sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Um ano sem facécias

Tinha escrito um longo texto. O computador, porém, decidiu que estava cansado e recusou-se a fazer seja o que for. Tive de o desligar e tornar a ligar. Quando retornei, apesar de ter gravado o texto escrito, este desaparecera. Um sinal, por certo, para que eu compreendesse que tudo o que tinha escrito era puro lixo, matéria morta, à qual não deveria voltar, pois, caso contrário, ainda seria transformado em estátua de sal. Achei desagradável partilhar a sorte com a mulher de Lot e abstive-me de retornar aos tormentosos assuntos que me ocupavam e que se perderam nalgum buraco negro do universo virtual. Sendo assim, não tenho assunto para hoje. Nenhum acto heróico a acrescentar a esta gesta. O sol desmaiado chama o fim do dia e o cansaço anuncia que o ano está por horas. Foi um ano mau, 2021? Talvez, mas, como acontece sempre, poderia ter sido pior. Também poderia ter sido melhor. Oiço o pianista de jazz Marc Copland. Há alguns anos assisti, nesta pequena cidade de província, a um concerto dele para apresentação de um álbum. Nunca percebi como foi possível isso ter acontecido, pois foi o único concerto dado em Portugal. Esperemos que o ano vindouro não se entregue, como o actual, a facécias virais, que tenha tino e não ande por aí a molestar os espíritos dos homens. Já bastam estes para se molestarem a si e aos outros. Também é necessário que os anos tenham juízo, e os últimos não têm dado grandes provas de o possuírem. Deveria haver possibilidade de os devolver, sempre que vêm avariados. A defesa dos consumidores precisa de estar mais atenta a estas coisas.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Sol de Inverno

O ano, o triste ano de 2021, parece decidido a despedir-se em beleza. Saí há pouco e a cidade está coberta por um magnífico sol de Inverno. Esta expressão lembrou-me uma canção de Simone de Oliveira com o mesmo nome. Cantou-a, fui verificar, no Festival da Canção de 1965. Naquele tempo, os festivais da canção eram motivo de reuniões familiares, os jornais publicavam grelhas para se ir registando a pontuação. Haveria preferências domésticas. Um acontecimento. Depois vinha o festival da Eurovisão, um novo acontecimento, embora aí as coisas corressem sempre mal. Os jurados dos diversos países esqueciam-se quase todos de pontuar a canção portuguesa, que acabava lá para os últimos lugares. Corriam múltiplas teorias sobre essa conspiração aleivosa contra as cantigas pátrias. Fui ao Youtube e ouvi a Simone cantar Sol de Inverno. Para dizer a verdade, não achei nada mal, pelo contrário. A interpretação da Simone é muito, muito boa. Estou a ficar velho. Ainda há uns anos nem me dignava lembrar desta canção, quanto mais… Li que só teve um ponto na Eurovisão dado pelos monegascos, gente simpática, disponível para a caridade. Não tarda muito e estou a comentar a Desfolhada. O que me vale é que lá para meio da tarde chega o meu neto.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Uma questão de luz

Uma luz belíssima repousa na escola aqui ao lado. As copas das árvores reverberam e até as paredes surgem aos olhos como tendo uma dignidade que, na verdade, não têm. Blocos em cimento fazem um conjunto de onde está ausente a grave dignidade que outrora revesti o edifício de uma instituição de ensino. Havia neste um toque aristocrático, um sinal de que aquele lugar servia para uma elevação do espírito. Os edifícios das escolas modernas são uma confissão de que o saber já não tem qualquer relação com o mundo do espírito, mas é apenas uma questão técnica para gerir as necessidades da vida, apesar da retórica humanística e das homílias cívicas. Estava eu tão lançado nesta diatribe contra a decadência do bom gosto quando sou interrompido por assuntos familiares. É verdade, até um narrador tem assuntos familiares. Resolvidos estes, volto para aqui, mas a luz que me animou no início desapareceu, engolida pelo espectro da noite que se aproxima. Na praceta, ainda há crianças a correr e a gritar, as árvores estão imóveis e o hospital, ao longe, tocado pelo crepúsculo, parece ainda mais lúgubre. Num site noticioso vejo que uma jovem mulher, condenada a uma longa pena por homicídio, se suicidou. O mais tenebroso, contudo, são os comentários. Há qualquer coisa de infecta no coração destas pessoas. Talvez sejam vítimas de um vírus para o qual não há vacina que lhe limite os danos. A iluminação pública acendeu-se.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Disembroil

Ao escrever Dezembro o corrector do Word assinala com um traço vermelho e oferece para substituição a palavra Disembroil. Não faço a mínima ideia de que língua perdida veio a sugestão. Faço uma pesquisa, mas a ignorância continua. Talvez o meu processador de texto tenha chegado a uma autonomia tal que conseguiu inventar uma língua, com a qual pretende corrigir tudo o que eu escrevo. Imagino que a cacofonia não seria maior do que aquela que resulta do meu uso do português. Há que esperar as facécias mais inesperadas. Levantei-me cedo para tratar de algumas coisas vindas da terra escura da realidade. Bem poderia estar em descanso preparando-me para a transição de ano, coisa que, apesar de trivial, exige uma longa preparação espiritual e, sejamos sérios, física. Ora, lidar com os imperativos da realidade não ajuda nem corpo nem espírito, pois a dita realidade conspira continuamente contra quem a ela veio. Dá-lhe dores, despesas, desavenças e desamores, dá-lhe mais umas quantas coisas começadas por dê, mas que não me ocorrem por agora. Neste momento, dá-me uma quebra de energia, talvez porque chegou a hora de almoçar e eu arrasto-me neste texto à procura de alguma coisa para dizer, mas não me acode mais nada do que Disembroil.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A era da zaragatoa

Nestes quase dois anos, os que dura a pandemia, já vivemos diversas eras. A era do confinamento, a era da máscara e, agora, a era da zaragatoa. Esta esteve sempre presente nas eras anteriores, mas tornou-se, por estes dias, o elemento central. As pessoas fazem filas para serem zaragatoadas. Também eu, há pouco, me coloquei numa dessas filas. Ela foi caminhando devagar e, por fim, tive direito a que me escarafunchassem o nariz com uma pequena zagaia. Ainda não sei o resultado, mas já nem faço prognósticos, pois estes nem mesmo no fim do jogo dão certo. Preciso de fazer uma visita a uma pessoa internada num daqueles sítios que exigem um teste. Caso tenha nota negativa, vou tentar fazer uma dupla visita. Há muito que se sabe que a matemática é fundamental para a vida civilizada, mas nunca se pensou que até uma simples análise tenha de ser calculada para se poder tirar o máximo proveito dela, caso ela permita tirar algum proveito e não obrigue a quarentenas, telefonemas para o serviço nacional de saúde e o temor do que poderá vir a acontecer, pois nestas coisas, o melhor é não ter qualquer certeza. Em compensação, o dia tem estado magnífico. É no Inverno que amo o Sol e os dias ensolarados trazem ao coração – e também à velha razão – uma alegria inesperada. Esperar os resultados da zaragatoa faz parte daqueles fenómenos que Peter Handke caracterizou, no título de um livro, como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Uma pessoa pensa sempre naqueles com quem tem estado, se não vai ser causa da doença deles. Tudo isto é cansativo, mas há que aprender a viver de zaragatoa em zaragatoa.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Uma reforma do Natal

Hoje é um domingo que vem depois de um sábado que parecia um domingo. Isto perturba-me a relação não apenas com o calendário, mas também com a realidade. Esta parece-me ainda menos verosímil do que habitualmente. Como é possível viver numa semana que, na prática, embora não em teoria, tem dois domingos, um num dia e o outro no dia seguinte. Se eu pudesse resolver estas coisas, haveria de propor que, assim como o dia da ressurreição de Cristo é móvel no calendário e fixo na nos dias da semana, também o dia de nascimento do mesmo Cristo ganhasse mobilidade no calendário, mas se tornasse fixo no dia da semana. Por exemplo, o Dia Natal seria sempre às quartas-feiras. Isso evitaria casos como aquele que acontece comigo. Pensar que existem dois domingos seguidos, sem que uma semana entre eles se intrometa, perturba-me. Pessoas menos caridosas hão-de achar que as Festividades não me fizeram bem à sanidade mental. Pensem como quiserem, mas isso não atinge a grandeza e o rasgo da minha concepção do Dia de Natal. Não é porque uma ideia tenha ocorrido a um asno que ela é má. A minha ideia é óptima, apesar de ser minha. O dia está triste, tristíssimo. Cinzento, chuvoso, sem gentes pelas ruas. Mesmo assim, arrisquei e fui a uma aldeia aqui perto que costuma ter, à beira da estrada, bancas de produtores locais a vender laranjas, marroquinas, tangerinas, tângeras, por aqui ditas tanjas, resultado da lei do menor esforço que permite às línguas progredirem em direcção à cacofonia universal. Não comprei tângeras nem tangerinas, mas laranjas e deixei-me levar por umas marroquinas. Esta piada era dispensável, além de ser de mau gosto. Espero, contudo, que ninguém fique a pensar, pelo facto de não comprado tangerinas nem tângeras, que tenho alguma coisa contra a cidade de Tânger. Não tenho. É quase noite e ainda não consegui adaptar-me a este segundo domingo.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Deu em pantanas

Tudo pronto, alinhado à porta para ir para o carro. O almoço de Natal seria em Lisboa. Expectativa de ver as netas, de lhes oferecer os presentes, de sentir a sua animação de adolescentes. Um telefonema e tudo se esboroa. Uma das participantes autotestou-se e deu positivo. Devido aos contactos com parte dos que iriam amesendar, decidiu-se pela anulação da viagem e uma súbita nuvem de tristeza abateu-se por aqui. Apesar de não ter havido contacto, também nos submetemos ao ritual do escarafuncho. Por enquanto, tem havido uma sólida fidelidade ao negativo, mas há um conjunto de projectos que irão ser adiados ou, pura e simplesmente, cancelados. Planear é, por certo, uma coisa muito razoável. Contudo, a realidade, com a sua inclinação para a hipérbole, é pouco dada a razoabilidades. Faz o que muito bem entende e rasga em segundos aquilo que levou dias a projectar, quando não mesmo anos. O Natal do ano passado, apesar de tudo, ainda disfarçou, embora estivesse longe dos Natais canónicos. Este ano deu tudo em pantanas. Acho que vou pôr um CD na aparelhagem. Alba, um ensemble dinamarquês, interpreta canções de Natal escandinavas, numa gravação com o nome It Barn Er Fød - Old Yuletide Songs From Scandinavia. Quase há vinte anos que este CD faz parte do Natal. Há que encontrar alguma compensação. Deu em pantanas, escrevi lá em cima. Muito gostava de saber de onde veio essa infeliz expressão. Infeliz num duplo sentido. Infeliz porque é esteticamente feia e porque designa uma situação infeliz. Ainda por cima hoje é o dia em que todos devem dizer Feliz Natal.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A ordem do mundo

