domingo, 31 de outubro de 2021

Tempo de broas

Outubro despede-se com dia aumentado. Talvez ele esteja preso na amargura por ter de partir e lança mão a todos os estratagemas para evitar a ida sem volta. Por isso, precisa de 25 horas, compreende-se. De resto esteve um domingo plangente, espalhando a lástima por tudo o que é canto. As pessoas recolhem-se em casa e começam a sonhar com lareiras. O pior é que não está frio, apenas a água e o tédio envolvem o ambiente. O dia não foi mau. Falei com os três netos. Em primeiro lugar, com o mais novo que me perguntou se estava em casa, depois com as mais velhas que me informaram estarem de saída para uma noite de Halloween em casa de amigos. Talvez o mais novo tivesse medo que também eu fosse para o Halloween. Amanhã será dia santo ou o dia de Todos-os-Santos. Tempo de broas, que têm o condão de me saberem muito bem e de me fazerem bastante mal. Culpa minha, pois cedo sempre à tentação e ultrapasso a justa medida. Para tudo, como sabiam os antigos gregos, há uma medida justa. Nada deve ser feito em excesso e também se deve evitar a falta. A discussão, porém, surge de imediato. Cada um tem a sua justa medida ou existe uma justa medida universal, ou, ainda, a justa medida pode ser, ao mesmo tempo, individual e universal? São estas coisas que me atormentam a consciência, enquanto vou comendo broas e o organismo não se queixa.

sábado, 30 de outubro de 2021

Melancolia de sábado

Não tem sido um dia fácil, o de hoje. Não por causa da chuva e do mau tempo, mas por necessidade de ter de tomar decisões e fazer coisas desagradáveis. Por vezes, é necessário pôr as mãos não na massa, mas naquilo que tem um péssimo aroma. Todos gostaríamos que a vida aqui na terra fosse um paraíso, mas parece que os astros não estavam para aí virados, quando fadaram o destino da espécie humana ao cimo desta pequena bola rochosa. De resto, a chuva tem animado as terras e terá contribuída para que as barragens não se afoguem na secura. Isto digo eu que de barragens e de chuva nada sei. Está um sábado triste, nimbado por uma melancolia vagarosa. Na avenida não se avista ninguém, apenas os carros, poucos, passam, deixando uma esteira, feita de uma pequeníssima babugem, aberta pelos pneus ao rodar sobre os lençóis de água que cobrem o alcatrão. No bosque da escola aqui ao lado, cedros, ciprestes e pinheiros oferecem a folhagem ao anoitecer. Os campos de jogos estão vazios, nos beirais dos prédios não se avistam pombos, apenas o hospital, mais ao longe, deixa o branco das paredes contaminar-se com a ferrugem dos fungos. Não tarda e será noite.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Bolachas do Halloween

A profecia meteorológica confirmou-se. Chove, o alcatrão parece um espelho, os carros passam devagar para não molhar os transeuntes. Estes equilibram guarda-chuvas em mãos desabituadas, encolhem-se como se estivesse por aí o Inverno. Ainda não chegámos ao S. Martinho, o qual tem tendência para pequenas estiagens, nem tão pouco aos Santos e a Fiéis Defuntos. Ninguém quer saber deles, dos Fiéis Defuntos e ainda menos dos Santos, mesmo que venham por atacado e sejam todos. O que move os ânimos é o Halloween, essa velha tradição ibérica, com fortes raízes em Portugal. Já hoje me perguntaram se queria uma bolacha do Halloween. Nem estava a perceber. Uma bolacha de quê, perguntei. Do Halloween, responderam-me. Para além das bolachas Maria, Torrada, de Araruta, Americana, também há bolachas do Halloween, voltei a perguntar. Confirmaram. Até me ofereceram a possibilidade de comer uma. Disse que sim, mas depois esqueci-me e perdi a extraordinária possibilidade de aumentar o meu conhecimento gastronómico. Está uma verdadeira sexta-feira, daquelas que fazem lembrar longos fins-de-semana sem afazeres prementes. Continua a chover e o crepúsculo aproxima-se. Não sei a razão, mas estou a ouvir um álbum com a música para piano de Michael Nyman. Há qualquer coisa que não combina. Acho que vou mudar para Die schöne Müllerin, de Franz Schubert. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Coisas diversas

