domingo, 31 de dezembro de 2023

Alma de contabilista

O melhor é não dizer nada. Foi esta a resposta que em mim ressoou quando, por distracção ou dependência de um velho hábito de fazer balanços, perguntei, no silêncio da consciência, o que se pode dizer deste ano, o que agora acaba. Não dizer nada, estar calado. Isto não significa esquecer. Indica antes uma via contemplativa. Olhar para o ano que agora se prepara para as exéquias e não deixar que o discurso interponha entre nós e o ano um véu, que, por mais transparente que seja, sempre há-de ocultar o essencial. Isto ocorreu enquanto caminhava pelas ruas da cidade, mergulhado no cinzento do dia, absorto em pensamentos, indiferente ao destino das coisas e pessoas pelas quais passava. Ouvia duas composições de Morton Feldman, Why Patterns? e Crippled Symmetry, de 1978 e de 1983, respectivamente. A música encerrava-me dentro de mim sem criar obstáculos, pelo contrário, ao movimento do corpo. Depois de almoço, sento-me e retomo o texto. O sol ainda não deu um ar da sua graça e volto ao pensamento acerca dos balanços que quero evitar, mas ainda assim ocorre-me a existência de livros de Deve e Haver. O que poria em cada uma das colunas? Não faço ideia. Continuo com Morton Feldman e, sem particular curiosidade, espero que o ano acabe e outro comece, embora não existam fins e começos de anos, pelo simples motivo que não existem anos, nem meses, nem semanas, nem dias. Também é possível que não existam começos e fins, a não ser aqueles que os homens convencionam, para que a vida lhes pareça regulável e uma ordem enquadre as desordenações do coração ou do fígado. Um amigo faz hoje anos. Tenho de lhe telefonar. Talvez deva aguardar mais um pouco e observar a evolução das nuvens nos céus que se avistam da cadeira do meu escritório. Vou ligar o aquecimento. Depois, farei outra coisa qualquer, menos balanços. Falta-me alma de contabilista e isso pode não ser coisa boa.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Presunção

Uma noite com muito tempo sem conseguir dormir. Acabou por ser verdadeiramente rentável. Pareço um contabilista a falar. Permitiu-me acabar de ler Não Sou Stiller, de Max Frisch, um grande romance, e começar Os Homens Não São Máquinas, do mesmo autor. Há muitas coisas que devia ter lido e sei que não li. O caso da obra de Max Frisch é pior. Até há pouco tempo eu nem sequer sabia que tinha o dever de a ler, pois ignorava-a por completo. Foi, já nem sei onde, uma referência a ele e a Hans Fallada que me alertou para a sua existência. Mal dormido, mas satisfeito, levantei-me cedo. Ida à farmácia e, depois, à estação da Rodoviária para que as netas tomassem o Expresso para Lisboa. De seguida, uma passagem por um supermercado – por aqui, há mais supermercados do que pessoas – para umas compras necessárias. A certa altura, ao olhar os clientes, fui atingido pela memória de um filme de Ettore Scola, cujo título em italiano é Brutti, sporchi e cattivi. Recuso-me à tradução portuguesa para diminuir o peso da culpa por ter feito tal associação. As pessoas que ali estavam não vivem num bairro de lata dos arredores de Roma. Provavelmente, tomam banho com regularidade suficiente, usam perfumes e têm bons carros, mas há nas suas expressões uma tal rudeza que não consegui evitar a analogia. Ainda não terão entrado na fase do policiamento dos gestos, do exercício da contenção, da sublimação da animalidade. Em muitos daqueles olhares existe o brilho vivaz da manha, mas ainda não a cintilação da inteligência e a ponderação da sabedoria. Vivem a fase que prepara essa grande metamorfose em que uma linhagem de gente rude dá lugar à beleza dos corpos e, talvez, mais adiante, à dos espíritos. Penso, ao olhar o entardecer, que o melhor seria evitar passar, a um sábado pela manhã, num sítio daqueles, onde o instinto do rebanho e a pulsão da massa conduzem as pessoas, a mim incluído.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Autenticidade

No Público de hoje há uma entrevista ao poeta Manuel de Freitas. A certa altura ele diz É possível que o Quim Barreiros seja tão autêntico como o Morton Feldman. A autenticidade é fundamental, em suma, mas tudo depende do modo como se declara esteticamente. A autenticidade é fundamental para quê, pergunto-me de imediato. O vocábulo autenticidade encerra em si referências a três dimensões semânticas. Uma primeira está ligada ao direito, aquilo que está conforme à lei e, ainda, aquilo, uma obra, que pertence ao autor a quem é atribuída. Uma segunda dimensão é de natureza epistémica e diz respeito ao problema da verdade. Na terceira dimensão, fala a voz da moral, a autenticidade como sinceridade. A autenticidade é, então, uma categoria filosófica ligada ao direito, ao conhecimento e à moral, mas será ela uma categoria artística? Para Lev Tolstoi, a sinceridade é fundamental na obra de arte, mas ele já tinha dobrado a sua concepção estética à moral. Imagina-se muitas vezes que certas obras de arte trazem consigo os elementos que permitirão reconhecer uma certa autenticidade a que chamaríamos artística. Se nos perguntamos o que será essa autenticidade, apenas nos deparamos com categorias de autenticidade que acabam por se acomodar ou no direito, ou na epistemologia ou na moral. É plausível pensar que a arte está para além – ou para aquém – da querela entre a autenticidade e a inautenticidade e, sendo assim, a autenticidade nada terá que ver com a arte. Podemos mesmo dar um passo em frente e dizer que toda a obra de arte é-o na medida em que se emancipa da sua autenticidade. Na raiz da palavra autenticidade está autêntico. Este deriva do latino authenticus. Por seu turno, o vocábulo latino traduz o grego antigo αὐθεντικός (authentikós, original, genuíno, principal), que, por sua vez deriva αὐθέντης (authéntēs, o que age por sua própria autoridade, o que realiza, governante). Todas estas acepções têm a sua origem αὐτός (autóssi-mesmo). O que é surpreendente na obra de arte é que ela se liberta do seu autor. A Guernica, de Picasso, ou Os Maias, de Eça de Queirós, estão para além do si-mesmo que é apresentado como seu autor, são mundos que, após terem sido criados, são abandonados aos que deles se aproximam. A criação desses mundos é uma fabricação, o exercício de uma indústria onde impera o artifício. O que marca a obra de arte é sua artificialidade, a sua pura ficcionalidade, tudo categorias em conflito com a autenticidade.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Apaziguamento

Ingénuo – e ingenuidade com esta idade não é ingenuidade, mas burrice – tinha eu pensado que no dia 26 terminavam as natalidades deste ano. Não tomei em consideração a possibilidade de existirem efeitos colaterais. Estes, porém, vieram inexoráveis e atingiram toda a família. Sessões de vómitos, febres, diarreias, dores no corpo. Como bons seres humanos, logo arranjámos maneira de acusar umas ostras do almoço de Dia de Natal. Foram incriminadas com o delito de intoxicação alimentar. Pobres ostras, o mais certo é estarem inocentes. Depois, foi considerada a possibilidade de uma virose genérica, sem designação. Aqui havia um contratempo. Não se identificava o criminoso e a queixa era apresentada contra incertos. Valeu a opinião de um farmacêutico desconhecido e ocasional e de um médico amigo, este via telefone. O mais certo é ser gripe A. Foi o que deram as natalidades deste ano, gripe A. Agora, vou repousar, eu que ainda não fiz outra coisa senão descansar, pois, seja qual for o agente patogénico, tem o extraordinário poder de enviar o paciente para a imobilidade. Imóvel, o corpo parece mais apaziguado. É disso que preciso, apaziguamento.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Uma tradição

Ainda não acabaram as minhas natalidades. Respiro fundo, encho-me de coragem e preparo-me para a última etapa. É uma etapa e não uma provação. Por norma, são momentos agradáveis e acolhedores, mas já cheguei àquela altura em que estar em casa é estar no melhor dos mundos possíveis. Aliás, o Natal para mim não é uma provação, mas uma altura de que gosto, embora fique cada vez mais cansado do exercício. Recebi uma fotografia com o meu neto vestido com um pólo do clube de que a família é adepta há várias gerações. Foi uma foto para ver como ficava e para enviar ao avô que teve a ideia de lhe oferecer a vestimenta. É preciso notar, todavia, que o avô está para o clube como muitos católicos estão para Igreja. É um não praticante. Gosta quando o clube ganha, mas se perde ou empata, não encontra motivos de tristeza. Não consegue entender a metafísica do esférico, acha a ética da coisa deplorável e a estética do jogo, em muitos casos, ainda é pior que a ética. Em suma, raramente vê um jogo de futebol. Quanto ao desporto, o rugby há muito que ocupou o lugar do futebol e nem mesmo a esse jogo presta grande atenção. Na adolescência, porém, era vidrado, no sentido que no Brasil se atribui a esse vocábulo, para além do futebol, pela Fórmula 1. Adepto incondicional de Jackie Stewart, o escocês voador. Não havia grande prémio que não assistisse na televisão. Quando a Fórmula 1 chegou a Portugal, ao autódromo do Estoril, já o interesse pelo fenómeno dos carros à volta de uma pista se tinha ido embora e nunca cheguei a assistir a uma corrida ao vivo. Ainda me recordo do nome dos pilotos daqueles tempos, então, uns heróis, mas dos actuais não faço ideia de quem sejam, para além daqueles que ocupam os cabeçalhos das notícias dos jornais que leio. Apesar de tudo, achei que a camisola ficava bem ao meu neto. Um dia destes, faço um sacrifício e levo-o a ver um jogo. Ele veste o pólo e o avô põe um cachecol que um dia comprou ao passar, inadvertidamente, depois de uma ida ao cinema, por uma celebração de um campeonato ganho pelo tal clube que conquistou o coração familiar há várias gerações. Uma tradição.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natalidades

A Consoada já pode ser riscada do calendário natalício deste ano. Segue-se, mais logo, o almoço de Natal, sempre tardio, depois uma espécie de lanche e jantar, num só, e a coisa só acaba com um almoço de dia 26. Tudo isto em diferentes locais. Famílias modernas, digamos assim. Em resumo quase um por cento dos dias de um ano são gastos com as natalidades, isto sem contar, com a procura e compra de presentes. O Papa, li nem sei bem onde, apela para que não se faça do Natal uma festa do consumismo. Eis um pedido pouco caridoso. Imaginemos que todos os que vivem numa cultura com base no cristianismo se tornavam frugais no Natal, que restringiam os consumos e viviam a efeméride com o espírito de pobreza do presépio e não com a presunção de que são reis magos vindos do Oriente. Quantas falências essa atitude implicaria? Quantas pessoas lançadas no desemprego? A Terra, caso tivesse consciência e linguagem, ficaria grata, mas se as tem nós não damos por elas. Por isso, dispensamos a gratidão do planeta e cuidamos de comprar coisas, as mais das vezes inúteis para os compradores e ainda mais para aqueles que vão ser contemplados com elas, mas que têm um forte significado económico. Estou a desviar-me do assunto e a economia é uma área em que a minha ignorância é inexcedível. Por vezes, penso que é uma disciplina com fortes afinidades com a astrologia, pois as previsões económicas são tão incertas quanto as astrológicas, apesar dos robustos modelos matemáticos que os economistas usam para que todos pensem que são cientistas e não astrólogos. O melhor é não continuar com esta catilinária contra a tribo dos economistas, pois hoje é dia de Natal e há que fazer parte dos homens de boa vontade. Talvez o Papa precise de um aconselhamento económico, mesmo dado por astrólogos do mercado, para compreender que entre o espírito e o consumismo não há uma incompatibilidade, pois o espírito dos nossos dias é o espírito de consumo. Até que tudo fique consumado. Vou preparar-me para enfrentar as natalidades que ainda me faltam.

