domingo, 31 de agosto de 2025

Mar de Setembro

Na esplanada, via-se, na linha do horizonte, o mar fundir-se com o céu, nessa zona de indistinção onde qualquer mundo se torna possível. O sol dardejava, a espaços, a areia, para logo se ocultar atrás de nuvens viandantes, nuvens de cinza, neve e alcatrão que se dirigiam para aquele lugar onde todas as nuvens se reúnem. Está um mar de Setembro, disseram-me. Concordei, o mar de Setembro tem uma natureza própria, ondula de outra maneira, mistura o branco da espuma e o turquesa das águas como se fosse uma anunciação. Não de um deus por vir, mas do fim de uma estação ou a aproximação de uma outra. Fiquei ali, diante daquele mar setembrino, contemplando o ir e vir das ondas, o exercício dos surfistas, a passagem de algum barco em direcção a um porto que desconheço. Talvez, pensei, venha de um daqueles mundos possíveis e se dirija para um porto num mundo impossível. Devemos esperar que as coisas mais inusitadas aconteçam, pois se nós próprios, com a vinda à existência, somos uma prova de coisa inusitada, por que não esperar que outras – talvez, menos inverosímeis – possam acontecer? Claro que podem, murmurei, enquanto o sol rompia, de novo, a muralha das nuvens.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Um mundo ruidoso

Retorno depois de prolongadas férias. Isso não significa que não continue em férias, pois a realidade deixou de solicitar a minha atenção. O mundo dispensa os meus afazeres e concede-me a graça de dispor do tempo que resta, seja lá ele qual for. Talvez devesse ter recomeçado de outra maneira: Vim da casa do silêncio e, agora, tomo a palavra. Diante de mim está um livro publicado pela Quetzal, com uma belíssima capa. O autor é Alain Corbin e o título, História do Silêncio. O Prelúdio da obra começa assim: O silêncio não é apenas ausência de ruído. Nós quase o esquecemos. As referências auditivas desnaturaram-se, enfraqueceram, dessacralizaram-se. Intensificaram-se o medo ou mesmo o terror suscitados pelo silêncio. Agora, estou envolvido pelo ruído. Máquinas em trabalho. Uma azáfama planeado no gabinete de algum demónio apostado em fazer perder a cabeça até a um santo. O mundo tornou-se num lugar em que o silêncio é um bem escasso e, por certo, haverá um mercado para o vender. Aquilo que inunda o mundo de ruído é também o que mercadeja o silêncio. Pode-se mesmo pensar que a omnipresença do estardalhaço foi uma estratégia para tornar o silêncio uma mercadoria mais valiosa do que qualquer outra. Se fosse economista, com ambições a crítico social, coisa que não sou, diria que houve uma apropriação por alguns de um bem que era de todos. O melhor é continuar a ler Corbin: No passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio. Consideravam-no como condição do recolhimento, da escuta de si mesmo, da meditação, da oração, do devaneio, da criação; sobretudo como lugar íntimo do qual a palavra emerge. Uma máquina ronca, outra troa, uma outra estrondeia. Não tarda, e surgirá a que ribomba. O demónio ri no seu escritório, o plano de negócios cumpre-se com eficácia. As almas perdem-se no meio de tanto barulho. Ou não se encontram, para ser mais preciso, pois a condição de qualquer alma é de andar perdida à procura do caminho. Um súbito silêncio. Não, apenas uma pequena ausência de ruído.

domingo, 3 de agosto de 2025

Nevoeiro

Hoje é domingo. Escrevo-o para não me esquecer. Levantei-me cedo e fui caminhar também cedo. O molhe estava livre, mas o nevoeiro era tanto que não se via o farol que termina o espigão que dilacera o mar. Por aí fui, envolto numa penumbra que anunciava o regresso de D. Sebastião. O porto, logo ali, era um belo sítio para que o desgraçado rei chegasse à pátria que o viu partir para nunca mais regressar. Quero dizer: para ainda não ter chegado. Como é hábito seu, D. Sebastião recusou-se a voltar, continua emigrado, ninguém sabe onde, não se importando ele com o ódio tecido em volta dos imigrantes, pois, onde quer que esteja, o nosso rei é um imigrante, que haverá quem queira expulsar, pois não percebe que é um rei, daqueles antigos, um monarca garboso, cavaleiro como D. Quixote. Quando voltar, no dia que lhe der na veneta, vai descobrir que o trono dele foi ocupado por outro, por outros, até por três espanhóis com o mesmo nome — que é a mesma coisa do que não ter nome —, e que agora já não há tronos, que a potestade é republicana e, se ele quiser ser o número um, como era quando partiu, tem de ir a eleições, fazer-se eleger e ser proclamado Presidente da República e, caso tenha talento, estar dez anos a presidenciar, para depois se retirar para Alcácer Quibir ou, se tiver algum trauma com Quibir, poder ser mesmo ali mais abaixo, para Alcácer do Sal, para depois passear pelo litoral alentejano em vez de ir matar mouros e acabar morto, sabe-se lá onde, com o reino a definhar e ninguém sem saber dele, só promessas de que haveria de voltar — e ainda hoje estamos à espera —, e sempre que há grandes nevoeiros, vai tudo para as praias e diz: é desta. Mas nunca é desta. Resta-nos esperar, mesmo aos republicanos, pois também estes têm o seu fraco pelo rei que se perdeu no caminho, não sabe onde é a pátria de onde partiu, falta-lhe um bússola e um mapa, talvez um GPS ajudasse ou o Waze e o Google Maps. Tivesse ele uma Penélope, e faria como Ulisses: voltaria, apesar dos trabalhos, mataria os pretendentes e cairia nos braços da mulher amada, sem notar que o rosto desta já tinha algumas rugas, pois o desejo do seu corpo era tanto que não havia rugas que o matasse. Mas o pobre rei foi desavisado, embarcou para a sua Tróia sem uma Penélope e agora, como uma alma penada, anda perdido por esse mundo — e nós, sempre que há nevoeiro, vamos para as praias à espera dele —, mas ele não volta. Um incómodo, pois uma nação inteira não pode estar sempre a caminhar para a praia só porque está nevoeiro, isso dá cabo da produtividade nacional, o PIB não sobe só porque vamos para a praia, mal um nevoazinha surge no horizonte, e olhamos, olhamos, olhamos, mas se aparece algum barco, não nos traz um rei, apenas sardinha e pouca, ou é um veleiro de um americano em férias, ou é um navio fantasma de corsários mortos há muito. E o PIB fica sempre aquém da expectativas, tudo por causa desta mania de ir esperar um rei que não quer, ou não pode, ou não sabe como voltar.

