sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Um ano sem facécias

Tinha escrito um longo texto. O computador, porém, decidiu que estava cansado e recusou-se a fazer seja o que for. Tive de o desligar e tornar a ligar. Quando retornei, apesar de ter gravado o texto escrito, este desaparecera. Um sinal, por certo, para que eu compreendesse que tudo o que tinha escrito era puro lixo, matéria morta, à qual não deveria voltar, pois, caso contrário, ainda seria transformado em estátua de sal. Achei desagradável partilhar a sorte com a mulher de Lot e abstive-me de retornar aos tormentosos assuntos que me ocupavam e que se perderam nalgum buraco negro do universo virtual. Sendo assim, não tenho assunto para hoje. Nenhum acto heróico a acrescentar a esta gesta. O sol desmaiado chama o fim do dia e o cansaço anuncia que o ano está por horas. Foi um ano mau, 2021? Talvez, mas, como acontece sempre, poderia ter sido pior. Também poderia ter sido melhor. Oiço o pianista de jazz Marc Copland. Há alguns anos assisti, nesta pequena cidade de província, a um concerto dele para apresentação de um álbum. Nunca percebi como foi possível isso ter acontecido, pois foi o único concerto dado em Portugal. Esperemos que o ano vindouro não se entregue, como o actual, a facécias virais, que tenha tino e não ande por aí a molestar os espíritos dos homens. Já bastam estes para se molestarem a si e aos outros. Também é necessário que os anos tenham juízo, e os últimos não têm dado grandes provas de o possuírem. Deveria haver possibilidade de os devolver, sempre que vêm avariados. A defesa dos consumidores precisa de estar mais atenta a estas coisas.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Sol de Inverno

O ano, o triste ano de 2021, parece decidido a despedir-se em beleza. Saí há pouco e a cidade está coberta por um magnífico sol de Inverno. Esta expressão lembrou-me uma canção de Simone de Oliveira com o mesmo nome. Cantou-a, fui verificar, no Festival da Canção de 1965. Naquele tempo, os festivais da canção eram motivo de reuniões familiares, os jornais publicavam grelhas para se ir registando a pontuação. Haveria preferências domésticas. Um acontecimento. Depois vinha o festival da Eurovisão, um novo acontecimento, embora aí as coisas corressem sempre mal. Os jurados dos diversos países esqueciam-se quase todos de pontuar a canção portuguesa, que acabava lá para os últimos lugares. Corriam múltiplas teorias sobre essa conspiração aleivosa contra as cantigas pátrias. Fui ao Youtube e ouvi a Simone cantar Sol de Inverno. Para dizer a verdade, não achei nada mal, pelo contrário. A interpretação da Simone é muito, muito boa. Estou a ficar velho. Ainda há uns anos nem me dignava lembrar desta canção, quanto mais… Li que só teve um ponto na Eurovisão dado pelos monegascos, gente simpática, disponível para a caridade. Não tarda muito e estou a comentar a Desfolhada. O que me vale é que lá para meio da tarde chega o meu neto.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Uma questão de luz

Uma luz belíssima repousa na escola aqui ao lado. As copas das árvores reverberam e até as paredes surgem aos olhos como tendo uma dignidade que, na verdade, não têm. Blocos em cimento fazem um conjunto de onde está ausente a grave dignidade que outrora revesti o edifício de uma instituição de ensino. Havia neste um toque aristocrático, um sinal de que aquele lugar servia para uma elevação do espírito. Os edifícios das escolas modernas são uma confissão de que o saber já não tem qualquer relação com o mundo do espírito, mas é apenas uma questão técnica para gerir as necessidades da vida, apesar da retórica humanística e das homílias cívicas. Estava eu tão lançado nesta diatribe contra a decadência do bom gosto quando sou interrompido por assuntos familiares. É verdade, até um narrador tem assuntos familiares. Resolvidos estes, volto para aqui, mas a luz que me animou no início desapareceu, engolida pelo espectro da noite que se aproxima. Na praceta, ainda há crianças a correr e a gritar, as árvores estão imóveis e o hospital, ao longe, tocado pelo crepúsculo, parece ainda mais lúgubre. Num site noticioso vejo que uma jovem mulher, condenada a uma longa pena por homicídio, se suicidou. O mais tenebroso, contudo, são os comentários. Há qualquer coisa de infecta no coração destas pessoas. Talvez sejam vítimas de um vírus para o qual não há vacina que lhe limite os danos. A iluminação pública acendeu-se.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Disembroil

Ao escrever Dezembro o corrector do Word assinala com um traço vermelho e oferece para substituição a palavra Disembroil. Não faço a mínima ideia de que língua perdida veio a sugestão. Faço uma pesquisa, mas a ignorância continua. Talvez o meu processador de texto tenha chegado a uma autonomia tal que conseguiu inventar uma língua, com a qual pretende corrigir tudo o que eu escrevo. Imagino que a cacofonia não seria maior do que aquela que resulta do meu uso do português. Há que esperar as facécias mais inesperadas. Levantei-me cedo para tratar de algumas coisas vindas da terra escura da realidade. Bem poderia estar em descanso preparando-me para a transição de ano, coisa que, apesar de trivial, exige uma longa preparação espiritual e, sejamos sérios, física. Ora, lidar com os imperativos da realidade não ajuda nem corpo nem espírito, pois a dita realidade conspira continuamente contra quem a ela veio. Dá-lhe dores, despesas, desavenças e desamores, dá-lhe mais umas quantas coisas começadas por dê, mas que não me ocorrem por agora. Neste momento, dá-me uma quebra de energia, talvez porque chegou a hora de almoçar e eu arrasto-me neste texto à procura de alguma coisa para dizer, mas não me acode mais nada do que Disembroil.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A era da zaragatoa

