sexta-feira, 30 de junho de 2023

Mudança ou permanência

Depois de uns dias de repouso, este blogue volta, embora nada assegure que venha revigorado, para celebrar mais uma efeméride, o fim do mês de Junho. Uma coisa parece já segura. O descanso não intensifica a imaginação. É pena. A rua, apesar do vento, não é de frequência aconselhável, mas se tiver de ser haverá que enfrentar os decretos de quem toma conta das coisas do clima. Depois de todos estes dias fora da pátria, dar uma vista de olhos pela imprensa e redes sociais – apenas uma, saliente-se – permitiu-me uma reflexão mais ou menos filosófica. Afinal, o tempo não existe, pois o que era continua a ser, sem mudança alguma. No velho, talvez imaginário, conflito entre Heraclito de Éfeso e Parménides de Eleia, começo a desconfiar que será o eleata o dono da razão. O mais assisado, todavia, é deixar este assunto de lado, pois o dia, a anunciar fim-de-semana, não está propício a reflexões. Há pouco consegui arranjar uma persiana. Estava parada, como se fosse uma adepta da teoria de Parménides, e por mais que se tentasse, não se mexia para cima ou para baixo. Pura imobilidade. Abri a janela, estive algum tempo em contemplação e, tendo compreendido a situação, com uns encontrões nas lâminas a situação resolveu-se. Isto demonstra, todavia, que é possível que Heraclito tenha razão, pois houve uma mudança radical na situação. Imagino que Parménides diria que a mudança ocorrida não passa de uma ilusão sensorial, pois tudo que é permanece idêntico a si mesmo. Por mim, abstenho-me de tomar partido. Pelo menos, hoje.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Efemérides

Hoje cumprem-se dois terços do mês de Junho. Escrever estes textos fez-me descobrir que sou dado às efemérides, mas talvez não o suficiente. Um verdadeiro amante de efemérides não pode ficar pelos números redondos ou aqueles que assinalam o fim ou início de alguma coisa. Por exemplo, assinalar o décimo sétimo dia de um mês e sexto de outro, não porque haja qualquer motivo subjacente, mas pelo valor intrínseco de serem o décimo sétimo e o sexto. Objectar-se-á, não sem alguma razão, que efemérides são acontecimentos memoráveis, importantes. A objecção, todavia, esquece que na raiz de efeméride está efémero, o que dura só um dia, no dizer dos gregos antigos. Ao assinalar-se o décimo sétimo dia ou o sexto de um mês celebra-se aquilo que passa, que dura apenas um dia. Comemora-se a banalidade e cultiva-se o trivial. É disso que me aproximo velozmente, mas ainda fico preso aos números redondos, ao preconceito da tradição. Luto, porém, para me emancipar desse passado tenebroso que nos prende aos dias memoráveis e aos números redondos. Estive quase três horas a perorar e agora sinto a garganta cansada e um vazio no lugar onde, supostamente, deveria haver um cérebro. Nem sei o que me terá dado para falar tanto, eu que tenho uma propensão para estar calado. Quando escrevi, acima, três horas cometi um erro. Escrevi três oras. Corrigi, mas fique maravilhado com a expressão. É como se dissesse três poréns, caso o ora fosse conjunção. Caso fosse um advérbio, talvez fossem três agoras, o que abre as portas para a admissão da existência de pelo menos três universos, cada qual como seu agora, todos à mesma hora. Ora… ora. Junho chegou ao vigésimo dia e é tudo o que tenho para dizer.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Protótipos

Talvez os portugueses tenham uma inclinação para o dramático. Ontem, falei aqui num livro que, na capa, apresentava O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. O livro denomina-se O Rosto de Deus e é da autoria do filósofo inglês Roger Scruton (1944-2020). Ao olhar, há pouco, para a capa fiquei com curiosidade de saber se ela igual à da edição original. Ora, nesta não é o sacrifício de Isaac que é mobilizado para reprodução, mas um detalhe de uma pintura de Pere Mates (1500-1558), com o título Adão e Eva no Paraíso. Desconheço as razões da editora portuguesa, mas, por estranho que possa parecer, a alteração da capa representa uma alteração da obra. A tradução portuguesa é de 2023, portanto o autor já nada poderia dizer acerca da capa escolhida. Quando se escolhem para capa de uma obra reproduções de obras-de-arte saturadas de sentido, todo o cuidado é pouco, pois esse sentido transborda da capa para o interior do livro e contamina a obra. Contínua um tempo doentio, quente, abafado, ameaçador. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que ultrapassámos a nossa medida e que estamos a manipular aquilo que não está na nossa mão controlar, neste caso o clima. Nas tragédias gregas, é a hübris que perde o herói. A hübris não é outra coisa senão o ultrapassar da medida. Talvez seja isso o que, de um outro modo, nos diz a história de Adão e Eva. Também eles ultrapassaram a medida. Ora, o Adão e a Eva de Pere Mates têm os genitais cobertos de parras, o que significa que ultrapassaram a medida e temem enfrentar o rosto de Deus, um dos temas de Scruton. Se os grandes mitos têm, para além da função de arquétipos, a de protótipos, então poderemos olhar para o destino de Adão e Eva, a expulsão do paraíso, como o nosso próprio destino. A natureza, ou Deus através da mão da natureza, está a expulsar-nos do pequeno paraíso que inventámos nos últimos dois séculos. O calor pega-se ao corpo.

