quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Aquilo que é decisivo

Talvez as pessoas não saibam o que fazer com ela. Tratam-na como coisa divina, mas evitam demorar ali os seus olhos. Quase não tem leitores. Em prestígio, só a música ombreará com ela. É possível que já não se saiba o que fazer com a poesia, nem como a ler, nem o que esperar dela. E, no entanto, é possível ainda depositar a esperança num poema. Não a esperança da salvação, mas aquela que orienta o olhar para este perceber as coisas que diante dele estão manifestas, mas que ele não vê. Considere-se este pequeno poema: Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado. // Quando pronuncio a palavra Silêncio, / destruo-o. // Quando pronuncio a palavra Nada, crio algo que não cabe em nenhum não-ser. Wisława Szymborska dá-lhe o título AS TRÊS MAIS ESTRANHAS PALAVRAS. Como, sem poesia, poderíamos descobrir a estranheza nestas palavras que usamos como quem uso moedas de pouco valor. Contudo, isto ainda não é tudo. Em cada um dos primeiros versos dos três dísticos encontramos a palavra pronuncio, wymawiam, em polaco. O que o poema manifesta é o peso que existe em cada pronunciamento.  Não é inconsequente tomar a palavra. Sempre que o fazemos, modificamos o mundo e as próprias palavras não ficam incólumes ao uso que delas fazemos. Daqui o prestígio da poesia, mas também a falsa indiferença generalizada perante ela. As pessoas fingem indiferença, pois temem-na. Pressentem que ela diz sempre qualquer coisa de decisivo. E nada haverá de mais inquietante do que aquilo que é decisivo. Antes e depois de o ser.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Retorno

Volto para casa. Há quem meça a distância de uma viagem em quilómetros, há quem o faça em tempo de deslocação. Neste caso, prefiro em graus de temperatura. A quantos graus estará a terra onde me acolho nessas épocas do ano em que tenho de enfrentar a realidade? Chega a estar a vinte graus de distância. Não será o caso de hoje, mas mesmo assim serão alguns. Não fiz a caminhada matinal, espero compensá-la com uma nocturna. Não haverá mar, nem molhe, nem gaivotas. Há sempre uma diferença abissal entre os livros que se trazem para férias e aqueles que se lêem ou que seria possível ler, no melhor dos mundos possíveis. Agora, há que arrumá-los para transporte e, depois, colocá-los nas estantes. Aos livros que trouxe, acrescentei outros comprados, entretanto. A cada um as suas adicções. Como todas as adicções, também estas significam subtracções ao orçamento, mas a vida é o que é. Um dos que comprei é a Obra Completa de José Marmelo e Silva. Uma obra que cabe num único volume de setecentas e poucas páginas. Os responsáveis pela edição deram-lhe um estranho título Não aceitei a ortodoxia. Um tributo à recusa do autor em se deixar esmagar pelo horizonte ideológico do neo-realismo e aos conflitos entre estes e os presencistas. Nisto haverá, apesar da excelência académica dos organizadores, um equívoco. A arte nada tem que ver com a querela sobre a doxa (opinião). Não se trata de se ser ortodoxo ou heterodoxo. Isso será um problema teológico, mesmo que a teologia tenha por deus a arte. Esta não tem relação com a opinião. Para Platão, havia um conflito entre doxa (opinião) e episteme (ciência). A arte pertencia a outra realidade. Aliás, mal vista pelo filósofo. Acabam com estes pensamentos os dias inúteis. Amanhã, a utilidade tomará posse do meu tempo, o que me dá a esperança de que passarei a ter pensamentos úteis.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Fim de estação