Nestes quase dois anos, os que dura a pandemia, já vivemos diversas eras. A era do confinamento, a era da máscara e, agora, a era da zaragatoa. Esta esteve sempre presente nas eras anteriores, mas tornou-se, por estes dias, o elemento central. As pessoas fazem filas para serem zaragatoadas. Também eu, há pouco, me coloquei numa dessas filas. Ela foi caminhando devagar e, por fim, tive direito a que me escarafunchassem o nariz com uma pequena zagaia. Ainda não sei o resultado, mas já nem faço prognósticos, pois estes nem mesmo no fim do jogo dão certo. Preciso de fazer uma visita a uma pessoa internada num daqueles sítios que exigem um teste. Caso tenha nota negativa, vou tentar fazer uma dupla visita. Há muito que se sabe que a matemática é fundamental para a vida civilizada, mas nunca se pensou que até uma simples análise tenha de ser calculada para se poder tirar o máximo proveito dela, caso ela permita tirar algum proveito e não obrigue a quarentenas, telefonemas para o serviço nacional de saúde e o temor do que poderá vir a acontecer, pois nestas coisas, o melhor é não ter qualquer certeza. Em compensação, o dia tem estado magnífico. É no Inverno que amo o Sol e os dias ensolarados trazem ao coração – e também à velha razão – uma alegria inesperada. Esperar os resultados da zaragatoa faz parte daqueles fenómenos que Peter Handke caracterizou, no título de um livro, como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Uma pessoa pensa sempre naqueles com quem tem estado, se não vai ser causa da doença deles. Tudo isto é cansativo, mas há que aprender a viver de zaragatoa em zaragatoa.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Uma reforma do Natal

Hoje é um domingo que vem depois de um sábado que parecia um domingo. Isto perturba-me a relação não apenas com o calendário, mas também com a realidade. Esta parece-me ainda menos verosímil do que habitualmente. Como é possível viver numa semana que, na prática, embora não em teoria, tem dois domingos, um num dia e o outro no dia seguinte. Se eu pudesse resolver estas coisas, haveria de propor que, assim como o dia da ressurreição de Cristo é móvel no calendário e fixo na nos dias da semana, também o dia de nascimento do mesmo Cristo ganhasse mobilidade no calendário, mas se tornasse fixo no dia da semana. Por exemplo, o Dia Natal seria sempre às quartas-feiras. Isso evitaria casos como aquele que acontece comigo. Pensar que existem dois domingos seguidos, sem que uma semana entre eles se intrometa, perturba-me. Pessoas menos caridosas hão-de achar que as Festividades não me fizeram bem à sanidade mental. Pensem como quiserem, mas isso não atinge a grandeza e o rasgo da minha concepção do Dia de Natal. Não é porque uma ideia tenha ocorrido a um asno que ela é má. A minha ideia é óptima, apesar de ser minha. O dia está triste, tristíssimo. Cinzento, chuvoso, sem gentes pelas ruas. Mesmo assim, arrisquei e fui a uma aldeia aqui perto que costuma ter, à beira da estrada, bancas de produtores locais a vender laranjas, marroquinas, tangerinas, tângeras, por aqui ditas tanjas, resultado da lei do menor esforço que permite às línguas progredirem em direcção à cacofonia universal. Não comprei tângeras nem tangerinas, mas laranjas e deixei-me levar por umas marroquinas. Esta piada era dispensável, além de ser de mau gosto. Espero, contudo, que ninguém fique a pensar, pelo facto de não comprado tangerinas nem tângeras, que tenho alguma coisa contra a cidade de Tânger. Não tenho. É quase noite e ainda não consegui adaptar-me a este segundo domingo.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Deu em pantanas

Tudo pronto, alinhado à porta para ir para o carro. O almoço de Natal seria em Lisboa. Expectativa de ver as netas, de lhes oferecer os presentes, de sentir a sua animação de adolescentes. Um telefonema e tudo se esboroa. Uma das participantes autotestou-se e deu positivo. Devido aos contactos com parte dos que iriam amesendar, decidiu-se pela anulação da viagem e uma súbita nuvem de tristeza abateu-se por aqui. Apesar de não ter havido contacto, também nos submetemos ao ritual do escarafuncho. Por enquanto, tem havido uma sólida fidelidade ao negativo, mas há um conjunto de projectos que irão ser adiados ou, pura e simplesmente, cancelados. Planear é, por certo, uma coisa muito razoável. Contudo, a realidade, com a sua inclinação para a hipérbole, é pouco dada a razoabilidades. Faz o que muito bem entende e rasga em segundos aquilo que levou dias a projectar, quando não mesmo anos. O Natal do ano passado, apesar de tudo, ainda disfarçou, embora estivesse longe dos Natais canónicos. Este ano deu tudo em pantanas. Acho que vou pôr um CD na aparelhagem. Alba, um ensemble dinamarquês, interpreta canções de Natal escandinavas, numa gravação com o nome It Barn Er Fød - Old Yuletide Songs From Scandinavia. Quase há vinte anos que este CD faz parte do Natal. Há que encontrar alguma compensação. Deu em pantanas, escrevi lá em cima. Muito gostava de saber de onde veio essa infeliz expressão. Infeliz num duplo sentido. Infeliz porque é esteticamente feia e porque designa uma situação infeliz. Ainda por cima hoje é o dia em que todos devem dizer Feliz Natal.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A ordem do mundo