domingo, 24 de dezembro de 2023

Consoada

Chegámos ao dia cuja noite é a noite de consoada. Pasmo não poucas vezes com a quantidade de palavras que uso e cujo sentido efectivo desconheço. Consoada é uma delas. Claro que sei o que é a noite de consoada. Esse saber, porém, diz pouco, é uma ciência que não passa de um minúsculo ilhéu no mar semântico da palavra consoada. Perante a ignorância, decido investigar. Na origem está o verbo consoar. Contudo, esse verbo, como muitos dos verbos que usamos, é equívoco, transportando mais que um sentido e tendo mais que uma origem. Em resumo, são dois verbos. No primeiro, consoar significa soar conjuntamente, mas também rimar. Estamos na área semântica do som. Deriva do latino consonāre, que significa ressoar juntamente. Ora a consoada não é um concerto coral, onde as vozes dos consoados se juntam e em uníssono ressoam. Embora, seja uma possibilidade interessante. Existe uma segunda dimensão semântica de consoar. Caso seja a versão intransitiva, então significa celebrar a consoada. Se, porém, for a versão transitiva, significará comer por consoada. Na sua origem, encontra-se um verbo latino, cōnsōlor, cujo infinitivo é cōnsōlārī e nos remete para a ideia de reconfortar. Contudo, podemos continuar a escavar no léxico e, de imediato, encontramos na raiz de cōnsōlor o verbo, também latino, sōlor. Que nos dirá ele? Fala-nos em aliviar, ajudar, socorrer. A consoada, então, será um exercício em que nos socorremos, ajudamos ou aliviamos uns aos outros, e isso reconforta-nos. Podemos ainda ir um pouco mais longe e tentar descobrir de onde vem sōlor. Aqui, as minhas fontes (o Wiktionnaire) perdem alguma precisão e apenas oferecem uma conjectura. E como todas as conjecturas, esta está sujeita a refutações. É provável que sōlor derive de sollus. Este será uma variante arcaica de solus, cujo significado era todo ou inteiro. Consta mesmo que sollus é o vocábulo latino mais antigo para significar o todo, o inteiro. Então, a consoada será aquela refeição conjunta em que nos tornamos numa totalidade, onde subsistirá a ideia de comunidade familiar, e ainda nos tornamos inteiros, onde restauramos a nossa inteireza, a nossa completude. E isso reconforta-nos, torna-nos mais fortes. Talvez aqui possamos juntar os dois verbos consoar, aquele que fala em ressoar conjuntamente e aquele onde restauramos a nossa inteireza em comunidade familiar. Essa restauração do todo é como uma canção, que cantamos completos na totalidade a que pertencemos. Não há nada melhor de que nos entregarmos à ociosidade da especulação. Curiosamente, na história evangélica do cristianismo, não é no momento que antecede o nascimento do Menino que se celebra a refeição reconfortante, mas no tempo que antecede a morte desse Menino, agora homem, na última ceia, que é, na verdade, uma ceia de consolação que prepara a morte, mas também o novo nascimento, o restabelecimento da inteireza perdida pela desatenção de Adão e Eva. Uma boa Consoada.

sábado, 23 de dezembro de 2023

Uma aventura em Campo de Ourique

Já chegou a noite. A maior aventura que me aconteceu hoje foi almoçar um cozido à portuguesa em Campo de Ourique. Desesperados, com a hora de almoço bem atrasada, cinco pessoas esfomeadas, encontram uma mesa, num restaurante ao acaso, sem marcação. Um milagre para um sábado, e que sábado, por aquelas paragens. Depressa percebi a inteligência daquela escolha. Era possível compor o cozido, excluindo umas coisas e reforçando outras. Por exemplo, excluir o frango ou o nabo e a cenoura. Isto de fazer compras a um sábado, véspera da véspera do dia de Natal, não lembra ao demónio, mas foi o que aconteceu. Não se tratava de presentes, mas de bebidas e comidas, com uma visita a uma grande superfície. Aproveitei, o estar ali pelo Jardim da Parada e fui à Ler, a livraria do bairro, sítio que, sempre que posso, visito, com pouco proveito para a minha conta bancária. Dos presentes que decidi oferecer-me consta os Poemas 1934-1961 de Pedro Homem de Mello. Nem tudo o que escreveu é bom, mas é um poeta que continua a merecer uma leitura atenta. O poema “Bailado” começa com a seguinte quadra: Quebrada pela cintura / Abre em dois frutos o peito. E o seu calcanhar procura / A ponta do pé direito. E não resisto a continuar, com mais duas quadras: O vento dá-lhe na cara, /Escondida pelo lenço. / E o luar, que a decepara, / Deixa-lhe o busto suspenso… // Os olhos, como hei-de vê-los, / Se os desejos, menos vãos, / Morrem só porque os cabelos / Nos deixam sombras nas mãos? E para o poema aqui jazer completo, fica a quadra final: Indizível, mas perfeito / Indício de formusura! / Abre em dois frutos o peito, / Quebrada pela cintura. Fez a Assírio & Alvim muito bem trazer de volta a poesia de Homem de Mello. Faltará um segundo volume, com a obra que vai de 1964 a 1979. O poeta morreu em 1984. Reparei, na livraria, que estão a ser republicados autores que estavam semi-esquecidos. Por exemplo, Fernando Namora, Alves Redol ou Augusto Abelaira. Carlos de Oliveira continua a ter leitores, bem como José Cardoso Pires ou Agustina Bessa-Luís. Além da obra poética de Homem de Mello, aventurei-me a comprar um romance de Jaime Nogueira Pinto, Os Passageiros da Sombra, e ainda A Justiça de Yerney, do esloveno Ivan Cankar e um livro de contos de Barnard Malamud, com um título de um realismo atroz, Primeiro os Idiotas. Para memória futuro, os livros foram comprados antes do cozido. O resultado de tudo isto foi voltar para o meu recanto na pequena província onde arrasto os meus dias, presos à pequenez de todas as coisas pequenas, as quais têm exactamente a mesma dimensão que as grandes, o que muda são os olhos que as observam.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Ignorâncias e indefinições

Comecei a minha viagem de Inverno. Os primeiros rituais foram idênticos aos das outras estações. Extrair os comprimidos das respectivas embalagens para os colocar na mesa do pequeno-almoço. Tomo-os a meio da refeição, não todos de uma vez, pois são quatro, mas segundo uma ordem que me parece imutável. Primeiro um, depois outro e por fim os dois em falta, sempre na mesma ordem. As razões desta ordenação desconheço-as, mas existirão, tal como posso confirmar, aceitando o velho Baruch Espinosa como autoridade credível. Numa carta a Schuller, a carta LVIII, o filósofo holandês escrevia o seguinte: E esta é aquela liberdade humana que todos se vangloriam de possuir e que consiste apenas no facto de que os homens têm consciência dos seus desejos, mas ignoram as causas que os determinam. Assim, o bebé crê desejar livremente o leite, o garoto zangado a vingança e a criança medrosa a fuga. Ora, eu que não sou bebé, nem garoto, tão pouco criança, creio haver uma causa a determinar a ordem pelas quais tomo a medicação. Por vezes, ao engolir aquelas coisas, especulo sobre as causas. Serão mecânicas? Serão psicológicas? Serão fisiológicas? Serão sobrenaturais? E a cada pergunta sinto, com embaraço, a minha desilusão por não conseguir descobrir que potência está a guiar o meu ritual e o meu destino. Já pensei que fossem causas estéticas, mas ao olhar para cada um dos comprimidos não consigo sentir qualquer emoção estética e afastei a hipótese por implausível. Por vezes, caio na tentação de ver naquela ordenação apenas o resultado de uma escolha livre, de um projecto que me vai constituir, que me conduzirá da existência à minha essência. Existe, todavia, um óbice. Ter-se tornado um hábito ritualizado, quase uma tradição pessoal. Se é um hábito, então não é uma acção livre, mas determinada, mesmo que, por hipótese especulativa e pouco credível, no primeiro momento tivesse sido um acto de liberdade. Penso, uma vez por outra, em alterar a ordem da tomada dos comprimidos, mas o hábito é uma segunda natureza e eu sigo a natureza, mesmo que seja apenas uma segunda natureza. Não fora a existência de coisas como os blogues, como poderia o mundo ter acesso à sabedoria que me consome e que o ilumina. Eu sei que não será fraca a objecção que dirá que o mundo está nas trevas mais negras e que a minha luz ilumina tanto como uma lâmpada fundida. É preciso fé, respondo, pois só a fé permite ver a luz onde ela não existe e mesmo onde existe. A luz é uma coisa muita estranha, não fosse onda e corpúsculo, como se sofresse de uma incapacidade inata de se definir enquanto género. Chegou o Inverno.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Sem proficiência

Há dias tão brancos que nenhuma aventura os enriquece. São duas da tarde e apesar de ter demandado várias paragens, nem gigantes nem monstros, tão pouco canto de sereias. Ontem, porém, tive uma aventura extraordinária. Depois de pôr gasolina, fui dar ar aos pneus, que andavam com falta dele, precisavam de um ventilador. Aí descobri que a idade vai rasurando as poucas faculdades com que uma pessoa é dotada à nascença. Num dos pneus, o ar não queria entrar. A maquineta dava erro, uma e outra vez. As pernas doíam-me de estar acocorado e a máquina a dar erro, o ar a recusar-se a penetrar pela câmara que lhe estava destinada e um novo utente da maquineta à espera. Até que se condoeu de mim e me foi explicar, exemplificando, o problema. Era eu que não estava a usar a violência necessária para cingir o terminal da bomba de ar à válvula do pneu. Agradeci e pensei que as coisas começam a complicar-se. Uma vida inteira a pôr ar nos pneus e agora preciso que me expliquem como se faz. É verdade que ontem a minha mente estava ocupada com diversos assuntos que não vêm ao caso, mas isso não deveria impedir que fosse proficiente a encher os pneus do carro. Se chego a esta altura e perco a proficiência numa tarefa tão rotineira como essa, um mero amplexo entre um terminal e uma válvula, o que se seguirá? Talvez exista uma desculpa. O terminal, apesar da designação masculina, tem uma configuração fêmea, devendo ser penetrado pela válvula, independentemente da denominação feminina que lhe cabe. Haverá aqui uma confusão de género, um assunto que é melhor não abordar, mas que pode ter gerado em mim uma confusão tal que já não soubesse o que, naquele caso, era macho e o que era fêmea. Uma outra explicação, talvez melhor, será a minha falta de habilidade para coisas técnicas, mesmo as mais simples. Esta, porém, ainda que melhor, não me convence. Está um bonito dia de Inverno, apesar de estarmos no Outono. Por umas horas.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Traduções