Quando fui caminhar, por volta das oito da manhã, descobri que a população veraneante encolhera drasticamente. Cruzei-me com muito menos caminhantes, passeantes, ciclistas e esforçados adeptos do jogging. Chegado ao molhe, olhei para as praias e não havia ninguém, o que está longe de ser habitual. Àquela hora já vi gente a tomar banho, escolas de surf em actividade, onde um sacerdote dirigia um ritual de aquecimento, com estranhos ritos envolvendo o corpo dos monges com o habita da ordem, pessoas a passear os cães junto à beira-mar, outras sentadas olhando para o oceano, talvez a sonhar com a América, com grandes veleiros e navios transatlânticos. Hoje, nada nem ninguém. Também, no molhe não se avistava vivalma humana, apenas gaivotas em conferência, que levantavam voo com a minha aproximação. Já não é um tempo de despedida de férias. Esse deve ter ocorrido no fim-de-semana. É um tempo em que se pode dizer: o sol parece mais fraco. Contudo, os bares lá estão, também a areia e o mar, com os seus rumorejos. Depois, comentei parece que se está na Bretanha ou na Normandia ou num episódio do inspector Maigret. Estou inclinado para a nostalgia. Ao escrever Maigret, lembrei-me de uma França que só existe na imaginação, uma França que era o celeiro espiritual dos portugueses, num tempo em que estes ainda não se tinham convertido à cultura anglo-saxónica. Agora, ninguém aprende francês e muito menos está interessado naquilo que possa vir de França. Isto é uma Idade sem amor bloqueada pelo êxtase / do tempo, como escreveu, no início dos anos sessenta do século passado, Herberto Helder. O espírito do tempo mudou e as pessoas extasiam-se com outras coisas ou já não se extasiam com nada. Este talvez não seja um tempo para êxtases, mas nunca se sabe.

domingo, 28 de agosto de 2022

Velhos hábitos

Este antigo hábito do almoço tardio aos domingos parece imutável. Isso virá de um tempo em que os domingos eram dias sagrados. Não se entenda por sagrado um dia em que se cumprem os rituais religiosos obrigatórios para os católicos romanos. Significa uma sacralidade mais ampla, pois não era um dia de negócio, mas também não era de ócio. Nele estava incrustada uma diferença com os dias úteis, aqueles onde, movidos pela estrita necessidade, se nega o ócio. Imagino que o que se cultuava então era a pura liberdade de dispor do seu tempo. Daí, os almoços terem deslizado para horas tardias. Isso não ajuda ao culto da moderação. Não poderei dizer como Anatole França, em A Ilha dos Pinguins, faz dizer a Virgílio, Sou sóbrio: uma alface e algumas azeitonas, com uma gota de falerno, compunham toda a minha alimentação. Não é que não seja sóbrio, mas a alface não me atrai e as azeitonas não me caem bem. Continuo a preferir comida um pouco mais substancial. Também não bebo o vinho de Falerno, mas, neste país, não faltam alternativas. Virgílio – ou o Virgílio de Anatole France – contrapõe a sua ascese à dos cristãos. Estes, pensava ele, abstinham-se de alimentos e evitavam as mulheres por amor à privação, expondo-se voluntariamente a inúteis sofrimentos. Ele, pelo contrário, refreava os seus desejos por disciplina e satisfação própria. É possível que Virgílio assim pensasse. Também é possível que ele, na outra vida – pois é na vida após a morte que Anatole France coloca o diálogo de Marbode com Virgílio, que morrera dezanove anos antes do nascimento de Cristo – não tivesse compreendido o quão próximos de si estavam os seus cristãos, isto é, aquilo que ele imaginava, no lugar onde vivia a sua morte, serem os cristãos. Ambos faziam da ascese, seja ela sobriedade ou privação, um acto da vontade, uma afirmação de si mesmos, pela negação do prazer transbordante. O poeta da Eneida não terá percebido a natureza do cristianismo, mas poderia ser, claramente, um homem do Renascimento e mesmo um moderno. Tudo isto a propósito dos almoços tardios de domingo. Agora, vou tratar do vinho. Não de Falerno, mas de Monção e Melgaço, feito com uma casta que os deuses, talvez o próprio Baco, esqueceram por aquelas terras sagradas.

