certo, mas mesmo assim obrigações – me façam levantar e andar por aqui e por ali. Coisa que contraria o meu espírito de sedentário ultramontano. A minha viagem preferida é aquela em que nunca saio do mesmo lugar, onde o princípio, o meio e o fim coincidem. Não é uma viagem fácil, pois existe sempre uma pressão para que a pessoa se desvie da sua rota e ande por caminhos que não são os seus, e todos os caminhos que existem por este mundo não me pertencem. Andar por eles é como invadir uma propriedade privada. Imagino que a espécie humana terá se não um gene, pelo menos uma forte inclinação cultural para andar sempre em movimento. Não por acaso, colonizou praticamente todo o planeta e, não contente com isso, sonha colonizar outros planetas. Isto coloca um problema. Terei uma anomalia genética que me eliminou o gene do nomadismo ou a minha socialização gerou um mostro sedentário? Seja qual for a resposta a esta excruciante questão, a verdade é que quando viajo no mesmo sítio sinto que vou muito mais longe do que quando me ponho a viajar como um turista. Turista acidental, claro. Voltando às festividades natalícias que em teoria são do meu agrado, mas que na prática se tornaram penosas, a boa notícia é que o conjunto de deveres estão cumpridos. E isto pode ser utilizado como um excelente exemplo de acção moral, segundo o critério de Kant. Cumpro os deveres natalícios não por sentir neles um interesse particular, nem por ter uma especial inclinação por eles, mas simplesmente por serem um dever. Faço-o por amor ao dever e não porque tema as consequências de não os cumprir ou espere um benefício pelo seu cumprimento.
terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Fazer exercício
Foi o meu exercício matinal. Tive de ir a uma rua desconhecida de uma cidade aqui ao lado. Como se tornou moda, também esta cidade tem um fascínio – talvez um fetiche – com o reordenamento do trânsito, alterando-o segundo um critério tão secreto que nem os próprios responsáveis pelas alterações o conhecem. Valeu-me uma aplicação denominada Waze, que me levou à porta do estabelecimento a que queria ir. Além desta capacidade de me guiar pelo labirinto das ruas cheias de proibições, permissões e sentidos obrigatórios, tem uma outra, milagrosa. Ao dizer chegou ao seu destino, eu parei o carro, liguei os quatro piscas, saí, recolhi a encomenda, paguei – tudo isso sem que um polícia se interessasse pelo meu carro. Terei, um dia destes, de acender uma vela a S. Waze, protector dos infractores de estacionamentos proibidos. Talvez – penso agora – a razão tenha sido outra. Os agentes da autoridade, tomados pelo espírito natalício, fecham os olhos a estes pequenos delitos de trânsito. Uma terceira possibilidade é que andem todos entretidos a comprar os últimos presentes de Natal para oferecer aos cônjuges ou candidatos a cônjuges. Declaro, por minha honra, que não fui comprar nenhum presente, nem qualquer coisa que se relacione com o Natal. Fui a uma mercearia buscar a tradução que me faltava, das três publicadas em Portugal, do Ulisses, de James Joyce. O proprietário do estabelecimento tinha-a anunciado num dos sites de venda de livros em segunda mão e, como era aqui ao lado, aproveitei para fazer exercício. Estas vésperas de Natal não são fáceis.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Singularidade e comunidade
Os versos de John Donne, No man is an island, / Entire of itself; / Every man is a piece of the continent, / A part of the main, tiveram uma enorme fortuna, apesar de terem sido escritos no século XVII, época em que a afirmação do indivíduo, enquanto singularidade diferenciada do todo, começava a estabelecer-se e a lançar as raízes do individualismo posterior. Imagino, não poucas vezes, que a arte do romance está intimamente ligada a essa tensão entre o indivíduo e a totalidade – o continente, no poema de Donne. Em A Parede, Marlen Haushofer radicaliza essa individualização, mas para encontrar uma comunidade mais funda. A personagem, uma mulher de que nunca se conhecerá o nome, descobre que, de um momento para o outro, ficou separada do mundo humano por uma parede ao mesmo tempo invisível e intransponível. Mais, começa a ter razões para pensar que a espécie humana terá praticamente desaparecido. Esta singularização forçada e radical – imposta não se sabe bem nem porquê, nem como, nem por quem – leva-a a procurar refazer o continente, agora com os animais com que estabeleceu laços no território onde ficou confinada. A protagonista descobre que existe uma rede mais funda do que aquela que se estabelece socialmente com seres da mesma espécie. Para ela, na morte destes seres – do cão, da gata, do vitelo – podem aplicar-se os versos finais do poema de Donne: Any man's death diminishes me, / Because I am involved in mankind. / And therefore never send to know for whom the bell tolls; / It tolls for thee. Ela morre também na morte deles. A radicalidade da narrativa de Marlen Haushofer torna patente a necessidade de comunidade – e de comunhão – sentida pelos humanos. Uma experiência bem diferente é a de Peter Kien no romance Auto-de-Fé, de Elias Canetti. Ele é obsessivamente solitário e intrinsecamente misantropo. É a manifestação de uma crença e modo de ser contrários ao verso de Donne. Kien é uma ilha rodeada por livros. E quando estabelece relação com Therese – primeiro, sua governanta; depois, mulher – o desastre é total. A saída da singularidade e o fazer parte de uma comunidade, tão pequena quanto a de um casal, é a porta aberta para todas as desgraças. O romance moderno, aquele que poderá ter nascido com o D. Quixote, de Cervantes, o Simplicissimus, de Johannes von Grimmelshausen, ou, antes destes, Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, parece ser uma meditação contínua sobre a singularidade de seres que só podem existir mergulhados numa totalidade.
domingo, 22 de dezembro de 2024
Pequenas blasfémias
As percepções mudam mais rapidamente do que pode imaginar, disse, depois de intróito formal dos cumprimentos, o padre Lodovico Settembrini. Está a falar por enigmas, respondi. Ah... tem razão, ultimamente tenho sido acusado com regularidade de estar a ficar enigmático. Se fosse misterioso, ainda compreendia, volvi. Estava a referir-me ao romance que estou a ler. Melhor, a reler mais uma vez, afirmou o padre Lodo. Perante o meu silêncio, continuou: trata-se do Ulisses, do Joyce. Não me parece uma leitura própria de um sacerdote jesuíta, disparei. Ele, porém, riu-se e informou-me, sentencioso: não há leitura que não seja própria de um jesuíta, já o devia saber. Saber, eu sabia. Era dele, do Ulisses, que eu estava a falar, das percepções que mudam. O livro foi publicado em 1922, em França; a sua importação foi proibida para o Reino Unido até ao início da década de trinta. Também os EUA o proibiram até 1933. Consideravam-no obsceno. As percepções de obscenidade, nesses países, demoraram cerca de uma década a mudar. Hoje, porém, ao ler-se o romance – continuou o padre –, nem se compreende a acusação. Muito me conta, respondi a rir. Pensava que aquilo que o poderia preocupar não era tanto o sexo, mas a heresia inicial de Buck Mulligan, o ritual blasfemo a parodiar, com a bacia de barbear, o sacrifício eucarístico. Já não tenho idade para me preocupar com essas coisas. Se vivesse naquela época – sublinhou, com vivacidade italiana, o meu amigo –, talvez me sentisse indignado, mas não passa de literatura. Ainda bem que o diz, respondi. Temos um jesuíta contra o Índex, alvitrei. Está atrasado no tempo, ouvi do outro lado. O Index Librorum Prohibitorum foi instituído por Paulo IV, em 1559, e abolido por Paulo VI, em 1966. Não me parece – disse eu – que, apesar do Índex ter passado à história, a leitura do Ulisses, com essa referência constante ao paganismo grego, seja a leitura natalícia mais adequada. Pelo menos, para um sacerdote. Não se preocupe, respondeu-me. Nós temos um mecanismo que trata de limpar as possíveis manchas trazidas pelas leituras ou pela vida. Uma espécie de tira-nódoas, concluí. Não obtive resposta à pequena blasfémia.