Tenho diante dos olhos uma tradução de poemas de Rainer Marie Rilke. O mais certo é a poesia ser intraduzível. Não se trata de transpor sentidos, mas sons e ritmos. Imaginemos uma música universal. Ela é o rumor da Terra ou o murmúrio das esferas celestes. Os poetas captam essas ondas sonoras e a poesia nasce na fronteira que separa essa música e a fala. Então, a poesia é o exercício de uma dupla contaminação, a da música que contagia a fala numa certa língua e a da fala de uma certa língua que infecta a música primordial. Em cada poema entramos no domínio de uma patologia, de uma paixão. Ora, nem a doença que sofro nem a paixão que vivo são transmissíveis a terceiros. São propriedades minhas, propriedades intransferíveis. É esse o problema da tradução de poemas. Por certo, pode haver versões de poemas, mas são sempre outra coisa, na melhor das situações outros poemas, como bem compreendeu Vasco Graça Moura ou Herberto Helder. Em nenhum caso, porém, um não poeta deve pôr-se a traduzir poesia, pois aquilo que sai não é uma tradução e tão pouco um novo poema. E com esta diatribe contra os tradutores não poéticos de poesia chego a esta hora. Ainda é de dia, mas por pouco tempo. Espera-me uma caminhada para acumular passos e pontos cardio. Primeiro, porém, vou assaltar o bolo rainha que vi lá para dentro e depois enfrento o vento norte, com a esperança de queimar calorias.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Uma teologia da estucha

Entre o Natal e o Ano Novo está por cá? Por cá, o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini, queria dizer por Lisboa. Respondi que não estaria. Tenho em agenda uma viagem com as netas, que me afastará da capital. Algum acontecimento especial, perguntei. Está cá o Hans, referia-se a Hans Castorp, e a mulher. Como já terei contado por aqui, Hans Castorp foi discípulo do padre Lodo, embora nunca tenha sabido em que condições ocorreu esse discipulato. Mais tarde casou com Emilia Bazán. Melhor, Emilia Pardo Bazán. Nunca deixou fenecer a amizade com o padre Lodo e, não poucas vezes, o visita em Lisboa. Por norma, isso dá direito a um almoço ou jantar grupal, no qual o velho jesuíta conjuga diferentes amizades e as junta numa atmosfera amena, onde uma conversa cordial não esconde diferentes visões do mundo, muitas delas pouco concordantes com o espírito da Companhia de Jesus. Há mesmo entre os membros do grupo alguns representantes do velho jacobinismo anti-jesuítico, mas que não resistiram à afabilidade do padre italiano. As divergências, porém, nunca ultrapassam a benevolência de pequenos chistes, que fazem sorrir. Terei de ver se eles ainda estarão cá depois da passagem de ano, essa estucha. Estucha, sublinhei eu com ar interrogativo. Sim, estucha, estopada, uma chatice, aquela coisa das passas e da meia-noite. Ninguém o obriga ao ritual das passas, de facto, uma coisa insuportável, mas estucha, nunca lhe tinha ouvido tal palavra. Foi uma confessada que me a ensinou. Chega ao confessionário e todos os pecados que debita acabam com a expressão uma estucha. Parece-me uma pecadora enfadada, respondi. Talvez, talvez o pecado leve à perda dos homens mergulhando-os no aborrecimento, acrescentou. O melhor, depois do spleen baudelairiano e da nausée sartriana, seria elaborar uma teologia da chatice ou, melhor, da estucha. Ele riu-se e ficámos de falar daqui a dias.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Taxionomias pilosas

Comecei esta noite a ler Não Sou Stiller, um romance do suíço Max Frisch. Parece-me ter feito uma grande descoberta. O mais apropriado, por certo, não seria enfatizar a descoberta agora realizda, mas reconhecer com humildade socrática a minha enorme ignorância. Escrevi suíço e fiquei a pensar nas suíças, aquela porção de barba que certos homens deixam crescer nas partes laterais do rosto, também chamadas patilhas. De onde virá a designação? Das mulheres dos suíços? Um enigma. Ainda procurei, lendo em diagonal, no Signum SalomonisA Figa – A Barba em Portugal, de José Leite de Vasconcelos. Ora, Leite de Vasconcelos entrega-se a uma informada e exaustiva taxionomia das suíças, mas não tem clara a razão que conduziu a que se chamassem suíças às suíças, não às mulheres naturais da Suíça, mas às vulgares patilhas, nome vindo daquele sítio de onde não vem nem bom vento nem bom casamento. Para quem esteja interessado em meditar os velhos usos pátrios da pilosidade facial, deixo o Sumário do Capítulo III, do livro supracitado: Formas naturais e artificiais • Barba medrada e seus nomes • Barba aparada • Nomenclatura da barba, segundo as partes do rosto que esta ocupa • Uso de formas de barba, já avulsas, já combinadas entre si • O que é projecto • Explicações etimológicas. Eu, como narrador glabro, não irei reflectir na metafísica da suíça, do bigode, da pêra e da mosca. Retenho o cavanhaque, não pela estética da pilosidade, mas por me lembrar o cognac. Quando me sentei aqui, não tinha qualquer intenção de falar de pêlos faciais, mas, faltando-me um espírito científico, deixei-me, como uma criança, arrastar pela associação de ideias, uma associação por contiguidade, para ser mais preciso. Nunca imaginei que o célebre Leite de Vasconcelos, nas suas investigações etnolinguísticas, se tivesse interessado por tal tema, mas o mundo é feito de surpresas, e eu sou um mestre em lugares-comuns.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Motos e camelos

Sentei-me para escrever este texto e oiço um barulho na rua. Um desfile de motards passava pela Sá Carneiro. A maior parte vinha vestida de Pai Natal. Consta que faz parte da agenda cultural dos amantes das duas rodas esta celebração natalícia, ainda antes de Natal. Uma coisa fica provada. Existe evolução ao cimo deste pobre planeta. Houvesse, naqueles dias em que o Menino Jesus nasceu, o desenvolvimento tecnológico de hoje e os Reis Magos teriam chegado muito mais cedo. Em vez de camelos, vinham em potentes motos, isto para o caso de dispensarem os aviões e gostarem do ar a bater no rosto, e o dia de Reis poderia ser ainda antes do dia de Natal, como acontece com estes motards. Em vez de virem prestar tributo ao menino nascido, vinham partilhar as incertezas do parto, a expectativa que fosse um rapaz e que eles não se tivessem enganado ao seguir a estrela, que também andaria mais acelerada. Tenho, porém, de estar agradecido ao atraso tecnológico daqueles dias. Quando era criança, mas já estava submetido ao jugo da escolaridade, as férias de Natal iam até ao dia de Reis. Só a sete de Janeiro recomeçavam as aulas. Tudo acontecia sem pressa, com a lentidão de um camelo a atravessar o deserto. Olhando para trás, constato que havia alguma sabedoria naquele calendário escolar. Pelo menos, aprendi a ler, escrever e contar, sem ter que passar o dia inteiro na escola e ainda recebia o prémio de férias dilatadas, onde fantasiava a libertação dos deveres escolares. Talvez a solução para os problemas do ensino em Portugal, caso existam, seja a de substituir carros e motociclos por camelos, cavalos, mulas, machos e, acima de tudo, burros.  Essa lentidão recuperada permitirá aos corações e aos cérebros abrir-se à sapiência, sem as pressas ruidosas dos tempos modernos. Hoje acordei com a veia conservadora a latejar e dobro o meu espírito a essa sombra da tradição. Amanhã, terei tempo para ser moderno e trocar o camelo pelo automóvel, já que motos nunca me seduziram.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Trocas

Tem o número 000834 da biblioteca de um centro paroquial. Olhei para o número e pensei que seria grande a esperança de quem começou a catalogar os livros. Chegar às centenas de milhares seria um feito. O mais plausível é que quem carimbou aqueles algarismos, pois trata-se de um número carimbado, não tivesse meditado o suficiente nem em quantidades, nem em livros e muito menos em quantidades de livros. O destino dessa biblioteca paroquial foi o fim e os livros apareceram à venda. No site onde o comprei, havia informação de que estavam a esvaziar a sala onde se encontrava a biblioteca, pois era precisa para outras coisas. De facto, o espaço é pouco e talvez os livros sejam coisas que se dêem mal no espaço pertença de uma paróquia. O livro é composto por duas peças de teatro – A Muralha da China e Biedermann e os Incendiários – da autoria de Max Frisch. Há muito que não leio teatro. Não estou a dizer a verdade. Há uns meses li uma peça de Shakespeare, mas já não me lembro qual. Uma das portas que me permitiu entrar na literatura foi, todavia, o teatro. Sófocles e Sartre. O que li, então, exerceu forte influência sobre o meu pobre espírito de rapaz provinciano, mas não foi suficiente para me tornar um fiel leitor de peças teatrais. Recebi o livro há pouco, pois o centro paroquial é daqui perto e combinei ir lá buscar o livro. Pareceu-me uma paróquia muito dinâmica, mas imagino que pouco inclinada à leitura. Eu troquei o dinamismo pela leitura e não fiquei a ganhar, aposto.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Sextar

Estou dividido, embora a divisão seja superficial. Imagino que tenha sido no Brasil que a sexta-feira gerou o verbo sextar. Chegado a sexta-feira, alguém grita sextou! Não deixa de me divertir essa capacidade de reinventar o português que existe no Brasil. Por outro lado, não me ocorreria chegar a esta hora e gritar sextou! Em primeiro lugar, porque é desagradável andar a gritar por aí. Depois, porque temos obrigação de economizar nos pontos de exclamação. Por fim, porque há qualquer coisa de infantil na expressão. Como é hábito, a expressão começa a penetrar no léxico dos portugueses, que terão menos poder de imaginação para reinventar a língua e são mais sisudos do que os brasileiros. A conjugação destes dois factores faz com que, para sorrirmos, importemos a pilhéria do outro lado do oceano, tal como importámos o Carnaval, para que as raparigas despidas tremam de frio, enquanto expõem o corpo e fingem dançar o samba. Seja como for, chegámos ao crepúsculo desta sexta-feira, num momento em que o azul do céu se torna cinzento, para, depois, devir negro. Antes de chegar a casa, passei por um supermercado para comprar umas coisas que consta fazerem falta em casa. Acrescentei a isso duas garrafas de vinho, que não estando em falta, sempre animam o coração. Tinha já tudo acomodado quando descubro que deixara a carteira no carro. Ocorreu-me então que na pandemia se tinha desenvolvido o hábito de pagar por MBWay. Foi o que me salvou de ter de abandonar as compras e ir ao carro em busca do santo graal. Esta foi, felizmente, a coisa mais extraordinária que me aconteceu até agora, e assim espero que se mantenha. Não há nada pior do que as coisas extraordinárias. Às ordinárias sabemos como enfrentá-las, às extraordinárias, o fôlego já não é o que era. Estou a fazer horas para ir caminhar. Deixo que o fluxo do trânsito abrande, para não ter de respirar a fumarada que sai dos carros.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Especulações