domingo, 18 de junho de 2023

Melhorias e perturbações

Ontem, comprei alguns livros. Entre eles, encontra-se um de Isaiah Berlin. O primeiro ensaio começa com uma citação, em epígrafe, de León Trotsky que reza assim: Quem desejar ter uma vida pacata fez mal em ter nascido no século XX. Uma nota de rodapé informa que aquela formulação do texto de Trotsky é uma “melhoria” típica de Berlin de um texto que diz Qualquer contemporâneo nosso que, mais do que tudo, queira paz e conforto escolheu uma má altura para nascer. De facto, a nota de rodapé andou bem ao colocar melhoria entre aspas, pois o texto original é bem mais interessante do que a adaptação de Berlin. O efeito irónico de colocar o nascimento como um acto do livre-arbítrio do nascituro perde-se por completo, e esse efeito é o melhor da frase, pois é plausível pensar que não houve século da história da humanidade que não tenha sido, para quem ame a paz e o conforto, um péssimo século para nascer, o que torna o incómodo de nascer no século passado uma trivialidade partilhada por todos os que nasceram noutros séculos. A culpa de os séculos serem lugares temporais pouco próprios para nascer, caso se almeje uma vida de paz e conforto, reside na história. Esta é o lugar das mais intensas tropelias e tem um apetite insaciável e buliçoso por todo o género de travessuras, de preferências as mais violentas. Dito de outro modo, a história é uma rameira sedenta de sangue, sempre pronta a usar o chicote para flagelar os que se viciam nela e, por arrasto, os outros que não se esconderam a tempo. Num outro livro comprado, a capa tem uma representação parcial de O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. É uma história que tem final feliz, mas que não deixa de ser extraordinariamente perturbadora, mas não me apetece pensar nesses assuntos, ainda por cima com o calor que se abateu sobre esta terra, como se o clima a estivesse a preparar para a hora em que ela fizer parte do deserto que por aqui se formará.

sábado, 17 de junho de 2023

Um miserável pecador

Agora deixou de dar conta das nossas conversas no seu blogue? Foi com esta interrogação, talvez com um toque de imperativo, que o padre Lodo começou a conversa, hoje de manhã. Não respondi e perguntei-lhe a razão de ter trocado a habitual manhã de domingo pela de sábado para me ligar. Não se faça desentendido, respondeu-me. Sabe bem que sou um Settembrini e que acumulo o treino de jesuíta com uma costela ancestral de iluminista. Eu sei, eu sei, mas não tenho qualquer razão para o facto. Os meus textos, acrescentei, são regidos por um radical princípio de incerteza, que vai bem mais longe do que o de Heisenberg. Acontecem ao acaso, tudo é incerto até estarem online, e mesmo depois ainda pode acontecer que se alterem. Não partilho da ideia de Einstein de que Deus não joga aos dados. Não tem calhado dar conta por aqui dessas nossas conversas. Boa desculpa, respondeu. O facto de não conhecer as causas dessa decisão de me censurar não quer dizer que elas não existam. Agora, deu em determinista, adepto de Espinosa, perguntei. E antes que me respondesse, fiz nova questão: será que se está a tornar um herege, um negador do livre-arbítrio? Olhe que os doutores da Igreja bem pugnaram em sua defesa. Já não tenho idade para heresias, ouvi vindo do outro lado do telemóvel. Sabe, disse de súbito, estou de férias naquele sítio que bem conhece. Não está por cá? Não, respondi e acrescentei: nem vou estar nos próximos tempos. Não faz mal, temos tempo, vou estar por aqui mais tempo do que é habitual. A Companhia acha que devo descansar, meditar, fazer oração e olhar o mar com calma. E fazer uns belos almoços e jantares, acrescentei eu. Isso, retrucou, é para me manter humilde, para não me esquecer que não passo de um miserável pecador, inclinado à gula.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Atraso