sábado, 21 de dezembro de 2024
Um portal
Por vezes, as traduções operam verdadeiros milagres. Datado de 1960, o filme Le Petit Soldat, de Jean-Luc Godard, não teve por título, neste pequeno país, o literal O Soldadinho, mas O Soldado das Sombras. Uma tradução feliz, não apenas porque capta a natureza sombria do exército a que o soldado pertence, mas pela conjugação do efeito metafórico do vínculo entre soldado e sombras e, ainda mais, pela presença da aliteração na primeira sílaba de ambas as palavras. Talvez a tradução seja contraproducente, pois contém tal força que dispensa o próprio filme. Ela abre a imaginação a uma viagem que começa no país das sombras que, como qualquer país, tem o seu exército e os seus soldados. Não se sabe se essa pátria obscura se encontra ou não em guerra, nem se a missão do soldado é pacífica ou de combate. Esta ignorância permite que cada um construa uma história, conforme os seus desejos ou as suas necessidades. Haverá quem veja no soldado um agente de paz, um cidadão de um país em que a vida decorre sem os percalços da guerra. Outros fantasiarão o soldado em plena batalha, tomado pelo ardor do confronto, inclinado para o heroísmo. Isto mostra que uma expressão como O Soldado das Sombras é, na verdade, um portal por onde se entra para diversos mundos, muitas vezes estranhos uns aos outros. Contudo, a expressão é apenas um caso particular de um fenómeno muitos mais amplo e geral que é a linguagem. Esta é muito mais do que uma meio de comunicação ou de expressão, mas a abertura que permite aos homens entrar no mundo. Este, porém, deverá ser entendido como um substantivo colectivo. Mundo significa o conjunto infinito de mundos possíveis e imagináveis.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
Um koan para meditação
Estamos a 20 de Dezembro, e o estado do mundo não me parece muito saudável. Isso, todavia, não é uma novidade. É da sua natureza estar doente. O mundo sofre de uma patologia crónica. Mesmo nos bons momentos, caso existam, continua doente. Não geme, mas a palidez que lhe recobre a face não permite outra conclusão. Outras alturas, além da doença crónica, de ordem física – os organismos sociais não chegam a ter uma natureza biológica, não passando de estruturas mecânicas –, o mundo sofre de acentuada paranóia. É para lá que se caminha. Ora, quando uma ordem mecânica se torna paranóica, aquilo que podemos esperar não é o internamento compulsivo dessas massas nos hospícios, mas vê-las a ditar ordens e a serem servidas por aqueles que deveriam trazer ordem e razão. Nestes momentos, a doença do mundo torna-se aguda. Inflamado, começa a borbulhar em incêndios. As consequências são sempre piores do que se espera. Com esta análise, este narrador desocupado deu um precioso contributo para uma hermenêutica da realidade, coisa que todos afirmam ser a casa onde vivem, mas que ninguém sabe o que é. Há dias que aqui se narram os feitos heróicos que constituem a gesta do narrador. Não havendo gigantes a vencer ou eixos para pôr no lugar, o narrador contribui com a sua especulação não apenas para a elevação da metafísica a ciência – coisa que nem Kant percebeu ser possível –, mas ainda para o diagnóstico da moléstia viciosa que se apoderou do mundo desde que o homem, ao entrar nele, o constituiu. Esta última afirmação parece bizarra, mas deverá ser considerada como um koan para meditação, caso alguém queira dedicar-se ao Zen.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
O enjambement do Inverno
O Outono aproxima-se do fim. Pouco mais de trinta e seis horas e ouvir-se-á pancadas na porta. É o Inverno que chega e quer entrar na casa grande do ano, embora o ano tenha apenas mais uns dias e logo dá o último suspiro e entrega a alma ao criador. Por isso, a estação fria tem de recorrer ao enjambement e espraiar-se no verso seguinte, introduzindo um infeliz desalinhamento da disposição métrica e sintáctica do ano com a estrutura semântica. Tivesse este narrador sido chamado para criar as estações do ano, outro seria o calendário. Nada de começar no fim, que é aquilo que o Inverno faz. Parece que meteu uma cunha, coisa normal neste país, para apanhar o subsídio e os presentes de Natal, bem como a folia de fim de ano. Não compreende – certamente, por falta de inteligência – este narrador o cultivo que certos sectores da sociedade fazem da natureza como padrão dos comportamentos. Se o metro-padrão fosse natural, um dia teríamos um metro do tamanho de noventa centímetros e no outro mediria centro e doze, com mais um ou dois milímetros. Outra coisa que me irrita é, para além da data, a hora do começo. Neste infeliz ano, o Inverno começa no dia 21 de Dezembro às 9 horas e 19 minutos. Por que raio, não começa às zero horas? Que sentido faz uma pessoa olhar para o relógio, ver que são 9 horas e 15 minutos e pensar que ainda está no Outono? Deixo aqui o meu contributo decisivo para um mundo melhor. O próximo Inverno, depois deste, deverá começar às zero horas do dia 1 de Janeiro de 2026. Temos de começar a pôr ordem no caos que os homens introduzem na vida sempre que se dispõem a regular seja o que for por padrões da natureza.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
Desordem da natureza
Uma das editoras a que compro livros tem por hábito oferecer-me pequenos contos em livros de dimensões frugais, 15,5 X 10,5 cm, com cerca de vinte páginas. O último que li, de Alphonse Daudet, tem o inusitado título de A Mula do Papa. Inusitado porque se espera que um Papa, ainda por cima de Avignon, se desloque de cavalo e não num ser híbrido, fruto de relações sexuais não previstas na ordem natural do mundo. Que ordem é essa? A de que cavalos se cruzem com éguas e burros com burras. Contudo, num momento de desatenção, a ordem do mundo desordenou-se, e um cavalo enamorou-se de uma burra, ou um burro seduziu, não a burra que lhe fora destinada, mas uma égua. Desse cruzamento ímpio nasceu a tal mula que os acasos do mundo fizeram que se tornasse propriedade de um Santo Padre de nome Bonifácio. Ora, apesar de ser propriedade de um Sumo Pontífice, a mula não seguia os ensinamentos de Cristo, talvez pela sua origem duplamente pecaminosa: concebida no pecado da luxúria, como acontece a grande parte dos seres vivos, e de uma luxúria contra-natura, coisa que, sendo menos rara do que se pensa, ainda assim tem a sua raridade. Não estava disposta, essa criatura pactuada com o demónio, a dar a outra face e, será o pior, não era avara no cultivo do rancor. A isto adicionava uma memória persistente e viva, fruto, aposto, de uma longínqua hibridação em que um elefante terá dado um contributo genético que se veio a manifestar na memória da mula. Um tal Tristet Védène, um dia, pregou-lhe uma partida de mau gosto, uma cabriolice de adolescente. Ela, com todo o peso hereditário, onde se manifestavam os vícios em que a natureza se perde, jurou vingar-se. Esperou sete anos – um número cabalístico que é um princípio hermenêutico para interpretar a narrativa de Daudet – para consumar a vingança através de um extraordinário coice que, por certo, concentrou a força dos antepassados burros, cavalos e, suponho, elefantes. O pobre Tristet sumiu-se da Terra e a mula aplacou a raiva alimentada por sete anos de espera. Ficámos assim a saber que estes produtos híbridos, frutos do desejo desordenado, não são fiáveis, isto é, dignos de fé. O melhor é abstermo-nos de comércio com eles. Já basta o comércio espúrio de onde provêm. É plausível pensar que nunca mais Papa algum teve uma mula por animal de transporte. O cavalo seria mais digno da sua dignidade, apesar de Cristo ter preferido um burro.
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Meditações sobre o calendário
Daqui a uma semana, estaremos na véspera do dia de Natal. Daqui a duas semanas estaremos na véspera do dia de Ano Novo. No entanto, hoje, só estamos na véspera de amanhã, uma pobre quarta-feira, tão pobre que nem chega a ser uma quarta-feira de cinzas. Como se pode ver pelos exemplos, até o calendário é dado à desigualdade, tornando uns dias memoráveis e outros, infelizes, tão banais que nenhuma recordação deles se regista. Ao contrário do que se pode supor, esta desigualdade não resulta de uma conspiração de adeptos do inigualitarismo – se me for permitido usar o termo – nem, tão pouco, de injustas relações entre os dias. Se todos os dias fossem ilustres, a memória humana perdia-se e acabava por não prestar atenção ao motivo de notabilidade de qualquer um deles. A nossa consciência não suporta demasiada luz. Pelo contrário, por cada dia cintilante, necessita de longas semanas de repouso. Pode-se pensar que um dia de Natal e um dia de Ano Novo, apenas com uma semana de distância, é uma overdose de dias fulgurantes. Há, contudo, uma sabedoria que aniquila esse excesso. O dia de Natal ocorre num ano e o dia de Ano Novo, noutro. Esta mudança de ano implica uma alteração radical na relação dos dias entre si. Um faz parte de um jogo a acabar e o outro é o começo de um novo jogo. Depois, virá o Carnaval, mas logo se transforma em cinzas, na quarta-feira seguinte. Contemplemos, porém, o crepúsculo de mais uma terça-feira indiferenciada, talvez a sua mediocridade tenha alguma coisa para nos ensinar.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Dias confusos
A ligeira indisposição que me acomete só em aparência foi causada por uma combinação de bolo rainha e de dois cookies de chocolate. Não se pense que a causa, por não ser material, esteja em mim, na minha alma inclinada à gula. O que aconteceu foi apenas uma ocasião para Deus manifestar o seu poder. Claro que não fui eu que imaginei semelhante explicação e muito menos seria possível imaginá-la à segunda-feira, dia em que não imagino seja o que for. Trata-se da opinião do célebre – nos dias de hoje, muito menos célebre – Nicolas Malebranche e do seu ocasionalismo. O filósofo francês do século XVII e início do XVIII defendia que as causas naturais – neste caso, as complexas transformações químicas promovidas em mim pelos bolos comidos em louvor da gula – não são causas reais, mas meras ocasiões para que Deus manifeste o seu poder causal, o único que existe. E aqui esse poder causal poderia ser pensado como um exercício punitivo de quem se deixa enredar nas malhas da tentação. Mesmo nas acções humanas, o verdadeiro poder causal é de Deus. Isto coloca um problema ao ocasionalismo de Malebranche, pois, se aceitarmos uma natureza, incluindo a humana, desprovida de autêntico poder causal, teremos de colocar na conta de Deus todo o mal moral, além do físico. Malebranche encontra uma escapatória. Deus é a causa dos movimentos do mundo, onde se incluem os dos homens, mas são estes que, tendo sido criados livres por Deus, são responsáveis pelas intenções que presidem aos actos que praticam, mas de que não são a sua causa real. Talvez a segunda-feira seja um dia confuso.
domingo, 15 de dezembro de 2024
Metamorfoses na capital do império
Acabado de chegar de um fim-de-semana na capital. De novo, uma sensação estranha. Lisboa está animada, cheia de vida e, no entanto, parece agonizante. A Lisboa genuína está a desaparecer devido à gloriosa era do turismo. Isso não será grande problema para os turistas, pois estes não sabem distinguir a realidade do simulacro. Enquanto, a ficção vai substituindo a vida verdadeira, o visitante acidental passeia por ali, sem compreender o que se está a passar, submetido que está à necessidade de olhar. O desenvolvimento dos meios de transportes teve um inesperado impacto nas cidades. Deixaram de ser lugares onde se vive, para se tornarem um espectáculo que se vê. Esta transformação da cidade biossocial na sociedade meramente visual é uma degradação das modalidades genuínas de ser cidade. Do ponto de vista ontológico, para recorrer ao jargão filosófico, passa-se da presença viva à mera representação. As pessoas estavam presentes naqueles espaços, pois era ali que decorria a sua vida, os seus dramas, as suas vitórias e derrotas. Agora, as pessoas estão ali para representarem um papel. É essa transição da presentificação à representação que torna, por vezes, desconfortável deambular pelos sítios que outrora ainda não tinham sido devorados pela sanguessuga turística. Lisboa não é a primeira cidade a que acontece tal metamorfose. Não será a última. Ao transformar-se em mercadoria, é essa a metamorfose porque passa, corre o risco inerente a inúmeras mercadorias. Desaparecer no acto de consumo.