Alguém diz Sem dúvida, o futuro será sombrio. Eu oiço o que é dito. Melhor, eu não oiço o que é dito, mas vejo o que está escrito. Talvez a pessoa que escreveu tal coisa não a diga. Imagino que nunca ninguém terá pensado nessa possível dissonância entre dizer e escrever. Imaginemos uma pessoa que, ao falar, diz certas coisas, mas que ao escrever se recusa a transpor por escrito as suas crenças orais. Quando escreve afirma coisas diferentes ou mesmo contraditórias. Todos tentamos unificar o ser que somos ao falar e aquele que somos ao escrever, mas será que somos o mesmo quando falamos e quando escrevemos? Imagine-se um académico. Quando faz uma conferência defende um certo ponto de vista sobre um dado assunto. Quando, porém, escreve um ensaio sobre esse mesmo assunto, propõe coisas radicalmente diferentes. A especulação desviou-me do tema que aqui me trazia. Como poderá alguém não ter dúvidas sobre a natureza sombria do futuro? O futuro, digo eu, não será sombrio, nem luminoso, nem negro. O futuro não existe, nunca existiu e nunca existirá, enquanto o tempo for aquilo que é. Eu nunca estarei no futuro, nem nunca estive no passado. Estive sempre no presente e, enquanto este se move, eu desloco-me com ele, que nunca me deixa abandoná-lo, e eu, por mais que tente, nunca consigo fugir-lhe. O resto são memórias e expectativas, mas nem uma coisa nem outra são tempo. Estas duas insanas especulações resultam de ter tido, malditas memórias, uns dias atribulados, preenchidos com tarefas que não contribuirão para a gesta que me há-de elevar à glória. Agora, essa casa de onde nunca saio, vejo um rosto feminino. Dos olhos abertos, deslizam duas lágrimas. A gravidade, todavia, é mais forte numa face do que na outra. Uma lágrima desliza mais rapidamente e aproxima-se já dos lábios. A outra parece parada sob a pálpebra. Eu fico a contemplar, numa revista, aquela estranha exposta numa fotografia a preto e branco. De súbito, encontrei nela uma inquietante semelhança com Eduína. Talvez os olhos abertos, talvez os lábios desejáveis, talvez a expressão de perplexidade, talvez o corte de cabelo. Se existisse passado, eu poderia dizer fui visitado pelo passado, mas não existe e eu não o digo.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Uma realidade disfuncional

Nem sei por onde começar. Há qualquer coisa que de disfuncional na realidade. Por exemplo, e começo por aí, o despudor com que ela se recusava, há pouco, a cumprir a previsão meteorológica. Para aqui, o site dava sol, ligeiramente encoberto por alguma nuvem passageira. Enquanto bebia café, consultava a previsão e via chover. Como pode a realidade, enganar-se deste modo, perguntava-me, não sem perplexidade. Demorou tempo até ela perceber o que lhe estava prescrito e deixar que o Sol brilhasse, apesar de algumas nuvens inconvenientes. Pior do que isso é o enigma do número 1949. Recebi há pouco um livro, Não Sou Stiller, um romance do escritor suíço Max Frisch. Um livro comprado num alfarrabista online. A tradução portuguesa, da saudosa Arcádia Editora, é da escritora Fernanda Botelho, e foi publicada em 1958. Ora, e aqui está o enigma, no canto superior direito das terceira e quinta páginas aparece um nome, um apelido grafado em maiúsculas, e debaixo dele o número 1949. Não faz sentido ser a referência ao ano da compra, pois a edição portuguesa só apareceu nove anos depois. Também não faz sentido que seja o ano de nascimento do comprador, pois é implausível que alguém de nove anos tivesse comprado aquele livro. Também não é referência ao ano da publicação original da obra, pois esta é de 1954. Folheio o livro à procura de pistas, mas não encontro nada. A única nota digna de atenção encontra-se no facto da página 181 estar dobrado no canto inferior direito, formando a dobra um triângulo rectângulo escaleno. Esta informação é interessante. O proprietário, eventualmente parou a leitura nessa página, não chegando a metade das 450 que compõem a obra. Um primeiro traço emerge, era pouco persistente. Também é claro que, apesar disso, procurava distinguir-se, pois a norma para dobrar as páginas é usar um canto superior e não inferior. Isso é confirmado pela forma como escreveu o apelido, todo em maiúsculas. Se fosse amante da harmonia e da proporção teria dobrado a folha em forma de triângulo equilátero, mas não. Repugnar-lhe-ia o princípio da igualdade e optou pela total diferenciação e o desequilíbrio. Certamente, alguém que gostaria de se armar em importante, dirá um espírito mais impiedoso que o meu. Com tudo o que se sabe do proprietário, ainda nada sei do número 1949. Como se vê a realidade não apenas é disfuncional, como resiste a que a compreendamos. Derrotado, desdobro a página e fecho o livro. Coloco-o na pilha de livros a ler e vou apanhar Sol.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Melancolia cantabile

Já não tenho idade para estas coisas, pensei. Logo, porém, me arrependi do pensamento, pois é agora que começo a ter idade para frequentar com assiduidade consultórios médicos e enfrentar a estranha forma como os médicos lidam com o tempo, bem como com a sua inultrapassável incapacidade para perceberem a palavra pontualidade. Setenta e cinco minutos após a hora marcada entrei para consulta. É evidente que poderia ser pior. Cento e cinquenta minutos seria bem mais desagradável. Depois, fui recebido com um pedido de desculpas. O problema é que estes pedidos de desculpa são meramente protocolares, fazem parte do business as usual. Passada essa provação, o meu dia foi assediado pela chuva e pelo cinzento que deslizou do céu e se incrustou por ruas e avenidas, tingindo o casario de uma melancolia quase cantabile. Ao passear pela rua, pensei no húmus. Que excelente húmus dariam estas folhas mortas que inundam os espaços da cidade. Não faço ideia a razão que me trouxe a esta constatação agrícola, logo eu que não tenho qualquer inclinação para a vida no campo. Elevo o pensamento aos céus e, em ânsia, peço uma noite sem chuva, que me permita caminhar. Preciso de coleccionar pontos cardio e de evitar comparações melindrosas entre o peso que tenho e aquele que deveria ter. Disfarço bem a discrepância, mas que ela existe, existe. Vou jantar. Talvez o melhor é fazer jejum, mas não estamos na Quaresma. E mesmo nesta já ninguém jejua.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Uma questão de adequação

Distraí-me e entalei um dedo no quebra-nozes. Foi o segundo incidente no espaço de minutos. O primeiro foi a recusa do dito quebra-nozes em quebrar uma noz. Aliás, um fruto pequeno, quase miserável, mas de casca resistente. Teve de ser subjugada à martelada, não com um martelo. Usei o próprio quebra-nozes, agora em função de martelo. Talvez o instrumento se tenha sentido humilhado pelo uso contra-natura e, vendo-me distraído, abocanhou-me um dedo. Faz parte da ingenuidade dos seres humanos despir os objectos materiais de vontade. Não me parece plausível a ideia de lhes negar um querer, pois eles querem muitas vezes aquilo que nós não queremos e submetem-nos ao querer deles. Imaginemos um carro que se recusa a trabalhar, enquanto nós, os seus proprietários zelosos, estamos cheios de pressa para um compromisso inadiável ou para o encontro da nossa vida. Isto não é um querer? Claro que a inocência humana designa por avaria aquilo que é um acto da vontade e, para mais se iludir, julga o caso como um acidente mecânico ou electrónico, ou qualquer outra coisa que desculpe a maldade do dispositivo. Não consigo compreender o alvoroço que anda aí por causa de podermos vir a ser dominados pela inteligência artificial ou por robôs. Se já somos dominados pelas máquinas a que não atribuímos nem inteligência nem vontade, o que poderemos esperar de dispositivos a quem demos inteligência e mesmo vontade? Retornando ao caso do quebra-nozes, tenho de considerar que foi benévolo comigo, apesar da maldade que lhe vejo no rosto. O dedo não sofreu grande coisa, mas imagino que foi um aviso. Da próxima vez que quiser martelar uma noz renitente vou buscar um martelo. É uma questão de adequação entre o objecto e a finalidade.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Na aldeia

Depois de uma viagem ao mundo colonial trazido por Joaquim Paço d’Arcos, entretenho agora as insónias com uma viagem por Madona, de Natália Correia, uma visita – pelo menos de início – ao mundo alternativo da parisiense rive gauche, no pós-segunda guerra mundial, onde, supostamente, Sartre oficiava um culto a não se sabe bem o quê, e no qual alguns portugueses se tingiam de modernidade, que haveria de ser usada na pátria para encontrar distinção e sublinhar a boçalidade daqueles que o acaso ou as possibilidades não conduziram à capital francesa. Não será improvável, tendo em conta o que já li no romance, cerca de um quarto, que tudo acabe em querelas domésticas, passadas na província, num mundo onde ninguém ouviu falar de Sartre e da rive gauche, nem de náuseas, ou sequer do velho spleen baudelairiano, bem anterior à náusea existencial. Em novo, por certo, eu terei cultuado esses heróis de outras gerações que viveram esses anos de perdição. Hoje, porém, dou graças por a vida ter-me poupado a esses destemperos e a ilusões que só poderiam lembrar ao génio maligno do senhor René Descartes. Apesar de velho, nasci demasiado tarde para poder imaginar sequer a minha pessoa a deambular pelas caves, onde o jazz se europeizava. Sento-me, em silêncio, e vejo correr o rio da minha aldeia, que não é aldeia, mas uma cidade que parece uma aldeia. E nisso está toda a minha felicidade, enquanto leio os poemas de Alberto Caeiro e vejo neles toda a verdade deste mundo, mesmo que seja apenas a verdade desta hora de domingo em que escrevo isto.

sábado, 9 de dezembro de 2023

O que me vale

Caminhar na capital não é das coisas mais suaves. Subir e descer, descer e subir. Enquanto se desce, as coisas não estão mal, mas tudo tem um preço e a cada descida corresponde uma subida. Talvez não seja muito sensato fazer pontos cardio num sítio como este, a não ser que se vá para a margem do rio, onde tudo é mais plano, o que não estava nas minhas intenções. Para recuperar as calorias perdidas, perdi-me num restaurante perto do Museu Nacional de Arte Antiga, onde são oferecidos – isto é um eufemismo, claro – pratos dos sítios por onde os portugueses andaram. Escolhi uma visita ao Brasil e não me arrependi. Depois, retornei à caminhada. Chegado a casa, em vez de ir ao cinema, como tinha pensado, sentei-me e fiquei a ver um jogo de rugby da Taça dos Campeões. Não me perguntem quais eram as equipas. Uma era irlandesa, a outra inglesa. O jogo foi interessante, apesar de ter adormecido uns minutos depois do intervalo. Contudo, adormecer diante de ecrãs e monitores tornou-se uma das minhas especialidades. A gesta de que sou o protagonista está cheia de grandes actos libertadores do mundo. É nessa categoria que se devem colocar os adormecimentos diante da televisão ou do computador, onde o meu ser ensonado vence o obstáculo do estado de vigília. O Outono declina a olhos vistos, o solstício de Inverno está a uma distância de menos de duas semanas. Não tarda é noite de Natal e um novo ano perfila-se já bem dentro do horizonte. Hoje é daqueles dias, que não são poucos, em que nada tenho para dizer. Vale-me o ser capaz de inventar qualquer coisa em cima da hora.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Agora

Neste momento, onde me encontro, tenho um único livro em papel à mão. Não é um livro recomendável, nem o é o seu autor. O livro compila um discurso de 4 de Janeiro de 1849 e a troca de correspondência entre o autor e o Conde de Montalembert. No início do discurso, depois do protocolar Meus Senhores e de mais umas quantas frases, referindo-se a um discurso anterior que seria o epílogo de um outro epílogo, e este era o epílogo de todos os equívocos que foram inventados durante os últimos três séculos e que trazem inquietadas quase todas as sociedades humanas de hoje. Este tipo de crença é extraordinário, pois supõe que antes destes três últimos séculos não se tinham inventado de maneira sistemática equívocos, além de supor que as sociedades anteriores teriam menos razões de inquietação. Tudo isto faz parte do combate político no congresso espanhol de então, coisa que não me interessa. Todavia há uma prova da incapacidade humana para olhar o passado, imaginando-o um tempo superior ao presente, mesmo que o presente já tenha três séculos. Todas as inquietações que eu vivo, mesmo sendo apenas um narrador, isto é, uma figura literária, todas as inquietações que eu vivo, repito, são presentes, pois não nos foi dada a capacidade de viver as inquietações de um passado onde não existíamos. A este tipo de crenças chamam-se involucionistas. Crêem, consciente ou inconscientemente, que o início da vida do homem na Terra foi esplendoroso, vivia-se na idade do ouro, e que a partir desse momento tudo se foi degradando, foi involuindo. Tanto aqueles que vêem no passado a sua casa, como os que a vêem no futuro, têm um problema com a sua própria existência, pois esta apenas se dá no presente. A idade do ouro ou a idade de ferro apenas existem no presente, pois não há outro tempo que possamos habitar. Ninguém vive no passado ou no futuro, vive no agora. O resto são suposições fundadas na memória ficcional e na expectativa também ela ficcional. E agora é de noite.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Ensaio sobre a noite