sábado, 27 de agosto de 2022

Iniciar as despedidas

O último sábado deste Agosto. O tempo desfaz-se perante os olhos, o corpo não reage e o espírito, volúvel, olha para esse acontecimento ora com indiferença, ora com melancolia. Não tarda, a realidade estará aí armada com os seus imperativos inúteis. Os homens precisam de Deus, disse-me hoje o padre Lodo, quando nos encontrámos no café, por causa da inutilidade. Fiquei na expectativa do que viria dali. É belo este mar, disse-me. Olhe para ele e deixe-se levar pelo mistério. Eu respondi que sim, mas perguntei qual a ligação com a inutilidade. Nenhuma, ouvi. Fiquei calado, à espera. Então, ele continuou. Todos os nossos esforços, aqui sorriu, por maior que seja o seu êxito, estão condenados ao fracasso, a não ser que Deus exista. Veja os impérios, as grandes obras de arte, os mais agudos dos sistemas filosóficos ou mesmo os triunfos da Ciência. Onde estão Galileu, Newton, Einstein?  Todos mortos. Nada do que fizeram tem para eles sentido, caso não exista Deus e os homens não possuam uma alma imortal. Disse-lhe que uma coisa não está ligada à outra. Podemos imaginar a existência de Deus sem a existência de almas imortais e, acrescentei em tom de provocação, também não é impossível a existência de almas imortais sem que exista uma divindade. Olhou-me com seriedade e prescreveu: deixe de brincar à lógica. A realidade tem razões que a lógica é incapaz de formalizar. Eu ri-me e perguntei-lhe a causa desta deriva matinal, de uma deriva para a metafísica ao gosto popular. Não se fez rogado e retorquiu: a voz do povo é a voz de Deus. Não me contive e respondi que então Deus deve andar mal-humorado. Claro que anda, ouvi. Tem razões de sobra para isso. Como também eu estava mal-humorado e a metafísica não me interessa nas horas da manhã, mudei de assunto, para um interesse comum. Acordámos um jantar num dos sítios que merece o culto dos homens e senão de Deus, pelo menos dos deuses da Antiguidade. Há que começar as despedidas deste Agosto.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Jejuns

Uns dias de silêncio são um exercício de jejum. Este, em tempos, fazia parte da vida religiosa e os crentes praticavam-no não tanto por fé ou por tradição, mas por hábito. Depois, descobriram que também os hábitos se podem mudar e alguns com demasiada facilidade. Nem todos serão uma segunda natureza. Serão poucos os jejuadores por motivos de religião. Surgiram outros, também eles motivados pela fé, a fé na saúde do corpo, na produção de uma aparência que, mesmo que não seja bela, não envergonhe. Dito de um modo menos prosaico, antigamente, jejuava-se habitualmente por crença na transcendência; hoje, por crença na imanência. Isto não está a correr bem. Talvez os dias de jejum não me tenham melhorado as ideias. Diante de mim tenho uma série de medicamentos comprados há pouco. Olho para eles e é grande o meu desconsolo. Nenhum serve para encontrar assuntos que valham a pena escrever sobre eles. É possível que este narrador seja um niilista e escreva sobre o nada. Quando escrevo a palavra niilista noto sempre, no fundo da minha alma, uma sombra. O português deveria ter conservado o h latino. A palavra ficava muito mais elegante e, além disso, é possível que ser nihilista seja muito diferente de ser niilista. Eu não sou cultor da caligrafia, da grafia bela, do grego kalligraphía. Confesso, porém, que quando se arrancam letras às palavras estas sofrem e tornam-se feias. Como é possível não ver que ação não passa de uma acção atrofiada e feia? Em Portugal existe há muito uma conspiração contra a beleza das palavras e tanto quanto percebo, os conspiradores nunca jejuam, nem à sexta-feira.