Consta que no próximo fim-de-semana muda a hora. Também constou que hoje mudava o tempo e que, a esta hora, deveria haver aguaceiros a sério. Ora, está uma noite tranquila. Nada de chuva. Tenho esperança de que também a hora não mude no fim-de-semana. Não é que me faça grande diferença, a não ser ter de acertar um ou outro relógio, mal dou pelo acontecimento. Parece que o país anda divertido com as peripécias da distribuição da mercearia. Houve um problema qualquer com o rol, mas sobre isso estou proibido pelo autor de fazer comentários. Isto é muito injusto. Um autor pode ter opiniões políticas, mas um narrador está proibido. Nem sequer pode falar em róis de mercearia, nem de venda a grosso e a retalho. Nada. Por outro lado, ouvi dizer que a pandemia ainda não está domada, que os casos podem vir a aumentar exponencialmente. O pior é o senhor da Marinha já não estar ao leme. Sempre podia chover, as terras estão a precisar de água e não tarda virá por aí grande charivari por causa das barragens. E ainda me lavava o carro que tenho na rua. Na minha frente repousa um livro que deve pesar mais de um quilo. É um saber substancial, diga-se. Não partilho o título para preservação do que resta do meu bom nome, se é que alguma vez o tive, ou possa haver um nome que seja bom.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma aventura

Entrego-me ao anacronismo. Deveria contar uma aventura de hoje, mas não encontrei nenhum torto para endireitar, nenhum gigante para pôr na ordem. Resta-me narrar uma aventura na qual, no lugar de ser um glorioso agente, não passo de um glorioso paciente. Tudo começou há umas semanas quando, apenas para tranquilizar o espírito, talvez porque não fizesse meditação transcendental, um cardiologista, rapaz da idade dos meus filhos, achou por bem mandar-me fazer uma ressonância magnética ao coração. Disse-me que aquilo era um bocado chato, pois demorava cerca de quarenta minutos. Ontem lá fui fazer a coisa para tranquilizar o espírito. Descobri, no acto de pagamento, que afinal não era uma ressonância magnética, mas três. Uma morfológica, outra funcional e a terceira para estudo da perfusão do miocárdio. Quando olhei para a requisição feita pelo médico, confesso que não consegui ler coisa alguma do que estava escrito. Pensei que ele escrevia num alfabeto que eu desconhecia, mas que haveria nos centros de imagiologia hermeneutas especializados e infalíveis na interpretação. A aventura, que supera as do Cid e do Quixote, senão mesmo as de Ulisses, de Eneias e do peito lusitano, consiste em entrar numa espécie de túnel, onde se fica muito quieto, com uma buzina na mão para o caso de dar para o torto, e se ouvem ordens através de uns auscultadores. Ainda me perguntaram se queria música, mas declinei tendo em conta o que os técnicos estavam a ouvir. Que ordens eram essas? Eram muito claras. Um técnico dizia: encha os pulmões de ar, despeje-os, não respire. Ouvia uns sons cortantes e estranhos. Quando paravam, ouvia a mesma voz: pode respirar. A partir de certa altura comecei a contar as emissões sonoras. Desconfiei que estava perante uma mente caótica. A do técnico, claro. Umas vezes, apenas havia a emissão de um desses sons, outras vezes ultrapassavam as vinte – cheguei a contar vinte e cinco – sem que um padrão lógico se me apresentasse ao espírito. O meu medo – um herói também tem medo – foi que ele se esquecesse de dar a ordem para voltar a respirar. Cheguei a imaginar-me num sarcófago. O momento mais perturbador aconteceu, porém, por volta da meia-hora de exame. Estava à espera de ouvir o técnico a dar as suas ordens quando chega até mim uma voz feminina. Fiquei de tal maneira perturbado que nem percebi que também ela dava as mesmas ordens. Talvez o técnico tenha precisado de ir à casa de banho, pensei depois. Após uns instantes de confusão, lá me recompus, e fui obedecendo. Até que chegou o fim, entraram pela sala umas raparigas para me livrarem da parafernália que me envolvia. Pensei ter chegado a Ítaca e estar rodeado de Penélopes. Descobri, porém, que era uma ilusão. Apenas queriam que eu me fosse dali para fora, que lhes desamparasse a loja, que elas tinham mais que fazer. Obedeci, claro, pois a obediência é a maior virtude de qualquer herói.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Livros de cowboys