Há muito que não via anoitecer na capital, não numa dessas capitais do tremoço, da castanha pilada, do rabanete ou do chouriço, as quais abundam por esse país, onde não há lugarejo que não seja capital de alguma coisa, mas na capital verdadeira, aquela que foi capital de um império e agora é a de um país que, na ponta mais ocidental da Europa, parece precipitar-se para o oceano. O problema do anoitecer numa capital é que os prédios se interpõem entre o observador e o céu de onde cai a noite. Uma pessoa é surpreendida. Na província, numa província plenamente provinciana, o cair da noite oferece-se ao olhar contemplativo daquele que a espera. Não entra furtiva pela casa dentro, como um ladrão que viesse roubar a luz dos nossos olhos, mas como um convidado que se faz anunciar atempadamente, dando-nos tempo para o esperar e lhe dar as boas-vindas. Isto significa que a mesma noite não é idêntica no seu ser moral. Nas grandes cidades, ela não passa de uma entidade delituosa, enquanto na província é um anjo benfazejo. Onde estou, existem três cães. São cães citadinos, daqueles que são passeados à trela pelas ruas. Mantemos uma relação de justa distância, eles no seu território e eu no meu. Eles esboçam para mim um pedido de amizade, mas apenas lhes prometo que não seremos inimigos. O pior é que ressonam, talvez julguem que a noite é toda ela para dormir, eles que nunca pensaram sobre a noite, nem sabem distinguir a capital da província.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Precipitação

Tem estado um belíssimo dia, frio, mas não muito, uma luz feita de cinza, que deixa cair sobre as ruas da cidade uma certa tristeza sonâmbula e a ventura da melancolia. Tudo fazia lembrar o Natal, esse Natal que se imagina com um tempo quase gélido e de neve nas terras altas, o que não será o caso por aqui. O relógio parou e tive de ir a uma relojoaria para que lhe mudassem a pilha. O tempo que tinha parado há dois dias voltou a pôr-se em marcha. Não sei se esta decisão de reactivar o tempo terá sido sensata. Talvez fosse uma oportunidade de suspender o tempo ou, pelo menos, fixá-lo naquele instante em que os ponteiros se imobilizaram. Quando saí da relojoaria senti uma leve sensação de culpa. Tornei a pôr o tempo a andar e restituí todos os seres à sua condição transitória e mortal, no caso dos seres que são vivos. Foi uma precipitação. Não fiz mais do que copiar a precipitação original de Eva e Adão, a qual nos tornou mortais. Fiz o mesmo ao precipitar-me para pôr o relógio a funcionar, não aproveitando a oportunidade que me foi dada para salvar o universo da sua irremediável perda. Como poderei eu ser um cavaleiro andante digno de ombrear com o Cid, El Campeador, com o rei Artur ou com Ricardo, Coração de Leão, se me precipito na hora crucial em que tudo se decide? Não posso, para meu desgosto. É possível que quem tece as linhas com que se compõe o fado de cada um se tenha precipitado e, por isso, ter-se-á esquecido de pôr no meu destino essa gloriosa tarefa de derrotar o tempo, matando Cronos pelo simples acto de me recusar a pôr uma pilha miserável num relógio ainda mais miserável. É a hora do crepúsculo. Parece que acentua nos pacientes a tendência para a loucura. Vou para a janela ver chegar a noite.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Um herbário passional

Ao passar hoje por uma FNAC, descobri que tinha sido editado um primeiro volume da poesia completa de Pedro Homem de Mello. Também está disponível a poesia completa de Natália Correia. Não comprei nenhum, mas é uma questão de tempo. Há um mistério que não consigo decifrar. Portugal é um país onde poucas pessoas lêem. Se se trata então de poesia, o número será ínfimo. Contudo, o negócio das obras poéticas completas parece ir de vento-em-popa. Por norma, são edições cuidadas, capas cartonadas, preço elevado. Ouve-se, por vezes, dizer que os poetas só são lidos por outros poetas. Se isto é verdade, então somos mesmo um país de poetas. Fossem os portugueses menos dados às musas e não haveria tanta poesia completa à venda. O mais importante, porém, é que resisti estoicamente e não comprei um único livro. Troquei a adicção pela ascese. Entrei puro e saí casto. Também é verdade que já hoje tinha ido aos CTT levantar uma encomenda onde constavam os três volumes da Trilogia do Cairo, de Naguib Mahfouz, Thomas o Obscuro, de Maurice Blanchot, e o nada literário Ensaio sobre as Liberdades, de Raymond Aron. Vou aqui abrir uma excepção à estrita regra de abstenção nestes textos de qualquer referência à política. Uma citação do livro de Aron. Quem acompanhou de perto a rivalidade de partidos na Câmara dos Comuns não deixará de admitir que os ritos parlamentares, com a sua estilização tradicional, são efeito de uma arte política que, devido a uma sabedoria profunda, reconhece a necessidade do artifício para dominar as paixões, tolerando uma expressão simbólica delas. O interesse da frase vai muito para lá da política e entra no domínio da arte. Como se dominam as paixões? Através do artifício artístico, o qual constrói uma expressão simbólica dessas paixões. Estamos perto da catarse aristotélica promovida pela tragédia. A poesia, como forma de arte, é então um artifício onde se expressam e se dominam as paixões. E quem terá traduzido o livro de Aron para português? Algum sociólogo ou algum filósofo, dir-me-ão. Falso, respondo. Foi Ruy Belo. Tudo isto significa que parte dos portugueses, talvez ínfima, mas ainda assim comercialmente significativa, se entrega a esse exercício de dominar, enquanto expressa, as suas paixões. As do corpo e as da alma. Talvez a poesia não passe de um herbário passional, um lugar, na realidade fúnebre, pois os herbários são sítios onde se colecciona o que está morto, um sepulcro de paixões extintas.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Diminuição

Hoje é muito menor. Na verdade, não é, apenas me parece muito menor. Talvez seja, de facto, menor. De tarde, tive de dar um salto à capital de distrito, à zona do liceu. Ali, ainda não fizera dez anos, tive de prestar provas para ser admitido no ensino liceal. O edifício, naqueles dias de brasa, visto da minha pequenez e da experiência da escola primária, parecia-me descomunal. Entrava nele e sentia-me perdido. Era tudo ou demasiado alto ou demasiado comprido, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Prestavam-se provas escritas e orais. No intervalo entre elas, ia-se assistir às orais dos outros candidatos, dos desgraçados que tinham de enfrentar o júri antes de nós. Das provas escritas não possuo qualquer memória, mas das orais restaram algumas. O interrogatório diante dos mapas das colónias que, naquela altura, já tinham mudado o nome para províncias ultramarinas. Rios e afluentes, produções, sei lá mais o quê. Recordo também a experiência de estar no quadro a resolver os problemas que um professor de bata branca, que me pareceu muito velho, mas que talvez nem o fosse, se lembrava de me colocar. Contudo, nada disso me impressionou, nem os mapas, nem os problemas de matemática, nem o júri sisudo, nem o professor de bata branca, a quem, disseram-me depois, chamavam o Herodes. Apenas o edifício exercia sobre mim um fascínio temeroso, aqueles longos corredores, aquelas salas tão altas. Não estava habituado a escolas assim. Hoje ao passar por lá, senti uma leve decepção. O edifício é quase banal e, por certo, não terá corredores tão longos ou salas tão altas como aquelas que eu, nesse longínquo ano, vi. Talvez, com o passar das décadas, tenham diminuído.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Bocejar

Bocejo, agora que a noite caiu. Passei a manhã e parte da tarde a trabalhar, apesar de hoje ser domingo. Depois, fui comprar laranjas e tangerinas numa aldeia aqui perto, onde os produtores locais montam banca à beira da estrada. As pessoas acorrem. É um modo primitivo de comércio, mas eficaz para quem vende e para quem compra. Os produtos são melhores, os preços talvez não sejam inferiores aos praticados pelas grandes superfícies. Quando o tempo está cinzento e húmido, a viagem, uma pequena viagem de meia dúzia de quilómetros, é sempre reconfortante. Há uma tal melancolia na paisagem que o coração quase rejubila pelo confronto com a mágoa manifestada pela natureza. Não porque seja um coração malévolo, mas porque se sente grato pelo poder de expressão das coisas da terra, que, usando um alfabeto e uma gramática ancestrais, permitem mesmo aos mais inveterados citadinos, após um momento de perplexidade, entendê-las. Não foi um domingo glorioso, mas a província é parca em glórias. Deveria ir caminhar, mas está frio e humidade. Além disso, a preguiça toca-me a alma e expande-se pelo corpo. Talvez vá procurar um filme para ir vendo. Talvez. Bocejo.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Uma viagem colonial

Por vezes, obrigo-me a fazer umas viagens na minha terra. Com isto não quero dizer que me ponho a fazer turismo nacional, a ir para fora cá dentro. Sobre esse viajar turístico recuso-me a falar. As viagens na minha terra a que me refiro são outras. São incursões na ficção nacional. Preferencialmente, no romance que nasce no século XIX e vem até aos nossos dias. São autênticas caminhadas no espaço e no tempo, o que é muito mais interessante do que a viagem turística que, por mais voltas que se lhe dê, é sempre uma deslocação no espaço e apenas nele. Confesso que essas viagens na literatura sofrem um enviesamento pouco literário. Não procuro nelas, o prazer estético, o confronto com uma grande obra de arte, mas uma descoberta daquilo que imaginamos ser ao longo do tempo. Cinjo-me ao romance moderno. Se se questionar o ChatGPT sobre qual foi o primeiro romance moderno, ele diz que foi Viagens na Minha Terra, de Garrett, publicado em 1846. A realidade talvez seja diferente. Em 1845, o mesmo Garrett tinha já publicado o primeiro volume de O Arco de Santana. Por seu turno, Herculano publicara, em 1844, Eurico, o Presbítero. Esses, dir-se-á, são romances históricos, logo, não contam. Mesmo que ponhamos de lado esses dois, Viagens na Minha Terra não foi o primeiro romance moderno português, mas O Estudante de Coimbra, do médico algarvio Guilherme Centazzi, que foi publicado em três tomos entre 1840 e 1841. A obra tem um subtítulo curioso: Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 a 1838. Será aqui o ponto de partida para as viagens na minha terra, uma visita à Universidade de Coimbra e aos tempos das guerras entre absolutistas e liberais. Como fui dotado de uma enorme inclinação para coisas inúteis, o meu anseio, nunca concretizado, é o de fazer uma história imaginária de Portugal, a partir da imaginação dos seus romancistas. Como isso é uma tarefa de difícil concretização, vou fazendo incursões aqui e ali, no intervalo das leituras que efectivamente me interessam e me dão prazer estético. Veio isto a propósito de uma opção que, às tantas da manhã, em período de insónia, me levou a ler mais de 50 páginas de o Herói Derradeiro, o primeiro romance de Joaquim de Paço d’Arcos, cuja Crónica da Vida Lisboeta, seis romances centrados na capital, merece leitura. Entrei, então, numa viagem num Portugal colonial, mas ainda não sei como ela acaba. Uma curiosidade. A história de Paço d’Arcos é inspirada por Carlos Burnay da Cruz Sobral, um aristocrata que foi um desportista de múltiplos interesses, tendo sido também jogador de futebol em vários clubes de Lisboa, nos primeiros dois decénios do século XX e que morreu numa colónia portuguesa em luta corpo-a-corpo com um leão. O herói do romance herda de Carlos Sobral não tanto a vida e a biografia, mas os traços psicológicos. Entrei, portanto, numa viagem colonial.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Exaltação patriótica