Há muito que não escrevia tão tarde estes textos. O dia, com os seus afazeres e peripécias, empurrou-me para estas horas. Há pouco, chegou a minha neta mais velha, veio descansar do exame de Matemática a que foi sujeita no dia de hoje. Ao jantar contou que, na noite de ontem, tinha sonhado que não encontrava a sala onde o exame se iria realizar. Hoje, não dava com a sala e começou a ficar em pânico, como se o sonho se fosse realizar. Depois, a sala veio ter com ela. Não estava num conto de Borges nem numa narrativa de Kafka. Lá realizou a prova. Consta que estes exames não se chamam exames, mas provas finais. Desconfio que deve haver no Ministério da Educação uma direcção de serviços cuja finalidade é mudar o nome às coisas. Imagino que não lhes falte trabalho. No meu tempo, a escola primária era primária, agora é básica do 1.º ciclo. Não sei o que será pior, ser básico ou ser primário. Parece que primária era uma conotação reprovável, mas secundária já é muito digna, pois os antigos liceus foram coagidos a tornarem-se escolas secundárias. Quando era aluno, fazia pontos, agora fazem testes, mas mesmo esta designação parece estar sob fogo inimigo. O crepúsculo prolonga-se. Já passa das nove e meia, mas a noite ainda não acabou de cair. Como se sabe, em certas alturas do ano, a noite cai muito mais devagar do que noutras. Devia ir fazer uma caminhada, mas estou pouco inclinado para o movimento. Aliás, estou pouco inclinado seja para o que for.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Da verdade

Levantei-me, ainda cedo, com alguns projectos claramente delineados para executar durante o dia. A realidade, porém, não tem qualquer consideração pelos nossos planos. Decidiu contra eles, e, agora, que se aproxima velozmente a hora de jantar, nada do planeado foi realizado, tendo sido arrastado por um turbilhão de coisas que teria tido prazer em evitar. Não que me tenham causado dor, apenas um sentimento de que os seres humanos, por mais que proclamem a autonomia, estão submetidos a um mundo que não controlam. Felizmente, apesar de tudo. Pois se cada um tivesse poder para controlar o mundo, este ficaria incontrolável. O que nos salva, ou tem salvado até aqui, é a nossa impotência. Diante de mim tenho um romance. Na página três, sob o título da obra encontra-se escrito entre parêntesis o seguinte: Novela verdadeira. Fico suspenso dessas palavras. O que queria dizer o autor com esse aviso? A ficcionalização de um acontecimento que ocorreu no mundo? Estes casos são aqueles que mais deveriam levar a suspeitar da palavra verdade. Um romance assente com fidelidade canina num caso real é, plausivelmente, uma grande falsificação. Por outro lado, um outro, em que tudo o que é narrado é falso, será efectivamente verdadeiro, pois a verdade de uma obra de arte não nasce do seu acordo com a realidade, mas da capacidade de criar uma realidade. Verdade significa poder de criar mundos. Passo com os dedos pelas folhas e pergunto-me se, apesar de tudo, irei ler este romance. E não encontro resposta. Imagino que a obra seja ilegível. O vento não dá sossego à ramagem das acácias. Um melro poisa num cedro. Ao longe, dois corvos rasgam o horizonte, pois o horizonte é uma coisa que serve mesmo para ser rasgada, de preferência por corvos. É este o meu destino, escrever falsificações, e nem tudo o que é falso é arte, e banhar-me na trivialidade. O que me vale é a existência de corvos, mesmo que não rasguem o horizonte.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Hexadezena

Agora que a primeira quinzena de Junho se aproxima do fim, ainda não sei o que dizer dela. Talvez que uma quinzena sejam duas semanas mais um dia. Eis uma questão factual, embora seja possível pensar quinzenas de dezasseis dias, pois não produzimos, na história da nossa língua, um vocábulo para nomear um período de dezasseis dias. Quinze, quinzena. Logo, dezasseis, dezassezena. Ora, a solução proposta não existe, seria patética caso existisse, e é um sinal claro de discriminação dos conjuntos de dezasseis dias, que podem, e devem, sentir-se em desvantagem, não apenas perante os conjuntos de quinze dias, como diante dos polígonos de dezasseis lados que recebem o nome de hexadecágono ou mesmo ante os polícoros de dezaseis faces, que são chamados de hexadecácoros. Aqui, entre nós que ninguém nos ouve, não são nomes lá muito bonitos, que devemos evitar de colocar a um filho. Seja como for, podem ser inspiradores. Um período de dezasseis dias poderia, então, ser uma hexadecazena ou, mesmo e talvez muito melhor, uma hexadezena. A formação de palavras parece fazer-se por tentativa e erro. Então, diríamos, passarei a primeira quinzena de Julho em casa, mas a hexadezena seguinte será por aí a vaguear sem destino, que é a única coisa que se poderá fazer nas hexadezenas, que não faltam no calendário.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Do mal