Assim como a torrada cai sempre com a face amanteigada para baixo, também, por mais cuidado que se tenha e listas que se façam, falta sempre, no dia 24, qualquer coisa essencial para os festejos natalícios. E uma pessoa lá tem de se pôr a andarilhar por aqui e por ali para adquirir o que estava em falta. Foi o que me aconteceu. Fui despachado, logo de manhã, a grande velocidade, para ir a um supermercado comprar coisas mais que necessárias e de seguida que fosse pelo Bolo Rainha encomendado. Zeloso, cumpri, embora tenha aproveitado para passar por uma garrafeira e reforçado o stock de vinhos e, tão importante como isso, passei por uma farmácia e comprei seis testes ao SARS-COV2. Perguntei se tinham. Sim, responderam. Posso levar seis? Os que quiser, ouvi. Muito bem, trouxe seis sem ficar com a consciência maculada por um espírito açambarcador. Aquela farmácia terá testes para dar e vender, embora só venda. Cumprida a missão, voltei para casa e estou emaranhado neste dia acinzentado, todo ele melancolia, embora as pessoas andem pelas ruas, encham os supermercados, lojas, cafés e pastelarias. Ao olhar pela janela, ao observar a palidez da luz, ocorreu-me que a ordem do mundo está longe da perfeição. Não quero com isto incorrer em alguma heresia, mas não seria destituído de sentido que essa ordem do mundo, chegadas as festividades de Natal e de Ano Novo, suspendesse a pandemia, para as pessoas poderem desfrutar sem constrangimentos das tradições. A seguir, recomeçava, como recomeçam os jogos de futebol, após o intervalo. Fora eu a ordenar o mundo e muita coisa tornar-se-ia perfeita, até a própria desordem seria ordenada, com tempo para o caos e tempo para o cosmos. Agora chove bem e talvez neste aguaceiro exista mais sabedoria do que na minha visão sobre a ordem do mundo. Talvez, saliento.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Princípio da Incerteza

Acordei cedo e, quase de imediato, fui submetido ao ritual do autoteste à COVID-19. Pedi que me escarafunchassem as narinas com a zaragatoa. Que palavra horrível inventaram. Suportei a actividade amadora, embora determinada a fazer bem a operação. A seguir entreguei-me a uma sessão de espirros. Não vale a pena preocupação. Cumpri a etiqueta respiratória. Se contaminei alguma coisa, foi a manga da camisola que tinha vestida. Alguns sintomas desagradáveis, coincidentes com os da nova variante, levaram-me ao acto. Se isto se passasse há dois anos, nem ligava, pois, todos os Invernos tenho direito pelo menos a uma destas visitas inoportunas. Mas não posso evitar o Zeitgeist e achei que me deveria submeter à pequena sessão de tortura narinal. O teste deu negativo, embora eu continue com os mesmos sintomas. Aqui, poderia fazer uma transferência audaciosa, do princípio da incerteza de Heisenberg, da mecânica quântica para o meu estado existencial. Caso fizesse tal transferência, que não faço, diria que quanto menor for a incerteza dos meus sintomas, tanto maior será a incerteza da sua causa e vice-versa. O problema é que eu sou um mero narrador, um ser virtual criado pela imaginação delirante de um autor espúrio, e não uma partícula subatómica a voltejar feita barata tonta em torno de um núcleo. Eu não tenho posição nem momento linear, embora sinta algum corrimento nas narinas e impressões rugosas na garganta. Invenções do autor, claro, que faz tudo isto para me prejudicar a reputação. Já pensei em fundar um sindicato de narradores, para se defenderem da prepotência dos autores, mas a inclinação individualista tolheu-me o ímpeto revolucionário e justicialista. O pior foram estes três espirros. Cumpri a etiqueta respiratória, pois até um narrador virtual tem etiqueta respiratória, mesmo que não respire.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Queda

Também hoje é um dia sombrio, chuvoso. Um dia plangente, flébil. No sítio onde oficio um ritual inútil para fazer frente à dura necessidade, fui a grande estrela da manhã. Estaciono o carro, saio, fecho a porta e estatelo-me. Grandes preocupações. Estava bem? Não me tinha magoado? Não, não me magoara, nem rasgara as calças, nem ferira a mão que amparou a queda, e agradecia. Depois, enquanto as horas passavam, continuavam a perguntar-me se estava bem. Respondia que sim, estava óptimo e tornava a agradecer. Não há coisa mais natural na humanidade do que cair. Não por acaso, a autêntica vida humana começa com uma queda. O meu trambolhão foi apenas um reflexo dessa queda originária que nos expulsou a todos do paraíso. Estas explicações, porém, omiti-as, dizendo apenas que não se tratara de um AVC, apenas de um tropeção numa corrente sobre a qual decidira alçar uma perna e depois outra. Ora, com o entusiasmo de ter passado com a primeira, esqueci, ao usar a segunda, que esta terminava no pé, e o esquecimento paga-se. Sobre a minha secretária tenho o livro As Fronteiras do Conhecimento – o que sabemos hoje sobre ciência, história e a mente, de A. C. Grayling. Este, de facto, é um livro que me deverá ser útil, pois poder-me-á ajudar a estabelecer as fronteiras do conhecimento do meu corpo, evitando aventuras infelizes. A infelicidade, porém, não nasce da dor física, mas do ridículo que é uma pessoa estatelar-se perante qualquer auditório. Nem vale a pena dizer que não é ridículo, pois todos temos a tentação de rir perante quedas alheias e até das nossas, mas apenas mais tarde. A noite assentou há muito arraiais e cobre a cidade com a sarapilheira da escuridão. Continua a chover.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Causa final

Hoje foi um dia solsticial, como tinha anunciado ontem. Agora, os dias começarão a crescer e as noites a diminuir, como dispõe a ordem do mundo, para que tudo encontre equilíbrio e a realidade não se torne hiperbólica. Não estou certo, contudo, que a realidade não ame a hipérbole, que se paute pelo meio-termo e a justa medida. A pandemia tornou-se hiperbólica. Cada vez que parece ter-se encontrado a medida que possibilita a vida normal, o vírus entrega-se à mutação e repõe as coisas no caos onde prolifera. É um jogador astuto, está empenhado em vencer-nos através do cansaço e da impaciência. Neste momento, não há virtude mais importante que a da paciência. Os homens, porém, não a cultivam, pelo contrário. Há na nossa vida um imperativo de mobilidade, um mandamento de desassossego. É necessário que nos movamos continuamente, é necessário que derrotemos a tentação da quietude. Ora, a paciência exige imobilidade e quietação, exige o domínio das pulsões e a domesticação dos desejos, tudo coisas com má publicidade. O vírus sorri. Pena é que a velha teoria da causalidade de Aristóteles tenha caído em desuso e a teleologia seja vista como uma rameira de má fama. Caso não fosse assim, perguntaria pela causa final daquilo que está a acontecer. Que causa final está a mover os cordelinhos da situação? Esta pergunta, porém, não a faço, pois deixaria de rastos a minha reputação, já de si tão pobre. Eu juro que não existe em nada disto uma causa final, abjuro de toda a teleologia, renego toda a crença no ensinamento do Estagirita. Para o que me haveria de dar. O Natal está próximo. Os Reis Magos já se devem ter posto a caminho, espero que não sejam assaltados e o ouro, o incenso e a mirra cheguem sem sobressaltos a Belém, para que cumpram a finalidade a que, no começo dos tempos, foram destinados.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Experiência