Assim como a torrada cai sempre com a face amanteigada para baixo, também, por mais cuidado que se tenha e listas que se façam, falta sempre, no dia 24, qualquer coisa essencial para os festejos natalícios. E uma pessoa lá tem de se pôr a andarilhar por aqui e por ali para adquirir o que estava em falta. Foi o que me aconteceu. Fui despachado, logo de manhã, a grande velocidade, para ir a um supermercado comprar coisas mais que necessárias e de seguida que fosse pelo Bolo Rainha encomendado. Zeloso, cumpri, embora tenha aproveitado para passar por uma garrafeira e reforçado o stock de vinhos e, tão importante como isso, passei por uma farmácia e comprei seis testes ao SARS-COV2. Perguntei se tinham. Sim, responderam. Posso levar seis? Os que quiser, ouvi. Muito bem, trouxe seis sem ficar com a consciência maculada por um espírito açambarcador. Aquela farmácia terá testes para dar e vender, embora só venda. Cumprida a missão, voltei para casa e estou emaranhado neste dia acinzentado, todo ele melancolia, embora as pessoas andem pelas ruas, encham os supermercados, lojas, cafés e pastelarias. Ao olhar pela janela, ao observar a palidez da luz, ocorreu-me que a ordem do mundo está longe da perfeição. Não quero com isto incorrer em alguma heresia, mas não seria destituído de sentido que essa ordem do mundo, chegadas as festividades de Natal e de Ano Novo, suspendesse a pandemia, para as pessoas poderem desfrutar sem constrangimentos das tradições. A seguir, recomeçava, como recomeçam os jogos de futebol, após o intervalo. Fora eu a ordenar o mundo e muita coisa tornar-se-ia perfeita, até a própria desordem seria ordenada, com tempo para o caos e tempo para o cosmos. Agora chove bem e talvez neste aguaceiro exista mais sabedoria do que na minha visão sobre a ordem do mundo. Talvez, saliento.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Princípio da Incerteza

Acordei cedo e, quase de imediato, fui submetido ao ritual do autoteste à COVID-19. Pedi que me escarafunchassem as narinas com a zaragatoa. Que palavra horrível inventaram. Suportei a actividade amadora, embora determinada a fazer bem a operação. A seguir entreguei-me a uma sessão de espirros. Não vale a pena preocupação. Cumpri a etiqueta respiratória. Se contaminei alguma coisa, foi a manga da camisola que tinha vestida. Alguns sintomas desagradáveis, coincidentes com os da nova variante, levaram-me ao acto. Se isto se passasse há dois anos, nem ligava, pois, todos os Invernos tenho direito pelo menos a uma destas visitas inoportunas. Mas não posso evitar o Zeitgeist e achei que me deveria submeter à pequena sessão de tortura narinal. O teste deu negativo, embora eu continue com os mesmos sintomas. Aqui, poderia fazer uma transferência audaciosa, do princípio da incerteza de Heisenberg, da mecânica quântica para o meu estado existencial. Caso fizesse tal transferência, que não faço, diria que quanto menor for a incerteza dos meus sintomas, tanto maior será a incerteza da sua causa e vice-versa. O problema é que eu sou um mero narrador, um ser virtual criado pela imaginação delirante de um autor espúrio, e não uma partícula subatómica a voltejar feita barata tonta em torno de um núcleo. Eu não tenho posição nem momento linear, embora sinta algum corrimento nas narinas e impressões rugosas na garganta. Invenções do autor, claro, que faz tudo isto para me prejudicar a reputação. Já pensei em fundar um sindicato de narradores, para se defenderem da prepotência dos autores, mas a inclinação individualista tolheu-me o ímpeto revolucionário e justicialista. O pior foram estes três espirros. Cumpri a etiqueta respiratória, pois até um narrador virtual tem etiqueta respiratória, mesmo que não respire.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Queda

Também hoje é um dia sombrio, chuvoso. Um dia plangente, flébil. No sítio onde oficio um ritual inútil para fazer frente à dura necessidade, fui a grande estrela da manhã. Estaciono o carro, saio, fecho a porta e estatelo-me. Grandes preocupações. Estava bem? Não me tinha magoado? Não, não me magoara, nem rasgara as calças, nem ferira a mão que amparou a queda, e agradecia. Depois, enquanto as horas passavam, continuavam a perguntar-me se estava bem. Respondia que sim, estava óptimo e tornava a agradecer. Não há coisa mais natural na humanidade do que cair. Não por acaso, a autêntica vida humana começa com uma queda. O meu trambolhão foi apenas um reflexo dessa queda originária que nos expulsou a todos do paraíso. Estas explicações, porém, omiti-as, dizendo apenas que não se tratara de um AVC, apenas de um tropeção numa corrente sobre a qual decidira alçar uma perna e depois outra. Ora, com o entusiasmo de ter passado com a primeira, esqueci, ao usar a segunda, que esta terminava no pé, e o esquecimento paga-se. Sobre a minha secretária tenho o livro As Fronteiras do Conhecimento – o que sabemos hoje sobre ciência, história e a mente, de A. C. Grayling. Este, de facto, é um livro que me deverá ser útil, pois poder-me-á ajudar a estabelecer as fronteiras do conhecimento do meu corpo, evitando aventuras infelizes. A infelicidade, porém, não nasce da dor física, mas do ridículo que é uma pessoa estatelar-se perante qualquer auditório. Nem vale a pena dizer que não é ridículo, pois todos temos a tentação de rir perante quedas alheias e até das nossas, mas apenas mais tarde. A noite assentou há muito arraiais e cobre a cidade com a sarapilheira da escuridão. Continua a chover.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Causa final

Hoje foi um dia solsticial, como tinha anunciado ontem. Agora, os dias começarão a crescer e as noites a diminuir, como dispõe a ordem do mundo, para que tudo encontre equilíbrio e a realidade não se torne hiperbólica. Não estou certo, contudo, que a realidade não ame a hipérbole, que se paute pelo meio-termo e a justa medida. A pandemia tornou-se hiperbólica. Cada vez que parece ter-se encontrado a medida que possibilita a vida normal, o vírus entrega-se à mutação e repõe as coisas no caos onde prolifera. É um jogador astuto, está empenhado em vencer-nos através do cansaço e da impaciência. Neste momento, não há virtude mais importante que a da paciência. Os homens, porém, não a cultivam, pelo contrário. Há na nossa vida um imperativo de mobilidade, um mandamento de desassossego. É necessário que nos movamos continuamente, é necessário que derrotemos a tentação da quietude. Ora, a paciência exige imobilidade e quietação, exige o domínio das pulsões e a domesticação dos desejos, tudo coisas com má publicidade. O vírus sorri. Pena é que a velha teoria da causalidade de Aristóteles tenha caído em desuso e a teleologia seja vista como uma rameira de má fama. Caso não fosse assim, perguntaria pela causa final daquilo que está a acontecer. Que causa final está a mover os cordelinhos da situação? Esta pergunta, porém, não a faço, pois deixaria de rastos a minha reputação, já de si tão pobre. Eu juro que não existe em nada disto uma causa final, abjuro de toda a teleologia, renego toda a crença no ensinamento do Estagirita. Para o que me haveria de dar. O Natal está próximo. Os Reis Magos já se devem ter posto a caminho, espero que não sejam assaltados e o ouro, o incenso e a mirra cheguem sem sobressaltos a Belém, para que cumpram a finalidade a que, no começo dos tempos, foram destinados.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Experiência

Oiço a chuva. Está de humor variado, volúvel. Umas vezes, o aguaceiro é fraco, outras, como agora, parece estar irado, fazendo a água chocar com violência contra a terra. Também os elementos da natureza possuem os seus humores e a chuva é, entre todos eles, um dos mais volúveis. Claro que não possuo nenhum medidor de volubilidade dos elementos, mas a experiência, por mais enganadora que a proclamem, de alguma coisa há-de servir, e eu tenho uma longa experiência acumulada. De que serve essa experiência, pergunta-me a consciência, enquanto deixa escapar um riso escarninho. Irrita-me quando cultiva o sarcasmo. Ainda por cima a resposta é óbvia. A experiência serve para uma pessoa ser experiente. Ora, ora, responde ela. O ano passado, continuou, por falta de experiência fez-se um conjunto de idiotices no Natal e no Ano Novo. Janeiro e Fevereiro foram meses terríveis. Agora que somos experientes, estamos a fazer exactamente as mesmas idiotices nas mesmas datas. Como vês, a experiência não serve de muito. Desisti de argumentar, até porque a tarde foi cansativa, pois tive de fazer uma daquelas coisas que não servem rigorosamente para nada, mas que me são apresentadas como o caminho de salvação do mundo. Cansa-me muito fazer coisas que não servem para nada, por mais salvíficas que elas se apresentem. Quando começo a falar por enigmas, o mais ajuizado é calar-me. Assim, a chuva pode falar à vontade, dar largas ao seu humor volúvel, encharcar a noite. Os dias estão cada vez mais pequenos. Amanhã, às quinze horas e cinquenta e nove minutos ocorrerá o solstício de Inverno. Então, os dias começarão a crescer. É o que me diz a experiência.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Tempos de tribulação

O domingo já alçou a perna e está pronto a saltar para o outro lado da paliçada. Ainda não saí de casa, não porque tenha algum motivo para o não fazer, mas apenas porque não me apeteceu. O jantar de família, que deveria ter decorrido ontem, foi adiado sine die. O meu filho teve a infelicidade de almoçar na passada quinta-feira com alguém que, na sexta, testou positivo à COVID-19. Tribulações de um tempo de pandemia. Preciso de falar com alguém, mas o telefone está continuamente ocupado. Vou tentando, enquanto o dia se vai dissolvendo e a paisagem se aproxima cada vez mais de um esboço em carvão até que a noite pegue nela e a guarde num saco de sarapilheira. Na avenida, as pessoas entregam-se a longas conversas, num protesto mudo contra a realidade que as manda afastarem-se umas das outras. Não é fácil viver nestes dias, em que os hábitos enraizados são incapazes de fornecer a armadura necessária para enfrentar o inimigo. Como este é invisível, a tentação é negar a sua existência. Não tarda, cairá a noite. Depois, virá a manhã e será mais um dia.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Diurese

Há dias, o cardiologista – também os narradores têm problemas de coração – calculava a medicação, como quem pensa um lance numa partida de xadrez, e alvitra: bem, se a tensão não se equilibrar ainda temos margem de manobra com o diurético. Como toma apenas metade da dose, ainda há espaço para aumentar. Olhei-o como se estivesse a compreender muito bem o que queria. Mal sabia ele, porém, o que me ia na alma. Se o problema está na diurese, não conheço melhor estimulante que um bom vinho tinto, de preferência seguido de café. Nunca compreendi por que razão, quando fazem a especialidade, os cardiologistas não são informados sobre aquilo que é verdadeiramente eficaz. Claro que fica mais barato tomar 50 mg de Hidroclorotiazida e 5 mg de amilorida, omito o nome comercial da mistela, do que beber dois copos generosos, ou mesmo um, de bom tinto, ainda para mais que, no caso do vinho, não existe um genérico, que torne o consumo mais em conta. Não podemos, todavia, estar sempre a pensar em poupança quando se trata da saúde. Isto tudo porque, no pós-almoço, verifiquei, mais uma vez, o efeito diurético dessa combinação entre esses dois medicamentos extraordinários, o vinho e o café. Hidroclorotiazida? Amilorida? Que cocktails são esses? Claro que também o tinto tem efeitos secundários. Hoje comecei a manhã com uma disputa acesa com a balança. Pisei-a e ela devolveu-me, como castigo, um peso desagradável. Tornei a pôr-me em cima dela, mas a rameira manteve-se fiel à palavra. Insultei-a. Olhou-me, impávida, e, depois de um longo silêncio, atirou-me à cara: então, não és tu que achas que o melhor diurético é o tinto? Voltei-lhe as costas. É inútil discutir com gente estúpida.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Derrubar muros

Ao acaso, abri uma edição da Poesia Completa de Herberto Helder. Leio, então, o verso Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. Estanco. O verso fascina-me, não apenas pela sua qualidade poética, mas pela descrição da realidade. Também no dia de hoje, muita coisa começou a bater nos muros de mim mesmo. Foi um batuque contínuo, com oscilações no ritmo, mas sem parar até ao momento em que me sentei para escrever isto. Então aquilo que batia em mim, suspendeu a actividade. Agora sou eu que bato nas teclas, que choco contra o muro que envolve o texto e trabalho para o derrubar. A queda dos muros é uma coisa que excita a alma das multidões. Há nelas uma alegria insana, se vêem um muro ruir. Têm esperança de ganhar espaço para construir um novo. A actividade humana não passa de um contínuo erguer e derrubar muros. Festejam quando se ergue um. Celebram quando ele é derrubado. Depois de um dia como de hoje, onde o batuque frenético da realidade tentou derrubar o muro que me constitui, não sei se celebre ou não. O muro resistiu, mas será isso uma virtude? Ao ler esta palavra, rio-me. Quem quer saber de virtudes, dessa invenção dos velhos filósofos gregos. Anoiteceu há muito, o melhor será calar-me.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Raízes