Hoje, floriu a última orquídea. Foi a tempo de apanhar todas as outras floridas. Mais uns dias e haveria já uma ou outra que se teria despedido do seu fulgor. Olhando para todas, não encontro razões para tal disparidade na gestão do tempo, mas os meus olhos são pouco indicados para encontrar tais razões, pois a ignorância sobre o assunto é tão grande que mesmo aquilo que vejo é como se não visse. Passei parte da manhã a ouvir alguém em confissão. Logo eu que não tenho qualquer vocação sacerdotal. Bem, não se tratava de uma confissão, mas de um desabafo sobre pecados alheios. A confessada, pois era alguém do sexo feminino, era mais paciente do que agente, sofria mais os pecados de outrem do que se referia aos seus. O interessante é que a pecadora, pois também o agente era do sexo feminino, não vê o pecado como pecado, mas, aposto, acha as suas acções virtuosas. Não se reconhecerá, por certo, como maldosa. Caso fosse religiosa, julgo que se acharia merecedora da glória dos altares. Apesar do discurso quase teológico, a coisa nada tem que ver com a religião, mas com a trivialidade das coisas quotidianas. Enquanto ouvia o desabafo, ia pensando que há pessoas, de tão mal resolvidas que estão na existência, que parecem ter nascido para azucrinar a cabeça a terceiros. Imagino que sintam nisso uma compensação pelo o facto de serem irresolvidas. Fossem essas pessoas orquídeas, e a pecadora poderia ter sido uma bela orquídea, e nunca haveriam de florir. Como se vê, nem tudo o que é possível se torna real. Nem tudo o que está em potência passa ao acto, para citar o velho estagirita.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Impontualidades

O dia não começou mal. Uma consulta marcada para as nove da manhã. Eram dez e ainda não tinha entrado no gabinete do médico. Haverá, por certo, razões ponderosas para explicar este conflito entre a pontualidade e o exercício da medicina. Há dias, no blogue de um conhecido embaixador, este dizia que, finalmente, percebia a razão por que se chamam pacientes aos que têm de recorrer a um médico. Tinha a ver com o tempo de espera no consultório e a paciência necessária. Parece que esta é uma experiência universal. Pelo menos, por cá. Imagino que a D. Filipa de Lencastre nos trouxe imensas coisas, mas uma delas não foi, por certo, a pontualidade britânica. Talvez, nos dias dela, os britânicos não fossem pontuais. Uma competência que foram desenvolvendo ao longo do tempo. Isto dá-me a esperança de que nós portugueses, onde se haverão de incluir os esculápios e as esculápias, já agora, nos tornemos pontuais. Como se vê, eu tenho grande capacidade para me iludir. Se, em tempos, os britânicos faziam gala da sua pontualidade, nós fazíamos, e fazemos, gala da nossa impontualidade. O vício é apresentado como virtude. A partir daí, pouco há a fazer. O dia está cansativo, eu estou cansado, a realidade está um cansaço. Vou descansar.

domingo, 11 de junho de 2023

Bebidas

Para o que é a norma, a norma dos domingos, esclareça-se, almocei cedo. Bebo agora café. Há muito que, num movimento centrípeto, deixei de frequentar cafés, reduzindo-me ao convívio do lar ou comigo mesmo para tomar uma das bebidas de que mais gosto. Há, para além da água, bebidas notáveis. O café, por exemplo. O vinho, uma boa aguardente vínica, o cognac e, como não podia deixar de ser, o whiskey, a versão irlandesa de preferência à escocesa, a qual não leva e. O Word sublinhou-me coganc, assinalando um terrível erro, pois só conhece conhaque. Erro pior cometi há muitos anos quando, num restaurante em França, onde me serviam um cognac e, imprudente, falei de armagnac. O proprietário seria um típico cognaquiano e não me mandou fuzilar por pouco. Um cognac resulta de uma tripla destilação de vinho branco, enquanto o armagnac apenas de uma, não há comparação, sublinhou perante a minha heresia, a qual consistiu apenas na nomeação da coisa, sem fazer comparações. Se o pobre senhor fosse filósofo dira que pertenciam a paradigmas diferentes e, como tal, incomensuráveis. Sobrevivi, mas a partir daí nada de comentários sobre bebidas, pois aquilo pareceu-me pior do que uma disputa política ou mesmo futebolística, que ainda é pior. A realidade, triste realidade, é que, nos tempos que correm, deixei os destilados numa outra era e restrinjo-me a uma santíssima trindade. Água, vinho e café. A água purifica-me, o vinho dá-me o pouco espírito que tenho e o café talvez me mantenha acordado, mas tenho dúvidas. Dá-me prazer. Daqui a pouco chega o meu neto. Tenho de me preparar.