domingo, 21 de agosto de 2022

Memórias

Este é um domingo cheio de trivialidades, como o são todos os meus domingos. Isto para não falar nos outros dias da semana. Recordo que uma coisa trivial é aquela que todos sabem e, por isso, se torna comum. Portanto, tenho preenchido este dia com coisas que todos sabem. Isto não significa que não me tenham acontecido aventuras que engrandecem a minha gesta. Por exemplo, ter ficado na cama e não ter feito a caminhada habitual com a frívola desculpa de que já estava muito sol. Mais picaresca foi a de ter engolido – embora não tenha dado por isso – a massa, não sei de que matéria seja feita, de restauro de um dente. Agora, terei de marcar consulta para nova restauração, para que me componham um dente da frente que terei partido há mais de cinquenta anos, na sequência de uma queda aparatosa no colégio, quando teria uns avultados 12 anos. Correndo desalmadamente em direcção do campo de Spiribol, tropecei numa espia de arame que segurava um dos postes do campo de Vólei. Um acontecimento. Rasguei as calças, destrocei os óculos, esfolei as mãos e, como prémio da combatividade, parti três dentes da frente. Também um castigo, pois estava em território dos mais velhos, onde gente da minha idade não era convidada a entrar. De um desses dentes alimentei-me hoje. Um dos livros que trouxe para férias foi O que diz Molero, de Dinis Machado. O livro saiu em 1977 e devo-o ter lido em 1978, durante os excruciantes afazeres do serviço militar. Lembro-me de me ter divertido imenso. Tendo perdido o rasto ao exemplar comprado então, adquiri um outro num alfarrabista, uma edição de 2003. Tenho esperança de o ler ainda por estes dias. Temo, porém, que não lhe ache graça nenhuma, mas como em tudo na vida é preciso correr riscos. E não é dos menores, o risco da desilusão.

sábado, 20 de agosto de 2022

Anacrónicos e intempestivos

Senilidade não é o estado em que me encontro, presumo com benevolência, mas o título do romance de Italo Svevo que estou a ler. A personagem senil não é um homem de idade avançada, mas alguém ainda jovem. Comporta-se perante uma rapariga mais nova e experiente como um velho que, desconfiado das possibilidades do corpo, se entrega à declinação do ciúme. O romance foi publicado no final do século XIX e talvez fosse já possível discernir o ciúme como algo que não deveria atacar as novas gerações, mas só aquelas em que as possibilidades físicas fossem insuficientes para consumar os devaneios eróticos da imaginação. Não se pode dizer que a obra tenha tido mau acolhimento. Na verdade, não houve sobre ela qualquer escrito. Nem favorável, nem desfavorável. Apenas silêncio. Svevo levou esta ausência de reacção muito a sério e esteve vinte e sete anos sem publicar. Salvou-o James Joyce. Hoje é um dos grandes nomes da literatura italiana. Há pessoas que nascem fora do seu tempo. Senilidade era uma obra demasiado moderna, um romance precursor, para ser apreciado no tempo e no lugar onde foi publicado. Nietzsche, por exemplo, presumia-se intempestivo. Escrevia para o futuro, pois o presente seria incapaz de o compreender. Há outra espécie de intempestivos, de pessoas que nascem anacrónicas. Não anunciam nenhum futuro, tão pouco são homens ou mulheres do futuro. São pessoas que nasceram demasiado tarde, num tempo que já não se coadunava com a sua constituição mais funda. Pertencem a um espírito cujo tempo se consumou. Os românticos imaginaram-se assim perante a Idade Média, mas o culto que lhe prestaram não é prova de estarem deslocados do seu tempo. É um truque para abrirem uma brecha dentro do mundo moderno e nele encontrarem lugar. Aqueles que são anacrónicos, cujo espírito repousa num tempo acabado, não têm nada para dizer. Olham o mundo e fazem do silêncio a sua morada.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Da inutilidade

