Há por aqui festejos; ouvem-se vozes ampliadas por potentes colunas, também um foguetório sem fim, depois uma espécie de música ao gosto popular, cada uma pior do que a anterior. Um desastre, ou a combinação de múltiplos desastres. Para piorar as coisas, o molhe estava interdito a caminhantes e pescadores: preparavam-no como ponto de lançamento de fogo de artifício que há-de abrilhantar os festejos. Como encarar estes acontecimentos? Como se encaram as tempestades, os tufões, os ciclones, os tsunamis. São coisas da natureza que não se tem – ainda não se tem – o poder de evitar. Os festejos populares, mais do que acontecimentos culturais, devem ser interpretados como episódios naturais. Neles manifesta-se a natureza humana, e ainda não se descobriu como evitar tudo aquilo. Serão reminiscências de épocas arcaicas – talvez ainda pré-humanas – em que certos episódios geravam uma grande confusão, um enorme alarido, uma tremenda algazarra. Com o passar dos milénios, o processo foi-se suavizando, deu-se-lhe o nome de festa, mas ainda está longe – muito longe – de se ter tornado razoável. Talvez tenha dormido pouco, pois a açougada vai pela noite fora, não deixando dormir mesmo quem está longe. A inclinação misantropa incendiou-se – talvez seja do calor, que agora chega em vagas, uma espécie de ondas gigantescas feitas de temperaturas elevadas e que não param de crescer, de se elevar, desejosas de tocar nos céus. Enquanto o mundo arde, as festas continuam, com aquela música ronceira, o vozear aviltante da razão humana, o foguetório inútil, que há-de trazer um fogo de artifício cheio de lágrimas – as lágrimas de quem não pode dormir, dos animais assustados, das plantas que amam tanto o silêncio que se tornaram mudas.
sábado, 2 de agosto de 2025
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Correspondência
Julho despenhou-se no grande abismo onde todas as coisas se precipitam, mal chegue a hora da precipitação. Para o seu lugar, veio Agosto, um mês dedicado ao imperador Augusto, como aquele que acabou pagava tributo a Júlio César. Há meses atraídos por imperadores, outros por deuses, outros nem se sabe bem por quem. Recebi uma encomenda de livros vindos da Alemanha, comprados num alfarrabista online. São romances alemães. Como vou lê-los, eu que não sei alemão, pode perguntar-se. Irei lê-los, mas omito o processo. Não serão os primeiros, nem os segundos, nem… que lerei desse modo, aqui omitido. O importante, porém, é que num deles vinha um postal datado de 2 de Agosto de 2017. Fará amanhã oito anos que foi escrito por uma mulher alemã para uma amiga, também alemã, que, lido o postal, o guardou dentro de um livro que acabou por vender. A receptora tem o apelido de um importante músico do romantismo alemão, um compositor de que gosto bastante. O seu nome próprio é belíssimo em alemão e também é de bom gosto em português — por acaso, o nome de uma tia-avó minha e o feminino do nome de um dos meus bisavôs. O postal reproduz, em fotografia, duas focas-cinzentas e três ostraceiros (Haematopus ostralegus), sendo um deles um junior, ainda sem a belíssima aparência dos adultos. E o que diz o postal? Transcrevo, omitindo os nomes: Querida ..., A grande onda de calor passou; com 18º–20º, sol e vento, aguenta-se bem. Tomamos banho no mar todos os dias e já contornámos várias vezes o extremo norte da ilha. Com a … e o … tornou-se tudo mais animado, mas também mais cansativo. Agora, a última semana de férias está quase a terminar. Até breve, com muitas saudações luminosas da … E eu fico a imaginar quem será a mulher com nome musical e se aquela que lhe escreve está em férias familiares. Serão ainda todos vivos, as quatro pessoas envolvidas no postal? E elas continuarão amigas? A que escreve, por certo, está preocupada com o ambiente, pois o postal tem a seguinte mensagem: Com a aquisição deste postal, está a apoiar a protecção da natureza e das aves marinhas. Saiba mais sobre nós em… Também não é sem interesse o selo, com uma paisagem da Suíça Saxónica, que nada tem que ver com a Suíça. Um postal de férias, no primeiro dia em que entrei numas férias das quais não terei de regressar, pois agora só haverá férias diante de mim — férias ininterruptas das funções exercidas até que chegue o dia das férias eternas da existência, a hora de me precipitar no abismo em que Julho se precipitou.