sábado, 10 de junho de 2023

Mitologias

Há pouco passei uns minutos diante da televisão. Num canal de desporto, via-se uma das mais importantes corridas de automóveis, as 24 Horas de Le Mans. Há cinquenta anos eu teria ficado muito mais do que os minutos que fiquei. Nessa altura, as corridas fascinavam-me. Hoje, o que me fascinou não foram os carros que giram interminavelmente pelos mesmos lugares, mas o facto de isso me fascinar há cinquenta anos. Não demorou muito a que o fascínio desse lugar ao alheamento. Será essa a natureza das paixões, um fogo intenso que termina nas cinzas da indiferença. Enquanto arde, parece ser coisa eterna. Terminada a combustão, a vida refaz-se noutros horizontes. De que me lembro desses anos em que as 24 Horas de Le Mans faziam parte da minha mitologia pessoal, bem como dos meus amigos de então? Da feroz rivalidade entre os Ferraris 512S e os Porsches 917K e da morte, faz amanhã 51 anos, de Jo Bonnier, na altura um piloto da Lola. Os Ferraris eram vermelhos e os Porsches, azul-claro com uma lista cor-de-laranja, salvo erro. A experiência diante da televisão não me elucidou sobre o que me apaixonava naqueles tempos. Os comentários fizeram-me sorrir, perguntar-me como é que adultos podem mostrar, perante um simples divertimento, um entusiasmo de jovens acabados de sair da adolescência. Por certo, há cinquenta anos ter-lhes-ia dado a máxima atenção e pensaria que eram sábios. Cada um de nós traz em si um conjunto de mitologias. As mais intensas foram aquelas que, iniciando-se na infância, foram morrendo com o aproximar da idade adulta. A partir daí os mitos morreram e passaram a existir razões, mesmo que, por vezes, travestidas de paixões.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Sonhos

Descubro, com a prestimosa ajuda de Alexander Kluge, que Theodor Adorno, em carta escrita a de 2 de Agosto de 1935 para Walter Benjamin, afirmou o seguinte: Chaque époque rêve la suivante. Estas frases nunca deixam de ser fascinantes, mas o fascínio é um exercício de cegueira. Poder-se-ia perguntar quais as provas que Adorno tem do que afirma. Se isso fosse verdade, bastaria descobrir o que sonha cada época para saber o que virá a seguir. O pior é que as épocas não sonham e os homens, que nunca deixam de sonhar, sonham com coisas tão diferentes que, caso o dito de Adorno fosse verdadeiro, a época a vir seria não uma, mas múltiplas épocas, em conformidade com os diversos sonhos existentes na época anterior. Este tipo de afirmações revela que os homens, mesmo os mais racionais, estão sempre dispostos ao augúrio. Seja no voo das aves, seja nos sonhos dos indivíduos ou das épocas. Existe um inconformismo com o facto de o futuro estar oculto por uma espessa e intransponível muralha. Este narrador está convencido do contrário do que afirma Adorno. Nenhuma nova época se reconhece nos sonhos da anterior, achá-los-á sempre descabidos e, irremediavelmente, presos ao mundo que acabou. Se por acaso as épocas sonhassem, não sonhariam o mundo do futuro, mas o do presente, a do seu presente. O que nos vale, porém, é que as épocas não sonham.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Encarnações

Por quantas encarnações passa uma alma? Ora, não se pense que este narrador se tornou adepto da teoria da reencarnação. Por encarnações entende-se as várias faces, ou máscaras, que, ao longo da vida, uma pessoa vai usando. Nada de transmigrações, apenas metamorfoses. Será que eu sou a mesma pessoa do que aquela que eu era há vinte anos. Tenho dúvidas. Estas meditações foram desencadeadas por uma súbita nostalgia que me pôs a ouvir coisas que eu ouvia noutra encarnação. A nostalgia, porventura, será um sintoma de que sou a mesma pessoa, mas talvez não seja prova suficiente para me convencer. O dia está triste e ventoso. Um sol anémico, alguns chuviscos. Entrego-me a meditações silenciosas. Na verdade, não são meditações, mas antes ruminações e cismas. O pensamento vai correndo, embora, como um bom ruminador e um ainda melhor cismador, não chegue a lado nenhum. Os meus argumentos nunca têm conclusão. E se por acaso encontro alguma conclusão, ela é destituída de premissas. A música parou. Vou deixar a nostalgia dissipar-se e recuperar aquilo que sou nos dias de hoje. O passado é uma sombra pesada, um país estrangeiro em que, acredito, nunca vivi.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não jogo aos dados