sábado, 14 de dezembro de 2024
Entre o bife à Marrare e o gato de Schrödinger
Talvez o mais célebre bife da gastronomia portuguesa seja o bife à Marrare. Hoje decidi, em rememoração, ir almoçar um bife à Marrare num belo restaurante lisboeta. O normal seria fazer o exercício ao jantar, mas as rememorações nocturnas começam a ser penosas. Podemos imaginar que um bife à Marrare actual é uma repetição daqueles que, no início do século XIX, António Marrare criou num dos seus quatro cafés de Lisboa, todos tão mortos quanto o seu criador. Contudo, mesmo que as receitas usadas sejam as originais, não é de crer numa repetição. Não apenas porque nada se repete neste mundo, mas também porque uma receita culinária é como uma partitura musical. Terá de ser interpretada, e tudo depende da qualidade do maestro e dos músicos que ele dirige. Como na arte, seja a da música ou qualquer uma das outras, a criação sobrevive ao criador. Pode-se pensar que a culinária é uma arte do efémero, que morre no consumo do prato. Contudo, também nisso se pode estabelecer uma analogia com a música. Cada interpretação de uma sonata, de uma sinfonia ou de qualquer outra obra morre no momento da sua execução. Também ela é efémera. Resta a partitura, tal como, na culinária, resta a receita. Podemos pensar que esta analogia entre culinária e música não é extensível a artes como a literatura, a pintura ou a escultura. Isso, porém, reside numa visão fisicalista das obras de arte. O romance ou os poemas inscritos no papel dos livros são também partituras que só vivem na efemeridade da leitura. Se ninguém está neste momento a ler Os Maias, o romance de Eça de Queirós existe num estado idêntico ao do gato de Schrödinger: num estado de superposição, em que está vivo e morto ao mesmo tempo. É apenas a receita culinária que espera um chef – um leitor – que a actualize e a faça viver nesse momento de leitura. O mesmo se passa com as esculturas e as pinturas. São partituras que esperam os seus intérpretes e só nestes têm vida. Toda a arte é efémera. Melhor, toda a arte é uma colecção de efemeridades: aquelas em que um leitor ou espectador as trazem de um limbo onde, repito, são verdadeiros gatos de Schrödinger.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
Julgamentos
Saí do carro e caminhei na avenida. Senti o frio sem saber se era uma graça ou uma maldição. Temos uma necessidade invencível de classificar as coisas, os acontecimentos e as pessoas. A nossa faculdade de julgar nunca está de férias e só descansa enquanto dormimos, e, mesmo neste caso, não é certo, pois os sonhos podem ser momentos em que ela opera, muitas vezes de forma distorcida. A minha sorte – ou a da minha faculdade de julgar – é que raramente me lembro de sonhar. A maior parte das vezes, a nossa faculdade de julgar é determinante: parte de um princípio universal e determina um caso particular; parte de uma ideia de justiça e avalia se um certo comportamento é justo ou injusto. Noutros casos, ela é reflexionante: parte de casos particulares e tenta encontrar ou criar um princípio que dê sentido a esses casos. Por exemplo, na ausência de um conceito a priori de beleza, a faculdade de julgar parte de uma certa obra de arte e, através da reflexão, tenta reconhecer essa beleza. Era assim que, no século XVIII, pensava o senhor Immanuel Kant. Aproveito-o para lidar com a minha ignorância acerca de o frio sentido na avenida ser uma graça ou uma maldição. Também estas noções sofrem de uma deficiência de definição a priori. Tenho de partir da experiência e entregar-me a uma cadeia de reflexões. Talvez o faça, pois já não sinto frio, nem estou na rua. O pior é que já não tenho a experiência do frio sentido, mas apenas a sua memória. Este é um verdadeiro pensamento de sexta-feira, dia em que a utilidade cede o seu lugar às coisas inúteis. Eu já entrei nestas.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Suburbano
Este doze de Dezembro fez-me lembrar o Natal. Não o Natal real, mas um Natal idealizado, arquetípico. Por certo, os natais arquetípicos são diferentes de país para país, isto naqueles em que o acontecimento faz sentido. No meu caso, o Natal arquetípico tem frio, mas não chuva. Tem sol, uma luz vibrante, mas a necessidade de roupa adequada para enfrentar o destempero do tempo. Foi o dia estar frio, aquele frio que nos leva a fugir das sombras e a procurar os espaços iluminados pelo astro regente deste sistema perdido na periferia da galáxia, que me trouxe tudo isso à memória. Em tempos, os seres humanos pensavam que viviam num condomínio luxuoso – embora cravado até ao pescoço no vício – no centro da capital. Hoje, a visão é outra. Habitamos a periferia da periferia, num galinheiro a cair de podre. Já mudei de assunto, mas foi de propósito. O outro rendia pouco. Essa descoberta de que éramos suburbanos foi o resultado do trabalho conjugado de Copérnico, Kepler e Galileu. Alguém, maldoso, disse que constituía uma ferida narcísica. E assim como ainda não recuperámos da queda adâmica, também o nosso ego não se curou do golpe dado por astrónomos mais interessados na descrição do universo do que na saúde mental da humanidade. Com o ego a sangrar, não admira que a humanidade se comporte como comporta, não espanta que nem dê por estes magníficos dias de sol, onde o meu Natal arquetípico se manifesta, talvez como paliativo da minha ferida – humana, demasiado humana – de não habitar no centro do universo, mas na periferia de uma galáxia perdida numa terra sem nome. A ferida narcísica de não passar de um suburbano.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Coisas sem sentido
É um facto que a perversidade – tal como a bondade – pode atingir limites extremos. Existem dilemas éticos que nascem da perversidade dos homens, do acaso da existência ou da imaginação. Alguns são dilemas que merecem ser pensados, como o chamado dilema de Sofia, baseado num caso presente num romance de William Styron, Sophie’s Choice, que foi adaptado, posteriormente, ao cinema. Nele, a personagem, Sofia Zawistowska, uma detida no campo de concentração de Auschwitz, é posta, por um oficial nazi, perante um dilema maligno: ou escolhe um dos seus dois filhos para ir para a câmara de gás, salvando o outro, ou irão ambos. Não sei se o caso é meramente ficcional, mas a maldade humana é muito capaz de o pôr em prática na vida real. Eis um dilema ético sério, pois implica uma escolha trágica. Há, por outro lado, dilemas éticos idiotas. Por exemplo, o seguinte: Um médico tem cinco pacientes que morrerão se não receberem transplantes de órgãos. Um sexto paciente saudável, sem família, aparece para um check-up. Se o médico retirar os órgãos desse paciente saudável, salvará os outros cinco, mas matará o sexto. A pergunta que o dilema coloca é se será moralmente aceitável matar o paciente saudável para salvar os outros cinco. Quando se acha que isto é um dilema, que esta situação coloca uma verdadeira situação trágica, então já se perdeu por completo a sensatez e o sentimento moral – já não digo o juízo moral – está completamente degradado. Quando se imagina que essa situação é problemática, então já se entrou no declive escorregadio que poerá conduzir à perversidade do oficial nazi.
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Necessidades
Os dias passam, agora, cada vez mais rapidamente, numa cavalgada sem freio. Por vezes, tento agarrar as horas, mas nunca se deixam prender. Quando parece que as tenho bem seguras nas mãos, elas escapam-se-me pelos dedos, incomodadas pelo aperto a que tento submetê-las. Nem sempre as horas foram assim. Lembro-me de um tempo muito antigo em que elas pareciam intérminas. No relógio, o ponteiro dos minutos deslocava-se com uma lentidão que me enlouquecia, enquanto o das horas parecia imobilizado na eternidade. Esse desejo imaturo de que o tempo passe mais depressa nunca devia ter sido desejado. O tempo, esse que então não passava, tratou de o realizar, dando-me horas feitas de minutos tomados pela febre da velocidade. Foi devido a isso que perdi hoje uma reunião. O tempo passou tão depressa que nem dei pela sua passagem. A reunião foi-se. Devia dizer não que perdi uma reunião, mas que a ganhei. Para quem nasceu com alma avessa a certo tipo de convivialidades, perder uma reunião é ganhá-la. As pessoas – refiro-me à generalidade e não a todas – amam reuniões, assembleias, congressos. Marcam presença e ficam convencidas de que existem. Nada pior do que pessoas que precisam de se convencer da sua existência. A minha existência, por exemplo, é coisa por provar. Se penso, se escrevo, se falo, não existo? Provavelmente. Se existisse realmente, que necessidade teria de pensar, de escrever, de falar?
segunda-feira, 9 de dezembro de 2024
Um dia difícil
Uma segunda-feira cheia de ocupações. Foi a melhor maneira de esquecer que hoje começa realmente a semana útil. A ideia, subjacente à ordem do mundo, é a de que nos enterremos de tal modo nas coisas úteis até que nos tornemos completamente fúteis. Há, entre a utilidade e a futilidade, um nexo sólido, uma cadeia de aço inoxidável, muito difícil de corroer. Aço inoxidável? Não. Cadeia de titânio, de tungsténio, de zircónio. Não sei o que me levou para esta deriva sobre metais, dos quais, para além do nome, nada sei, e mesmo o nome tem fortes possibilidades de ser sabido num dia e esquecido noutro. Contudo, titânio, tungsténio e zircónio são vocábulos que se adaptam bem a poemas concretos, os quais não posso reproduzir aqui devido às regras estritas que orientam este blogue. Texto corrido, sem parágrafos, sem intervalos além do espaçamento normal entre palavras, sem qualquer inovação. Estes textos são blocos, mesmo quando falam de coisas diversas. Formam um tijolo, embora não sirvam para fazer paredes ou muros. São inúteis, e é pela sua inutilidade que este narrador narra o que narra. Um dia difícil, o de hoje.