Depois de uma manhã com aguaceiros, alguns bastante irados, ameaçando mesmo apedrejar carros e peões, a tarde furtou-se ao império da cólera e permitiu que um sol radioso caísse sobre a cidade. Um brilhante sol de Inverno, apesar de estarmos no Outono. Há um vento frio, quase cortante, a soprar de Norte, mas apetece estar na rua, caminhar sem destino definido, a não ser o de retornar a casa. Há 383 anos, os conjurados puseram fim ao domínio dos Filipes, um acto sensato, pois quem teria paciência para falar uma algaraviada que se fala ali ao lado a que, por equívoco, chamam espanhol, mas que não passa de castelhano. Eu sou como o outro, embora o outro nem chegasse a ser um heterónimo, mas um semi-heterónimo, que dizia Minha Pátria é a língua portuguesa. Não gostaria de ter de falar em espanhol, não porque deteste Espanha, não detesto, pelo contrário, mas porque os sons da minha infância, os sons que ouvia e ainda não os sabia imitar, eram na música do português, na qual terei sido embalado em algumas noites mais tempestuosas. O tal semi-heterónimo também diz uma coisa sobre a ortografia que subscrevo palavra por palavra: Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. Aquilo que, em 1911 e em 1990, fizeram ao português, foi destruir-lhe a dimensão visual, a forma como se vestia, primeiro passo para dinamitar a sonoridade. Quiseram, em nome da plebe, destruir-lhe os traços nobres, o aspecto aristocrático, mas os Miguéis de Vasconcelos da língua não sabem que aquilo de que a plebe mais gosta é do aspecto aristocrático, e tudo o que se apresente a essa plebe como plebeu merece-lhe o maior dos desprezos. O que fizeram ao português, quanto ao aspecto visual da língua, teria um equivalente, no campo do património, na destruição de tudo aquilo que perdeu a utilidade. Castelos sem cavaleiros, conventos sem monges, igrejas sem culto, ruínas romanas sem romanos? Não passam de consoantes mudas. Que se deitem abaixo. Foi isto que fizeram ao português, destruíram-lhe a memória, roubaram-lhes a filiação, apagando os retratos de família. E nem foram precisos espanhóis. Devo ter sofrida uma insolação, para tão exaltado verbete.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sem parar

Há qualquer coisa de sinistro no desfiar do tempo. Novembro, tal como veio, assim se vai. Por certo, mais frio, como se o seu corpo fosse já um corpo morto, à espera das exéquias fúnebres e posterior forno crematório. Eis um começo tétrico, mas não se pode começar sempre com ambientes galhofeiros e folgazões. Eis duas palavras que estão longe de me agradar, mas assim como se deve variar o ambiente, também se recomenda que se diversifique o léxico, usando aquilo de que se gosta e aquilo de que não se gosta, para que também, ao nível estético, haja uma diversificação. O que caiu na trama da invariância há alguns dias foi o crepúsculo, esse momento em que, de súbito, o dia se precipita nos braços da noite e, no terrível amplexo que então acontece, o másculo dia seja devorado pela feminil noite. Sobre estas imagens não faço comentários e omito as razões para tal renúncia. Resta comentar o crepúsculo que se tornou invariante. O traço mais marcante é ser lacrimoso, a que se adiciona um aceno melancólico e um trejeito onde, no tremor sublinhado pelo vento, se descobre o temor da morte próxima. Morre o dia, morre Novembro e o ano prepara já a hora em que entregará a alma ao criador. Como se sabe, também os anos têm alma e, por isso, são diferentes. O criador dos anos tem uma enorme colecção de almas. Colecciona-as para se comprazer na eternidade, lembrando-se, ao vê-las, daquele tempo em que existia tempo. A tonalidade amarelada da iluminação pública desenha fantasmas pelas ruas. Uma sombra solitária passa lá em baixo, enquanto se ouve o latir ansioso de um cão abandonado. Os segundos sucedem-se sem parar.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Em nenhures

Fez-se noite sem que tenha dado por isso. Perdi o crepúsculo, que é sempre uma hora muito poética. Não se sabe bem a razão. Talvez, imagino, porque a poesia seja um discurso crepuscular, ali na fronteira entre a luz e as trevas. Outra possível razão será a de haver poetas que gostam de se apresentar como seres crepusculares, gente que se imagina a deixar a luz da razão para entrar nas trevas do sentimento. Uma outra poderá residir no sentimento poético de se estar numa época de declínio. Aqui, de forma decidida, entramos no reino da metáfora. Parece que a minha neta mais nova está a ser massacrada, mas ainda não percebi se é com fracções, com os verbos être e avoir ou com um qualquer facto histórico, com as suas ominosas causas e as suas tenebrosas consequências. É o que faz podermos conversar online. Da conversa passa-se rapidamente para as lições. Não me parece muito saudável, se me ponho na pele da pequena. Ela resiste, mas depois cede e acaba por ficar agradecida. Perante mim está deitado na secretária um livro de Cormac McCarthy, A Travessia. Na capa, tem uma cruz. Fico a pensar que o autor tem uma certa inclinação para a deslocação. Um outro romance dele, terrível e belo, portanto, às portas do sublime, tem o nome de A Estrada. A mim, porém, o que me fascina são os caminhos que não levam a lado nenhum. Caminhos que levam a nenhures. A um não lugar. Imagino, agora, que o espaço possa não existir, que seja apenas uma ilusão que certas espécies animais têm para poderem persistir na vida. Caso isso seja verdade, então estamos constantemente em nenhures, mas, é preciso levar o raciocínio às suas últimas consequências, o verbo estar é um equívoco, pois não existe qualquer estância onde se possa estar. Em nenhures não há estradas nem travessias, talvez crepúsculos, fracções, verbos franceses e acontecimentos históricos que ocorreram em nenhures, isto é, não ocorreram. Acho que preciso de fazer exercício físico para aclarar as ideias.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Do colesterol

A coisa é uma mixórdia indigna, vinda daquele país de onde não vem nem bom vento, nem bom casamento. O vento já experimentei e não era, de facto, grande coisa. Quanto ao casamento, não sei, pois nunca me casei com alguém vindo daqueles lados. Estava a referir-me, porém, a uma coisa que tem o condão, julgo, de contribuir para o aumento do colesterol, do mau, diga-se, pois consta que também há um bom. Estando sozinho e na iminência de ter de comer aquilo que cozinhasse tomei a decisão de ir almoçar ao bar do outro lado da rua. Seja o que for que escolha, pensei, não será pior do que aquilo que possa sair das minhas mãos. Na generosa lista de coisas que fazem mal à saúde, escolhi uns ovos rotos. Não sei se haveria pior, mas esforcei-me na escolha do mau. Quantos pontos cardio terei de fazer para anular os efeitos do meu livre-arbítrio? O vinho que bebi era, por seu lado, bastante razoável e talvez tenha um poder de anulação dos efeitos da escolha que fiz. Saciado, colesterolado, bebido, mas bem sóbrio, descubro nos canais de informação que na televisão russa se discute a anexação de Portugal. Consta também que há um partido espanhol que acha que a Espanha ocupa toda a Península Ibérica. Sabemos que o mundo está polvilhado de malucos, mas também sabemos que os malucos têm uma inclinação para fazer maluquices. Sem me meter em assuntos políticos, julgo que podemos conceder em comer ovos rotos e ouvir o coro do exército vermelho a cantar o Kalinka, tudo isto num ambiente alegre, quanto ao resto preferimos o colesterol bem português, as alheiras de Mirandela, a carne de porco à alentejana, os carapaus alimados, o cozido à portuguesa ou a feijoada à transmontana. Dito de outra maneira, nem xerez nem vodca, apenas uma chula minhota, um fandango ribatejano e um corridinho algarvio. Quanto mais perto do 1 de Dezembro, mas se me inflama o coração. É do colesterol, oiço. Agora, chove copiosamente, pois não há chuva digna desse nome que não seja copiosa.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Um belo tempo

Novembro está por um fio. Nem ao fim-de-semana chegará, morre na quinta-feira e enterra-se na sexta, dia em que se comemora a defenestração do Miguel de Vasconcelos. Consta que aquilo não foi bonito de se ver. Quando foi encontrado no palácio real, os conjurados crivaram-no de balas. São coisas que acontecem. Morto, atiraram-no pela janela. O que o povo fez ao corpo foi uma verdadeira profanação. Talvez inspirados na Antígona de Sófocles, os vitoriosos deixaram-no na rua para ser lambido pelo cães. Talvez todos os dias gloriosos tenham escondida uma luz tenebrosa, pois a glória, quando trata das coisas terrenas, não é mais que o exercício das paixões mais ardentes, as políticas, assunto não permitido neste blogue. O dia de hoje não foi muito diferente do de ontem. Névoas e nevoeiros, mas nada de D. Sebastião. Atravessei a cidade duas vezes e havia nela uma grandeza que não se encontra nos dias luminosos. É como se o tempo nebuloso lhe fizesse aparecer os traços de lugar muito antigo, onde as próprias rugas são um sinal não apenas de dignidade, mas ainda de uma beleza que o sol não ilumina. Talvez sejam os meus supostos genes das terras frias do Norte a falarem. Quando a cidade está assim, sinto-me em casa e há em mim um contentamento que não sei bem de onde virá. Recosto-me na cadeira, olho a rua e o mundo parece perfeito ou o melhor dos mundos possíveis.

domingo, 26 de novembro de 2023

Alívio

Talvez seja hoje. Nunca devemos desesperar perante aquilo que é impossível. Quando, pela manhã, abri as persianas vi que uma névoa caía pela cidade. As horas foram passando e a névoa é agora nevoeiro. O hospital e o bosque da escola aqui ao lado desapareceram, a própria escola começa a entrar nessa terra do invisível que anuncia a sua inexistência. Havendo aqui um pequeno rio afluente do Tejo, não será impossível que o desejado D. Sebastião aporte na avenida, num pequeno barco a remos, como aqueles que em tempos permitiam aos locais recrearem-se a troco de uns escudos. Uma parte da população já não sabe que escudos eram a moeda em que comprávamos as coisas necessárias à existência, onde se incluíam as desnecessárias a essa mesma existência, e pensará que são armas defensivas do tempo da cavalaria, usadas para evitar os golpes das espadas e das lanças. Pagavam-se então uns escudos, não me lembro quantos, para uma meia hora a remar, mais ou menos como se se pagasse um táxi e se fosse obrigado a conduzi-lo. Desvio-me do meu objectivo. O retorno, por fim, do nosso Rei bem-amado que tinha uma particular propensão para confundir a realidade com histórias de ficção. Como se sabe, a realidade é uma megera de vida dissoluta, pouco confiável, e pregou-lhe uma partida da qual nem ele nem nós estamos ainda recuperados. Ele sonha em voltar, nós sonhamos em que ele volte, o problema é que sonhar supõe estar a dormir. Assim, ele continua a dormir e nós, para não destoar, ressonamos. Acordados, nem ele se lembra de querer voltar, nem nós o queremos receber. Aborrecimentos, contratempos e adversidades já temos que cheguem, dispensamos mais uma crise dinástica. Agora que escrevi o que escrevi, o nevoeiro está a recuar. Suspiro de alívio.