Podemos fugir àquilo que somos? E aquilo que somos pode desligar-se do lugar onde nascemos? Estas perguntas vêm a propósito de Toshio Hosokawa, um compositor japonês de música erudita contemporânea. Ocorreram-me quando escutava a peça denominada Wie ein Atmen im Lichte, que o serviçal tradutor da Google verte para Como Respirar na Luz. Para as pessoas não habituadas à música contemporânea, as peças de Toshio Hosokawa não parecerão mais estranhas que as do português Emmanuel Nunes. No entanto, há em Hosokawa uma clara influência da música tradicional japonesa. Não é aqui, porém, que quero chegar, mas ao carácter lancinante de algumas das suas peças, como aquela que se referiu acima e que se pode transformar numa pergunta, Como Respirar na Luz? O compositor nasceu em Hiroshima, passados dez anos da deflagração da bomba atómica. Quantas pessoas, da sua família, porventura, não se viram confrontadas com a impossibilidade de respirar naquela luz terrível, no esplendor fulgurante do cogumelo impetuoso e mortal que caiu sobre a cidade? Podemos alienarmo-nos, tornarmo-nos estranhos a nós próprios, mas aquilo que somos e o lugar de onde viemos não deixa de estar, no fundo da consciência, a orientar o olhar, as opções, as escolhas estéticas, ou outras. O sol, lá fora, brilha, com uma tonalidade invernal. A vida passa tranquila e confia-se que nenhuma bomba atómica caia sobre nós e estilhace o céu e a terra, para que um compositor a vir componha em forma de música essa dor sem nome que nasce dos corpos lacerados.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Forças mágicas

No volume II, A Queda para Fora da Realidade, da sua Crónica dos Sentimentos, Alexander Kluge tem um capítulo dedicado ao tema da Revolução denominado A Revolução É um Ser Vivo Cheio de Surpresas. Como no resto da obra, também este capítulo é composto por pequenos textos, alguns com títulos extraordinários, A Querela das Revoluções: Formam Círculos ou Espirais? Ou Serão Hipérboles? Levantam Voo? Se achou este título demasiado grande há outros mais pequenos, como por exemplo Aplicação da Medida Métrica ao Tempo do Relógio ou, então, Os Perigos da Filantropia. Das múltiplas denominações dadas aos textos sobre a vexata quaestio da Revolução, aquele que hoje elejo como o meu preferido é Poderão as Ambições de Dominação Gerar Forças Mágicas? Eis um problema fundamental. Há coisas extraordinárias desde que se ponha em movimento a ambição, o desejo e outras forças que não sendo ocultas, também não são manifestas, como no caso que acabo de ler de uma enfermeira italiana. A pobre senhora militava no negacionismo dos efeitos do vírus SARS-COV2. Estava suspensa da função por se recusar vacinar. Publicava vídeos em apoio das suas teses e consta que afirmara querer apanhar o vírus. As forças mágicas fizeram-lhe a vontade e a infeliz não resistiu aos efeitos virais. Sendo assim, não será uma coisa de somenos importância saber se as ambições de dominação têm poder para gerar forças mágicas. Pelo menos forças elas geram, se são ou não mágicas, isso é objecto de disputa, como quase tudo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Acabar em nome de hotel

Ora, para o que um homem está guardado, comentei para mim mesmo. Descobri há pouco, numa deambulação online em busca de alojamento para uma saída, que um dos mais brilhantes, senão o mais brilhante, dos oradores parlamentares do século XIX, é agora nome de hotel. Anda uma pessoa a enfrentar perigos e revoluções. Usa uma das mais terríveis retóricas que se fizeram ouvir por estes lugares. É odiado e amado. Tudo isto para acabar em nome de estabelecimento comercial. Neste caso, num lugar onde as pessoas se deslocam para dormir e não para fazer da vigília um estado de alerta para o combate. Quando as pessoas acabam em nome de rua, ainda vá que não vá. Agora, em nome de hotel, restaurante, loja, parece que toda aquela glória, afinal, era de pechisbeque. Seja como for, o ilustre deputado, o homem da patuleia, o setembrista radical, lá terá a sua rua, a sua estátua e também deverá ser nome de escola. Por falar na patuleia, dois dos liberais radicais terminaram em nome de liceu, o Passos Manuel e o Sá da Bandeira. Foi neste, apesar de nunca o ter frequentado, que diversas vezes na vida enfrentei terríveis examinadores. Pior sorte que aquela que coube ao magnífico retor, foi a dos seus colegas setembristas. Começaram como nomes de liceu e acabaram em designações de escolas secundárias. Ele que se acautele, pois ainda pode acabar em nome pensão. Nunca se sabe.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Doze dias para o Natal

Hoje é dia doze e daqui a doze dias será véspera de Natal. Este passará com grande rapidez. Por vezes acalento a esperança vã de que o tempo sofra um refreamento na sua ânsia de chegar ao futuro. Ele, porém, mantém-se firme na sua decisão e corre sem freio. Isso não me retira o sono, depois do almoço tardio de domingo. Até há pouco estava uma luz exuberante de Primavera. Agora, a fulguração declina, o brilho desaparece e tudo se prepara para ceder ao desejo da noite. Leio que há um novo campeão mundial de Fórmula 1. Outrora, a notícia ter-me-ia interessado vivamente, mas vai para cinquenta anos que as corridas de automóveis deixaram de me interessar. Mais uns anos e talvez voltem a prender-me a atenção. Nunca se sabe para o que se está guardado. Os jornais e sites noticiosos continuam com a sua contabilidade mórbida. Assinalam que por cá a pandemia fez mais treze mortos. Podiam ser mais precisos. Ontem morreram em Portugal x pessoas, treze das quais vítimas de COVID. Podiam ser ainda mais rigorosos e indicar com precisão a causa de todos os óbitos. Para contrabalançar deveriam também indicar o número de nascimentos e a causa deles. Diriam x neonatos desejados, y fruto do acaso. Dentro deste, poderiam categorizar, elencando cada classe de acidentes que originaram uma criança. Ficaríamos todos mais informados e a estatística tornar-se-ia de grande utilidade noticiosa e dar-me-ia motivo para escrever mais umas linhas. Oiço o jazz do Tord Gustavsen Trio. Embala-me. E as compras de Natal? Tenho de pensar nisso.

sábado, 11 de dezembro de 2021

O lutador

Há pouco, ao arrumar uns ficheiros no computador, deparei-me com uma colecção destes textos. Tinha o nome de E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor – diário da pandemia. Correspondia a quatro meses de actividade bloguística, desde o dia 1 de Março de 2020, até a 30 de Junho. Não faço ideia por que razão destaquei esses textos de todos os outros. Também não imagino o motivo que me levou a parar a recolecção no dia 30 de Junho. Terei, na altura, imaginado que o distúrbio que atingiu a vida dos seres humanos sobre a Terra estivesse a acabar? Santa inocência. O título, porém, sei a onde o fui buscar. A uma frase do Traité de la Maison Intérieure ou de l’Édification de la Conscience. Obra atribuída a Bernardo de Claraval, mas a atribuição é espúria. Há na frase escolhida por mim uma tonalidade guerreira, o que não chocaria com uma atribuição ao autor da regra da Ordem do Templo, o mesmo Bernardo de Claraval. A questão, todavia, é se aquilo que fatiga o lutador terá possibilidade de um dia coroar o vencedor. Se em Junho de 2020, talvez ainda se imaginasse que daí a uns meses as coisas voltariam ao que eram, agora, a percepção parece a contrária. O vírus mostra-se persistente e com capacidade de se adaptar ao combate que lhe é movido. Seja como for, o melhor é o lutador continuar a fatigar-se, talvez chegue a hora em que a fadiga coroará o vencedor. Não há nada como um princípio de esperança.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Dias difíceis

Há dias em que se têm de tomar decisões que gostaríamos muito de nunca ter de as tomar. O melhor, mesmo se por dentro tudo se dilacera, é enfrentar o inevitável, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Sempre achei que a realidade tem uma face abominável, mas à qual não podemos voltar as costas, pois ela devora-nos. Terá outras alegres e benfazejas, dir-se-á. Não o creio. A alegria e a benevolência, aquilo que traz contentamento e prazer, tudo isso não faz arte da realidade. São pequenos sonhos e fantasias com que edulcoramos a vida, para a tornar suportável. Sempre abominei aqueles programas sobre a vida selvagem. Os animais são seres magníficos, mas tudo na sua vida gira em torno de matar e morrer, com interlúdio para o sexo, para que o triste espectáculo da sua existência possa continuar, num mundo onde só há devoradores e devorados. Essa é a realidade, mesmo entre nós, seres humanos. Talvez a diferença específica que nos separa, um pouco, muito pouco, desse mundo sangrento, não seja o facto de termos sido dotados com a razão, mas de haver em nós uma faculdade produtora de fantasia. Uma frágil faculdade, diga-se, mas que mesmo assim nos faz pensar que a vida vale a pena, que é possível fugir dessa orgia de morte com que a vida se alimenta. Talvez não seja por acaso que a tradição cristã elegeu a sexta-feira para a morte de Cristo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ser zaragatoado

Uma calamidade termos voltado ao estado de calamidade. Por causa disso, tive de ir hoje oferecer as minhas pobres narinas ao exercício do escarafuncho. Como terei de ir amanhã fazer uma visita a um hospital, além do certificado de vacinação, tenho de levar a prova de que fui zaragatoado e que o resultado foi negativo, como comprovei há pouco ao recebê-lo no email. Pior, muito pior, do que ser vítima da arte de escarafunchar narinas é a odisseia – só esta palavra indica o carácter aventuroso do que vou dizer a seguir – a odisseia, repito, de marcar a escarafunchadela. Liga-se para aqui, para ali, para acolá, laboratório público, laboratório privado, e não há uma alma que nos atenda. Minto. Há técnicas ainda mais soezes de conduzir, ao desespero, o candidato à zaragatoa. Atendem do geral, amabilidades mil, diz-se ao que se vai, respondem que vão fazer ligação ao laboratório, é lá que se trata de tudo. Agradecemos humílimos, fazem a ligação e somos recebidos por uma música inenarrável, entrecortada pela informação de que nos encontramos em fila de espera. A fila deve ser tão grande, que a própria operadora de telemóvel se cansa de nos ver esperar e acaba com a chamada. Talvez também não gostasse da música. Assim como num dia nublado há momentos em que surge uma aberta para o sol brilhar, também neste céu nebuloso das testagens COVID se fez uma aberta, eu marquei o teste, foi testado à hora exacta e recebi mais cedo do que esperava o resultado. Nem tudo é mau. Não tem sido um dia fácil, mesmo para um herói sempre disposto a odisseias.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Falta de coragem