Oiço a chuva. Está de humor variado, volúvel. Umas vezes, o aguaceiro é fraco, outras, como agora, parece estar irado, fazendo a água chocar com violência contra a terra. Também os elementos da natureza possuem os seus humores e a chuva é, entre todos eles, um dos mais volúveis. Claro que não possuo nenhum medidor de volubilidade dos elementos, mas a experiência, por mais enganadora que a proclamem, de alguma coisa há-de servir, e eu tenho uma longa experiência acumulada. De que serve essa experiência, pergunta-me a consciência, enquanto deixa escapar um riso escarninho. Irrita-me quando cultiva o sarcasmo. Ainda por cima a resposta é óbvia. A experiência serve para uma pessoa ser experiente. Ora, ora, responde ela. O ano passado, continuou, por falta de experiência fez-se um conjunto de idiotices no Natal e no Ano Novo. Janeiro e Fevereiro foram meses terríveis. Agora que somos experientes, estamos a fazer exactamente as mesmas idiotices nas mesmas datas. Como vês, a experiência não serve de muito. Desisti de argumentar, até porque a tarde foi cansativa, pois tive de fazer uma daquelas coisas que não servem rigorosamente para nada, mas que me são apresentadas como o caminho de salvação do mundo. Cansa-me muito fazer coisas que não servem para nada, por mais salvíficas que elas se apresentem. Quando começo a falar por enigmas, o mais ajuizado é calar-me. Assim, a chuva pode falar à vontade, dar largas ao seu humor volúvel, encharcar a noite. Os dias estão cada vez mais pequenos. Amanhã, às quinze horas e cinquenta e nove minutos ocorrerá o solstício de Inverno. Então, os dias começarão a crescer. É o que me diz a experiência.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Tempos de tribulação

O domingo já alçou a perna e está pronto a saltar para o outro lado da paliçada. Ainda não saí de casa, não porque tenha algum motivo para o não fazer, mas apenas porque não me apeteceu. O jantar de família, que deveria ter decorrido ontem, foi adiado sine die. O meu filho teve a infelicidade de almoçar na passada quinta-feira com alguém que, na sexta, testou positivo à COVID-19. Tribulações de um tempo de pandemia. Preciso de falar com alguém, mas o telefone está continuamente ocupado. Vou tentando, enquanto o dia se vai dissolvendo e a paisagem se aproxima cada vez mais de um esboço em carvão até que a noite pegue nela e a guarde num saco de sarapilheira. Na avenida, as pessoas entregam-se a longas conversas, num protesto mudo contra a realidade que as manda afastarem-se umas das outras. Não é fácil viver nestes dias, em que os hábitos enraizados são incapazes de fornecer a armadura necessária para enfrentar o inimigo. Como este é invisível, a tentação é negar a sua existência. Não tarda, cairá a noite. Depois, virá a manhã e será mais um dia.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Diurese

Há dias, o cardiologista – também os narradores têm problemas de coração – calculava a medicação, como quem pensa um lance numa partida de xadrez, e alvitra: bem, se a tensão não se equilibrar ainda temos margem de manobra com o diurético. Como toma apenas metade da dose, ainda há espaço para aumentar. Olhei-o como se estivesse a compreender muito bem o que queria. Mal sabia ele, porém, o que me ia na alma. Se o problema está na diurese, não conheço melhor estimulante que um bom vinho tinto, de preferência seguido de café. Nunca compreendi por que razão, quando fazem a especialidade, os cardiologistas não são informados sobre aquilo que é verdadeiramente eficaz. Claro que fica mais barato tomar 50 mg de Hidroclorotiazida e 5 mg de amilorida, omito o nome comercial da mistela, do que beber dois copos generosos, ou mesmo um, de bom tinto, ainda para mais que, no caso do vinho, não existe um genérico, que torne o consumo mais em conta. Não podemos, todavia, estar sempre a pensar em poupança quando se trata da saúde. Isto tudo porque, no pós-almoço, verifiquei, mais uma vez, o efeito diurético dessa combinação entre esses dois medicamentos extraordinários, o vinho e o café. Hidroclorotiazida? Amilorida? Que cocktails são esses? Claro que também o tinto tem efeitos secundários. Hoje comecei a manhã com uma disputa acesa com a balança. Pisei-a e ela devolveu-me, como castigo, um peso desagradável. Tornei a pôr-me em cima dela, mas a rameira manteve-se fiel à palavra. Insultei-a. Olhou-me, impávida, e, depois de um longo silêncio, atirou-me à cara: então, não és tu que achas que o melhor diurético é o tinto? Voltei-lhe as costas. É inútil discutir com gente estúpida.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Derrubar muros

Ao acaso, abri uma edição da Poesia Completa de Herberto Helder. Leio, então, o verso Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. Estanco. O verso fascina-me, não apenas pela sua qualidade poética, mas pela descrição da realidade. Também no dia de hoje, muita coisa começou a bater nos muros de mim mesmo. Foi um batuque contínuo, com oscilações no ritmo, mas sem parar até ao momento em que me sentei para escrever isto. Então aquilo que batia em mim, suspendeu a actividade. Agora sou eu que bato nas teclas, que choco contra o muro que envolve o texto e trabalho para o derrubar. A queda dos muros é uma coisa que excita a alma das multidões. Há nelas uma alegria insana, se vêem um muro ruir. Têm esperança de ganhar espaço para construir um novo. A actividade humana não passa de um contínuo erguer e derrubar muros. Festejam quando se ergue um. Celebram quando ele é derrubado. Depois de um dia como de hoje, onde o batuque frenético da realidade tentou derrubar o muro que me constitui, não sei se celebre ou não. O muro resistiu, mas será isso uma virtude? Ao ler esta palavra, rio-me. Quem quer saber de virtudes, dessa invenção dos velhos filósofos gregos. Anoiteceu há muito, o melhor será calar-me.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Raízes