domingo, 8 de dezembro de 2024
Estranho e absurdo
Agora que estamos em pleno Advento e que o Natal se aproxima, a que coisa responde esse acontecimento do nascimento de um Menino no presépio de Belém? Faz-se esta pergunta porque todos os acontecimentos podem ser encarados como respostas a perguntas, embora não tenhamos clara consciência do facto. Os cinco primeiros versos do poema Paraíso Perdido, de John Milton, dão-nos uma resposta: Da rebelia adâmica, e o fruto / Da árvore- interdita, e mortal prova / Que ao mundo trouxe morte e toda a dor, / Com perda do Éden, ‘té que homem maior / Nos restaure, e o lugar feliz nos ganhe. O que está em jogo é a restauração daquilo que os homens eram antes da rebelião adâmica e da prova do fruto da árvore proibida. O Natal é o nascimento do Adão restaurador, mas a restauração só se dará pela sua morte, pois foi através de Adão que a morte veio ao mundo. O acontecimento de Belém é apenas o início do fechamento de um ciclo, o qual só estará concluído na ressurreição desse Adão que expirou no Gólgota. Da vida plena à morte e à vida degradada, e desta, de novo, à morte e à vida plena. Não admira que Tertuliano tenha afirmado Credo quia ineptum est, isto é, Creio porque é absurdo. A interpretação da frase terá arrastado longas controvérsias, como é habitual no mundo humano das ideias, mas ela sublinha que se está perante uma implausibilidade, tendo em conta a ordem conhecida da natureza. É irrelevante a interpretação que se faça do dito de Tertuliano, como é irrelevante sublinhar-se uma eventual oposição entre o absurdo e o plausível ou razoável. Toda a razoabilidade humana, toda a racionalidade, se funda numa dimensão não razoável e não racional, numa dimensão absurda. A razão é aquela faculdade que os homens receberam – ou desenvolveram – para encontrar um sentido naquilo que, por natureza, é destituído dele, mas que tem uma força propulsora da vida. Daí as inúmeras interpretações desse estranho ciclo que liga o Éden e a árvore do conhecimento, o nascimento em Belém, a morte no Gólgota e a ressurreição ao terceiro dia. Este ciclo manter-se-á vivo enquanto a sua estranheza e o que tem de absurdo para a nossa razão assim se mantiver, estranho e absurdo.
sábado, 7 de dezembro de 2024
Recordações
Estes dias finais de Outono lembram já os de Inverno, quando, de súbito, no meio das chuvas, irrompem dias de sol frios, com noites gélidas, mas iluminados por uma luz vibrante. Uma memória antiga atravessou-me a mente: aqueles velhos – cujo nome esqueci ou nunca soube – sentados no cruzeiro, cismando, sem trocar palavra, banhados na luz solar, vieram da minha infância até a estes dias em que já sou tão velho, ou quase, quanto eles o eram então. Aqueciam o corpo e a alma na cintilação dessa luz. Depois regressavam, devagar, em passo hesitante, apoiados em pobres bengalas, às suas casas, onde as mulheres, um pouco mais novas, os esperavam, não sei se com alegria ou tomadas pelo tédio. Já não estavam no Outono da vida, mas no Inverno. Naquele tempo, as estações da existência eram mais curtas e, apesar da lentidão dos dias, tudo se consumava rapidamente. Os anos eram bens escassos, mais escassos do que são hoje. O meu avô paterno, nascido em 1889, não teve direito a mais do que quarenta e três. Para ele, foi tudo rápido, demasiado rápido e, para mim – imagino que para todos os seus netos –, é uma sombra longínqua, misteriosa, mas que guardamos na memória, pois todos nós, os seres humanos, temos memórias do que não vivemos nem conhecemos. Não teve direito, na sua existência, nem ao Outono nem ao Inverno, atormentado por um coração falível que a medicina da altura não conseguiu reparar. Imagino que nunca se renderia ao Inverno da vida. Talvez por isso tenha tido de se render à precariedade do corpo. Agora, vou ver como a minha neta mais velha enfrenta o positivismo do Círculo de Viena e o falsificacionismo popperiano. Quando tiver a minha idade, que pensará ela de mim?
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Espírito mercantil
As pessoas começam a entrar em ebulição. Aproximam-se as festas – ou deverei escrever as Festas? – e os mortais, aqueles que pertencem a estes festejos e não a outros, azafamam-se nas compras. Entram nas grandes catedrais do comércio, mas também nas pequenas capelas, na ânsia de despacharem o que têm na lista ou de descobrirem qualquer coisa que se adeqúe ao destinatário. O motivo – a desculpa, dir-se-ia – é o do nascimento de um menino num estábulo, na mais vincada pobreza. Como essa comemoração de um nascimento em berço de palha se transformou numa grande época comercial é um caso que a imaginação mercantil saberá explicar, mas que a imaginação não mercantil terá dificuldade em compreender. Talvez por falta de inteligência. Li que no leste da Alemanha, naquela zona que, em tempos, fora – por arbítrio da geopolítica do pós-guerra – independente da parte ocidental, havia um número considerável de nostálgicos dessa antiga Alemanha que, entretanto, se dissolvera no nevoeiro. Ora, os bancos, essas instituições onde o espírito mercantil cintila acima de quaisquer outras, não tiveram meias-medidas e toca de fazer uns cartões de crédito ou de débito – não me lembro bem – com a efígie de Karl Marx. O que terá sido legítimo, sendo Marx alemão, embora do Ocidente, e tendo escrito uma obra designada O Capital. O espírito mercantil tem por essência transformar tudo em mercadoria, isto é, em coisas que se vendem e compram. Por aqui, ninguém sente nostalgia de Marx que leve os bancos a colocarem-no nos cartões com que se pagam os presentes de Natal, mas também não sei que nostalgia haverá daquele nascimento de um menino em berço de palha. Aquilo que anima o espírito natalício é a obsessão de esquecer que, afinal, o menino não nasceu em berço de ouro, o único tipo de nascimento que estamos dispostos a comemorar. De resto, só falhados nascem num estábulo.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Preocupações
Decidi fazer uma pequena experiência. Perguntei a um chatbot a razão por que uma língua humana é um cemitério de metáforas mortas. Não se fez rogado e deu uma resposta bastante convincente. Uma das informações que teve a gentileza de me fornecer dizia respeito à palavra relógio. Transcrevo: A palavra "relógio" vem do latim horologium (instrumento que "fala" as horas). O dicionário da Porto Editora é mais comedido e refere que horologiu- significa “que diz a hora”. Ora, entre os relógios latinos e os actuais deu-se uma metamorfose. Os antigos falavam, diziam; os actuais mostram – daí terem um mostrador. Desconheço se os latinos tinham aparelho fonador, mas se falavam, era natural que tivessem. O mundo é composto de mudança. Houve um tempo em que não apenas os animais falavam, mas também os objectos o faziam. O mais loquaz seria, pelo nome, o relógio, mas, por certo, todos os outros se exercitavam no uso da palavra. O mais estranho é que tanto animais como objectos emudeceram. Não sei se isso será a anunciação de que também nós, os mais palradores da criação, estamos a caminho da mudez, ou se eles foram vítimas de uma conspiração que os reduziu ao silêncio. Seja qual for a resposta ao enigma, ela será sempre preocupante.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Colapso do universo
Uma das experiências insólitas trazidas pela idade é a da transformação do tamanho das letras dos livros. Durante anos, décadas, a letra dos meus livros era estável. Tinha uma certa dimensão que se mantinha obstinadamente constante. Não aumentava, mas também nunca diminuía. Eu, ainda que não o dissesse a ninguém, admirava essa estabilidade. Prezava o carácter firme dos caracteres. Há uns anos, todavia, a realidade alterou-se, e esses mesmo caracteres tornaram-se estranhamente volúveis. Talvez não seja esse o termo. Adoecerem e começaram a sofrer de uma qualquer atrofia. É possível que passem fome, chego a imaginar, e por isso perdem dimensão, empequenecem. Presumi que o problema fosse dos meus olhos e passei a usar óculos de leitura, mas isso não tem qualquer efeito nas pobres letras que enxameiam os meus livros, jornais, revistas. Admito que pode haver um retardamento no decréscimo do seu tamanho, talvez uma ilusão provocada pelas lentes. Eles continuam a minguar. As pessoas hão-de julgar que é um problema meu, dos meus olhos, que este texto é a prova de que endoideci. Pura ilusão. É uma transformação na natureza das coisas, o fenómeno é de dimensão ontológica e não biológica. A realidade está a empequenecer, como se se preparasse para colapsar. A diminuição dos caracteres é a anunciação do colapso do universo.
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
Fazer cenários
O carrossel da noite instalou-se há muito. Nele viajam figurantes de um drama, pois essa é a natureza dos homens. Por vezes, o próprio nascimento é um drama. Depois, a saída de cena, mesmo quando há quem se rejubile, não deixa de ser dramática, por mais prosaica que seja. E o que vai da hora do nascimento até à hora da morte nunca deixa de ter os seus dramas. A palavra grega δρᾶμα (drama) deriva do verbo δρᾶν (agir) e significa acção. Contudo, não se deve confundir com acção enquanto πρᾶξις (praxis), que se refere à acção derivada de decisões e escolhas de natureza ética e política. Enquanto acção, drama é uma representação teatral. Ora, quando se diz que a vida, ou partes dela, e a morte são dramas, temos de entender que são representações. Dito de outra maneira, o dramático é dramático porque resulta de uma encenação. A expressão, ao gosto popular, estás a fazer cenários, colhe, na sua crueza jocosa, o sentido da dramaticidade da vida e da morte. Não se pense, porém, que isto é uma crítica aos dramas da vida e da morte. São eles que nos tornam humanos. São jogos rituais que conferem um sentido ao que, na verdade, são meros acontecimentos perdidos num universo sem medida humana. A nossa vida e a nossa morte só têm sentido num universo representacional, num mundo encenado. O carrossel da noite continua a girar. Nele entram e saem figurantes. Na verdade, na grande representação da vida e da morte, não há grandes estrelas; só figurantes.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2024
Estrelas
Os dias continuam a minguar. Saí de casa para ir à farmácia; o exército da noite já tinha tomado de assalto a avenida, agora sujeita à rutilância dos adereços de Natal. Ora, mudando de conversa, se a história do nascimento do Menino fosse nos nossos dias, os Reis Magos não viriam do Oriente, pois, com a poluição luminosa, não conseguiriam descortinar nos céus a estrela que os haveria de guiar. É preciso que a noite não seja incomodada com simulacros do dia, para que certas estrelas – aquelas que guiam os que procuram um destino – possam ser vistas e permitam aos videntes fazerem-se ao ao caminho, sem temor de se perderem por falta do astro benevolente que os norteie, mesmo que seja o Sul que os espera. É certo que existem GPS, o Google Maps e o Waze, mas esses só nos levam, quando levam, a destinos onde não nascem Messias. Se, por acaso, um desses dispositivos ou uma dessas aplicações nos levar a um sítio onde está a nascer um salvador, o melhor será fugir enquanto houver tempo, pois salvadores humanos são coisas – repito, são coisas – que conduzem os pobres homens à perdição. Imagino que estou a dramatizar, mas, com a diminuição constante dos dias, não tarda estaremos mergulhados nas trevas eternas.