Uma troca de comentários aqui no blogue levou-me à evocação de um tempo muito remoto, no qual eu ia, bem criança, aos domingos de manhã ao café com o meu pai. Ele lia os jornais, um de informação geral e outro desportivo, e eu entretinha-me com o Falcão ou o Mundo de Aventuras, umas vezes. Outras eram o Condor e o Ciclone. Tudo isso revistas de banda desenhada populares. Conhecidas por livros de cowboys. Na altura, a escola desaconselhava tal tipo de literatura, mas ninguém queria saber do desaconselhamento. Se não foi por aí que comecei a ler, foi talvez pelas aventuras do Pinóquio, nas edições Romano Torres, uma gloriosa editora popular que foi tragada há muito. Havia uma enorme estultícia nesse acto de desaconselhar essas leituras, a presunção de que as pessoas começavam pela literatura de qualidade, ainda que infantil. Foram as horas intérminas de Verões sem fim a ler essa má literatura que me conduziram a Kafka, a Mann, a Borges, a Sartre, a Camus, já nem sei bem a quem. Antes do prazer do texto, que vem bem depois, há o prazer de acompanhar o desenrolar da acção, de saber como acaba a história, de ver acontecer as peripécias que levam ao desenlace. Isso estava tudo nessa pequena literatura. Estava ainda uma outra coisa, a vitória do bem sobre o mal, o sentimento de que vale a pena bater-se pela boa causa. Não era pouco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Admirável mundo novo

O dia começou com uma visita ao laboratório de análises clínicas. Tudo muito eficiente e despachado, mas – há sempre um mas – também um pouco desconcertante. Outrora sabia de quem era o laboratório, passava pela proprietária, cumprimentava-a, fazia parte de uma paisagem bem definida. Passou, há uns tempos, para uma grande cadeia de laboratórios, da qual nunca chegarei a saber quem é o proprietário. Não é que tenha algum interesse em conhecer donos de laboratórios de análises ou de supermercado, ou seja lá do que for. A questão é outra. A paisagem despovoa-se. As coisas que tinham donos por todos conhecidos entraram numa vertigem tal que os donos foram sugados e enviados para Marte. Tudo se tornou anónimo, obediente a normas burocráticas e a imperativos de racionalização. O espaço para o improviso, para recorrer, em caso de necessidade, à fonte do poder, esse espaço está morto. As pequenas cidades de província – também as não tão pequenas – vão-se tornando em dormitórios de assalariados de poderes estranhos, sem rosto. Tudo a fingir que se está num sítio muito civilizado, muito cosmopolita. Não, não se está. Sempre desconfiei de que o jejum que antecede a realização da colheita dos materiais a analisar não faz bem a ninguém. A mim, por exemplo, dá-me para devaneios sociológicos. Ora, o que me interessa a sociologia? Tanto como a psicologia, isto é, nada. Seja como for, as coisas são eficientes, os resultados já chegaram por email, agora encriptados, a que só se pode aceder com uma password, vá lá alguém saber que tenho o colesterol onde deve estar, mas os triglicéridos estão com ligeira inclinação para a hipérbole. Imagino que este encriptamento dos resultados deve ser uma vantagem competitiva do laboratório contra os rivais. Um admirável mundo novo.