Podemos fugir àquilo que somos? E aquilo que somos pode desligar-se do lugar onde nascemos? Estas perguntas vêm a propósito de Toshio Hosokawa, um compositor japonês de música erudita contemporânea. Ocorreram-me quando escutava a peça denominada Wie ein Atmen im Lichte, que o serviçal tradutor da Google verte para Como Respirar na Luz. Para as pessoas não habituadas à música contemporânea, as peças de Toshio Hosokawa não parecerão mais estranhas que as do português Emmanuel Nunes. No entanto, há em Hosokawa uma clara influência da música tradicional japonesa. Não é aqui, porém, que quero chegar, mas ao carácter lancinante de algumas das suas peças, como aquela que se referiu acima e que se pode transformar numa pergunta, Como Respirar na Luz? O compositor nasceu em Hiroshima, passados dez anos da deflagração da bomba atómica. Quantas pessoas, da sua família, porventura, não se viram confrontadas com a impossibilidade de respirar naquela luz terrível, no esplendor fulgurante do cogumelo impetuoso e mortal que caiu sobre a cidade? Podemos alienarmo-nos, tornarmo-nos estranhos a nós próprios, mas aquilo que somos e o lugar de onde viemos não deixa de estar, no fundo da consciência, a orientar o olhar, as opções, as escolhas estéticas, ou outras. O sol, lá fora, brilha, com uma tonalidade invernal. A vida passa tranquila e confia-se que nenhuma bomba atómica caia sobre nós e estilhace o céu e a terra, para que um compositor a vir componha em forma de música essa dor sem nome que nasce dos corpos lacerados.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Forças mágicas

No volume II, A Queda para Fora da Realidade, da sua Crónica dos Sentimentos, Alexander Kluge tem um capítulo dedicado ao tema da Revolução denominado A Revolução É um Ser Vivo Cheio de Surpresas. Como no resto da obra, também este capítulo é composto por pequenos textos, alguns com títulos extraordinários, A Querela das Revoluções: Formam Círculos ou Espirais? Ou Serão Hipérboles? Levantam Voo? Se achou este título demasiado grande há outros mais pequenos, como por exemplo Aplicação da Medida Métrica ao Tempo do Relógio ou, então, Os Perigos da Filantropia. Das múltiplas denominações dadas aos textos sobre a vexata quaestio da Revolução, aquele que hoje elejo como o meu preferido é Poderão as Ambições de Dominação Gerar Forças Mágicas? Eis um problema fundamental. Há coisas extraordinárias desde que se ponha em movimento a ambição, o desejo e outras forças que não sendo ocultas, também não são manifestas, como no caso que acabo de ler de uma enfermeira italiana. A pobre senhora militava no negacionismo dos efeitos do vírus SARS-COV2. Estava suspensa da função por se recusar vacinar. Publicava vídeos em apoio das suas teses e consta que afirmara querer apanhar o vírus. As forças mágicas fizeram-lhe a vontade e a infeliz não resistiu aos efeitos virais. Sendo assim, não será uma coisa de somenos importância saber se as ambições de dominação têm poder para gerar forças mágicas. Pelo menos forças elas geram, se são ou não mágicas, isso é objecto de disputa, como quase tudo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Acabar em nome de hotel

Ora, para o que um homem está guardado, comentei para mim mesmo. Descobri há pouco, numa deambulação online em busca de alojamento para uma saída, que um dos mais brilhantes, senão o mais brilhante, dos oradores parlamentares do século XIX, é agora nome de hotel. Anda uma pessoa a enfrentar perigos e revoluções. Usa uma das mais terríveis retóricas que se fizeram ouvir por estes lugares. É odiado e amado. Tudo isto para acabar em nome de estabelecimento comercial. Neste caso, num lugar onde as pessoas se deslocam para dormir e não para fazer da vigília um estado de alerta para o combate. Quando as pessoas acabam em nome de rua, ainda vá que não vá. Agora, em nome de hotel, restaurante, loja, parece que toda aquela glória, afinal, era de pechisbeque. Seja como for, o ilustre deputado, o homem da patuleia, o setembrista radical, lá terá a sua rua, a sua estátua e também deverá ser nome de escola. Por falar na patuleia, dois dos liberais radicais terminaram em nome de liceu, o Passos Manuel e o Sá da Bandeira. Foi neste, apesar de nunca o ter frequentado, que diversas vezes na vida enfrentei terríveis examinadores. Pior sorte que aquela que coube ao magnífico retor, foi a dos seus colegas setembristas. Começaram como nomes de liceu e acabaram em designações de escolas secundárias. Ele que se acautele, pois ainda pode acabar em nome pensão. Nunca se sabe.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Doze dias para o Natal