Hoje foi um dia em que não fiz rigorosamente nada. Pelo menos até agora. É certo que levei uma pessoa à estação rodoviária para ela apanhar o Expresso. De seguida, fui à bomba de gasolina encher o depósito do carro e, por fim, passei pela farmácia para comprar aspirinas de 100 mg, coisa que consumo ao ritmo de uma por dia, e que me irrita solenemente, pois custa tanto como as aspirinas normais que possuem cinco vezes mais de substância activa, o célebre ácido acetilsalicílico. Tudo isto não dá para uma aventura digna de narração e de rememoração. Fosse a ida a um supermercado ou à frutaria da esquina, as coisas seriam diferentes, pois são lugares onde há gigantes a enfrentar e dragões a abater. São locais que dão sentido à vida humana. Não tendo ido lá, nem sequer ao Shopping, pois aqui também há um entreposto comercial com esse nome, vi seriamente abalado o sentido último da minha existência. Ainda iria a tempo, caso tivesse coragem e me dispusesse a enfrentar o ar frio, mas estou em registo de feriado. Fico-me por casa, na companhia de Pelleas und Melisande, de Arnold Schönberg, compositor que me tem acompanhado todo o santo dia, pois este é um dia santo, como me recordou há pouco o padre Lodo, como é conhecido entre os amigos o velho jesuíta Lodovico Settembrini, que trocou, há décadas, a terra natal por este recanto da península, onde, além de Deus, cultua os vinhos e a comida. Com moderação, como nunca se esquece de sublinhar. É verdade, hoje estive quase uma hora em conversa de telemóvel, mas isso não é uma aventura, apenas um prazer. Tivesse eu a coragem de um Cid campeador ou de um Orlando Furioso, ainda iria comprar umas coisas ao supermercado. Falece-me, porém, a coragem e tenho de pensar nos presentes de Natal.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Uma dura aventura

Uma dura luta contra as forças arbitrárias que comandam o universo. Em 2011, comprei a Encyclopaedia Britannica. Não em papel, claro, mas num DVD. Ela lá foi prestando os seus serviços, em concorrência com a Universalis, em língua francesa. Tendo feito uma troca do disco interno do computador, preparei-me para a instalar. Coisa simples. O pior é que as forças do mal não estavam pelos ajustes. Dava o comanda para instalação, e nada. Que me instalasse eu, cheguei a ouvir murmurado. Pensei, depois de várias tentativas, que o problema poderia ser da unidade de DVD do computador. Ligo uma unidade de DVD portátil. Resultado? Nada. Entretanto, tive de me fazer à vida. Entre outras coisas, fui ao dentista. No retorno, para descargo de consciência, fui tentar mais uma vez. A princípio, o dispositivo continuou renitente, mas depois, talvez por eu ter ido ao dentista, apiedou-se e decidiu começar a instalação. A certa altura pediu o serial number. Com delicadeza, dizendo-me que ele se encontra na caixa do DVD, no lugar referido no documento que acompanhava a mercadoria. Esse documento, se o guardei, não faço a mínima ideia onde estará. Pus-me a pesquisar na caixa e lá o encontrei muito disfarçado. Olhei para ele, ajustei os óculos, fiz incidir a luz de um candeeiro, mas isso só serviu para constatar que há dez anos via muito melhor. Pensei numa lupa, mas estava noutro lugar da casa. Ocorreu, então, fazer uma fotografia com o telemóvel. Remédio Santo. O serial number lá se mostrou em algarismos e letras bem visíveis. E é isto o que me ocorre narrar. As outras coisas não interessariam a qualquer leitor e aquelas que, porventura, o interessassem, não me interessam a mim. Fica aqui, para os pósteros poderem recordar, uma aventura onde, depois de muita porfia, as forças do arbítrio e do mal são vencidas, aventura que supera tanto as do Cid, o Campeador, como as do Quixote.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Meditação dominical

Há livros de poesia cujos títulos são, por si só, autênticos poemas. Um dos poetas com mais talento para escolher títulos foi Eugénio de Andrade. Por exemplo, As mãos e os frutos¸ ou Obscuro domínio, ou Véspera de água, ou Limiar dos pássaros, ou O peso da sombra, ou Branco no branco, ou Rente ao dizer, ou O sal da língua, ou Lugares do lume. Cada um dos títulos basta para produzir um profundo efeito poético no leitor. Mais do que isso, cada um destes títulos tem o poder de arrastar o leitor para uma meditação que ultrapassa em muito o prazer poético que eles produzem. Essa meditação pode conduzir à descoberta de conexões inesperadas entre realidades que o hábito ritualizado mostra como completamente separadas. Há, por exemplo, uma clara incongruência na expressão véspera de água ou em o peso da sombra. No entanto, podemos ser conduzidos a pensar sobre o que antecede a água, o que será aquilo que vem antes dela, ou então a meditar por que razão aquilo que a véspera antecede é denominado água. Hoje é véspera de amanhã. Não será, neste momento, o amanhã ainda uma coisa líquida, sem os contornos da solidez? Também a sombra não tem peso, mas não haverá algo de pesado em tudo o que é sombrio? Estas incongruências são o produto da imaginação que oferece ao leitor uma chave para abrir aqueles obscuros domínios, onde a realidade se esconde. A mim, todavia, não me ocorre nada de poético, apenas que é domingo e o almoço será, como é habitual, tardio. Também os dias têm a sua gramática, morfologias e sintaxes muito próprias, que os classificam e organizam, que estruturam os seus rituais. Talvez a poesia, com as suas incongruências, seja uma luta contra o ritual dado na gramática de cada coisa.

sábado, 4 de dezembro de 2021

Citação

Comece-se com uma citação. A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. Que bela citação. Talvez o leitor pense de imediato estar perante um texto do século XVIII. Não se terá enganado. De facto, o livro de onde foi retirado o excerto é da parte final desse século de luzes, revoluções e libertinagens. Tem, aliás, o odor desses tempos. Depois, ao meditar no conteúdo, verá nascer-lhe a convicção de que se estará perante o começo de um romance ou de uma novela libertina, daquelas em que a inocência facilmente é vencida por sedutores mais ou menos experimentados. Talvez obra do senhor Donatien Alphonse François de Sade, também conhecido por divino Marquês. Ah! Como as ilusões depressa cobrem com o seu manto de fantasia a realidade. Já se pressentia uma jovem inocente afogueada, presa da líbido exuberante de algum dominador cruel, já se via o rubor da alma ainda imaculada a ceder à curiosidade que o desejo logo acende. A imaginação não tem fronteiras. A verdade, porém, é que a citação pertence a um autor pouco dado a aventuras libidinosas, de uma moral rigorosa e, não será uma hipérbole dizê-lo, assexuada, alguém que atravessou a vida sem se casar ou, que se saiba, ter tido uma aventura erótica. Que se saiba, sublinho. Estas coisas nem sempre são o que parecem. Não, não é um libertino o autor de tão promissora abertura de uma novela libertina. Trata-se daquele senhor que todos os dias dava um passeio à mesma hora pela cidade de Konigsberg e cujo nome é Immanuel Kant. A páginas tantas da sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, saiu-se com esta, mas o desenrolar da narrativa não conduz a aventuras dionisíacas, não há jovens inocentes e belas seduzidas pelos mestres da perversão, mas traço o duro caminho do rigor moral apolíneo. O sábado sombrio não me está a fazer nada bem.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Uma traição

Mandei trocar o disco interno do computador, o que me limpou o dispositivo do imenso lixo que o tornava mais lento que Aquiles atrás da tartaruga, mas trouxe-me um grande desgosto. O Word apareceu-me formatado para o malfadado Acordo Ortográfico de 1990. Esta mania das reformas e simplificações ortográficas, de adaptar as coisas aos tempos, como se os tempos não se pudessem adaptar às coisas, causa-me desprezo. As línguas vão-se transformando, tal como as sociedades, os países e as sociedades. Hoje em dia ninguém se lembra de ir dinamitar umas ruínas romanas ou um castelo medieval só porque, na verdade, são inúteis. Foi o que fizeram com o português. Ele tinha, em algumas das suas palavras, os vestígios mudos, mas visíveis, da sua origem, verdadeiros monumentos linguísticos, e aqueles senhores, os que perpetraram a ignomínia do acordo e os que o aprovaram, acharam que era boa ideia pôr umas bombas nesses vestígios monumentais. Não foram os primeiros, pois um corpo de linguistas do tempo da Primeira República fez o mesmo, eliminando os vestígios visíveis do grego, mas isso compreende-se. Nesses tempos, os bombistas estavam na moda. Este jacobinismo linguístico irrita-me. Até aqui o meu processador de texto era fiel ao português anterior ao segundo bombardeamento. Agora, se escrevo cacto ou conjectura, sublinha-me as palavras a vermelho. Se tenho a veleidade de escrever o mês com maiúsculas, lá está o Word a sublinhar a palavra a azul, indicando-me uma incorrecção gramatical. E este processador não é o pior, pois há os que o único português que conhecem é o do Brasil e não hesitam em sublinhar facto a vermelho, pois no Brasil, factos são fatos e fatos são ternos, apesar dos cactos e das conjecturas continuarem a ser aquilo que eram. Se se fossem internar, ficaria muito grato. Uma traição.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Um dia de luz

Um dia luminoso e frio, belíssimo, mas talvez a anunciar um ano sem chuva. Na praceta, adolescentes jogam à bola, gritam golo, emitem uns urros próprios ao estado em que se encontram. Sem que o entusiasmo esmoreça, de súbito, calam-se. Terão entrado para o Centro de Línguas. Ali não haverá lugar para urros, nem para golos, mas a preparação do futuro, convencidos todos que o futuro ainda será escrito e falado em língua inglesa. Estas presunções são difíceis de provar, mas é muito mais difícil mostrar a sua falsidade. Quando tinha a idade deles, era inverosímil pensar que o Francês se tornaria, em Portugal e um pouco por todo o mundo, uma língua dispensável. Pertenço a uma geração cuja cultura de base é francesa. A literatura, a música, o modo de vida e até a política, embora sobre isso o autor não me deixe falar. Agora, ninguém quer saber do Francês. A língua inglesa, como certas variantes dos vírus, tornou-se dominante, há já faculdades a ministrar os cursos em inglês, e, caso o gosto de alguns se tornasse dominante, em pouco tempo Portugal tornar-se-ia um país anglófono, a que não faltaria o pedido de adesão à Commonwealth. O que teria as suas vantagens, pelo menos no Algarve. Agora, enquanto o dia resiste aos avanços da noite, vou ver a luz resplandecer na cidade.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Presépios

Chegou a última carruagem do comboio de 2021. Este corre desenfreado em direcção a 2022, como se estivesse tomado pela urgência de um encontro decisivo. Não tarda, a Restauração fará quatro séculos. Apesar de gostar imenso de Espanha, gosto ainda mais de não ser espanhol. Não que a condição de ser espanhol seja algo que provoque vergonha. Pelo contrário, os espanhóis têm imenso prazer em sê-lo. É esse prazer que eu sinto em ser português. Lamento as nossas idiossincrasias mais obscuras, lamento a falta dos climas do Norte, sou dos poucos a fazê-lo, mas a forma como os portugueses olham para o mundo, com bonomia e moderado cepticismo, coisa de gente que já viu muito, são-me agradáveis. Esse prazer de ser português justifica plenamente que se comemore o cartão vermelho aplicado a Filipe III. Importante, porém, foi ter cá o meu neto. Ainda não sabe nada de restaurações, mas mal passou a porta e viu a árvore de Natal e os presépios – coisas que por cá são montadas no início do Advento – ficou fascinado. Queria ver as luzes na mão dele e mexer nas figuras. Sou muito sensível a estas reacções, pois nunca esqueci um presépio montado pelo meu pai, há muitas décadas. Pelas minhas contas tinha eu a idade do meu neto. Julgo que estou ligado ao Natal por esse presépio arcaico, feito por alguém que não era crente e que nunca vacilou na sua descrença. Ou talvez eu esteja enganado, e aquele presépio feito para mim fosse a confissão de uma crença bem funda. Se tiver tempo, ainda hei-de contar ao meu neto o presépio que o bisavô dele montou, com pedras e musgos, rios de prata e caminhos de areia, céus azuis com estrelas e lua. Amanhã, a Restauração estará acabada e a realidade voltará com os seus imperativos e mandamentos, mas o Advento prossegue com os seus presépios debruçados sobre a infância.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