Estava a preparar-me para o feriado de amanhã quando me deu o sono. Tive de fazer um grande esforço para não interromper a preparação. Estas coisas têm de ser levadas a sério. Nunca se deve entrar por um feriado dentro sem o devido planeamento, antecedido por um período mais ou menos longo de deliberação. Há quem dê valor ao improviso, defenda que a vida se deve enfrentar com tudo aquilo que tem de inesperado e inquietante. Na verdade, desculpas de mau pagador de quem gere a existência segundo o princípio de incerteza de Heisenberg. Eu sei que o princípio de aplica nos domínios da mecânica quântica, e só neles, um lugar pouco recomendável para pessoas de bem. Contudo, ao falar dele, sempre posso aparentar erudição, e as aparências são a realidade de quem é, como este narrador, destituído de essência. Não me vou pôr aqui a falar de posições e momentos lineares, do facto do crescimento da certeza de um implicar o aumento da incerteza do outro. Não falo disso, em primeiro lugar, porque não sei nada sobre o assunto. Depois, porque não vem ao caso. Aqui defende-se tudo o que é certeza, mesmo que seja a mais estúpida, e procura-se com denodo a sua certificação. Se Deus não joga aos dados, como afirmou Einstein, seria eu que iria jogar aos dados com um feriado, ainda por cima dia santo? Não sou assim tão estulto, embora, não raras vezes, o pareça. Vou continuar a preparar o feriado de amanhã.

terça-feira, 6 de junho de 2023

O mais decisivo

Junho não é um mês fácil, embora tivesse a obrigação de o ser. Deveria entregar-se a amenidades, longe do furor estival e esquecido das intempéries invernosas. A prova de que estamos numa era negra manifesta-se no comportamento dos próprios meses, no esquecimento ostensivo dos seus deveres, da sua desatenção a todos os imperativos a que se submeteram na origem dos tempos. Quando foi altura de arranjarem um lugar no calendário, comprometeram-se a tudo e a mais alguma coisa. Agora, é o que se vê e o que se sente. E não há quem ponha o calendário nos eixos. Temo que nem um astuto Ulisses, tão devotado aos ardis mais inconcebíveis, teria poder para pôr os meses nos eixos ou nos carris, caso se prefira a metáfora ferroviária. Enquanto escrevo estas lamentações tão cheias de trivialidades, não paro de bocejar. Se dou sono a mim mesmo, o que não farei aos outros? Em resumo, sou um chato e talvez essa seja a minha principal característica. De lá de dentro vem um diálogo sobre propriedades matemáticas, diálogo a que minha pobre neta tem de se submeter, apesar dos mais de cem quilómetros de distância. Esta coisa das videoconferências é uma chatice, pensará ela, enquanto boceja e tenta resolver um exercício. Ora, não fora um maçador inveterado, escreveria coisas como estas: Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha e, levantando no ar o seu membro, mijou para cima deles tão energicamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito. Sem contar com as mulheres e com as criancinhas. Como sou o que sou, tive de deixar isto para o senhor Rabelais, o qual deu bem conta da tarefa. Diante de mim tenho um livro que é uma longa entrevista a um amigo meu, um amigo de há mais de quarenta anos. A certa altura ele diz: Platão ainda me desafia, continua presente… e delicia-me enquanto leitor! Uma grande parte da filosofia como a conhecemos é franchising de Platão, se é que não é toda. O que torna duas pessoas amigas é o facto de coincidiram naquilo que é decisivo. E Platão é, atrevo-me a dizê-lo, aquilo que é mais decisivo na tradição ocidental, e não apenas na filosofia. Um vento de noroeste atravessa Junho e eu penso numa grande baía onde pequenos veleiros deslizam à procura do porto do crepúsculo.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Enigmas