Hoje é dia doze e daqui a doze dias será véspera de Natal. Este passará com grande rapidez. Por vezes acalento a esperança vã de que o tempo sofra um refreamento na sua ânsia de chegar ao futuro. Ele, porém, mantém-se firme na sua decisão e corre sem freio. Isso não me retira o sono, depois do almoço tardio de domingo. Até há pouco estava uma luz exuberante de Primavera. Agora, a fulguração declina, o brilho desaparece e tudo se prepara para ceder ao desejo da noite. Leio que há um novo campeão mundial de Fórmula 1. Outrora, a notícia ter-me-ia interessado vivamente, mas vai para cinquenta anos que as corridas de automóveis deixaram de me interessar. Mais uns anos e talvez voltem a prender-me a atenção. Nunca se sabe para o que se está guardado. Os jornais e sites noticiosos continuam com a sua contabilidade mórbida. Assinalam que por cá a pandemia fez mais treze mortos. Podiam ser mais precisos. Ontem morreram em Portugal x pessoas, treze das quais vítimas de COVID. Podiam ser ainda mais rigorosos e indicar com precisão a causa de todos os óbitos. Para contrabalançar deveriam também indicar o número de nascimentos e a causa deles. Diriam x neonatos desejados, y fruto do acaso. Dentro deste, poderiam categorizar, elencando cada classe de acidentes que originaram uma criança. Ficaríamos todos mais informados e a estatística tornar-se-ia de grande utilidade noticiosa e dar-me-ia motivo para escrever mais umas linhas. Oiço o jazz do Tord Gustavsen Trio. Embala-me. E as compras de Natal? Tenho de pensar nisso.

sábado, 11 de dezembro de 2021

O lutador

Há pouco, ao arrumar uns ficheiros no computador, deparei-me com uma colecção destes textos. Tinha o nome de E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor – diário da pandemia. Correspondia a quatro meses de actividade bloguística, desde o dia 1 de Março de 2020, até a 30 de Junho. Não faço ideia por que razão destaquei esses textos de todos os outros. Também não imagino o motivo que me levou a parar a recolecção no dia 30 de Junho. Terei, na altura, imaginado que o distúrbio que atingiu a vida dos seres humanos sobre a Terra estivesse a acabar? Santa inocência. O título, porém, sei a onde o fui buscar. A uma frase do Traité de la Maison Intérieure ou de l’Édification de la Conscience. Obra atribuída a Bernardo de Claraval, mas a atribuição é espúria. Há na frase escolhida por mim uma tonalidade guerreira, o que não chocaria com uma atribuição ao autor da regra da Ordem do Templo, o mesmo Bernardo de Claraval. A questão, todavia, é se aquilo que fatiga o lutador terá possibilidade de um dia coroar o vencedor. Se em Junho de 2020, talvez ainda se imaginasse que daí a uns meses as coisas voltariam ao que eram, agora, a percepção parece a contrária. O vírus mostra-se persistente e com capacidade de se adaptar ao combate que lhe é movido. Seja como for, o melhor é o lutador continuar a fatigar-se, talvez chegue a hora em que a fadiga coroará o vencedor. Não há nada como um princípio de esperança.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Dias difíceis

Há dias em que se têm de tomar decisões que gostaríamos muito de nunca ter de as tomar. O melhor, mesmo se por dentro tudo se dilacera, é enfrentar o inevitável, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Sempre achei que a realidade tem uma face abominável, mas à qual não podemos voltar as costas, pois ela devora-nos. Terá outras alegres e benfazejas, dir-se-á. Não o creio. A alegria e a benevolência, aquilo que traz contentamento e prazer, tudo isso não faz arte da realidade. São pequenos sonhos e fantasias com que edulcoramos a vida, para a tornar suportável. Sempre abominei aqueles programas sobre a vida selvagem. Os animais são seres magníficos, mas tudo na sua vida gira em torno de matar e morrer, com interlúdio para o sexo, para que o triste espectáculo da sua existência possa continuar, num mundo onde só há devoradores e devorados. Essa é a realidade, mesmo entre nós, seres humanos. Talvez a diferença específica que nos separa, um pouco, muito pouco, desse mundo sangrento, não seja o facto de termos sido dotados com a razão, mas de haver em nós uma faculdade produtora de fantasia. Uma frágil faculdade, diga-se, mas que mesmo assim nos faz pensar que a vida vale a pena, que é possível fugir dessa orgia de morte com que a vida se alimenta. Talvez não seja por acaso que a tradição cristã elegeu a sexta-feira para a morte de Cristo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ser zaragatoado

Uma calamidade termos voltado ao estado de calamidade. Por causa disso, tive de ir hoje oferecer as minhas pobres narinas ao exercício do escarafuncho. Como terei de ir amanhã fazer uma visita a um hospital, além do certificado de vacinação, tenho de levar a prova de que fui zaragatoado e que o resultado foi negativo, como comprovei há pouco ao recebê-lo no email. Pior, muito pior, do que ser vítima da arte de escarafunchar narinas é a odisseia – só esta palavra indica o carácter aventuroso do que vou dizer a seguir – a odisseia, repito, de marcar a escarafunchadela. Liga-se para aqui, para ali, para acolá, laboratório público, laboratório privado, e não há uma alma que nos atenda. Minto. Há técnicas ainda mais soezes de conduzir, ao desespero, o candidato à zaragatoa. Atendem do geral, amabilidades mil, diz-se ao que se vai, respondem que vão fazer ligação ao laboratório, é lá que se trata de tudo. Agradecemos humílimos, fazem a ligação e somos recebidos por uma música inenarrável, entrecortada pela informação de que nos encontramos em fila de espera. A fila deve ser tão grande, que a própria operadora de telemóvel se cansa de nos ver esperar e acaba com a chamada. Talvez também não gostasse da música. Assim como num dia nublado há momentos em que surge uma aberta para o sol brilhar, também neste céu nebuloso das testagens COVID se fez uma aberta, eu marquei o teste, foi testado à hora exacta e recebi mais cedo do que esperava o resultado. Nem tudo é mau. Não tem sido um dia fácil, mesmo para um herói sempre disposto a odisseias.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Falta de coragem