domingo, 1 de dezembro de 2024
Esquecimento
No Público de ontem, José Pacheco Pereira escreve sobre a perda das duas culturas. O que está em causa não é o objecto de Meditação de C. P. Snow num célebre ensaio, de 1959, denominado As duas culturas. Nele, o autor argumentava que a cisão da cultura ocidental entre as ciências e as humanidades – as tais duas culturas – impedia uma compreensão mais profunda da realidade e dos desafios que enfrentamos. O texto de Pacheco Pereira refere-se já não a uma espécie de conflito entre as ciências e as humanidades, mas à perda pura e simples das referências das duas culturas que estão na base daquilo que nós, ocidentais, somos. A cultura greco-latina e a cultura judaico-cristã. Se há 65 anos, o drama estava na separação de dois reinos, hoje ele reside no apagamento da memória constituinte daquilo que somos. Tanto as ciências como as humanidades têm as suas raízes nessas duas culturas, que uma amnésia geral está a apagar. Elas são muito diferentes, mas têm um ponto que as une. São bastante exigentes e propõem, cada uma à sua maneira, um caminho de superação dos limites da nossa humanidade. O esforço é o seu núcleo comum. Foi essa lição que nos trouxe até aqui, mas que estamos a rasurar a toda a velocidade. Platão e Aristóteles não são fáceis. Homero ou Virgílio também não. O caminho do Cristo, com as suas exigências éticas e espirituais, não é um passeio na marginal. Contudo, foram essas dificuldades que permitiram criar um ideal de superação, que nos levou a ir mais longe e mais alto. Se se consumar a perda das duas culturas, resta-nos, primeiro, a cave e, depois, o abismo.
sábado, 30 de novembro de 2024
Uma ingenuidade
Talvez estejamos a passar por uma época em que a nossa relação com a verdade se está a alterar radicalmente. No século XVII, Thomas Hobbes ainda tinha uma visão ingénua dessa relação: A ignorância sobre o significado das palavras, que é falta de entendimento, dispõe os homens a confiar não só na verdade que não conhecem, mas também nos erros, e, pior, nos absurdos daqueles em que confiam. A ingenuidade reside em fundar a confiança nos erros e nos absurdos na falta de entendimento. O que se passa é que, mesmo com entendimento das coisas, muitas pessoas preferem o errado ao certo e o absurdo à verdade. A verdade e o certo trazem aos homens desconforto, pois tornam-lhes patente as fantasias em que navegam e os erros que cultivam. A verdade do conhecimento e a correção moral humilham a vaidade humana, e não há nada que mais enfureça os homens do que a sua vanglória ser posta à luz do dia. Qualquer candidato a tirano sabe que só será eficaz no seu caminho se alimentar a fantasia e os erros dos homens. Thomas Hobbes ainda vivia na longa sombra de Platão, na crença de que as pessoas fazem o mal porque desconhecem o bem. Ora, as pessoas fazem o mal porque, na maior parte dos casos, querem fazer o mal, mesmo que conheçam o bem.
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
O alvedrio das coisas
O mundo das coisas é o mais equívoco dos mundos. Estamos convencidos de que elas são destituídas de vontade. Presunção nossa. Já nem falo do arbítrio dos carros, que decidem avariar-se no momento mais impróprio, ou dos pneus, que se deixam perfurar quando mais precisamos deles. Os livros são coisas e, como coisas que são, não se furtam à equivocidade existencial, nem a ostentar um alvedrio que nós, pobres seres humanos, somos incapazes de explicar. Por exemplo, uns tendem a desaparecer. Escondem-se e, por mais que os procuremos, furtam-se à nossa determinação policial. Outros, porém, surgem duplicados. Umas vezes, um ao lado do outro; outras, um num lugar e outro noutro. Uma coisa que acontece com frequência é procurar-se um livro e encontrar-se dois iguais que não se procuravam. No caso de dois iguais, há uma modalidade interessante, que começa a ser recorrente: um deles disfarça-se e apresenta-se com uma capa diferente, mas, por dentro, é igual. O que, a acreditar em Leibniz e na sua teoria da indiscernibilidade dos idênticos, quase nos permite dizer que são o mesmo livro. Lá fora, uma criança canta, baloiçando-se no parque infantil. Em casa, uma música fora dos meus hábitos acompanha a adolescência da minha neta mais nova. O livro que procuro continua a insistir em esconder-se. O que vale é que amanhã é sábado.
quinta-feira, 28 de novembro de 2024
Dias nefastos
Os dias estão cada vez mais pequenos, mas a azáfama prolonga-se para lá das horas de luz natural. Depois, num email, a notícia da morte de alguém que se conhece há muito. De seguida, o telefonema de um amigo. Eh pá, estou com cancro de próstata, a biópsia deu positivo. O leque dos possíveis, a contabilidade das hipóteses. Depende, de haver ou não metástases. E o que se pode dizer numa situação destas? Envelhecer também é isto. Ver o que acontece com os outros e ficar à espera que chegue a hora de termos más notícias, sem nada de relevante – isto é, de salvífico – para dizer aos outros e a nós mesmos, se e quando for o caso de as notícias indesejadas serem a nosso respeito. Para completar, uns malditos papéis a preencher para as finanças, mas faltam papéis do banco, que já deveriam ter chegado e não chegaram. E em nada disto há metafísica, por mais que a morte, a doença e a burocracia nacional – uma doença mortífera que nos corrói – gerem meditações metafísicas. A melhor coisa do dia foi o brownie de chocolate preto que comi no café aqui ao lado, esse, sim, pleno de metafísica, pois não há outra metafísica senão a de comer chocolates.
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
Inclinações poéticas
Uma das obras do filósofo alemão Peter Sloterdijk tem, na tradução portuguesa, um belo título: Palácio de Cristal. Contudo, quando se procura o título alemão, para nosso desgosto, não encontramos nem palácio nem cristal, apenas um prosaico Im Weltinnenraum des Kapitals. Mesmo para alguém que não sabe alemão, como é o caso deste narrador destituído de narrativa, percebe-se que por ali está a ideia de capital (Kapitals), de mundo (Welt), de espaço (Raum) e de interior (innen). Imagino que seja difícil traduzir Weltinnenraum. O que se passa, porém, é que Portugal é um país de poetas, e os nossos tradutores são poetas em exercício. Esse interior do espaço mundial – ou será do espaço-mundo? – do capital, uma realidade, por certo, bem prosaica, é trocado por uma metáfora: o Palácio de Cristal, autorizada, claro, pelo conteúdo da obra, o título do capítulo 33. Quem olha para a designação alemã fica com uma ideia do que trata a obra. Quem olha para a tradução portuguesa, mesmo com a ajuda do subtítulo Para Uma Teoria Filosófica da Globalização, não sabe bem o que tem pela frente. Talvez isto explique a razão por que os alemães têm uma economia forte e os portugueses têm a que têm. Contudo, há razões para contrariar o meu comentário. A obra de Sloterdijk, esta mesma, está recheada de metáforas, uma ânsia poética em espírito filosófico. Ora, a filosofia, tal como a conhecemos, começou, de facto, com a dupla Sócrates-Platão, e este, para se tornar discípulo do primeiro, teve de rasgar o seu trabalho poético, as tragédias que teria escrito. No Fédon, Platão põe na boca de Sócrates, horas antes de este tomar o veneno, a ideia de que os poetas fazem ficções e os filósofos argumentos. A partir daí o campo ficou dividido, e, mesmo dentro de um palácio de cristal, não será boa ideia ficcionar quando se trata de argumentar. Esta é a minha opinião de hoje. Amanhã posso ter uma contrária. Cada dia com o seu mal.
terça-feira, 26 de novembro de 2024
Metamorfoses
Leio os versos: A nado, na entrada, por um quinto degrau, / acede-se ao algibe. Análoga série de subida / guiando-nos a um cubículo iluminado por cera, / miradouro de sedação, cerimonial gongo de zinco. Pertencem a um poema de Joaquim Manuel Magalhães. O poeta, já bem entrado na idade, quase que renegou toda a sua obra poética. Condensou-a, drasticamente, em Um Toldo Vermelho, publicado em 2010. Em 2018, publicou Para Comigo. O poema citado pertence a Canoagem, de 2021. Tudo editado pela Relógio d’Água, uma das editoras portuguesas com melhor catálogo, embora isto de melhor e de pior dependa do gosto do leitor. Eu sei que esta posição é relativista – melhor, subjectivista – mas, mesmo que exista um critério universal e indiscutível para medir as escolhas estéticas das editoras, ninguém o conhece. Esse desconhecimento, submete este tipo de avaliações ao que agrada ou desagrada a cada um. E se eu oferecer um critério sólido, logo aparecerá alguém a oferecer outro critério tão sólido quanto o meu. Perdi-me. Citei o poema e entrei por critérios de avaliação estética, digamos assim. O que me trouxe à citação do poema foi uma palavra, algibe. Uma palavra de origem árabe – a mesma origem de aljube – e que significa cisterna. Ora, desconhecia a palavra. Ela obrigou-me a ir ao dicionário e o excerto ganhou outro sentido. O efeito poético reside não numa metáfora cintilante, mas na raridade do uso de uma palavra. O estranhamento pode existir na própria literalidade, basta o recurso a um termo em desuso. A escolha de algibe, por outro lado, acaba por estabelecer uma ligação semântica com aljube. O árabe al-jubb não significa prisão, mas cisterna. O que aprendemos, então, é que toda a cisterna se pode transformar num cárcere. O mundo está cheio de metamorfoses.