sábado, 25 de novembro de 2023

Uma agulha

Não foi com um alfinete, foi com uma agulha. Não treslouquei, embora presunção e água benta, cada um toma a que quer. Não estou a narrar alguma aventura minha na nobilíssima arte da costura, a qual evitou, durante muito tempo, que andássemos nus por esse mundo fora, a fazer figuras ainda mais tristes do que as que fazemos quando estamos vestidos. Queixei-me, já não sei bem a quem, de que tinha de mudar de telemóvel. Estava com um problema a carregá-lo, pois a porta micro usb devia estar avariada e eu não conseguia acoplar devidamente o cabo do carregador ao telemóvel. É do cotão, ouvi. Do cotão, qual cotão, perguntei eu, incrédulo e desconhecedor dos factos da vida. Andamos com o telemóvel no bolso e o cotão vai-se introduzindo na ranhura da porta micro usb, explicaram-me com paciência. Usa um alfinete e vais ver o que sai de lá. Foi um conselho generoso e gratuito, mas ao qual não dei grande atenção. Hoje, porém, cansado de estar a ajustar o cabo ao telemóvel, lembrei-me do conselho. Tentei um clip, mas era demasiado grosso. Fui em demanda de um alfinete e encontrei agulhas de coser. Peguei numa e pus-me a esgaravatar a porta micro usb. A princípio o exercício parecia inútil, mas, ao insistir, começou a sair de lá tanto lixo que fiquei de boca aberta. Entreguei-me, depois de fechar a boca, a um exercício de limpeza. Concluída a operação, liguei o cabo ao telemóvel. Milagre, pensei. Era mesmo o cotão o culpado dos carregamentos infelizes. O problema desta aventura é que não tenha encontrado um Homero ou um Virgílio para a cantar, pois não fica abaixo, por exemplo, da vitória de Ulisses sobre os pretendentes. Pelo contrário, quase sou tentado a reconhecer. O sábado, como todos sabemos, é um dia propício a grandes aventuras. Está cheio delas, mas faltam os grandes bardos para as trazerem ao público.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Evitar a litania

Poderia começar por entoar a litania das sextas-feiras em honra da aproximação do fim-de-semana. Seria um início justo, mas não glorioso. A glória está para além da justiça. Uma coisa justa é uma coisa ajustada. Ora, a glória transcende o ajustamento, a adequação. O glorioso é desadequado, por excesso de adequação; é desajustado por sobejo de ajustamento. Leio a palavra samovar e imagino-me dentro de um romance russo. Aqueço a água para preparar o chá. Tudo isto, porém, é falso. Não possuo um samovar, não estou a aquecer água nem numa cafeteira eléctrica, nem sou um adepto do chá. Também não sou russo, sou apenas um meridional com nostalgia das terras do Norte. Depois da minha viagem por um romance de Thomas Mann, comecei outra num da Irène Némirovsky. Estas são as minhas viagens preferidas, contrariamente às viagens turísticas. Há pessoas que fazem viagens turísticas, mas estão convencidas que não são turistas, pois o seu viajar, por ser de uma outra ordem, embora não consigam explicar qual é essa ordem, tem uma distinção tal que não se confundem com a plebe turística. Cada um tem as ilusões que deseja, pode imaginar-se como aristocrata no século XVIII ou bombeiro voluntário no século XXII. Como não possuo alma de turista, tenho sempre uma certa resistência a deslocar-me, mas quando o faço vou convicto de que não passo de um mero turista, apesar de acidental. Contudo, se viajo num romance sinto-me um não turista, alguém que mudou de país e se instala aí, nessa nova pátria. Ler é instalar-se num universo em que se pode deambular sem sair do mesmo sítio. E é isso o que mais gosto, ser plenamente fiel à minha condição de provinciano sem mundo. Há quem sussurre aos meus ouvidos que não passo de um comodista. Eis um epíteto que transporta uma acusação moral, da qual não tenciono defender-me. Sempre evitei a litania das sextas-feiras.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Moral da história

Imagine-se que alguém escreve, como eu li há pouco, este romance não tem moral. Aqui não ter moral não significa que seja imoral. Seria uma obra que estaria além, ou aquém, do moral e do imoral, que estaria, para citar um título de uma obra de Nietzsche, para além do bem e do mal. Isto, todavia, faz parte do imenso catálogo das presunções humanas. Queiramos ou não, a moralidade envolve-nos de tal modo que nunca podemos escapar a ela. Um deus ou um animal não racional estariam para além da moralidade, mas não um ser que combina a animalidade com a racionalidade. Somos intrinsecamente seres morais e o que fazemos vem impregnado com a moralidade que nos constitui. Esse estar para além da moralidade não passa de um exercício imoral da vaidade humana. Em todos os romances que li até hoje nunca deixei de encontrar traços dessa moralidade, dessa presença obsidiante do conflito entre o bem e o mal. A própria linguagem, porque é humana, demasiado humana, está impregnada de moralidade. Não é por acaso que actualmente se travam terríveis disputas em torno da moralidade da linguagem, pois as palavras não estão para além do bem e do mal. Elas são o veículo expressivo de um e de outro. As histórias que contamos, por mais destituídas que sejam de acção, não dispensam as palavras e estas arrastam consigo o peso da moral. Logo, a moral da história é que todas as histórias têm a sua moral.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Profecias

Ao passar os olhos pela informação em linha, deparei-me com uma apresentação com o extraordinário título As preocupantes profecias de Stephen Hawking: fim do mundo está próximo. Um tremor invadiu-me o corpo e um temor atacou-me o coração. Fui vendo a apresentação e descubro que se a humanidade continuar a levar a vida que tem levado, isso conduzirá à destruição da Terra em menos de 600 anos. Chegado a este ponto, confesso o meu egocentrismo, respirei fundo. Não estarei cá, nem os meus filhos, netos, bisnetos. É mesmo plausível que a linha de descendência acabe e nenhum longínquo neto meu exista, quando o nosso planeta colapsar e se transformar numa bola de fogo, devido ao aumento populacional e ao incremento no consumo de energia. Meditei, depois, mais profundamente no assunto e lembrei-me de que Hawking não era um profeta, mas um físico. Um físico não faz profecias, mas previsões. Ora as previsões são uma forma de raciocínio indutivo que, segundo o parecer de David Hume, não está justificada racionalmente. As profecias são infalíveis, embora nunca se saiba a razão por que as consideramos infalíveis. Já as previsões são falíveis. O célebre físico tinha ideias extravagantes. Por exemplo, de que deveríamos emigrar para Alfa-Centauri. Haverá lá outras terras que estão à nossa espera. Assim, teremos oportunidade para transferir o conjunto de aleivosias que fazemos aqui para outro lado. Seria uma espécie de internacionalização da economia, no caso da economia do mal. Aquilo nem é muito longe, são apenas 4 anos-luz, qualquer coisa como 37 843 200 000 000 km. Seja como for, sou adepto de que sejamos enviados para lá, pois nunca lá chegaremos. A Terra livra-se de nós e os outros planetas propícios ao nosso modo de vida não teriam o desprazer de receber visitas tão inoportunas. Também eu sou um profeta.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Dom da ubiquidade

Alguém escreveu que as pessoas têm interesse de serem autores de si próprias. Imagino-me a ser autor de mim mesmo, a criar-me, fazendo-me vir do nada. O facto de as pessoas terem esse interesse apenas mostra que possuem muita presunção. Apesar de não ter sido Sartre o autor da frase, ele poderia subscrevê-la, com aquela história da existência precede a essência. A minha experiência de narrador prova o contrário. Eu não sou autor de mim próprio, mas uma criação de um autor com o qual tenho uma pendência nunca dirimida. Esse autor de mim, porém, não é autor de si mesmo, mas uma espécie de cuidador que tenta evitar que esse si mesmo, criado por outros, não se transvie. É nesse cuidado de si que se enxerta a ilusão de se ser autocriador. Ora, cuidar de mim já é uma tarefa suficientemente árdua, mais árdua seria a de ser autor de mim. Como se pode observar pelo escrito anteriormente, estou sem assunto digno de anotação. Seja como for, o que eu queria era ilibar-me da verrina de presunção, confessando, com humildade, que estou inocente do crime da minha autoria. Acabei de receber um telefonema solicitando a minha presença num certo sítio a uma certa hora de um certo dia. Ora, a essa hora desse dia eu terei de estar num outro lugar. Fosse eu criador de mim mesmo ter-me-ia dotado do atributo da ubiquidade. Como não o possuo, está provado que não sou autor de mim mesmo.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Lei da compensação

Ultimamente, as segundas-feiras têm tido uma certa agitação. Imagino que seja a instanciação na realidade – isto é, na minha realidade, caso exista realidade e eu possua uma – de alguma lei da compensação. Assim como à bonança se segue a tempestade, também ao sossego do fim-de-semana se deverá seguir a agitação de segunda-feira. Esta explicação conforta-me, não porque me descanse da agitação, mas por me oferecer uma explicação. No fundo, somos todos como aqueles superiores hierárquicos que, desagradados do comportamento de algum subordinado, lhe exigem explicações. As explicações não servem para nada a não ser responder à perplexidade do superior, uma forma de mitigar a eventual cólera. Dão-lhe um certo conforto, pois confirmam-lhe a autoridade e permitem-lhe compreender o que não tinham compreendido. Estava a falar da lei compensação, ela encontrou em Ralph Waldo Emerson a seguinte formulação, se for pronunciada em português do Brasil: você recebe o que você dá. Eu nunca teria elaborado uma lei destas, uma lei que conduz a uma soma nula. Se não der nada, nada recebo. Fico apenas com aquilo que tinha. Ora se eu der 7/10 do que tenho, irei receber o equivalente a esses 7/10. Por grosso, depois da troca, fico exactamente como estava no início. Daqui se conclui que dar alguma coisa ou não dar nada é exactamente igual. Não sei se Emerson terá pensado nas consequências da sua lei, na paralisia que arrasta consigo. Talvez Emerson não tenha alma de legislador. Talvez tenha ficado demasiado tempo a meditar as obras de Swedenborg e acabou por não pensar no que escreveu. Há casos desses, de pessoas que não pensam o que escrevem. É possível que alguém com intenções soezes venha dizer que esse é o caso deste narrador. Não pensa o que escreve. Como não sou bom julgador em causa próprio, suspendo o juízo sobre o assunto. Caiu a noite.