Não era um bando, mas um enxame de gaivotas. Percorria o molhe, ouvindo a barulho sereno das águas, quando, vinda do mar alto, surge uma traineira. Parecia carregada. De súbito, centenas de gaivotas formam um esquadrão sobre o barco, como se ele necessitasse, para chegar ao porto, da energia vinda do grasnar ameaçador daquelas aves esfomeadas. Depois, talvez desiludidas pelo resguardo da carga, começam a dividir-se em grupos, o enxame perde a consistência e pequenos bandos desaparecem no horizonte, outros aterram na areia das praias, um escolheu o cimento do molhe para conferenciar. Isto foi de manhã cedo, estavam os barcos de pesca a chegar da faina no mar, como dantes se ouvia dizer ou se lia. Mais tarde, quando a manhã declinava, achei que precisava de levantar dinheiro. Dirigi-me a um multibanco perto e tive a desagradável surpresa de ele não ter sido abastecido. Dirijo-me a uma pequena vila onde sabia existir vários multibancos e descubro que tinham desaparecido. Agência bancárias e caixas de multibanco parecem espécies em vias de extinção. Depois, de um período de expansão, onde não havia recanto que não tivesse a sua agência, agora parecem sofrer de uma crise demográfica. Morrem muitas e não nascem outras. Perguntei a uma pessoa que passava se não havia por ali uma caixa multibanco. Há, mas é na estrada para… Obrigado, respondi. A pessoa sorriu e acrescentou que dantes havia na vila quatro bancos, agora só há um. Eu também sorri e fui levantar o dinheiro que precisava, pois ainda preciso de dinheiro. Como poderia, sem moedas ou notas, ir para uma esplanada frente ao mar, tomar café, comer um bolo para contrabalançar o exercício da manhã e beber uma água com gás? Não podia. Sentado, o azul do mar entrava-me pelos olhos, os banhistas entretinham-se com o mar e a areia onde se deitavam esperando um milagre. Pensei em coisas inúteis, como costumo pensar, mesmo que não esteja sentado diante do oceano. A inutilidade é o motivo maior de meu pensamento.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A púrpura do rosto

Olha, aquelas flores maquilhadas com a púrpura do teu rosto. Quando ouvi isto, nem acreditei que houvesse alguém que pronunciasse uma frase como aquela. Tentei perceber quem era, mas o dono da fala tinha-se perdido, bem como aquela que detinha um rosto de onde se extraía a púrpura com que certas flores se maquilham. O mundo está cheio de acontecimentos que mereciam um pouco mais de atenção, mas a trivialidade da existência rapta-os para os aniquilar. Não se pense que sou sensível a uma eventual poeticidade da frase. Não sou, pois é uma poética adocicada e há muito que bebo café sem açúcar. O que me sensibilizou foi alguém falar daquele modo. Depois, há sempre um depois, continuei o meu caminho em direcção ao molhe, para poder ver as águas do oceano e os barcos ancorado a tremer, pois também os barcos são sensíveis ao frio, e a manhã não estava ainda quente. Quando me ponho nesse caminhar, o rosto das pessoas com que me cruzo torna-se difuso, perde os contornos, é uma mancha móbil na paisagem, uma nódoa que se aproxima para logo ser deglutida e desaparecer no nada. No final da manhã, tentei ir a uma ilha que, por acaso, é uma península. Se conseguisse lá parar, haveria de beber um café. Não consegui. O aumento dos carros que ali chegam nestes dias é inversamente proporcional aos lugares para estacionar. Quanto maior a procura, menor a oferta. Os serviços municipais todos os anos fecham um número considerável de lugares de estacionamento. Isto prova que nem tudo se rege pelas leis do mercado. Fui estacionar para outro lado, onde procurei flores maquilhadas com a púrpura que certas mulheres deixam cair do rosto. Não as havia, sinal de que pouca ou nenhuma púrpura haverá em rostos de mulheres que por aí andam. Talvez sofram de anemia, pensei.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Vento esfuziante