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
O que me preocupa
Esta facilidade comunicacional não traz nada de bom. Que o diga a minha neta mais nova: a mais de cem quilómetros de distância, está sob fogo intenso. Consta que vai ter um teste de qualquer coisa — não sei se de Geografia ou de Física — e a avó não lhe dá um minuto de descanso. Ela que acorde, que leia a questão, que oiça. Imagino as caras que fará. Tenho de procurar um restaurante que tenha alguma coisa que lhe agrade para a levar no fim-de-semana, pois vem para cá continuar a saga do estudo. Na semana que vem, terá quatro testes. De facto, a escola é uma fonte de infelicidade inominável. Penso, não poucas vezes, que nunca recuperei do choque de, num dia oito de Outubro, uma segunda-feira, ter nela entrado. Tenho, claro, uma alma inclinada para a irresponsabilidade e levei quase toda a minha vida a disfarçar-me de pessoa absolutamente consciente dos deveres. Se enganei os outros — o que me parece plausível —, nunca me enganei a mim. Nunca acreditei na minha responsabilidade. Fazia o que tinha de fazer, mas sem qualquer fé no sentido daquilo que fazia. Ora, a entrada na escola é o momento em que uma alma livre se submete para sempre aos imperativos soturnos do princípio de responsabilidade. Entra-se nesse campo minado e nunca mais se sai de lá, mesmo quando a escola ficou já bem para trás. A minha neta resiste, mas acabará por se submeter. O que me preocupa, porém, é descobrir um restaurante por aqui que ela ainda não conheça.
domingo, 24 de novembro de 2024
Melancolias
Uma coisa é a melancolia de domingo; outra, bem diferente, é um domingo melancólico. A melancolia de domingo é um sentimento subjectivo que invade os mortais quando o fim-de-semana se aproxima do fim, e a realidade, com os seus imperativos, se anuncia nos dias úteis que estão a bater à porta. Um domingo melancólico é, por seu lado, uma propriedade objectiva de certos domingos, e é independente dos sentimentos que possam ou não invadir os seres humanos. Este domingo tem sido objectivamente melancólico. Só o descobri quando saí de casa e me pus a caminho de uma certa aldeia deste concelho, onde os agricultores vendem as suas laranjas. As últimas que lá comprara eram óptimas. Combinavam a doçura característica da laranja da baía – será que ainda se chamam assim? – com um toque de acidez dado por serem temporãs. Ora ao ir e ao vir, reparei que a paisagem era ostensivamente melancólica. O cinzento do céu, o ar outonal das árvores, a quietação dos campos, tudo isto era a manifestação de um domingo tomado por uma melancolia que provinha da sua própria natureza. Essa melancolia dominical reflectia-se em mim num moderado contentamento, numa vontade de caminhar e de respirar o ar dos campos. Como disse, o contentamento era moderado, pois o caminho foi feito de carro; a venda das laranjas ainda dista alguns quilómetros de casa. Com a vinda da noite, a melancolia do domingo desapareceu, restando apenas umas horas para que chegue uma nova segunda-feira.
sábado, 23 de novembro de 2024
Alienação
Li as primeiras páginas de Caruncho, o primeiro romance da espanhola Layla Martínez. É uma escrita poderosa e sem contemplações, onde o recurso à imaginação se combina com a crueza narrativa. Há nela um pacto entre a força da juventude e a maturidade nascida de uma vida tensa. Pouco sei da autora. Nasceu em 1987 e o romance foi publicado em 2021. Teria 34 anos, na altura. Não sei se aquilo que li é uma transformação literária de uma biografia ou o resultado de uma imaginação poderosa. Não quero saber. Gosto de conjecturar uma completa dissociação entre a vida do escritor e a obra que produz. O ideal seria que alguém criasse obras completamente desvinculadas da sua experiência de vida e da sua personalidade. O autor morreria ao escrever. Platão, através do inevitável Sócrates, dizia que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. O mesmo se pode pensar para a arte: vê-la como modalidade de morte do artista na produção da obra. Morrer, neste caso, significa apagar os traços biográficos do autor, torná-lo ausente da sua obra, deixar que esta, sendo sua produção, seja autónoma em relação ao produtor. A arte não é, assim, a expressão de uma subjectividade, mas um acto de estranhamento, a produção de uma alteridade radical, uma modalidade de alienação. Isto, porém, implicaria um domínio tal dos mecanismos da língua, no caso da literatura, e dos artifícios da poética – que apenas estariam ao alcance de um deus ou de um anjo. E, como sabemos, nem deuses nem anjos se interessam pelas práticas artísticas que inflamam o coração dos homens. De alguns, claro.
sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Esperemos
As sextas-feiras sucedem-se a uma velocidade vertiginosa. Mal acaba uma, já estamos a entrar noutra, como se o resto da semana não fosse mais do que um interlúdio entre elas. Esta modalidade de abolir o tempo entre dois pontos é uma luta contra Cronos, o devorador dos filhos. Dito de outra forma, é parte da revolta contra os titãs, um episódio da titanomaquia. Os mitos gregos assinalam a derrota de Cronos, mas há um equívoco, pois continuamos a guerra contra ele e, até hoje, ainda não saímos vitoriosos. Para tudo haverá um Kairos, um tempo oportuno. Também para liquidar Cronos e matar, de vez, o tempo, haverá um Kairos: uma hora decisiva em que o nosso inimigo não resistirá. Só que essa hora é desconhecida e não vale a pena planeá-la ou pensar nela, pois não se deixará apanhar nas redes dos nossos planos nem nos ardis do nosso pensamento. Apresentar-se-á furtiva como uma sombra e rápida como um raio. Se houver alguém que a perceba, será o novo Teseu ou, para ser mais preciso, o verdadeiro Teseu, pois o Minotauro não é outro senão Cronos, esse tempo que nos devora. Esperemos que encontre a sua Ariadne.
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Metanatureza
Os dias continuam a empequenecer, o que implica o engrandecer das noites. Sim, podia ter dito diminuir e crescer, mas perderia o efeito de compreender que os dias estão cada vez mais pequenos e as noites cada vez maiores. Algo ou alguém pode diminuir e, mesmo assim, ficar grande. Também é claro que certas pessoas, por muito que cresçam, não deixarão de ser pequenas. Não me estou a referir à altura. Pergunto-me pela razão que levou a natureza a dispor assim os dias e as noites. Não procuro uma explicação física, mas uma elucidação metafísica. Talvez a natureza temesse que uma distribuição igualitária das horas pelo dia e pela noite, durante todo o ano, acabasse por encher de tédio os seres humanos. Preocupada com isso, decidiu que a distribuição das horas do dia pela luz e pelas trevas seria feita de forma progressiva, que é, ao mesmo tempo, uma forma regressiva. Repare-se: o tormento metafísico da natureza não foi a igualdade – pois a distribuição acabará por ser igualitária – mas o tédio que uma igualdade distributiva contínua e à outrance provocaria. Podem dizer que a natureza é despida de metafísica, que não há mais metafísica do que comer chocolates. A favor poderão, inclusive, chamar a atenção para a palavra física que é a tradução de um termo grego – Φύσις – que significa natureza. Ora, se uma natureza não contiver em si mesmo aquilo que vai para além dela, uma metanatureza, então é uma natureza deficiente, amputada daquilo que a leva a ir para além de si mesma. Dessa metanatureza faz parte ter intenções, preocupar-se com o tédio das espécies que gerou na humidade do seu ventre. Toda a mãe é mais que uma mãe. Por que motivo a natureza seria uma mãe que não era mais que uma mãe? Chega por hoje. Já iluminei, com revérbero cintilante, de modo mais que suficiente a humanidade. Não posso esgotar num simples texto os recursos que a natureza, na sua generosidade, me distribuiu.
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
Inclinação para cair
A Antígona Editores Refractários está a publicar uma pequena colecção de cinco livros, Sementes de Dissidência, um projecto apoiado pelo programa Europa Criativa, da União Europeia. Desses cinco, já li dois – Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen, e A Parede, de Marlen Haushofer – e comprei, hoje, um terceiro, A Pequena Comunista que Nunca Sorria, de Lola Lafon. Ora, a pequena comunista é uma figura real. Trata-se da ginasta romena Nadia Comaneci, que, como se sabe, acabou por sair da Roménia. Lembro-me de, há quase 50 anos, ela, nos seus ingénuos 14 anos, surgir como uma heroína. O romance de Lola Lafon, imagino, tratará do exuberante triunfo da adolescente romena, do modo sufocante como terá sido produzido e da queda posterior, pois tudo o que sobe terá de cair. A queda é um dos temas centrais, senão o tema central, da arte do romance. O interesse pela queda é muito anterior ao romance moderno. Basta lembrar a história de Ícaro. Contudo, a queda que sobre nós ocidentais exerce um maior fascínio é a de Adão e Eva. Podem estabelecer-se, sem dificuldade, pontos de contacto entre as duas quedas. Contudo, aquela que nasce na tradição judaica tem a particularidade de ser uma queda dupla, a de um homem e a de uma mulher, o que significa que não se trata de um episódio de alguém que ultrapassa a sua medida, mas de uma marca da própria humanidade. Não somos apenas seres decaídos, como uma leitura religiosa sublinhará, mas seres cuja natureza é cair. Nadia Comaneci era exímia na sua luta contra a gravidade, mas nela, como em todos nós, havia uma inclinação para a queda. E é esta inclinação que habita a imaginação romanesca. Sem esta inclinação, a literatura romanesca não teria sentido.
terça-feira, 19 de novembro de 2024
Individualidade
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Disciplina da escuta
Uma das doenças que corrói as nossas sociedades ocidentais está ligada à morte daquilo a que poderíamos dar o nome de disciplina da escuta. Aprender a escutar, permanecer em silêncio perante a voz do outro, conter o impulso para tomar a palavra, todos esses dispositivos de formação de humanidade tornaram-se obsoletos, perderam prestígio e encontram-se a caminho de um museu, onde se exibem coisas destituídas de sentido. Ora, a disciplina da escuta não visa apenas aprender a escutar a voz do outro, embora isso seja fundamental, mas encontrar, no saber fazer silêncio em si mesmo, a possibilidade de escutar a sua própria voz. A proliferação opinativa a que as redes sociais deram origem inscreve-se já como um efeito da perda da disciplina da escuta. Quando se aprende a escutar o outro, é-se menos propenso a tratá-lo mal e mais inclinado a moderar a própria opinião, pois o acto da escuta tem o poder de revelar a fragilidade das nossas opiniões. Quando nunca se aprendeu a escutar, então toda a ignorância que nos habita se toma por certeza, uma certeza tão absoluta que deve ser imposta aos outros nem que para isso tenhamos de os esmagar. Terá sido em casa, no ambiente familiar, que a disciplina da escuta terá começado a morrer. Daí, a doença ter-se-á propagado para os sistemas educativos, a partir dos quais a sociedade como um todo foi contaminada. Contudo, nenhuma palavra terá sentido e profundidade se não estiver ancorada numa longa disciplina da escuta. As palavras que se ouvem, não são palavras. São gritos articulados em forma de linguagem. Só isso.