O Restaurador

Adeus, Novembro. Está tudo terminado, daqui a algumas horas será feriado e Dezembro virá como o Olex, o restaurador. Claro que pouca gente saberá o que é o Olex. Não é, apesar das aparências, nenhum rei de uma tribo pré-romana, que tenha restaurado a dinastia, nem haverá semelhanças com um Bragança que aceitou que os espanhóis fossem postos fora do trono para ele o ocupar. Se tem problemas com a cor do cabelo, então o Olex restituir-lhe-á a cor primitiva, uma verdadeira poção, apenas ultrapassada por aquela em que Obélix caiu em pequeno e a que toma o seu companheiro de orgia – não sexual, note-se – Astérix. O Restaurador Olex pertence à mesma empresa que produz a célebre pasta medicinal Couto. Ambos os produtos possuíam in illo tempore anúncios que, pelo seu inusitado ridículo, funcionavam muito, muito bem. Amanhã, quase hoje, livrar-nos-emos da espanholada, defenestraremos o Miguel de Vasconcelos e, como gauleses do Astérix, haveremos de resistir a todos os cantos de sereia dos castelhanos. Este é um dos episódios da nossa história que, na narrativa dos meus professores primários, me fizeram pensar que todos os nossos gloriosos antepassados eram heróis e santos, que haveriam de estar na glória do Senhor, cantando hossanas e aleluias. A inocência é uma grande coisa.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Questões de beleza

Revejo algumas reproduções de quadros de Jackson Pollock. Nunca me canso. Não é a técnica, drip painting, que me interessa, mas o resultado. Imagino sempre que se está perante uma visão daquilo que se esconde por detrás das aparências. Nestas a figura e o contorno são forças que impedem a visão de se confrontar com o caos originário. O que alguns quadros de Pollock fazem é mostrar que também no caos, naquilo que parece ser o resultado de gestos fortuitos, se encontra a beleza. Isto pode parecer paradoxal, pois a beleza é, por norma, associada à organização, à forma, à feliz disposição das aparências, as quais surgem ordenadas segundo uma justa medida. Uma das leituras da arte do século XX é que esta despediu a beleza. Talvez essa apreciação esteja radicalmente equivocada. Talvez a beleza se tenha estendido para domínios que antes seriam considerados não belos. Não sei se esta meditação pseudo-estética foi motivada pelas reproduções de Pollock ou por ser segunda-feira, aquele dia em que a realidade bate à porta, entra e senta-se até que chega a sexta-feira e ela vai de fim-de-semana. Demasiado contacto com a realidade não faz bem a ninguém, como se pode ver.

domingo, 28 de novembro de 2021

Um domingo ganho e um choque

Estava a atravessar a cidade quando ouvi: e se passássemos pelo local onde estão a vacinar, pode ser que ser que tenhamos sorte. Talvez esteja fechado, hoje é domingo, respondi. Mas dirigi o carro para lá. Era meio-dia e meia hora quando chegámos ao sítio. Às treze horas estava na rua à procura de um restaurante com o reforço da vacina contra a COVID feito e a toma da vacina da gripe, uma estreia. Isto significa que as coisas por aqui estão a funcionar como deve ser. A coisa está, por agora, resolvida, tanto quanto se pode resolver. Foi um domingo ganho. Curioso é que as pessoas que estavam a vacinar-se, a maioria, era gente nova, o que quer dizer que não o tinham feito no devido tempo e que alguma coisa lhes assaltou agora a consciência. Também se demandou por testes COVID, mas estão esgotados por toda a parte. As pessoas estão a abastecer-se para as festas de Natal e de Ano Novo. Como é que a indústria não antecipou a reacção do mercado? As acácias da praceta, que ainda há dias apresentavam uma belíssima e composta folhagem amarela, estão agora quase despidas. O vento balança-lhes as folhas mortas e estas caem, enovelando-se no chão. Numa passagem pelo supermercado tive uma das piores experiências que se pode ter. Estávamos a pagar numa caixa e alguém se mete connosco, com à vontade e familiaridade. Olho perplexo para a pessoa, torno a olhar e, só passados largos, demasiado largos, segundos, descubro que, por detrás da máscara, estava o rosto do meu filho. Acho que ainda não me recompus do choque de não o reconhecer de imediato.

sábado, 27 de novembro de 2021

Um birra

Uma birra monumental. Fui buscá-lo, ao meu neto, à entrado do prédio. Vinha ensonado e cabisbaixo. A coisa começou a meio da viagem de elevador. Abriu a boca e desatou a chorar. Não queria entrar em casa. Entrado, queria sair. Um grande problema afligia-o. Queria pôr a chucha no carro da avó que o deixara para ir tratar de assuntos urgentes. Tive de fechar a porta à chave, pois insistia em sair. Percorreu as várias tonalidades da tragédia grega. Chegou a atirar-se ao chão, mas achou que não valia a pena. Peguei-o ao colo, esperneou, fez-se de enguia para tentar fugir. Mostrei-lhe um presente que tinha para ele, nem olhou. Valeu-me a avó de cá. Com tantas peripécias, a energia foi-se gastando e o sono, que o atormentava desde o início, venceu. Agora dorme como um anjo, se é que os anjos dormem. Foi um começo de tarde exuberante. O sol já começa a declinar, toma a palidez por tom de pele, anuncia o crepúsculo e a noite que há-de vir, quando a porta ranger nos gonzos para ela, como se fosse uma rainha, entrar. Isto lembrou-me a ária da Rainha da Noite, na Flauta Mágica, do Mozart. Como eu gostaria que o meu neto, um dia, a visse comigo. Tenho ainda muitas coisas para tratar. Nem todos os sábados são dias de fim-de-semana. O pior, porém, é que não vou ter grande tempo para brincar com o rapaz, agora que a birra lhe passou. Acordado, será hora de lanchar e de o ir pôr a casa da outra avó. A vida é o que é e não o que se deseja, ou será o contrário?

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Desconexão neural

Há dias que oiço continuamente a mesma música. Não sei de quê será isto sinal, mas imagino que não deve ser lá muito abonatório do meu estado mental, se é que eu tenho uma mente para possuir estados. Não a oiço como se a estivesse dedicado a ouvi-la, mas como se ela fosse o pano de fundo da minha existência, como a música das esferas celestes o é da vida neste pobre planeta e noutros, caso exista vida noutros lugares. Não parece muito verosímil que este acontecimento, o do surgimento da vida, seja uma excepção num universo cuja dimensão o espírito dos homens é incapaz de abarcar, mas é uma possibilidade a considerar. Até agora, nenhuma prova em contrário, embora isso não prove a inexistência da vida por outros lugares. Já não me recordo quem o terá dito, talvez Pitágoras, mas as esferas celestes, nas suas rotações em torno da Terra, emitem uma música – celestial, por certo – mas nós não a ouvimos porque o hábito toldou-nos a audição e ficámos surdos para as harmonias celestes. Talvez os recém-nascidos a oiçam, mas habituam-se a ela ainda antes de falarem e perdem a memória desses memoráveis concertos. Quando chego à sexta-feira, vendo-a passar num foguete (ainda haverá quem se lembre do comboio-foguete, no qual muitas viagens fiz para o Porto?), o aparelho neuronal descamba e começa a soletrar-me coisas desconexas, pegando uns assuntos noutros. É isso que escrevo com fidelidade, a minha desconexão neural das sextas-feiras à tarde quase noite.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Resiliência

Voltamos para o estado de calamidade. Parece que o vírus tem uma grande resiliência, como se tornou moda dizer. A sua manifestação é atacada, mas ele logo se recompõe do choque e não perde o equilíbrio emocional. O que lhe permite voltar a infectar. Resiliência é uma palavra que me irrita sobremaneira, tal como empreendedorismo. Não querem dizer rigorosamente nada, não passando de chavões na comunicação social.  Como, num outro contexto, alguém dizia – alguém que já não recordo – são significantes sem significado. Um significante sem significado, na linguagem falada, não passa de um flato. Abre-se a televisão e descobre-se, abismado, que muita gente importante sofre de um estado crónico de flatulência, tantos são os significantes sem significado que debita. Se fosse dono de uma farmacêutica tentaria criar um Aero-Om linguístico, passe a publicidade. A toma deveria ser compulsiva. Pessoa que falasse, na comunicação social, em resiliência, empreendedorismo e coisas semelhantes teria de tomar quatro comprimidos por dia, após as refeições. O ambiente tornar-se-ia menos pestífero, a língua agradecia e, mesmo que isso não fosse condição suficiente para chegarmos ao paraíso, contribuiria decisivamente para dele nos aproximarmos. Não fosse o caso de estar proibido de falar de política pelo autor, este narrador teria imensas soluções que melhorariam a vida das pessoas. É o que faz os narradores estarem subordinados ao seu criador, os quais são despóticos e falhos da misericórdia divina. Deus criou o mundo e deu ao homem liberdade para fazer o que entendesse. Os autores criam os narradores, mas em vez de lhes dar rédea solta, enchem-nos de proibições. Não falas disto, nem daquilo, nem daqueloutro. Seja como for, oiço agora a minha neta mais nova numa sessão online com a avó. O assunto parece ser a Geometria. Espero que pequena seja resiliente. O que vale é que comprei Aero-Om.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O que me ocorreu

Quem hoje em dia sabe quem foi Domingos Monteiro? Poucos, muito poucos. No entanto, foi um editor com peso no mundo literário com uma editora também pouco conhecida nos dias de hoje e já desaparecida há muito, a Sociedade de Expansão Cultural, a qual deu voz a muito autores nacionais, que ali encontravam abrigo. O próprio Domingos Monteiro foi escritor e com nome firmado na praça. Conhecido, principalmente, como contista, também escreveu poesia, história, doutrina e crítica, múltiplas novelas e o romance O Caminho para Lá. É este que comprei em segunda mão, a edição definitiva, a segunda, de 1958. A primeira data de 1947. Espanta-me sempre os milhares de exemplares que eram tirados. Esta segunda edição corresponde aos 5º e 6º milhares, o que significa que a primeira teve uma tiragem de 4000 exemplares. Números que hoje seriam astronómicos. Apesar de ser um óptimo escritor, Domingos Monteiro não era um dos grandes nomes da época e mesmo assim os seus livros vendiam-se muito. E não é caso único. Contudo, à medida que os portugueses se vão escolarizando, à medida que o ensino superior se vai democratizando, os leitores de literatura com um módico de seriedade parecem diminuir. Em torno da poesia gira uma pequena seita esotérica, sem qualquer ligação ao grande público. Diz-se que os poetas escrevem uns para os outros. Talvez seja assim. Temo, porém, que ao romance aconteça a mesma coisa. Curioso que o cinema, essa forma de narrativa romanesca com imagens, não matou o romance, mas talvez as séries do Netflix e semelhantes o estejam a fazer. Isto foi o que me ocorreu num dia em que pouca coisa me ocorreu.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Provações iniciáticas

Quase duas semanas de poupança. O hábito é ligar, por aqui, o aquecimento no S. Martinho. Este ano não foi preciso. O frio, porém, chegou agora e já começou a infiltrar-se nas casas, armado com uma espada de gelo com que persegue as manchas de calor ainda restantes. Como alguém dizia, vivo numa zona climatizada, quente no Verão e fresca no Inverno. Não se trata, porém, de frescura, mas de frio. Ainda, por cima, sem o consolo da neve, a qual é guardada, só para eles, pelos ciosos habitantes das zonas altas. Espera-me uma noite difícil e uma manhã igual, pois hei-de submeter-me a um estranho exercício de abluções interiores, as quais me tornarão puro e cristalino, para que amanhã possa ser visto e revisto. Na verdade, é um autêntico ritual iniciático, que nem sequer exclui o jejum, embora o destino próximo não seja a elevação espiritual, mas o caminho atarefado para a casa de banho. Alguém contumaz na prova iniciática recomenda que se tenha as leituras e gadgets a postos, pois fazem parte da provação. Servem para evitar o contacto com as forças negras. Já verifiquei se os eReaders estão carregados. São mais maleáveis que uma pilha de livros e, contêm, bibliotecas. Literatura e outras leituras mais inóspitas não me faltam. Há que enfrentar com denodo a fragilidade humana. De resto, continuo a ouvir canto gregoriano, mas acho que chegou a hora de mudar. Um concerto, em Seatle, de polifonia portuguesa, com música de Filipe Magalhães, Manuel Cardoso e Duarte Lobo, todos da chamada escola de Évora e do período de ouro da polifonia portuguesa. Talvez a música, a excepcional música portuguesa, estenda sobre mim as suas asas protectoras.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Fora da realidade