Ainda não eram oito horas da manhã e já estava na rua em plena caminhada. O problema foi o vento. Uma grande nortada. De tal modo que não me atrevi a ir ao molhe, não fosse o Eolo confundir-me com uma gaivota e enviar uma rajada que me pusesse a voar. Pode ser inimaginável eu voar, mas aos deuses, ao contrário dos homens, tudo é possível. Timorato, não arrisquei e mantive-me longe das águas. Um sopro esfuziante saía da boca do deus. A língua tem mais segredos que qualquer Estado onde tudo é segredo de Estado. Como é que a palavra esfuziante significa deslumbrante ou muito alegre e tem na sua raiz a palavra fuzil? Sim, fuzil, de onde fuzilar. Esfuziar significa zunir ou sibilar como balas de espingarda. Era isso mesmo que a nortada fazia aos meus ouvidos. Daí, estar esfuziante, embora eu não achasse a situação nem deslumbrante nem alegre. Também o termo esfuzilar combina em si significações díspares, para não dizer disparatadas. Significa fuzilar e cintilar. Há na língua sinais de uma realidade tétrica que nós nem damos por isso. Que coisas terríveis terão acontecido para que fuzilar seja uma coisa cintilante, se não mesmo deslumbrante? É evidente que se se consultar a palavra fuzil encontramos um caminho para explicar tudo isto. Significa espingarda, mas também relâmpago. As balas saídas das espingardas relampejam, cintilam. As emissárias da morte têm tanta luz que deslumbram. O melhor é não olhar para elas.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Graças à auto-ajuda

Uma grande aventura. Quando abri o ficheiro Word onde escrevo estes textos deparo-me com uma mensagem desagradável, talvez como protesto às coisas parvas que nele estão escritas. Em resumo, ficheiro corrompido. Quase seiscentas páginas ditirâmbicas para o lixo. Entreguei-me à navegação na rede em busca de conselho para recuperar o graal perdido. Tentei múltiplas mezinhas, segui conselhos até onde nunca suspeitei ser capaz de ir. Cogitava que para ter todos os textos num único ficheiro teria de os copiar um a um do blogue. Só de pensar nisso sentia-me indisposto. Voltava para a internet em busca de salvação, mas depois de muitos esforços não encontrei salvador. Contrariamente ao que muitas pessoas crêem, não existem salvadores ao virar da esquina. Muito se fala de corrupção neste país, mas sabem lá as pessoas o que é a corrupção de um ficheiro. Desiludido com a corrupção e a ausência de salvadores e salvação disponíveis, entreguei-me à auto-ajuda. Peguei no ficheiro corrupto, porque corrompido, e coloquei-o na drive da conta Google. Mandei-o abrir e ele obedeceu de forma muito estranha. Um pano de fundo negro, a confirmação do mau presságio, de onde ressaltavam as páginas brancas com o texto. Pensei que agora seria fácil. Era só mandar abrir em Google Docs. Assim fiz. Recebi uma mensagem com os seguintes dizeres: Não foi possível abrir o ficheiro. Experimente actualizar a página. Cumpri, como quem paga uma promessa, mas não se compadeceu de mim. Pensei em seleccionar todo o texto e copiar, depois colá-lo-ia noutro ficheiro. Em vão. Para aliviar a consciência, mando transferir o ficheiro que estava em fundo fúnebre. Dá-se a transferência. Vou tentar abri-lo, pensei, sem grandes esperanças. Ah… narrador de pouca fé. O ficheiro abriu-se graças à auto-ajuda. É nele que escrevo mais esta aventura que faz parte de uma gesta superior às cantados pelos sábios gregos, troianos e mesmo àquele em que o herói é o peito ilustre lusitano, para rimar com troiano.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Mudança de ritmo

O tempo de férias desliza com rapidez, como se fosse um enxame incandescente, brilhando contra a paisagem soturna dos dias úteis, como se uma febre relampejante o tocasse em direcção ao nada. Não tarda e tudo estará consumado. As minhas netas foram-se há pouco embora, outra estação de férias as espera noutro lado, deixando por aqui uma fenda. O dia está enovoado, mas quente. Há muita gente nas ruas, pois o dia da Assunção da Virgem ainda é feriado, embora para a generalidade das pessoas, das que não estão de férias, não tenha qualquer significado religioso, a não ser, este ano, o do culto dos fins-de-semana prolongados. Cada época terá a sua religião, e a nossa, uma época politeísta, tem imensos cultos a múltiplos deuses, todos eles pouco divinos. Hoje de manhã, na caminhada com que costumo abrir o dia, já se via gente nas praias. Ainda não seriam autênticos banhistas, mas pessoas que aproveitam a manhã ainda criança para caminhar junto à beira-mar. São caminhantes marítimos, um estatuto a que me furto, pois a inclinação do chão, ainda que a areia esteja molhada e dura, torna o andar desagradável. O corpo desequilibra-se, e quando o corpo perde o equilíbrio, a cabeça não fica melhor. Agora, vou habituar-me à ausência das netas. Muito fácil é a presença tornar-se um hábito, mas a falta exige trabalho e afinco. Há que mudar o ritmo.