Hoje foi um dia em que não fiz rigorosamente nada. Pelo menos até agora. É certo que levei uma pessoa à estação rodoviária para ela apanhar o Expresso. De seguida, fui à bomba de gasolina encher o depósito do carro e, por fim, passei pela farmácia para comprar aspirinas de 100 mg, coisa que consumo ao ritmo de uma por dia, e que me irrita solenemente, pois custa tanto como as aspirinas normais que possuem cinco vezes mais de substância activa, o célebre ácido acetilsalicílico. Tudo isto não dá para uma aventura digna de narração e de rememoração. Fosse a ida a um supermercado ou à frutaria da esquina, as coisas seriam diferentes, pois são lugares onde há gigantes a enfrentar e dragões a abater. São locais que dão sentido à vida humana. Não tendo ido lá, nem sequer ao Shopping, pois aqui também há um entreposto comercial com esse nome, vi seriamente abalado o sentido último da minha existência. Ainda iria a tempo, caso tivesse coragem e me dispusesse a enfrentar o ar frio, mas estou em registo de feriado. Fico-me por casa, na companhia de Pelleas und Melisande, de Arnold Schönberg, compositor que me tem acompanhado todo o santo dia, pois este é um dia santo, como me recordou há pouco o padre Lodo, como é conhecido entre os amigos o velho jesuíta Lodovico Settembrini, que trocou, há décadas, a terra natal por este recanto da península, onde, além de Deus, cultua os vinhos e a comida. Com moderação, como nunca se esquece de sublinhar. É verdade, hoje estive quase uma hora em conversa de telemóvel, mas isso não é uma aventura, apenas um prazer. Tivesse eu a coragem de um Cid campeador ou de um Orlando Furioso, ainda iria comprar umas coisas ao supermercado. Falece-me, porém, a coragem e tenho de pensar nos presentes de Natal.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Uma dura aventura

Uma dura luta contra as forças arbitrárias que comandam o universo. Em 2011, comprei a Encyclopaedia Britannica. Não em papel, claro, mas num DVD. Ela lá foi prestando os seus serviços, em concorrência com a Universalis, em língua francesa. Tendo feito uma troca do disco interno do computador, preparei-me para a instalar. Coisa simples. O pior é que as forças do mal não estavam pelos ajustes. Dava o comanda para instalação, e nada. Que me instalasse eu, cheguei a ouvir murmurado. Pensei, depois de várias tentativas, que o problema poderia ser da unidade de DVD do computador. Ligo uma unidade de DVD portátil. Resultado? Nada. Entretanto, tive de me fazer à vida. Entre outras coisas, fui ao dentista. No retorno, para descargo de consciência, fui tentar mais uma vez. A princípio, o dispositivo continuou renitente, mas depois, talvez por eu ter ido ao dentista, apiedou-se e decidiu começar a instalação. A certa altura pediu o serial number. Com delicadeza, dizendo-me que ele se encontra na caixa do DVD, no lugar referido no documento que acompanhava a mercadoria. Esse documento, se o guardei, não faço a mínima ideia onde estará. Pus-me a pesquisar na caixa e lá o encontrei muito disfarçado. Olhei para ele, ajustei os óculos, fiz incidir a luz de um candeeiro, mas isso só serviu para constatar que há dez anos via muito melhor. Pensei numa lupa, mas estava noutro lugar da casa. Ocorreu, então, fazer uma fotografia com o telemóvel. Remédio Santo. O serial number lá se mostrou em algarismos e letras bem visíveis. E é isto o que me ocorre narrar. As outras coisas não interessariam a qualquer leitor e aquelas que, porventura, o interessassem, não me interessam a mim. Fica aqui, para os pósteros poderem recordar, uma aventura onde, depois de muita porfia, as forças do arbítrio e do mal são vencidas, aventura que supera tanto as do Cid, o Campeador, como as do Quixote.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Meditação dominical

Há livros de poesia cujos títulos são, por si só, autênticos poemas. Um dos poetas com mais talento para escolher títulos foi Eugénio de Andrade. Por exemplo, As mãos e os frutos¸ ou Obscuro domínio, ou Véspera de água, ou Limiar dos pássaros, ou O peso da sombra, ou Branco no branco, ou Rente ao dizer, ou O sal da língua, ou Lugares do lume. Cada um dos títulos basta para produzir um profundo efeito poético no leitor. Mais do que isso, cada um destes títulos tem o poder de arrastar o leitor para uma meditação que ultrapassa em muito o prazer poético que eles produzem. Essa meditação pode conduzir à descoberta de conexões inesperadas entre realidades que o hábito ritualizado mostra como completamente separadas. Há, por exemplo, uma clara incongruência na expressão véspera de água ou em o peso da sombra. No entanto, podemos ser conduzidos a pensar sobre o que antecede a água, o que será aquilo que vem antes dela, ou então a meditar por que razão aquilo que a véspera antecede é denominado água. Hoje é véspera de amanhã. Não será, neste momento, o amanhã ainda uma coisa líquida, sem os contornos da solidez? Também a sombra não tem peso, mas não haverá algo de pesado em tudo o que é sombrio? Estas incongruências são o produto da imaginação que oferece ao leitor uma chave para abrir aqueles obscuros domínios, onde a realidade se esconde. A mim, todavia, não me ocorre nada de poético, apenas que é domingo e o almoço será, como é habitual, tardio. Também os dias têm a sua gramática, morfologias e sintaxes muito próprias, que os classificam e organizam, que estruturam os seus rituais. Talvez a poesia, com as suas incongruências, seja uma luta contra o ritual dado na gramática de cada coisa.

sábado, 4 de dezembro de 2021

Citação

Comece-se com uma citação. A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. Que bela citação. Talvez o leitor pense de imediato estar perante um texto do século XVIII. Não se terá enganado. De facto, o livro de onde foi retirado o excerto é da parte final desse século de luzes, revoluções e libertinagens. Tem, aliás, o odor desses tempos. Depois, ao meditar no conteúdo, verá nascer-lhe a convicção de que se estará perante o começo de um romance ou de uma novela libertina, daquelas em que a inocência facilmente é vencida por sedutores mais ou menos experimentados. Talvez obra do senhor Donatien Alphonse François de Sade, também conhecido por divino Marquês. Ah! Como as ilusões depressa cobrem com o seu manto de fantasia a realidade. Já se pressentia uma jovem inocente afogueada, presa da líbido exuberante de algum dominador cruel, já se via o rubor da alma ainda imaculada a ceder à curiosidade que o desejo logo acende. A imaginação não tem fronteiras. A verdade, porém, é que a citação pertence a um autor pouco dado a aventuras libidinosas, de uma moral rigorosa e, não será uma hipérbole dizê-lo, assexuada, alguém que atravessou a vida sem se casar ou, que se saiba, ter tido uma aventura erótica. Que se saiba, sublinho. Estas coisas nem sempre são o que parecem. Não, não é um libertino o autor de tão promissora abertura de uma novela libertina. Trata-se daquele senhor que todos os dias dava um passeio à mesma hora pela cidade de Konigsberg e cujo nome é Immanuel Kant. A páginas tantas da sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, saiu-se com esta, mas o desenrolar da narrativa não conduz a aventuras dionisíacas, não há jovens inocentes e belas seduzidas pelos mestres da perversão, mas traço o duro caminho do rigor moral apolíneo. O sábado sombrio não me está a fazer nada bem.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Uma traição