sábado, 2 de agosto de 2025

Desastres naturais

Há por aqui festejos; ouvem-se vozes ampliadas por potentes colunas, também um foguetório sem fim, depois uma espécie de música ao gosto popular, cada uma pior do que a anterior. Um desastre, ou a combinação de múltiplos desastres. Para piorar as coisas, o molhe estava interdito a caminhantes e pescadores: preparavam-no como ponto de lançamento de fogo de artifício que há-de abrilhantar os festejos. Como encarar estes acontecimentos? Como se encaram as tempestades, os tufões, os ciclones, os tsunamis. São coisas da natureza que não se tem ainda não se tem – o poder de evitar. Os festejos populares, mais do que acontecimentos culturais, devem ser interpretados como episódios naturais. Neles manifesta-se a natureza humana, e ainda não se descobriu como evitar tudo aquilo. Serão reminiscências de épocas arcaicas – talvez ainda pré-humanas – em que certos episódios geravam uma grande confusão, um enorme alarido, uma tremenda algazarra. Com o passar dos milénios, o processo foi-se suavizando, deu-se-lhe o nome de festa, mas ainda está longe – muito longe – de se ter tornado razoável. Talvez tenha dormido pouco, pois a açougada vai pela noite fora, não deixando dormir mesmo quem está longe. A inclinação misantropa incendiou-se – talvez seja do calor, que agora chega em vagas, uma espécie de ondas gigantescas feitas de temperaturas elevadas e que não param de crescer, de se elevar, desejosas de tocar nos céus. Enquanto o mundo arde, as festas continuam, com aquela música ronceira, o vozear aviltante da razão humana, o foguetório inútil, que há-de trazer um fogo de artifício cheio de lágrimas – as lágrimas de quem não pode dormir, dos animais assustados, das plantas que amam tanto o silêncio que se tornaram mudas.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Correspondência

Julho despenhou-se no grande abismo onde todas as coisas se precipitam, mal chegue a hora da precipitação. Para o seu lugar, veio Agosto, um mês dedicado ao imperador Augusto, como aquele que acabou pagava tributo a Júlio César. Há meses atraídos por imperadores, outros por deuses, outros nem se sabe bem por quem. Recebi uma encomenda de livros vindos da Alemanha, comprados num alfarrabista online. São romances alemães. Como vou lê-los, eu que não sei alemão, pode perguntar-se. Irei lê-los, mas omito o processo. Não serão os primeiros, nem os segundos, nem… que lerei desse modo, aqui omitido. O importante, porém, é que num deles vinha um postal datado de 2 de Agosto de 2017. Fará amanhã oito anos que foi escrito por uma mulher alemã para uma amiga, também alemã, que, lido o postal, o guardou dentro de um livro que acabou por vender. A receptora tem o apelido de um importante músico do romantismo alemão, um compositor de que gosto bastante. O seu nome próprio é belíssimo em alemão e também é de bom gosto em português — por acaso, o nome de uma tia-avó minha e o feminino do nome de um dos meus bisavôs. O postal reproduz, em fotografia, duas focas-cinzentas e três ostraceiros (Haematopus ostralegus), sendo um deles um junior, ainda sem a belíssima aparência dos adultos. E o que diz o postal? Transcrevo, omitindo os nomes: Querida ..., A grande onda de calor passou; com 18º–20º, sol e vento, aguenta-se bem. Tomamos banho no mar todos os dias e já contornámos várias vezes o extremo norte da ilha. Com a … e o … tornou-se tudo mais animado, mas também mais cansativo. Agora, a última semana de férias está quase a terminar. Até breve, com muitas saudações luminosas da … E eu fico a imaginar quem será a mulher com nome musical e se aquela que lhe escreve está em férias familiares. Serão ainda todos vivos, as quatro pessoas envolvidas no postal? E elas continuarão amigas? A que escreve, por certo, está preocupada com o ambiente, pois o postal tem a seguinte mensagem: Com a aquisição deste postal, está a apoiar a protecção da natureza e das aves marinhas. Saiba mais sobre nós em… Também não é sem interesse o selo, com uma paisagem da Suíça Saxónica, que nada tem que ver com a Suíça. Um postal de férias, no primeiro dia em que entrei numas férias das quais não terei de regressar, pois agora só haverá férias diante de mim — férias ininterruptas das funções exercidas até que chegue o dia das férias eternas da existência, a hora de me precipitar no abismo em que Julho se precipitou.