Sento-me para ver a Primavera passar, mas um calor lúgubre cai sobre o corpo, a pele parece estalar. Se viesse chuva e trovoada, tudo melhoraria, ouvi há pouco, quando, na rua, me escondia do sol. Retornado a casa, paro diante das orquídeas. Apenas uma ainda não floriu, mas já não faltará muito. O que não sei é se será possível estarem todas floridas ao mesmo tempo. As temporãs começam a ter dificuldade em segurar as flores, que têm um ar tristonho, um semblante que anuncia a queda iminente. A língua, qualquer língua, é uma coisa extraordinária. Veja-se a distância semântica que vai de iminência a eminência. Troca-se uma vogal e tudo muda. Talvez isso se passe em todas as coisas. Imagine-se uma equipa de um desporto qualquer. Troca um jogador e a realidade passa a ser outra. Pensa-se na língua como instrumento de expressão, mas ela também é, no seu conjunto, um símbolo do mundo, a sua estrutura reflecte a estrutura desse mundo. Todo o mundo se encontra em qualquer língua. Podemos pensar, talvez sem errar, que qualquer coisa no mundo pode ser o símbolo desse mundo. Jorge Luís Borges dá-nos, num conto denominado Aleph, uma visão restrita desta simbolização. Haveria um ponto do espaço, por acaso, em Buenos Aires, que abarcaria toda a realidade do universo. Ora, podemos ir mais longe e pensar que qualquer coisa ou ponto do universo contém a totalidade do universo, mesmo um habitante da mais recôndita província ainda traz consigo esse universo. O que é espantoso é que não sinta o peso que transporta. Este será o enigma dos enigmas, que nem o calor mais sinistro poderá apagar.

domingo, 4 de junho de 2023

Da perfeição

Acabei de ler, durante a insónia desta última noite, o romance de Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas Mann, Professor Unrat ou o Fim de um Tirano. É um excelente romance e prova provada de que o génio dos Mann não recaiu apenas em Thomas. Não encontrei mais nenhuma obra de Heinrich traduzida para português, apesar da sua produção ter sido considerável. Talvez alguém se lembre de dar continuidade à tradução das suas obras. Os livros de Heinrich foram queimados pelos nazis, quando ele já estava fora da Alemanha. Passou por Portugal a caminho dos Estados Unidos. A tradução portuguesa de Professor Unrat contém múltiplas informações sobre o escritor, desde as relações tensas com o irmão Thomas, que acabaram em reconciliação, até à notícia do suicídio de duas irmãs Mann. Este tem sido um belo domingo, entregue ao não fazer nada, a mais nobre das ocupações, aquela que é um sintoma da perfeição, num mundo repleto de imperfeições. Isto não significa que aquele que entra na casa do não fazer nada é um ser perfeito. Não, não é, mas reconhece que a perfeição reside não na azáfama que tomou conta do mundo, mas nessa imobilidade que imita o motor imóvel, para retomar, de novo, uma metáfora proveniente do velho discípulo de Platão. Agora, enquanto nada faço, tenho de decidir qual o romance que irei ler nesses longos minutos de insónia.

sábado, 3 de junho de 2023

Problemas de linguagem

Troveja, relampeja e choveja. Bem, choveja era uma ideia para rimar, mas não se pode rimar por dá cá aquela palha. O Word anda a ter lições de erudição. Não gostou que tivesse usado a expressão ‘dá cá aquela palha’, sublinhou-a, em estilo pontilhista, e propôs a substituição, sem se rir, por ‘um motivo fútil’.  A realidade é que tem estado a chover copiosamente, enquanto se ouve e vê nos céus a ira de Zeus, num espectáculo multimédia, com laivos realistas. Voltemos ao ‘dá cá aquela palha’. O processador de texto achou-a linguagem informal, apelando a uma mais formal. Pergunto-me quem andará a educar o Word. Vivemos num mundo informal, se não mesmo informe, logo a linguagem deve estar de acordo com o mundo. Só assim ela será capaz de o exprimir. Imagine-se que eu escrevia ‘mas não se pode rimar por um motivo fútil’. Logo se pensaria que tinha enlouquecido e que agora me tinha entregado a uma linguagem pomposa, empolada, que eu sofria, além de outros males físicos e morais, de afectação, e sabe-se lá mais de quê. Com esta conversa mole, Zeus abrandou a ira, a chuva deixou de cair, entre as nuvens avista-se, agora, pedaços azuis do céu, e o Sol, escondido atrás de uma nuvem esbranquiçada, envia uma luz porosa que cai sob a copa das árvores e as retira da cinza em que tinham caído, permitindo-lhe verdejar diante dos meus olhos. Gosto de espreitar as primeiras frases de um livro, talvez seja uma espécie de voyeurismo, mas já é tarde para abandonar o vício. Diante de mim tenho um que começa assim: A 13 de dezembro de 1880, cêrca das onze horas da manhan, era enorme a affluencia de gente na pequena povoação de Paardekraal, situada proximo de Heidelberg, cidade do Transvaal ou República da Africa do Sul. Esta era a ortografia ainda em vigor no ano de 1905, uma ortografia monárquica, ou que a monarquia não conseguira destruir, apesar de o ter tentado, com o álibi da simplificação, coisa em que a república foi mais bem-sucedida. Não me interessa muito saber as razões que levaram àquela afluência inusitada numa aldeola do Transval, nem o motivo por que um escritor português, Eduardo de Noronha, dedica um romance, O Extermínio de um Povo, ao assunto. Basta-me contemplar aquelas palavras que os simplificadores decidiram exterminar. Tens de te decidir, vociferou o homúnculo que vive na caverna da minha mente, se és adepto da escrita ao gosto popular ou da velha escola armada em erudita, cheia de consoantes mudas. Encolhi os ombros. Não há paciência para idiotas, pensei. Voltou a chover, mas não troveja.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Santa ignorância