Mandei trocar o disco interno do computador, o que me limpou o dispositivo do imenso lixo que o tornava mais lento que Aquiles atrás da tartaruga, mas trouxe-me um grande desgosto. O Word apareceu-me formatado para o malfadado Acordo Ortográfico de 1990. Esta mania das reformas e simplificações ortográficas, de adaptar as coisas aos tempos, como se os tempos não se pudessem adaptar às coisas, causa-me desprezo. As línguas vão-se transformando, tal como as sociedades, os países e as sociedades. Hoje em dia ninguém se lembra de ir dinamitar umas ruínas romanas ou um castelo medieval só porque, na verdade, são inúteis. Foi o que fizeram com o português. Ele tinha, em algumas das suas palavras, os vestígios mudos, mas visíveis, da sua origem, verdadeiros monumentos linguísticos, e aqueles senhores, os que perpetraram a ignomínia do acordo e os que o aprovaram, acharam que era boa ideia pôr umas bombas nesses vestígios monumentais. Não foram os primeiros, pois um corpo de linguistas do tempo da Primeira República fez o mesmo, eliminando os vestígios visíveis do grego, mas isso compreende-se. Nesses tempos, os bombistas estavam na moda. Este jacobinismo linguístico irrita-me. Até aqui o meu processador de texto era fiel ao português anterior ao segundo bombardeamento. Agora, se escrevo cacto ou conjectura, sublinha-me as palavras a vermelho. Se tenho a veleidade de escrever o mês com maiúsculas, lá está o Word a sublinhar a palavra a azul, indicando-me uma incorrecção gramatical. E este processador não é o pior, pois há os que o único português que conhecem é o do Brasil e não hesitam em sublinhar facto a vermelho, pois no Brasil, factos são fatos e fatos são ternos, apesar dos cactos e das conjecturas continuarem a ser aquilo que eram. Se se fossem internar, ficaria muito grato. Uma traição.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Um dia de luz

Um dia luminoso e frio, belíssimo, mas talvez a anunciar um ano sem chuva. Na praceta, adolescentes jogam à bola, gritam golo, emitem uns urros próprios ao estado em que se encontram. Sem que o entusiasmo esmoreça, de súbito, calam-se. Terão entrado para o Centro de Línguas. Ali não haverá lugar para urros, nem para golos, mas a preparação do futuro, convencidos todos que o futuro ainda será escrito e falado em língua inglesa. Estas presunções são difíceis de provar, mas é muito mais difícil mostrar a sua falsidade. Quando tinha a idade deles, era inverosímil pensar que o Francês se tornaria, em Portugal e um pouco por todo o mundo, uma língua dispensável. Pertenço a uma geração cuja cultura de base é francesa. A literatura, a música, o modo de vida e até a política, embora sobre isso o autor não me deixe falar. Agora, ninguém quer saber do Francês. A língua inglesa, como certas variantes dos vírus, tornou-se dominante, há já faculdades a ministrar os cursos em inglês, e, caso o gosto de alguns se tornasse dominante, em pouco tempo Portugal tornar-se-ia um país anglófono, a que não faltaria o pedido de adesão à Commonwealth. O que teria as suas vantagens, pelo menos no Algarve. Agora, enquanto o dia resiste aos avanços da noite, vou ver a luz resplandecer na cidade.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Presépios

Chegou a última carruagem do comboio de 2021. Este corre desenfreado em direcção a 2022, como se estivesse tomado pela urgência de um encontro decisivo. Não tarda, a Restauração fará quatro séculos. Apesar de gostar imenso de Espanha, gosto ainda mais de não ser espanhol. Não que a condição de ser espanhol seja algo que provoque vergonha. Pelo contrário, os espanhóis têm imenso prazer em sê-lo. É esse prazer que eu sinto em ser português. Lamento as nossas idiossincrasias mais obscuras, lamento a falta dos climas do Norte, sou dos poucos a fazê-lo, mas a forma como os portugueses olham para o mundo, com bonomia e moderado cepticismo, coisa de gente que já viu muito, são-me agradáveis. Esse prazer de ser português justifica plenamente que se comemore o cartão vermelho aplicado a Filipe III. Importante, porém, foi ter cá o meu neto. Ainda não sabe nada de restaurações, mas mal passou a porta e viu a árvore de Natal e os presépios – coisas que por cá são montadas no início do Advento – ficou fascinado. Queria ver as luzes na mão dele e mexer nas figuras. Sou muito sensível a estas reacções, pois nunca esqueci um presépio montado pelo meu pai, há muitas décadas. Pelas minhas contas tinha eu a idade do meu neto. Julgo que estou ligado ao Natal por esse presépio arcaico, feito por alguém que não era crente e que nunca vacilou na sua descrença. Ou talvez eu esteja enganado, e aquele presépio feito para mim fosse a confissão de uma crença bem funda. Se tiver tempo, ainda hei-de contar ao meu neto o presépio que o bisavô dele montou, com pedras e musgos, rios de prata e caminhos de areia, céus azuis com estrelas e lua. Amanhã, a Restauração estará acabada e a realidade voltará com os seus imperativos e mandamentos, mas o Advento prossegue com os seus presépios debruçados sobre a infância.