domingo, 14 de agosto de 2022

Estranhamento

O mundo anda tão às avessas, e gastar o tempo com estes escritos é atitude de um autêntico alienado. Disseram-me isto com tom reprovador. Fiz notar que não tinha paciência para a reprovação e para moralismo de ocasião, mas concordei no tema da alienação. Só aquele que se estranha a um certo ambiente se pode livrar dele. Para aqui não quero trazer manifestações desse material que constitui a essência da História, se é que a História tem uma essência. Esse material é a paixão pelo poder, a mais autêntica das paixões humanas. Contrariamente ao que muitos pensam, a paixão pelo poder não é uma manifestação da natureza alfa de certos machos ou fêmeas da nossa espécie, o que estaria no âmbito da Biologia e da Química. A paixão pelo poder tem uma natureza metafísica e pretende uma transubstanciação. O macho alfa ainda é um animal como os outros, mais forte. Ora, a paixão pelo poder manifesta o desejo de deixar de ser um membro do rebanho para se tornar pastor e transportar consigo o cajado, esse símbolo de pertença a uma outra realidade. Um pastor não é uma ovelha ou um carneiro. A caracterização do poder como pastorado foi descoberta há muito, ainda antes da era cristã, e pensadores eminentes dedicaram-lhe a sua atenção. Por vezes, corre a ilusão de que o poder não é o lugar do pastor, pois não há rebanho, mas uma associação de homens racionais e livres. Chega-se a falar em contrato. Basta, porém, dar alguma atenção aos seres humanos para perceber a ilusão e que haverá sempre, enquanto existir a espécie humana, lugar para a paixão pastoral. É esta paixão que não me interessa, a não ser como espectáculo. Por norma, comédia, mas, por vezes, tragédia. Sou um narrador alienado, isto é, que se estranhou à mais humana das paixões. Foi isto que me ocorreu neste segundo domingo de Agosto, um tempo em que deveria pensar em não pensar em nada, entregando o corpo aos raios solares e ao ritmo benfazejo das ondas. A verdade é que não somos senhores do nosso caminho e muito menos do caminho que os pensamentos que existem dentro de nós decidem tomar.

sábado, 13 de agosto de 2022

Uma nova ciência

Por aqui, chegado o fim-de-semana, a internet entra em modo de repouso, variando entre o esmero da lentidão e a insurgência da recusa. Com a chegada de veraneantes e surfistas de fim-de-semana, as operadoras, com a habitual desatenção com que regem os direitos dos consumidores, esperam que sábado e domingo passem depressa e que ninguém as aborreça. Consta que mesmo a concorrência não é motivo suficiente para reforçar o sinal nas zonas de veraneio, ou pelo menos nesta, onde, por razões que nada têm a ver com o amor ao Verão e à praia, me encontro. Comecei o dia com uma caminhada, que incluiu entrar pelo mar dentro, por cima de um molhe, claro. O princípio de toda a ciência dá-se com o processo de classificação. Elaboram-se taxionomias, para depois se desenvolver o aparato teórico, fundamentalmente, conceitos, e, mais tarde as técnicas experimentais e as de matematização, se for o caso disso. Recordo isto, pois também eu, nestas caminhadas, estou a começar a construir uma taxionomia das pessoas que se dedicam a armazenar pontos cardio, aqueles cuja acumulação a OMS assevera que há-de prolongar a vida. Existem três grandes classes de pessoas cardio-acumuladoras. As que o fazem de bicicleta, as que o fazem através da corrida e as que acumulam pontos andando. Nos ciclistas já descobri duas classes, aqueles cujas bicicletas têm campainha e aqueles cujas bicicletas não a têm. É uma classe difícil de observar, pois desloca-se a grande velocidade. Também nos que correm detectei duas classes. Os que o fazem com garbo e aqueles que parecem arrastar o corpo como se fossem morrer na próxima curva. Quanto aos que caminham, onde me incluo, parecem ser uma massa indiferenciada, a escória dos cardio-acumuladores. Talvez, com mais uns dias de observação, também nestes intocáveis da cardio-acumulação consiga distinguir subclasses. Agora, vou tomar café e descansar. É esgotante dar origem a uma nova ciência.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Fora dos eixos