Num certo diálogo, em Kiev, entre o jornalista Jagorski e o ajudante S. I. Antonov, o primeiro diz: Mas antes contou as coisas de um modo diferente. Então, o ajudante responde: É que as coisas eram complexas, e por isso eles não nos impediram a concretização da acção essencial. Ao ler o trecho do diálogo fiquei perplexo com a resposta de Antonov. Se tivesse presença de espírito e um módico de sabedoria teria respondido de outra maneira. Diria: Há pouco contei as coisas de modo diferente porque elas eram diferentes. Ao contá-las segunda vez elas já se tinham transformado com a primeira narração. Se as tornar a contar, não terei outra possibilidade, para lhes ser fiel, senão dar uma nova versão dos factos. Isto, sim, seria uma resposta à altura. É certo que todos nós possuímos a crença ingénua de que factos são factos e que mal tenham acontecido eles permanecem eternamente idênticos. A crença, porém, não tem em conta os estranhos efeitos que a narrativa tem sobre os factos. Ela interfere com eles e faz com que, mesmo já tendo acontecido, eles se transformem. Se queremos que certos acontecimentos passados permaneçam o que foram, a única forma de o conseguir é não falar neles. Talvez esta minha deambulação por terrenos ínvios esteja ligada à escuridão da noite. As trevas intrometem-se no corpo de uma pessoa e a capacidade sináptica do cérebro é duramente abalada. Ou então foi o título do Volume II da Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, de onde retirei o excerto do diálogo, que me afectou. Não é sem enormes perigos que se estabelece relação com um livro que tem por título A Queda para Fora da Realidade. Também eu terei caído para fora da realidade. Há muito, ouço dizer.

domingo, 21 de novembro de 2021

Mais valia

Como um biscoito seco tirado de uma caixa comprada numa grande superfície. Não é mau. Também não é particularmente bom. Come-se. O pior é que mesmo ao lado da caixa está um bolo de maçã e nozes, feito em casa, com um aspecto e um odor absolutamente tentadores. Mais do que isso, pois ontem perdi-me, com um sabor esplêndido. Hoje, porém, e nos próximos três dias está-me interdito. Não apenas o bolo, como tudo o que vale a pena comer. É-me permitido, por exemplo, sopa branca de batata. O que será sopa branca de batata? Terá cal? Olho para a dieta prescrita e não vejo a proibição nem de álcool nem de café. É nestes momentos que me sinto perdido na existência. Não estão prescritos, mas não estão interditos. Por exemplo, o leite está interdito. O que para mim não tem qualquer problema, pois não o suporto. Seja como for, a coisa está clara. Será que posso beber um copo de tinto? Talvez eu não tenha percebido. Aquilo que posso comer não requer acompanhamento de bebidas sérias e profundas. Logo, quem fez o maldito panfleto não achou necessidade de interditar o vinho. Pensou que era uma evidência. É nestas meditações que perco o domingo, em vez de pensar em coisas sérias, como brincar com o meu neto, fazer corridas de carros, pô-los no camião transportador, todas essas coisas que dão sentido a uma vida e não requerem dietas durante três ou quatro dias. Mais valia que me fosse decretado um período de jejum e abstinência. Mais valia.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Efeitos musicais

Nesta altura do ano, os dias começam a despedir-se muito cedo. A um sol glorioso, que parece ir brilhar por toda a eternidade, segue-se, de súbito, uma luz mortiça e envergonhada, impotente para fazer reverberar as paredes dos prédios, para iluminar de ouro e prata a copa das árvores que ainda não perderam as folhas. Logo vem o crepúsculo e a escuridão nocturna. As acácias da praceta ainda estão magníficas, com as suas folhas amarelas, ainda tisnada por leves sombras esverdeadas. Daqui a pouco serão apenas manchas pardas. Das colunas da aparelhagem sai uma música que se poderia escutar sem nunca dela ficar cansado. Trata-se de canto gregoriano. A opinião da escuta eterna sem cansaço não é minha, mas de alguém que no Youtube comenta um vídeo com sete horas deste tipo de música. Tanto o canto gregoriano como o bizantino têm o estranho poder de envolver a consciência sem a ela se impor. Talvez a polifonia renascentista ainda herde algum deste poder. A música do barroco, porém, já se afastou desta possibilidade. Apesar de ser uma música extraordinária, não tem o poder conciliador que o ouvinte encontra no canto gregoriano e na polifonia da Renascença. A partir daí, com o classicismo, o romantismo e a música contemporânea, o afastamento dessa origem pacificadora foi crescendo, embora no século XX se tenha assistido a algumas tentativas restauracionistas dessa experiência agora arcaica. Como se vê, a minha falta de assunto é total. Se tivesse alguma coisa para dizer, mínima que fosse, não teria escrito sobre aquilo de que nada sei, a música. Uma pessoa, porém, se escrevesse apenas sobre aquilo que sabe, talvez ainda não existisse hoje coisa alguma escrita. Com isto, cheguei ao crepúsculo. A tonalidade do ambiente está carregada de mistério, o mistério da queda da noite.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Dos pastores e dos rebanhos

Na escola aqui ao lado há eleições para a associação de estudantes. A campanha é feita, segundo sou forçado a perceber, ao som de uma música ensurdecedora, acompanhada pelo grito em uníssono de um rebanho exaltado. Gritam: vota e a letra que designa a lista, tudo repetido ad nauseam. Talvez não tenha sido por acaso que tenha visto, enquanto os meus ouvidos eram martelados, num tweet de um conhecido ex-embaixador português, uma fotografia do amado líder político, de uma das mais caricatas ditaduras existentes, seguido não pelos gritos de um rebanho enfurecido, mas por um conjunto de civis e militares, armados de caneta e papel, prontos para apontar qualquer palavra – sempre, um grande pensamento – do divino pastor de rebanhos. Nós nunca estamos suficientemente atentos a estas conexões inesperadas, mas elas trazem-nos lições. Não estou a dizer que as associações de estudantes do ensino secundário sejam uma escola para produzir candidatos a amados líderes e, por outro lado, ovelhas exaltadas de um rebanho. Honni soit qui mal y pense! Talvez, porém, esta estranha coincidência, na minha consciência, não seja fruto de um mero acaso. São ínvios os caminhos do Senhor. Não tarda, chega o meu neto. Faz três anos. Sei lá se, um dia, não se irá candidatar a uma associação de estudantes. Sei lá. O que vale é o intervalo ter acabado, a música calou-se, o rebanho entrou para o redil.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Sonhos

O senhor René Descartes achou por bem que nós, seres humanos, não possuímos um critério seguro para distinguir se, neste momento, estamos acordados ou a sonhar que estamos acordados. As ínvias razões que o motivavam, nessa altura da vida, não são chamadas para aqui. A verdade, porém, é que talvez eu esteja a sonhar que estou a escrever sobre o que escreveu o filósofo francês, embora ele não pudesse afiançar – pelo menos sem recurso ao sobrenatural, o que nos jogos de hoje está interdito – que não estivesse a sonhar. Se assim for, aquele que ler o que Descartes escreveu, pode estar a sonhar com o sonho que ele teve de estar a escrever tal coisa. Tal como pode acontecer com o eventual e benévolo leitor ao pensar que está a ler aquilo que eu escrevi. Quem lhe disse que não está a sonhar? O que me atormenta de momento, todavia, é não saber por que motivo esta história de Descartes me veio assombrar. Talvez esteja a sonhar com ela. Bem podia estar a escrever qualquer coisa que tivesse o Saramago pelo meio. Além de ser português e de hoje fazer cem anos que nasceu, tem ainda a vantagem de ter recebido um prémio Nobel, coisa que Descartes não conseguiu, embora não lhe faltasse inclinação para a ficção. E caso a Academia Sueca achasse que a ficção cartesiana não era merecedora de tão alta distinção, podiam dar-lhe o Nobel da Física. Há quem diga que ando a baralhar as coisas. Se isso é verdade, então também posso baralhar as épocas. Alguém é capaz de dar uma boa razão para afirmar que Descartes não veio depois de Saramago? Não vale dizer porque ele nasceu primeiro. Essa é muito fácil e pode estar incluída na história do sonho. Alguém está a sonhar que Descartes nasceu antes de Saramago. Um sonho tão implausível como qualquer outro. Por falar em sonhos, os únicos que eu conheço são os sonhos de Natal. Se há outros, não sei, e também não vale a pena vir com a conversa de Freud e da interpretação dos sonhos. Cada um ganha a vida como pode.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Dia de Feronia

Chegámos a meio de Novembro. Parece que gosto de comemorar estas efemérides, pois algumas há-de haver neste dia. Por exemplo, há 132 anos, exactamente, nasceu D. Manuel II, que viria a ser rei de Portugal. Durante parte substancial da sua vida não soube que iria ser rei e, ainda menos, que haveria de ser o último. Aconteceu-lhe o mesmo que a todos nós. Nasceu sem saber para que estava destinado, embora o certo é que o seu destino não era ser rei. Foi-o por um acaso e a realidade pô-lo na ordem. Imagino que muitos corações femininos batessem mais depressa à evocação da majestade, mas a realidade não se interessa por essas coisas e faz o que lhe apetece com quem quer, seja nobre ou plebeu, seja soberano ou súbdito. É um facto que ela parece mais condescendente com uns do que com outros, mas talvez não seja assim. Haveria que fazer estatísticas. Consta que na Roma antiga, no dia de hoje, se realizava o Festival de Feronia, a deusa dos bosques e das florestas. Era o tempo em a divindade se dividia de tal maneira que havia uma para cada função. Agora é o que se vê. Não há Feronia que valha a bosques e florestas. As segundas-feiras não são dias fáceis.

domingo, 14 de novembro de 2021

Lição de Sociologia

Está consumado mais um fim-de-semana. A noite chegou ainda andava eu a fazer uma caminhada. Veio sem pedir licença e instalou-se, mesmo contra a vontade de certos candeeiros de iluminação pública. Persistiam em permanecer apagados, em protesto mudo contra o fim do dia e o ter chegado a altura de entrarem em funções. Talvez estejam em greve. Nunca se sabe o que se passa na cabeça luminosa de um candeeiro público. Nem dos privados, mas esses, por agora, não vêm ao caso. Durante grande parte de percurso temi que a minha deambulação fosse inútil, que nenhuma lição me surgisse no caminho, nem gesto glorioso viesse à existência para que eu, como narrador muitas vezes em conflito com o autor, aqui viesse contar. A sorte, porém, protege os audazes. Tinha-me metido por uma ruela menos dada ao trânsito quando me deparo com um adolescente – noutros tempos diria um fedelho – a equilibrar-se numa trotineta e a tentar, com pouco êxito, fazer uns equilibrismos. De repente, oiço uma voz feminina – por certo, a mãe – a proclamar que não tarda o equilibrista estará a ganhar dinheiro no YouTube. Durante a minha transição naquele beco com saída, ouvi-a umas três vezes manifestar a convicção. Não esperava, ao sair de casa, ter uma lição de sociologia, mas esta pode surgir a qualquer momento, desde que nos aproximemos da humanidade. A graçola maternal era bem mais que uma graçola, era a expressão de um desejo que é, todo ele, uma visão da sociedade. Ganhar dinheiro nas redes sociais produzindo irrelevâncias. Foi depois desta epifania que a noite caiu. Fê-lo sem estrondo, como só uma noite o sabe fazer. Talvez o equilibrista em potência chegue ao YouTube ou se perca na tenda de um circo.