domingo, 24 de outubro de 2021

Rainhas

Não é pequena coisa o espírito comercial e a livre iniciativa. Digo-o sem a mínima ironia. Operam verdadeiros prodígios e nunca deixam de nos maravilhar. Já hoje comi um recente doce tradicional de Natal e ainda nem chegámos aos Santos. Por aqui, ainda os particulares, neste caso as particulares, não se entregam aos rituais das broas, e já se vendem Bolos-Reis e Bolos-Rainhas. Foi um destes últimos que foi vítima da minha gula. Uma pequena parte, esclareça-se. Durante décadas só conheci o Bolo-Rei, depois a livre-iniciativa preocupada com a infracção aos princípios da igualdade de género introduziu o bolo consorte. Como acontece sempre, o que vem depois é francamente melhor. Também no acto da criação Deus deu vida a Adão, mas temendo algum desvio narcisista ou práticas indecorosas e solitárias, tirou-lhe uma costela e de lá nasceu a Eva, incomparavelmente mais interessante que o pobre descostelado. Mesmo no Xadrez as Rainhas são muito mais poderosas que os Reis. É certo que se este morrer de xeque-mate o jogo acaba, mas o coitado mal se pode mover pelo tabuleiro, enquanto a Rainha desloca-se por ele, grácil e ameaçadora, não havendo peça que o adversário mais tema. Se ela morrer ou for feita prisioneira, o que é o mesmo, o jogo não acaba e ela, por acto de magia, pode voltar ao tabuleiro pela promoção de um peão. Pena que Ovídio tenha escrito as Metamorfoses sem conhecer a do peão em rainha. Mais grave que isso é, porém, a possibilidade de um Rei, devido à promoção dos peões, ter mais de uma Rainha. O que pode ser concebido como um ataque à família monogâmica. Isto levanta sérios problemas e estes não se resumem aos aspectos teológicos da questão. O domingo afunda-se no mar da noite. Já estava com saudades de umas frases a cair para o kitsch.

sábado, 23 de outubro de 2021

Música vesga

Quando chegamos a eles, esperamos que sejam gloriosos e quase eternos, mas os sábados são tão triviais como quaisquer outros dias. Fazem a única coisa que um dia sabe fazer. Passar. Comecei com a ida ao centro de inspecção com um carro. Na verdade, um ancião. Descobri, ao atentar na documentação, que o pobre nem chega a fazer 2 000 km por ano. A maior viagem que faz é de 100 km para um lado e outros 100 km de retorno a casa. É verdade que nos últimos dois anos a pandemia o impediu de andar por aí, mas sem ela duvido que passasse dos 2 500 km. Tenho pena dele, pois sempre que são viagens a sério, é dispensado e deixado a dormir ao relento ou na garagem. Depois, de inspeccionado recebeu a aprovação, mas parece que terei de mandar regular os faróis de nevoeiro. A lei mudou e a incidência da luz ficou desactualizada. A inspectora comentou que sempre que a lei muda não é para favorecer o cidadão. Pensei que havia nela uma certa sabedoria e sorri. Ela não viu o meu sorriso, pois eu estava de máscara, como ela. Fiz um esforço e não consegui lembrar-me da última vez que usei, neste carro, os faróis de nevoeiro. Agora, o sábado entristece-se. Uma luz mortiça embate nas paredes e chega a mim como uma onda de melancolia. Descubro que um livro comprado há dias em Lisboa é exactamente igual a um que tinha comprado há uns anos. Maldigo a memória e deixo-me embalar pela música vesga das tardes de província.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

As virtudes da segunda mão

Comprar livros em segunda mão é um exercício virtuoso, um modo de reciclar o papel, sem desfigurar o objecto que o usa. Em tempos, comprei, num desses leilões de livros que ocorrem nas redes sociais, uma Histoire du Roman Moderne, de R. M. Albérès, publicada em 1962, pelas Éditions Albin Michel. O anterior proprietário, suponho que português, cuidaria com esmero dos seus livros, pois a obra está encadernada, mas com cuidado de manter, no interior da encadernação, as capas originais. Estava a folheá-lo e deparei-me com um folheto, que presumi ser da mesma idade do livro. Publicitava o Méthode A.B.C. Este serviria para pôr um pobre mortal a desenhar e a pintar de um dia para o outro: Apprenez aujourd’hui à dessiner et à peindre par la Méthode A.B.C. Pena que não existisse em Portugal, escusava eu de passar pela humilhação de ser o pior aluno do colégio em Desenho, título que não foi confirmado em exame nacional, esclareça-se. Chego sempre tarde a tudo o que é essencial. O folheto tem inclusive alguns testemunhos que comprovam a eficácia do método, um cavalheiro de Seine-et-Oise, outro da zona de Charente-Maritime, uma menina – Mademoiselle – belga e, de Saumames-de-Vaucluse, outro cavalheiro, mas de nome português. Não consta que tenha ficado na história da pintura, apesar de se ter dado conta desde a primeira lição de reais progressos. Guardo o folheto dentro do livro, este na prateleira e olho a noite pura maculada pela iluminação pública e as luzes melancólicos do hospital. A sexta-feira declina.