domingo, 19 de novembro de 2023

Da rasura da memória

Recebo uma mensagem de um amigo, perguntando-me se eu tinha um certo texto, de 1962, do filósofo francês Paul Ricoeur. Fiz uma pesquisa pelo índice das obras do autor onde essa conferência dada em Roma poderia estar. Encontro apenas um título aproximado. Esse também ele tinha, informou-me. Recordei-me então que, na estante, dormia uma bibliogafia sistemática das obras do autor, com tudo o que escreveu e o que escreveram sobre ele até certa altura. Lá encontrei a referência ao texto e era aquele que tinha o título aproximado. Percorro a conferência, agora parte de um capítulo de uma obra importante do filósofo francês, e descubro que o tinha lido e trabalhado. Caso me o tivessem perguntado, teria respondido peremptoriamente que não. Contudo, havia sublinhados a lápis e comentários nas margens, também a lápis. Reconheci facilmente a letra como minha. Não encontro melhor explicação para o facto de ter sido eu a ler aquele texto, até porque não me lembro de alguma vez ter emprestado a obra. Resta-me concluir que fui eu que o li. Toda esta prosa insípida e maçadora serve para sublinhar um magno problema. Trata-se da retenção. Os psicólogos, julgo, estudam a memória e a sua capacidade de reter informação, mas essa informação descritiva não consegue apaziguar a perda que todos os leitores devem sentir pela rasura que o tempo produz nas suas leituras. A memória não passa de um lençol esfarrapado, onde o vazio ocupa uma área muito superior à do pano. Esse texto, cuja memória me foi roubada pelo voraz Cronos, diz a certa altura que não há acesso linguístico ao mal, quer o sofrido ou o feito, quer o moral ou físico, senão através de expressões simbólicas, tais como nódoa, desvio, errância, peso, queda, etc. Isto significa que, na fala ou na escrita, não existe uma literalidade do mal, mas todo o mal só se pode dizer simbolicamente. Podemos fazer ou sofrer literalmente o mal, mas não o podemos dizer literalmente. Ora, e aqui abandono o caminho do texto de Ricoeur, o que se descobre é que a língua contém um pudor essencial, uma contenção que não lhe permite exprimir senão por via indirecta aquilo que é inominável. Desconfio, porém, que o mesmo se passa com o bem, com o amor, com o que quer que seja de decisivo na vida. A literalidade da existência só se deixa capturar na linguagem pelo desvio do símbolo, da metáfora. Toda a linguagem é um exercício de retórica e de poética. Talvez esta estratégia seja uma tentativa desesperada para evitar o esquecimento. Debalde.

sábado, 18 de novembro de 2023

Sal da terra

Ainda se está na parte da manhã, e eu já fiz a minha caminhada e ganhei os pontos cardio respectivos. Estas caminhadas são interessantes, pois trazem-se ao ponto de onde parto. Se não as realizar, fico exactamente no mesmo lugar em que ficaria se as fizesse. Poderia também caminhar sempre no mesmo lugar, limitando-me a um exercício de mover as pernas para cima e para baixo durante um período previamente determinado. Quando caminho, faço-o para chegar onde estou. Tornei-me com o tempo um adepto do príncipe Falconeri, esse jovem impetuoso Tancredi, que, perante a céptica visão do príncipe de Salina, se saiu com aquela frase repetida até ao infinito, tudo deve mudar para que tudo fique na mesma. Eu mudo de lugar, a cada passo, para ficar no mesmo lugar. Consta que o romance de Giuseppe Tomasi de Lampedusa teria sido inspirado pela inscrição no brasão da família do autor, Nós fomos os Leopardos, os Leões; quem nos substituirá serão os pequenos chacais, as hienas; e todos – Leopardos, chacais e ovelhas – continuaremos a achar que somos o sal da terra. Também no brasão familiar, caso o que consta seja verdadeiro, há uma dose significativa de cepticismo sob o manto felpudo da ironia. Isto coloca a questão do bom pastor, como poderá ele proteger as ovelhas dos leopardos, dos leões, dos chacais e das hienas, sem lhes alimentar a ilusão que também elas são o sal da terra? Há uma distância infinita entre a afirmação evangélica, quando Cristo se dirige aos apóstolos dizendo-lhe vós sois o sal da terra, e a expressão sal da terra contida no brasão. A primeira surge quase como um aviso, uma admoestação, para que cuidem da herança e possam condimentar a terra, caso contrário serão lançados fora e pisados pelos homens. A segunda é contemplação satírica da vaidade humana, da sua pretensão de ser alguma coisa de fundamental no destino da terra. Por mim, evito o sal, por causa da hipertensão. Isto é uma mentira. Não evito, modero-me no seu uso, esperando que os hipotensores façam a sua parte.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Rêveries

Cheguei a pensar que hoje era dia 18, mas percebi que não, que o tempo não tinha acelerado, que até agora a natureza se mantivera idêntica ou uniformemente regular. Não permite saltos no tempo, pois terá medo de cair num abismo qualquer. Quando percebi que ainda estávamos a 17, decidi ir espairecer, caminhar pelas ruas da cidade, acumular pontos cardio, observar, enviesando os olhos, o movimento, que era intenso. Intenso, neste lugar quase esquecido pelos deuses, será uma hipérbole, mas, comparado com outras horas do dia, a figura de estilo não será errada. Naquela hora crepuscular, a cidade tingia-se de sombras e um cinzento prateado que descia do céu foi, ao longo do meu passeio, escurecendo. Entrei em casa quando chegava a noite. Rousseau, o genebrino Jean-Jacques, deixou para publicação póstuma e inacabada, as Rêveries du promeneur solitaire. Como ele, também eu sou um passeante solitário. Como ele, também eu sou acometido por rêveries, mas são tão insípidas que logo as esqueço. Se um acaso me proporciona alguma meditação que poderia partilhar com o mundo, o facto de não a poder prender em mim faz com que ela se desvaneça. Poderia gravá-la no telemóvel enquanto ia caminhando, mas temo que achem que enlouqueci e chamem uma ambulância para me internar. Assim, finjo que vou concentrado nos caminhos, mas deixo a mente perdida em fantasias de pouco relevo. Chegado a casa, sento-me e tudo se apaga, como se fosse um sonho nocturno que o espírito, pela manhã, recorda, mas que logo se apaga. Estou pouco inspirado, vou continuar a minha leitura. Sua Alteza Real, Nicolau Henrique, anda a arrastar a asa à menina Imma Spoelmann. Será que a Fraülein se disporá a abrir o coração ao arrastador? Tenho ainda umas dezenas de páginas para o saber. Não se trata de uma novela de má fama, mas do romance Sua Alteza Real, de Thomas Mann, onde, perante os olhos do leitor, a velha aristocracia perde o sentido da sua existência. Coisa que acontece a tudo o que existe. Primeiro perde o sentido e depois a própria existência.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Uma mulher

Aos sessenta e nove anos era uma bela mulher, o tempo poupara-a e a pele ainda não cedera ao poder das rugas. Vejo-o numa fotografia. Contemplo longamente os seus olhos azuis, a pele branca, o cabelo cendrado. No rosto, há vestígios de um calvinismo que o tempo não terá conseguido apagar e nos olhos uma hesitação entre a melancolia e a altivez. Imagino-a alta e fantasio os olhares dos homens que, ao passar, ela prende, mesmo quando os setenta anos lhe batem à porta. Descubro que a infância e a adolescência não terão sido fáceis, o mundo nem sempre é afável para com as pessoas, mesmo se lhes foi dado o dom da beleza. Olho pela janela do escritório, descubro que o Verão de S. Martinho acabou, e o dia repousa na cinza outonal que cobre a cidade. As folhas das acácias entregam o verde que as cobria num amarelo cor de limão. Tinha um compromisso às duas e meia da tarde, mas adormeci. Quando acordei, sorri e, em vez de ver no caso uma humilhação trazida pela idade, julguei que o meu corpo inclinado para o sono era muito mais sensato que a minha razão submissa a obrigações. Volto à fotografia e imagino aquela mulher aos quarenta anos ou no dia em que comemorou os vinte. De súbito, descubro-lhe, no devaneio, os traços de Eduína, essa amiga que me deixou em herança três cadernos escritos que vou lendo muito lentamente, com a relutância de quem é tocado pelo pudor perante os segredos dos outros, mesmo que a herança seja uma forma de confissão.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Pôr-se a caminho

Devia pegar em mim e pôr-me a caminho. Melhor, pôr-me no caminho, que é o sítio onde se caminha, o que, consta, faz bem à saúde. Talvez ainda seja cedo para que a caminhada tenha uma tonalidade romântica. Um pouco mais tarde e poderei dizer caminhei ao crepúsculo. Para adensar o romantismo poderei mesmo dizer um ser crepuscular caminha ao crepúsculo. A preguiça, contudo, diminui-me a veia romântica e deixo-me estar sentado, enquanto a soprano Ingrid Kappelle, acompanhada pelo pianista Håkon Austbø, canta melodias de Olivier Messiaen. Recordo-me bem qual foi a primeira peça que ouvi do compositor francês. A sinfonia Turangalîla, mais tarde fascinou-me o Quatuor Pour la Fin du Temps. Desconfio que Messiaen é muito mais forte do que a ideia de caminhar. Fico sentado, a música, como o tempo, esvai-se, e eu deslizo com ela e com o tempo para esse lugar onde todas as caminhadas encontram a sua meta. Observo as metamorfoses do céu, a declinação da luz, o crescer das sombras à procura da escuridão que lhes trará a paz da noite. Hoje já tive a minha dose de videoconferências, pratiquei com afinco aquilo que não leva a lado nenhum. Para ser mais exacto, tornei-me num asceta da inutilidade. Por vezes, considero que falhei a existência. Deveria ter dado em trapista ou cartuxo. O problema, porém, é que teria de renunciar à minha condição de narrador e no caso plausível de optar pela Cartuxa, deveria cultivar o silêncio. Isso seria um bem para o mundo, menos uns disparates lançados por aí, mas talvez um mal para mim, pois narrar é libertar-me das ideias absurdas que se desenham na minha alma. Escolhendo o silêncio, o absurdo acumular-se-ia em mim e correria o risco de explodir. Um espectáculo degradante. Vou caminhar e levo o Messiaen no telemóvel.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Tarde de Verão

Tarde é o que nunca vem. Eis uma sensata expressão da sabedoria popular. Ora, o famoso Verão de S. Martinho acabou por chegar, trazendo sobre a cidade uma luz viva, apesar de esbranquiçada. Faltou ao encontro marcado com o dia de festejo do santo, mas veio em silêncio como se não fosse nada com ele. Estamos perante um caso de manifesta subversão na hierarquia dos poderes celestes. S. Martinho terá descido nela, mas talvez não tanto quanto se pensava. É preciso estar atento aos sinais e praticar com cuidado uma hermenêutica rigorosa e atenta ao conflito das interpretações. Aproveitando uma aberta nos afazeres, desloquei-me a uma loja que também vende livros para levantar dois que tinha encomendado online. Em frente do estabelecimento comercial há um bar que vende uns óptimos pastéis de nata. Dirigi-me a ele, antes de ir buscar os livros, mas não estava ninguém por detrás do balcão. Fui buscar os livros e voltei. Ninguém, apenas uns belos pastéis de nata a rirem-se para mim. Esperei um pouco, e descubro um papel no balcão dizendo: Peço desculpa, volto já. Aceitei as desculpas, esperei mais, mas quem devia voltar não voltou. Fui-me embora. Que hermenêutica fazer destes acontecimentos? Que não devo comer pastéis de nata? Que não os devo comer quando compro livros? Que não devo comprar livros? É isto que se chama conflito das interpretações. Há outras hipóteses que não eliminam estas. Por exemplo, o funcionário foi abduzido por extraterrestres para lhes ensinar como se vendem pastéis de nata. Outra hipótese é ter desistido do emprego e, para mascarar a situação, deixou aquele aviso. Temendo que ele tenha sido mesmo abduzido, passado um minuto, fui-me embora, antes que os extraterrestres voltassem e me levassem a mim para lhes explicar o que é o gosto de um pastel de nata. Uma decisão sábia, pois não fui abduzido e posso estar agora a narrar estes acontecimentos. E os livros? Bem, julgo que os extraterrestres já passaram a fase da leitura de livros e pouco interessados estariam em Irène Némirovsky ou Henrik Pontoppidan. Está uma tarde de Verão. De S. Martinho, claro.