sábado, 13 de novembro de 2021

Otium, skholē

O prazer de ver uma tarefa concluída. É sábado, mas ainda não pus um pé na rua e não me encontro confinado. Acabei agora mesmo um documento com 115 páginas. Não se pense que é literatura. É fantasioso, bastante, não digo que seja desprovido de imaginação, alguma haverá de ter, mas não se pode dizer que seja coisa literária. Se o é, então é péssima literatura, uma narrativa burocrática. Na verdade (muito gosto eu desta expressão), o melhor de tudo é ter ficado livre da corveia. As últimas horas de trabalho foram acompanhadas, em fundo, por cântico gregoriano, na voz de monges beneditinos, os descendentes de S. Bento de Núrsia, personagem curiosa por múltiplos motivos, entre eles o de ser um dos pais da Europa que ainda conhecemos. Talvez por pouco tempo. A regra monástica que inventou, com a consigna de Ora et Labora, tinha como função curar os monges, através do trabalho, dos desvarios que uma vida puramente dedicada à oração produzia. Talvez neste pequeno incidente, em aparência trivial, se compreenda a profunda diferença que separa a espiritualidade cristã da dos antigos gregos. Para estes, o labor estava interdito, coisa de escravos. A vida espiritual, a filosofia, nascia e alimentava-se do ócio. E é a esse ócio que me vou dedicar, não por inclinação espiritual, mas porque hoje é sábado, preciso de caminhar e, mais logo, entregar-me a um jantar alargado. Nem ora, nem labora, o corpo e o espírito pedem otium, skholē. A vida é o que é. Mais uma expressão de que muito gosto e que, na verdade (sic), não significa coisa alguma.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Uma coisa triste

Sentado à secretária, esquecido que era sexta-feira, entreguei-me a um longo delíquio. Não no sentido de me ter estado a liquefazer, mas de ter perdido a consciência. Neste caso, a consciência da realidade, envolvido que estive numa daquelas tarefas fantasiosas com que preencho a vida, cuja utilidade é nula, apesar do esforço de perfeição com que a envolvo. Talvez eu esteja a pagar pensamentos que tive na longínqua juventude. Pensamento sobre a inutilidade de tudo o que era visto como útil, a inutilidade da própria existência humana sobre o planeta Terra. O mais importante, porém, aconteceu ontem. Fui com o meu neto à feira da Golegã. A criança, o pai e o avô, com a intromissão da avó, foram jardinar entre cavalos e gente que se passeava por ali, como se o ali fosse uma coisa importante. Nunca apreciei o evento. Sempre me faltou paciência para feiras, festas e romarias, mesmo que sejam a efusão de pessoas que ouvi denominar como agro-betos. Os cavalos parecem muito nervosos com a multidão, as pessoas tentam dar-se ares de tradição e fidalguia, mas na verdade tudo aquilo, se observado com atenção, é triste, tão triste como um circo, com os seus palhaços ricos e pobres. O pequeno não me pareceu particularmente entusiasmado. Compreende-o. Chega de devaneio sociológico. Coisas ainda mais inúteis esperam o ardor do meu esforço. Tê-lo-ão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O pior é o Nanetti

Sem dar por isso, deixei que um terço de Novembro se tenha escoado. Cronos é um deus miserável. Sofre de uma acentuada bulimia, de um desejo convulsivo de devorar os dias, isto é, os seus próprios filhos. O pior é que, como efeito colateral, também nos devora a nós. Começar assim significa que não tenho nada para dizer neste diário. Como me acontece muitas vezes o cérebro começa a fazer curto-circuito e liga coisas que não devia. Lembrei-me do filme Querido Diário, de Nanni Moretti. Para dizer a verdade, já não me lembro nada do filme, apenas do título. Contudo, Moretti é um cineasta que me coloca, muitas vezes, problemas verdadeiramente existenciais. Por exemplo, quando me quero referir a ele e lhe chamo Nanetti. Ao dar-me conta do erro, que ocorre mais vezes do que gostaria, começo a pensar que já tive melhores dias, mas talvez mesmo nesses eu não seria grande coisa. Hoje comecei o dia antes das oito da manhã com um serviço de transportes. Fui buscar a minha mãe para a levar ao laboratório de análises. Depois, levei-a para casa. Ainda não eram nove horas já estava sentado a trabalhar. Confesso que o fazia com entusiasmo, embora tenha a certeza que o fruto de tanto labor será nulo. Isso, porém, é uma característica muito pessoal. Tenho uma acentuada inclinação para a nulidade, embora tenha outra para a verborreia.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Enigmas

Foi ao levantar dinheiro numa caixa multibanco que dei comigo a cismar que esse é um gesto condenado. Ainda não está morto, mas já passou o seu tempo. O cartão e o MB Way, no telemóvel, tornam obsoleto andar com notas. O dinheiro sempre foi uma imaterialidade. Só que até aos nossos dias era uma imaterialidade material. A informação necessitava de se codificar em pedaços de metal e de papel. Agora, basta a informação armazenada sabe-se lá onde e terminais para lhe aceder. Depois destas meditações, ri-me, pois eu estava, ao retirar as notas da caixa, mergulhado na mais pura obsolescência. Ora, essa é a minha verdade. Sou obsoleto. Talvez esteja a falar por enigmas. Ao escrever a palavra enigmas lembrei-me de uma nota de rodapé ao livro Anarchy, State and Utopia. Escreve Robert Nozick: Com frequência uma questão útil de colocar é a seguinte: - Qual a diferença entre um mestre zen e um filósofo analítico? – Um diz enigmas, o outro enigmas diz. Talvez a pilhéria de Nozick seja mais séria do que ele próprio terá pensado. É possível que tudo o que um ser humano diga seja enigmático. Repare-se na experiência que é ouvir falar uma língua que se desconhece por completo. Todos aqueles sons são verdadeiros enigmas. Contudo, dirá o eventual leitor, isso não se passa com aquelas que falamos e em primeiro lugar com a língua materna. Será uma observação avisada, mas esquece o longo treino necessário para que ela tivesse deixado de parecer enigmática. Anos e anos. E, apesar disso, nada nos garante que, mesmo parecendo a coisa mais transparente do mundo, ela não continue a ser profundamente enigmática, mais ainda que a língua desconhecida. Poderia, se eu fosse dado a fazer leis, enunciar a seguinte lei, ainda mais importante do que a segunda lei da termodinâmica: Quanto melhor se conhece uma língua, mais enigmática ela se torna. O que vale é que não fui fadado para legislador e a lei proposta não é uma lei, mas o devaneio de uma mente ociosa depois de uma longa reunião em videoconferência. As videoconferências são como a pandemia. Vieram para ficar. Nem vacinados nos protegemos delas. A minha neta mais velha está em sessão de massacre, em videoconferência, claro, para preparação com a avó de um teste de Matemática. O mundo tornou-se um lugar muito difícil.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Ligar o aquecimento

Estava a ler um livro de Peter Sloterdijk com o sugestivo título You Must Change Your Life – não se pense que é uma obra de auto-ajuda, não é – quando me deparo com a seguinte consideração: A era moderna é aquela que trouxe a maior mobilização das forças humanas em prol do trabalho e da produção, enquanto aquelas formas de vida em que se deu a máxima mobilização em nome da praxis e da perfeição pertencem à antiguidade. Imagino, embora tenha uma certa propensão para imaginar coisas desfocadas da realidade, que em todos os seres humanos exista uma cesura, um buraco escavado pela tensão entre uma vida marcada pela produção e a necessidade de a dedicar à perfeição pessoal, à realização de si. Quando se fala em antiguidade, nela se devem incluir todas as sociedades tradicionais e não apenas a grega e a romana. A realidade, nos dias de hoje, tempo talvez culminante da era moderna, é a produção sem fim, com o objectivo de consumir, para se produzir mais, para se consumir mais, até ao infinito. Em tudo isto parece haver uma condenação de Sísifo, uma ausência de sentido para o facto de se estar neste mundo e ter capacidade de pensar. Se queremos encontrar uma grande razão para o absurdo na literatura de Camus ou para a náusea em Sartre, encontramo-la nesta mobilização infinita das capacidades humanas para a exterioridade produtiva. A redução da existência à dinâmica da quantidade, a que se expressa no jogo dos gastos e dos proventos, é a casa do absurdo em que a vida de muitos seres humanos se tornou. Não sei o que me deu para escrever estas coisas. Talvez seja o facto de a noite estar a cair, com a escuridão que é a sua, ou a causa terá sido o ter passado o dia em actividade produtiva intensa, embora a produção a que me dedico não sirva realmente para nada. Não tarda e terei de ligar o aquecimento. Isto, sim, é uma questão importante.

domingo, 7 de novembro de 2021

Um domingo para contar uma aventura de quarta

Contrariamente ao habitual, o almoço deste domingo foi cedo. De seguida, um salto a uma superfície comercial. Talvez fosse melhor considerar aquilo um volume comercial e não uma superfície, pois não consta que a nossa espécie consiga viver num espaço bidimensional. Excepto o pouco tempo que demorou a aventura, não dei por nada mais que merecesse anotação. A luz que fendia a atmosfera e se precipitava pela cidade, essa sim. Uma luz melancólica que só existe nas tardes de domingo, e não em todas. Há nela uma cor desmaiada e aquele que para ela olha quase sente vontade de chorar, embora não saiba a razão. Talvez seja o próprio domingo que assim se apresenta por saber-se cada vez mais próximo da morte. Por falar em coisas melancólicas, ocorreu-me a minha vista a um sítio lúgubre. Trata-se da aventura nos meandros da justiça portuguesa. Arrolado como testemunha, lá me desloquei ao tribunal. Dirigi-me à secretaria, disse ao que ia, apresentei a convocatória (ou a intimação), para testemunhar em videoconferência, pois a sessão real passava-se em Lisboa. A funcionária sorriu. Escreveu no computador, disse que já tinha avisado o colega. Que esperasse lá fora. Pode ser no hall interior, está menos frio. Na verdade, havia gente no hall exterior à espera e ao frio. Dirigi-me ao interior, uma sala ampla, escura, com uma mesa, bancos corridos e dois ou três sofás aos cantos. Nesse hall desembocava uma escadaria ampla e quase imponente. Por ali, pensei, deve descer a justiça. Por vezes, um pequeno grupo de pessoas parava junto à mesa, trocava impressões e subia. Quanto a mim, testemunha ocasional de um naufrágio, dedilhava o telemóvel e esperava. A certa altura, entra um advogado, por acaso meu vizinho, e trocamos umas palavras. Digo-lhe ao que viera e que esperava que a coisa se despachasse rapidamente. Ele ri e responde-me que estava em mau sítio para ter pressa. Ri-me, despedimo-nos, volto a sentar-me e a dedilhar o telemóvel. Passam duas mulheres togadas, ainda relativamente novas. Oiço alguém murmurar que se trata da juíza e da delegada, mas não consegui saber quem era quem. Talvez seja isto a opacidade da justiça. Deveriam trazer letreiros para identificarmos os titulares de tão alta função. Assim me ia entretendo, até que, passada uma meia-hora bem medida, a oficial de justiça que me recebera, vem dizer-me que a advogada do meu amigo dispensara o meu testemunho. Que podia ir à minha vida. Perguntou-me se queria uma declaração de presença. Declinei e agradeci. Vim-me embora, sem que desse o meu testemunho. Ao sair pensei que aquele é um sítio que qualquer herói deve evitar. Agora está a chegar a noite dominical. O anúncio da cadeira de hambúrgueres cintila espampanante e o hospital, ao longe, cerra-se numa tristeza parda e sem fim. Vi que hoje a canção Let it be faz cinquenta anos. Hoje estou particularmente palavroso. Vou ler um artigo que fala – para desconstruir, claro – sobre os cinco mitos que persistem ainda hoje sobre os Beatles.