domingo, 17 de novembro de 2024
Caricatura
O fim-de-semana está gasto. Restam uns farrapos que se irão desfazendo até à meia-noite. Nesse instante, entrar-se-á na semana útil, mas, como a realidade é ardilosa, as vítimas só darão por isso lá pela manhã. Tarde demais para travar o tempo e prolongar a inutilidade por mais uns dias. Oiço o choro de uma criança. Aliás, uma especialista em submeter os pobres pais através da técnica da birra prolongada. Eles, os pais, avançam de derrota em derrota. A criança sabe bem quem manda e parece nunca se fazer rogada. Isto, porém, são palavras de quem pertence a outro país. Refiro-me à famosa frase de Leslie Poles Hartley: «O passado é um país estrangeiro; lá, eles fazem as coisas de modo diferente». É a esse estranho país – o passado – que pertenço, e lá, posso confirmar, as coisas faziam-se de modo bem diferente. Quando chegam ao presente, aqueles que pertencem ao passado ficam perdidos. Não conhecem a língua, nem os hábitos e têm dificuldade em perceber as acções. Os autóctones, porém, não querem saber daquilo que pensam os estrangeiros. E muita sorte têm estes em não serem deportados em massa para o seu país de origem. Talvez as coisas tenham começado quando um grupo de rock se pôs a cantar: «Hey! Teacher! Leave them kids alone!» Então, as crianças, para treinar o enfrentamento escolar, exigiram que os pais as deixassem em paz. E estes, formados na música do tal grupo de rock, estão a deixar. Dir-se-á que isto é uma generalização precipitada, uma maldita falácia que persegue os raciocínios indutivos. É um ponto de vista. Um outro, que prefiro no dia de hoje, diz-nos que é uma avaliação hiperbólica que se torna uma caricatura. Ora, a virtude da caricatura, ancorada no recurso à hipérbole, é dar a ver aquilo que não salta à vista.
sábado, 16 de novembro de 2024
Consolação
Amareleceram as folhas das acácias do parque. Diria que amareleceram bem, como quando se diz que alguém envelheceu bem. Ainda se nota a metamorfose, pois o manto amarelo deixa ver folhas verdes. Não é um amarelo como o do limão; é mais escuro, como se, no fundo de si, ainda restasse uma gota de sangue. Olho-as e deixo-me levar pela cadência com que o vento as move para um lado e para o outro. Muitas pessoas sofrem de tédio, mesmo que tenham de usar palavras como spleen para enquadrar o fastio que as devora. Ora, se deixassem os seus olhos poisar sobre as árvores e observassem, com atenção, o movimento das folhas, recobrariam do enfado e da náusea com que cobriram a existência que lhes foi oferecida. Não poucas pessoas pensam que uma vida digna de ser vivida deve decorrer num vórtice, num culto da energia e numa liturgia do dinamismo. Isso, porém, é apenas o resultado de uma impotência estrutural: a incapacidade de se deter e contemplar aquilo que se oferece ao olhar. Ao demorar o olhar sobre as acácias, estou a receber uma dádiva. Essa demora é um exercício de reciprocidade: uma dádiva que responde à primeira. O culto do entusiasmo e da velocidade é a confissão de uma incapacidade para receber e para dar, pois, assim como tenho um secreto prazer em olhar o amarelo das folhas das acácias, também elas têm um consolo não menos secreto em serem olhadas. Sim, também as árvores precisam de consolação.
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
Devorações
A primeira metade de Novembro está cumprida. Também o conjunto musical da escola aqui ao lado realizou o seu ensaio. São músicas arcaicas. Imagino que o grupo seja composto por professores reformados, mas é apenas uma suposição. Ou será uma banda animada por um professor de História que esteja a pesquisar a música dos anos sessenta e setenta do século passado? É possível. Também nestes ensaios há um antes e um depois da pandemia. Até à emergência da COVID-19, os ensaios eram às quartas-feiras. Agora, são às sextas. Talvez tenha sido por eles ensaiarem às quartas que se desencadeou aquela doença tenebrosa que caiu sobre o mundo. Estas coisas nunca se sabem, e a generalidade do que acontece tem causas insuspeitas. Se tiver sido esse o caso, ou mesmo que não tenha sido, foi sensata a mudança do dia de ensaio. Não vá o diabo tecê-las e mande nova pandemia. Isso mostra que o grupo musical tem capacidade de ler os sinais e aprender com o que acontece, mesmo se os progressos musicais não sejam, ao longo dos anos, coisa de assinalar. Isto é outra suposição, pois não sou crítico musical. Quando comecei a escrever este texto, a noite estava perfilada, ao longe: hirta, pronta para marchar. Agora, já oiço as suas botas cardadas. Ela aproxima-se com um passo cadenciado e firme. Não tarda e devorará o crepúsculo, que é coisa que as noites gostam muito de fazer pela tardinha. Para se vingar, o crepúsculo devorá-la-á, para que chegue a aurora. É triste, mas a vida não passa de uma cadeia de devorações, como se sofresse de um transtorno crónico de compulsão alimentar. Na avenida, os carros seguem a luz dos seus faróis, e as pessoas passam rápidas para desaparecer do meu horizonte — um horizonte limitado.
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Falar do tempo
O Outono vestiu as roupas do Inverno e, agora, distribui frio e chuva pelas ruas. Oiço uma voz feminina a queixar-se: ainda ontem saí à rua de manga curta e hoje já tive de me vestir como nos dias frios. As pessoas falam do tempo para terem assunto — um tema nobre que não implica dizer mal do próximo. Também eu falo do tema por falta de assunto, embora não faltem assuntos nobres, mesmo nobilíssimos, para discorrer. Será que o centauro existe ou é apenas um nome? Outro, não menos nobre: os buracos — por exemplo, os buracos de um queijo — existem? Uma outra possibilidade seria escrever sobre se existe uma coisa como a vermelhidão ou, ainda mais interessante, sobre se existe uma realidade denotada pela palavra humanidade. De todos estes assuntos, o que me interessa mais é o centauro, a que poderíamos associar a sereia e todos os seres desse género. Chamei-lhes seres, e isso pressupõe já um compromisso ontológico, isto é, a afirmação de que têm alguma forma de existência e não são puros nomes. Há quem pense, por exemplo, que esses seres têm uma existência potencial. Não existem actualmente, mas podem vir a existir; podem passar da potência ao acto, para usar o jargão de Aristóteles. Não partilho deste ponto de vista, pois estará fundado numa analogia sem fundamento. Imaginemos o projecto, desenhado por um arquitecto, de uma ponte sobre o rio desta terra onde me acolho. O projecto será a ponte em potência; a construída, a ponte em acto. Ora, não me parece plausível tomar o centauro ou a sereia como projectos, seres potenciais que dariam lugar a seres actuais — aquilo a que se chama reais. E, no entanto, discordo daqueles que negam a existência de centauros e sereias. Existem na imaginação de seres como os homens. Não têm uma existência material, mas mental. Melhor: imaginal. E todos nós sabemos reconhecer uma sereia ou um centauro, apesar de nunca os nossos sentidos terem tido qualquer contacto com eles. É por estas e por outras que mais vale falar do tempo.
quarta-feira, 13 de novembro de 2024
Macaquices
Nunca fui a Marraquexe – para dizer a verdade, a vontade é nula – mas os portugueses parecem ter uma grande propensão para lá ir. Presumi isto ao consultar, por motivos que não vêm ao caso, a lista de chegadas ao aeroporto de Lisboa. Em menos de três minutos, tinham aterrado ali dois voos, de diferentes companhias, vindos daquela cidade marroquina. Imagino que sejam turistas portugueses de retorno ao lar, pois não me parece que o volume de negócios entre Portugal e aquela cidade, ou mesmo Casablanca, justifique tal número de voos, mesmo que sejam apenas dois por dia. A mente, refiro-me à minha, parece um macaco. De Marraquexe foi para Casablanca, da capital de Marrocos para o filme de Michael Curtiz, deste para Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Desta saltei para Ingmar, também Bergman, e deste para dois filmes: Morangos Silvestres e A Flauta Mágica, uma espantosa encenação cinematográfica da ópera de Mozart. Isto levou-me à ária da Rainha da Noite e desta ao facto de já ser noite e estar frio. Tudo isto para demonstrar que sou habitado, no lugar onde devia estar a razão, por um macaco, um babuíno, por certo. Enfim, não será de admirar que escreva macaquices.
terça-feira, 12 de novembro de 2024
Verdade e autoridade
No evangelho de Nicodemos, um dos evangelhos apócrifos, Jesus, em resposta à pergunta de Pilatos – Na terra, verdade não há? – diz: Vês como os que dizem a verdade são julgados por aqueles que têm autoridade na terra. Não seria diferente a resposta dada por Sócrates à mesma pergunta. Jesus não nega a existência da verdade neste mundo. Torna manifesto um conflito insanável entre a verdade e a autoridade. Ter autoridade na terra significa poder prescindir da verdade. O poder não é apenas algo que se exerce sobre os que o não têm, mas um modo de conformação ontológica. Torna realidade aquilo que é desprovido dela. Nem Jesus nem Sócrates cometeram algum crime, mas o poder – a autoridade – transformou inocentes em criminosos e agiu em conformidade. Quando as pessoas se espantam que gente com grandes problemas com a verdade seja adulada pela multidão e levada ao poder, esquece estes episódios que são marcantes na história da humanidade ocidental. O conflito com a verdade é uma virtude para aquele que aspira a ter autoridade sobre os outros, que aspira a poder moldar a sua natureza, tornando-os inocentes ou criminosos em conformidade com o seu desejo. Apesar de Jesus ter sido executado há mais de dois mil anos e Sócrates há mais de dois mil e quatrocentos, apesar de serem figuras centrais na cultura ocidental, continuamos iguais aos gregos que votaram a condenação de Sócrates e à turba que pediu a morte de Jesus. A verdade não interessa à autoridade porque não interessa aos que a ela se submetem.
segunda-feira, 11 de novembro de 2024
Hábitos matinais
domingo, 10 de novembro de 2024
Santa Preguiça
sábado, 9 de novembro de 2024
Espoleta e despoleta
Como não tenho nada para escrever, aproveito o ensejo de um artigo do Público, no qual se usa o verbo espoletar, para fazer uma comunicação urbi et orbi. Reconheço que é um avanço relativamente à deplorável moda de usar despoletar, pois espoletar acorda-se com a função da espoleta numa granada. Contudo, ainda não consegui perceber qual a necessidade de recorrer a estas metáforas militares para dizer desencadear, originar ou provocar. Um dia alguém achou interessante usar despoletar e a atracção foi de tal maneira intensa que provocou uma pandemia de despoletamentos por tudo o que era texto e comunicação oral. Lentamente, lá se foi percebendo que despoletar significa exactamente o contrário, evitar que se desencadeie deflagração da granada. Se não se deve usar despoletar, então que se use espoletar. E começaram a deflagrar espoletamentos sem fim. Deixem as espoletas e as granadas em paz. Já basta quando, no teatro de guerra, têm de ser utilizadas. Usem originar, desencadear, provocar, gerar. Ainda por cima, a palavra está longe de ser esteticamente agradável. Despoletem a mania de espoletar e despoletar por dá cá aquela palha. Isto ainda não é uma guerra.