Há coisas que os homens nunca deviam saber. Veja-se por exemplo o seguinte: O rei Uther Pendragon, governante de toda a Grã-Bretanha, estava em guerra havia muitos anos com o duque de Tintagil na Cornualha, quando soube da beleza de Lady Igraine, a esposa do duque. Eis uma novidade desnecessária a um rei. Nunca se sabe quão funestas são as consequências que um conhecimento arrasta atrás de si. Não se pense, porém, que este caso é original. Basta recuar ao paraíso. Também o saber que Eva adquiriu era desnecessário e as consequências dessa sabedoria são aquelas que todos experimentamos. Até o mais extremo e radical dos ateus sabe pelo menos uma coisa. Mesmo que nunca tenha existido um paraíso originário, nem um Adão, nem uma Eva, nem uma árvore do conhecimento, as consequências do acto de Eva e de Adão são absoluta e incondicionalmente verdadeiras. Alguém interessado em discussões estéreis perguntará de imediato como é que um efeito pode existir e ser verdadeiro, sendo falsas as causas. Uns rudimentos de lógica dão a chave para o mistério. Imaginemos a seguinte proposição condicional: Se existiu um paraíso e nele havia um casal humano (Adão e Eva) criado por Deus, que se deixou tentar e comeu o fruto proibido, então os seres humanos tornaram-se mortais, têm de trabalhar e tudo o mais que lhes acontece a cada dia.  Se a proposição antecedente, a que vai do ‘Se’ até ao ‘então’ é falsa, a consequente, a que se segue ao então, é verdadeira. Logo, a proposição condicional é verdadeira. Se Eva não tivesse curiosidade em saber ao que sabia o fruto da árvore do conhecimento, também Uther Pendragon não saberia da beleza de Lady Igraine, e o mundo seria um lugar mais respirável. E assim entro na parte final desta sexta-feira. Há uma trovoada seca, a atmosfera está irrespirável e este narrador, sem apetite para os deveres que tem pela frente, ouve os Gurre-Lieder, de Arnold Schönberg.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Designações

Estou a ouvir o concerto nº 1 de Il Cimento dell’Armonia e dell’Invenzione, Opus 8, de Antonio Vivaldi. Ao todo são doze concertos, mas quase só são conhecidos do grande público os quatro primeiros, ditos As Quatro Estações. É curioso o processo de denominação desses concertos. Começa com a Primavera, depois o Verão, segue-se o Outono e, de imediato, o Inverno. O quinto, talvez por as estações serem só quatro, recebe o nome de Tempestade no Mar, e o sexto a designação de O Prazer. A partir daí, não há títulos. Terá Vivaldi ficado sem imaginação para encontrar designações para os últimos seis? A estes apenas coube o número e a tonalidade. Talvez ele tenha pensado que, nestes últimos concertos, não deveria simbolizar fosse o que fosse. Seriam símbolos de si mesmos, pura música sem qualquer mácula exterior. Ou talvez lhe tenha dado nomes e estes se tenham perdido, ou ele se tenha esquecido. Lá fora, o céu está com um ar tempestuoso, mas não chove, não troveja, nada. Entre a escrita destas palavras e chamadas de telemóvel, chegou o quinto concerto. Há uma tempestade marítima, o mar agitado, raios e coriscos fazem os marinheiros praguejar, o revérbero nas águas encadeia quem as olha, a música é uma sombra cintilante na pradaria de Junho, onde os rebanhos adormecem. Volto à cidade, embora esta não seja mais do que uma pequena vila exausta, a perder sangue, uma terra vergada pela anemia. O mar tempestuoso fica longe. Na rua, um casal passa, ele à frente, ela atrás, vão presos à sua indiferença, enquanto o CD chega ao primeiro movimento, Allegro, do concerto Il Piacere. Suspendo a escrita e deixo-me levar no prazer de ser levado.