sábado, 6 de novembro de 2021

Um sábado esquivo

Não sei o que fiz deste sábado. Levantei-me bem cedo e estive a trabalhar até às dez horas. Saí e fui tratar de uns assuntos familiares. Regressado para almoçar, nem dei pelo passar das horas. É deste modo que se dissipa a vida. O tempo passa e nem por ele se dá. Já é noite cerrada há muito. Vista da janela, a rua não passa de uma fantasia fantasmagórica, pontilhada por luzes brancas e amarelas. O bosque da escola ao lado é apenas uma sombra negra e densa, as árvores da rua – tílias, acácias, liquidâmbares – dançam empurradas pela música do vento, enquanto, em estranho strip-tease, deixam cair, uma a uma, as folhas mortas. Por vezes, a avenida é cortada pelos faróis de um carro, mas o trânsito é pouco, vagaroso, alguém que procura chegar a casa, embora sem pressa. Um carro estaciona, sai um casal e precipita-se para o bar da esquina. Há pouco, sem imaginação para melhor, estive a ver um jogo de snooker. É quase tão espectacular como um jogo de xadrez, apenas um pouco menos imóvel, pois os jogadores levantam-se e sentam-se, andam à volta da mesa, onde correm bolas para dentro de buracos empurradas por varapaus a que dão o nome de tacos. A humanidade, honra lhe seja feita, de tudo faz um jogo, talvez porque esteja cansada de coisas sérias. Inventado o jogo, logo é tornado em coisa séria, para que seja inventado outro, antes que o tédio seja mais eficaz que as alterações climáticas e acabe com a espécie. Como se vê, estou sem assunto e ainda não foi hoje que falei da minha aventura, no outro dia, no palácio da justiça local. Fica para a próxima.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mrs. Robinson

Li há pouco que hoje, dia 5 de Novembro, Art Garfunkel faz 80 anos. Que importância tem isso, a não ser para ele e para a família e amigos, caso os tenha? Nenhuma. No entanto, a dupla Simon & Garfunkel marcou várias gerações, entre as quais a minha. Não apenas pela sua música (possuo todos os seus álbuns em CD), mas também por ser deles a banda sonora de um filme de culto, de Mike Nichols, com o título The Graduate, o que deu em português europeu A Primeira Noite. O filme é de 1967 e, apesar da soma dos meus anos ser pesada, não tinha idade, então, para ver o filme. Nem sei se ele passou nessa época em Portugal. Vi-o anos depois. Não por acaso fiquei fascinado. Por certo, se o revisse, não o ficaria. Os tempos mudaram e a inocência perdeu-se sabe-se lá onde. Quem nunca viu o filme, por certo não terá dificuldade de o encontrar por aí. Eu vinha aqui para contar a minha experiência de quarta-feira, numa ida a um tribunal, mas julgo que vou ter de adiar a narrativa épica, embora não tenha acontecido nada, nem eu seja criminosos, nem o motivo tenha sido um crime, mas a dolorosa partilha de bens entre um amigo e a mãe dos seus filhos. Hoje, porém, é sexta-feira, já anoiteceu, o sábado conspira para chegar. Acho que vou ouvir a música que animou A Primeira Noite. Podia dar-me para pior. Quem não desejou uma Mrs. Robinson que atire a primeira pedra.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Metafísica de trazer por casa

Já era noite quando me sentei no escritório. Cansado. Demasiado contacto com a realidade torna-se patológico. No leitor de CD estava um disco de Richard Strauss, corria o poema sinfónico MacBeth. Ao fim de alguns minutos descobri que hoje não é dia em que possa ouvir Strauss. O meu cansaço – ou as preocupações que me atravessam a mente – deixam-me incapaz para uma música tão densa. Ainda pensei escolher uma coisa ligeira. De imediato, porém, uma voz vibrou dentro de mim. Nada, exclamou. Silêncio, ordenou. Sou obediente. Desisto da música, olho pela janela para a noite. Então recordei-me do tempo em que fumava. Se ainda o fizesse, acenderia um cigarro e deixaria a mente deambular entre o fumo e a escuridão do céu. Sem ouvir nada, desejando não pensar em nada, mas isso não me parece possível. A mente é uma cabrita irrequieta, nunca pára. Não fumo, resta-me a noite. Não a noite que existe, mas aquela que desejo. Uma noite pura, não toldada pelas luzes humanas, uma noite que espelhasse o silêncio do universo, que trouxesse até mim o mistério de tudo o que é. Como se vê, depressa se deriva para uma metafísica de trazer por casa, toldado por um pathos insuportável. Melhor seria fumar um cigarro.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Deambulações com os astros

Num site de agregação de notícias, vejo as previsões para os diversos signos astrológicos. São extraordinárias. Quase ao nível das previsões do tempo e das da chave do Euromilhões. Só são batidas pelas previsões económicas e estas, como se sabe, nem depois dos factos acontecerem conseguem estar de acordo com a realidade. Lembro-me de uma conversa tida num meio jornalístico da capital, há muitos anos, em que um jornalista dizia que as previsões da astrologia eram um trabalho da redacção, por norma dado a um novato. Uma forma de desenvolver o talento para contar histórias sobre a realidade. É muito possível, imagino, que mesmo muitas cartas dos leitores sejam – ou tenham sido – trabalho de redacção. Não faço ideia por que razão me aventurei num campo tão juncado de minas e armadilhas como a astrologia. Não vale a pena, para contrariar a minha mais funda e completa desconfiança nesses truques, falar de Fernando Pessoa. Se ele se dedicava à astrologia, também se dedicava a outras coisas que não faziam bem ao espírito. O que conta em Pessoa não é aquilo em que ele acreditava, mas aquilo que escreveu. Não o conteúdo, mas a forma. Se era dado a mapas astrais, isso é irrelevante, embora talvez fosse mais interessante que desenhasse mapas físicos e atlas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Considerações sobre os mortos

Chegámos a Novembro e aos Santos. Cedo, saí de casa pois necessitava de fazer umas compras. Passei pelo cemitério. No pequeno largo exterior havia algum movimento, venda de flores e de alguma parafernália para deixar nas campas. O movimento, todavia, não era muito. Talvez fosse muito cedo, talvez porque o dia de Fiéis Defuntos seja amanhã e não hoje. Poderá haver uma outra razão para a diminuição da afluência aos cemitérios, se é que há essa diminuição. A subjectivização da relação com os mortos. As visitas aos cemitérios pressupõem ainda a existência de um corpo objectivo que ali está e é esse que suporta o culto do antepassado. Ora, uma das marcas da modernidade é a subjectivização da relação com o mundo. Pode-se cultuar os antepassados apenas na interioridade do sentimento e da memória, sem necessidade de recorrer a um suporte físico dado pela existência de um corpo na campa, no jazigo, etc. Os que morreram não se encontram nos cemitérios, mas na memória, no sentimento e nas orações dos vivos. Tudo isto me disse há pouco o padre Lodo, quando lhe liguei e lhe contei que tinha visto pouca gente à porta do cemitério da cidade. Depois, da reflexão filosófica sobre um problema sociológico, lembrou-me que estava com imensas saudades de comer umas broas daqui. São únicas, acrescentou. Levar-lhas-ei, caso vá a Lisboa no fim-de-semana. Agradeceu. Não resisti e disse-lhe que deveria ter cuidado com elas, mesmo que não contribuam para a perdição a alma, podem não ajudar muito o corpo. Ele respondeu com uma expressão em italiano que não percebi e riu-se.

domingo, 31 de outubro de 2021

Tempo de broas

Outubro despede-se com dia aumentado. Talvez ele esteja preso na amargura por ter de partir e lança mão a todos os estratagemas para evitar a ida sem volta. Por isso, precisa de 25 horas, compreende-se. De resto esteve um domingo plangente, espalhando a lástima por tudo o que é canto. As pessoas recolhem-se em casa e começam a sonhar com lareiras. O pior é que não está frio, apenas a água e o tédio envolvem o ambiente. O dia não foi mau. Falei com os três netos. Em primeiro lugar, com o mais novo que me perguntou se estava em casa, depois com as mais velhas que me informaram estarem de saída para uma noite de Halloween em casa de amigos. Talvez o mais novo tivesse medo que também eu fosse para o Halloween. Amanhã será dia santo ou o dia de Todos-os-Santos. Tempo de broas, que têm o condão de me saberem muito bem e de me fazerem bastante mal. Culpa minha, pois cedo sempre à tentação e ultrapasso a justa medida. Para tudo, como sabiam os antigos gregos, há uma medida justa. Nada deve ser feito em excesso e também se deve evitar a falta. A discussão, porém, surge de imediato. Cada um tem a sua justa medida ou existe uma justa medida universal, ou, ainda, a justa medida pode ser, ao mesmo tempo, individual e universal? São estas coisas que me atormentam a consciência, enquanto vou comendo broas e o organismo não se queixa.

sábado, 30 de outubro de 2021

Melancolia de sábado

Não tem sido um dia fácil, o de hoje. Não por causa da chuva e do mau tempo, mas por necessidade de ter de tomar decisões e fazer coisas desagradáveis. Por vezes, é necessário pôr as mãos não na massa, mas naquilo que tem um péssimo aroma. Todos gostaríamos que a vida aqui na terra fosse um paraíso, mas parece que os astros não estavam para aí virados, quando fadaram o destino da espécie humana ao cimo desta pequena bola rochosa. De resto, a chuva tem animado as terras e terá contribuída para que as barragens não se afoguem na secura. Isto digo eu que de barragens e de chuva nada sei. Está um sábado triste, nimbado por uma melancolia vagarosa. Na avenida não se avista ninguém, apenas os carros, poucos, passam, deixando uma esteira, feita de uma pequeníssima babugem, aberta pelos pneus ao rodar sobre os lençóis de água que cobrem o alcatrão. No bosque da escola aqui ao lado, cedros, ciprestes e pinheiros oferecem a folhagem ao anoitecer. Os campos de jogos estão vazios, nos beirais dos prédios não se avistam pombos, apenas o hospital, mais ao longe, deixa o branco das paredes contaminar-se com a ferrugem dos fungos. Não tarda e será noite.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Bolachas do Halloween

A profecia meteorológica confirmou-se. Chove, o alcatrão parece um espelho, os carros passam devagar para não molhar os transeuntes. Estes equilibram guarda-chuvas em mãos desabituadas, encolhem-se como se estivesse por aí o Inverno. Ainda não chegámos ao S. Martinho, o qual tem tendência para pequenas estiagens, nem tão pouco aos Santos e a Fiéis Defuntos. Ninguém quer saber deles, dos Fiéis Defuntos e ainda menos dos Santos, mesmo que venham por atacado e sejam todos. O que move os ânimos é o Halloween, essa velha tradição ibérica, com fortes raízes em Portugal. Já hoje me perguntaram se queria uma bolacha do Halloween. Nem estava a perceber. Uma bolacha de quê, perguntei. Do Halloween, responderam-me. Para além das bolachas Maria, Torrada, de Araruta, Americana, também há bolachas do Halloween, voltei a perguntar. Confirmaram. Até me ofereceram a possibilidade de comer uma. Disse que sim, mas depois esqueci-me e perdi a extraordinária possibilidade de aumentar o meu conhecimento gastronómico. Está uma verdadeira sexta-feira, daquelas que fazem lembrar longos fins-de-semana sem afazeres prementes. Continua a chover e o crepúsculo aproxima-se. Não sei a razão, mas estou a ouvir um álbum com a música para piano de Michael Nyman. Há qualquer coisa que não combina. Acho que vou mudar para Die schöne Müllerin, de Franz Schubert.