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Pensamentos
Saí para caminhar às cinco e meia da tarde. A noite caía sobre a cidade, envolvendo-a na tenaz da escuridão, cobrindo-a com um véu de negrura, um tule sarapintado pela melancolia da iluminação pública. Nas ruas, as pessoas iam e vinham. Nos parques infantis, havia pais e avós olhando com desvelo as crianças, arrancando com os olhos a noite que sobre elas caía. Não me lembro do que pensei durante o trajecto, mas terei pensado muitas coisas, pois a consciência é um babuíno aos saltos, nunca parando quieta, disparando pensamentos uns atrás dos outros. Para ser exacto, deveria dizer: eu não pensei nada, pois os pensamentos que tive foram acontecendo em mim e não coisas que eu decidi pensar. A maior parte dos nossos pensamentos não são nossos, são deles, que, numa atitude tirânica, se impõem, como déspotas orientais, a nós. Acontece, e não é raro, as pessoas serem vítimas dos pensamentos que nelas se pensam. Ficam obsidiadas pelos invasores, cercadas pela torrente de ideias que as assaltam. A certa altura, fazem coisas que nunca fariam senão fosse a impertinência daquele inimigo que tomou conta delas. Quantos crimes se evitariam caso as pessoas soubessem pôr os pensamentos que nelas se pensam ao longe? Serão elas culpadas dos seus crimes? São culpadas de não resistirem ao cerco dos pensamentos e, por isso, são cúmplices desses pensamentos. Contudo, enquanto caminhei não pensei em nada disto, mas não consigo já recordar o que pensei. E esta é uma grande virtude que possuo. Esquecer-me de coisas que não merecem recordação. Talvez seja a única, e mesmo isso é duvidoso.
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
Gramática e categorias aristotélicas
Diante de mim tenho, neste momento, uma gramática de português com mais de mil e cem páginas. É uma gramática árdua, cheia de designações que me são estranhas. Perante ela e a sua opacidade – opacidade para a minha ignorância gramatical – senti uma inquietante saudade das antigas gramáticas normativas. Eram gramáticas aristotélicas, embora não saiba se os gramáticos as consideravam assim. Por que razão as associo a Aristóteles? Imagino que seja por causa das categorias. O discípulo de Platão construiu uma tabela de dez categorias: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado, acção e paixão. Imaginei, e continuo a imaginar, que sem dificuldade a gramática, aquela que me foi ensinada, se deixaria combinar com estas categorias. Talvez o principal problema esteja na preeminência dada à substância em relação às outras categorias, que não passam de acidentes da substância. A substância é aquilo que é e os acidentes são coisas que podem ou não ocorrer nela. A substância é o que é designado pelos substantivos – nesta volumosa gramática apelidados de nomes – e os acidentes relacionar-se-iam com as restantes classes de palavras, com algumas excepções, pois também aqui não haveria regra sem excepção. Isto, porém, é a visão de um ignorante gramatical, deixando-se arrastar por um saudosismo insensato e imaginando ver coisas que não existem. A sabedoria de Aristóteles manifesta-se na categoria da paixão. Enquanto a categoria da acção nos diz aquilo que uma substância faz, a da paixão indica aquilo que ela sofre. A paixão, qualquer paixão, indica-nos uma passividade – na verdade, uma impotência – da substância. As paixões sofrem-se, não se é delas autor. Contudo, como qualquer outra categoria, a paixão é um acidente e não faz parte da essência da substância. Quanto mais apaixonada é uma substância, tanto mais passiva ela é, pois, mesmo a sua acção, passa a depender daquilo que ela sofre.
quarta-feira, 6 de novembro de 2024
Fantasias
Um dia magnífico por aqui. Um começo promissor, que a manhã e a tarde cumpriram. Pena que tivesse passado parte substancial desse tempo em reuniões online cuja finalidade, como é hábito, ainda não consegui descortinar. Tenho uma natureza pouco dada a reunir. Gosto da comunidade, desde que não tenha de a frequentar. A comunidade como horizonte ou pano de fundo é o meu ideal. Contudo, entre a realidade onde me movo e a idealidade com que me consolo, há uma grande distância, tão grande que, caso fosse dado a isso, cairia num grande desconsolo. Não caio, talvez porque não acredite naquilo em que acredito. Isto tem a aparência de ser contraditório, mas é só a aparência. Explico-me. Todos nós para vivermos neste mundo precisamos de ter crenças. Sem elas, a vida seria não apenas insuportável como impossível. Por isso, eu tenho um conjunto de crenças. Por outro lado, suspeito de todas as minhas crenças, o que me leva a descrer naquilo em que creio. Melhor, eu creio firmemente nas minhas crenças, mas sei que elas são fantasias – fantasias produtivas que me permitem andar por este mundo. É evidente que não tenho nenhum grande causa. Ter uma grande causa é esquecer que a crença que a sustenta é uma fantasia. E isso é uma das poucas coisas que não esqueço. Aliás, se ninguém tivesse grandes causas, o mundo seria um lugar mais decente. Aproximamo-nos do crepúsculo e mesmo este está belíssimo, como esteve todo o dia. Imagino que esta minha crença na beleza do dia de hoje seja uma fantasia, mas uma fantasia necessária.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Saber, não saber
Têm estado, por aqui, uns dias verdadeiramente outonais, embora não se saiba muito bem o que definiria um dia verdadeiramente outonal. Também se suspeita, não sem razão, que o Outono não passa de uma convenção humana, um modo, entre outros, de lidar com o tempo. Seja como for, sei o que é o Outono e o que são dias outonais, apesar de não saber nem uma coisa nem outra. Sabemos que estamos no Outono como sabemos que estamos em casa. Reconhecemos a casa, sem que dela façamos uma concepção teórica. É assim que sei o que é o Outono. Reconheço quando estou nele. Saber não sabendo é o melhor. É deste modo que se inicia o capítulo 71 do Tao Te King. É assim que sei do Outono, da minha casa, de mim. Como sei de mim? Habitando-me. É no Outono que me habito melhor, pois eu sou uma morada outonal e o morador dessa casa. Talvez não seja nada disso. Apenas a cinza do dia rasgou o lençol da nostalgia e comecei a pensar que hoje é um dia outonal, até que me perdi e comecei a escrever coisas sem sentido.
segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Destruições da humanidade
Um artigo do Público online referia as sondas von Neumann e o conceito de singularidade proposto pelo mesmo John von Neumann. As sondas seriam dispositivos auto-replicantes que, lançados para o cosmos, teriam a capacidade de explorar os planetas, de enviar informação para a Terra e – aqui está a novidade – de se auto-replicarem, o que suporia uma espécie de autonomia genésica, através de materiais encontrados nesses planetas, Poderiam constituir uma vasta rede de pesquisa e informação espalhada cada vez mais longe neste nosso universo. A singularidade significaria um ponto no futuro em que a rapidez e extensão do desenvolvimento da tecnologia escapa à capacidade de compreensão humana. Ora, há um comentário ao artigo em que se verbera o autor, pois este não tem em consideração o potencial destruidor da humanidade contido nas duas ideias. É perante coisas destas que tenho pena de não poder viajar no tempo e visitar certos momentos da história da nossa pobre espécie. Até certa altura do nosso desenvolvimento – tal como acontece ainda hoje com os outros animais – os humanos não dominavam o fogo. Imagino que, no tempo em que os homens aprenderam a domesticá-lo e a conservá-lo, não tenham sido poucos aqueles que viram nesse poder sobre o fogo a porta aberta para grandes desgraças. Esta minha especulação tem algumas bases. O mito de Prometeu, o roubo do fogo pelo titã, a sua dádiva aos homens e o castigo de que foi vítima – tudo isso não é mais do que a condensação daquelas vozes que um dia viram no domínio do fogo pelos homens um potencial destruidor da humanidade. Toda a vez que dominamos o fogo, isto é, que desenvolvemos o poder de utilizar de novas formas a matéria e a capacidade de inventar novos dispositivos tecnológicos, levantar-se-ão vozes que nos advertirão que o resultado será um fatal castigo que levará à extinção da humanidade. Ora, estas vozes falham o essencial. O perigo não está no desenvolvimento da tecnologia, mas no facto de não conseguirmos pensar o mistério que esse desenvolvimento encerra. Não são apenas os seres naturais que encerram mistérios indecifráveis. Também os produtos do engenho humano são misteriosos, mesmo que só os consideremos do ponto de vista da utilidade e os abandonemos à sua sorte quando se tornam inúteis.
domingo, 3 de novembro de 2024
Meditação dominical
Chegado a esta altura da vida, penso que tudo, e não apenas o Zen, possa ser o referente das palavras de D. T. Suzuki: Com efeito, está na natureza do Zen escapar a toda a definição e explicação; noutros termos, não pode ser convertido em ideias e descrito em termos lógicos. O que, neste mundo e mesmo num outro, poderá ser convertido em ideias e descrito em termos lógicos? Plausivelmente, nada. Por muito que me esforce para reduzir este domingo a uma ideia e descrevê-lo no âmbito de uma lógica, mesmo que modal, com os seus operadores de necessidade e de possibilidade, os meus esforços serão baldados. Os seres humanos ficaram deslumbrados com o facto de pensarem e, como corolário, com o impacto que, através da técnica, o pensamento tem na configuração das coisas. O deslumbre, devido à intensidade da cintilação, cegou-os e não os deixa perceber a incomensurabilidade entre as coisas e o pensamento acerca delas. As nossas definições não definem nada, nem as nossas explicações explicam seja o que for. Aquilo que é escapa-se sempre à rede com que o tentamos capturar. Defino uma árvore, classifico-a e explico o modo como nasce e se desenvolve, mas ela, se tenho a humildade da atenção, permanece para mim um mistério, não maior ou menor do que eu sou para mim.