Sento-me e passo os olhos pelas notícias online. Descubro que Salman Rushdie foi atacado em pleno palco quando se preparava par dar uma palestra. Não se sabe em que estado está o escritor. A fatwa que o condenara à morte devido ao que escrevera no romance Os Versículos Satânicos tinha sido levantada no final dos anos 90 do século passado. Nos dias que correm, o fanatismo entrincheirou-se em três campos, qual o deles o mais sujeito às paixões plebeias. A religião, a política e o futebol. Para qualquer fanático, a crença que o alimenta tem mais valor que a vida, seja de uma ou de muitas pessoas. O fanatismo é uma forma de energia que alimenta as máquinas de violência que são os homens. Que se me perdoe esta diatribe. Tinha eu pensado em não trazer estes assuntos para aqui, falar só de coisas estivais, mas, para dizer a verdade, também o Verão é uma forma de fanatismo, um fanatismo climático. Hoje a temperatura, mesmo aqui, está fora dos eixos. O mundo, parece-me, está fora dos eixos. Apesar disso, bocejo e acho que me encostar em qualquer lugar fresco e fingir que estou a ler. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Uma questão de opinião

Bem podia começar este texto contando o inusitado pedido de opinião que me foi solicitado por uma amiga. Omito, por pudor, o pedido, embora possa acrescentar que dei a opinião, embora não propriamente a minha. Há muitos anos ouvi uma história, embora não tenha qualquer prova de que seja verdadeira, apesar de quem a contou me merecer toda a credibilidade. Verdadeira ou falsa, nunca a esqueci. Num banquete, o filósofo alemão Georg Friedrich Wilhelm Hegel, uma eminência na altura, estava sentado ao lado de uma princesa russa. Esta, talvez movida por necessidades protocolares, tentou entabular conversa com o professor Hegel, perguntando-lhe, não sem inocência, como ia a sua filosofia. O filósofo não se fez rogado e respondeu-lhe: Alteza, aquilo que a minha filosofia tem de meu é o que não presta. Levado pela memória desta lição, respondi dando a opinião, mas tentando extrair-lhe tudo o que fosse meu. Analisei o caso a partir de considerações morais, tanto consequencialistas como deontológicas, bem como do ponto de vista teológico, metafísico e estético. Evitei qualquer consideração de carácter técnico, já que o pedido incidia sobre uma intervenção no corpo, para concluir que ela deveria fazer o que muito bem entendesse. Nisto, porém, há qualquer coisa de meu, uma crença, talvez injustificada, no livre-arbítrio. Imagino, agora, a princesa russa a fazer o mesmo pedido – embora, o caso na altura, devido ao atraso da medicina estética, não se pusesse – ao professor Hegel. Será que ele evitaria dar a sua opinião? São estes dilemas que me atormentam nestes dias de sol, enquanto oiço as minhas netas a conspirarem contra a ordem instalada na casa.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

A minha praia

Gosto de certos escritores e pensadores que não são nada palatáveis num mundo que vive de praticar a exclusão como modo de sobrevivência. As suas opções não literárias, muitas vezes, são-me estranhas, senão mesmo antagónicas. Isso, porém, não me afasta deles. Dois exemplos. O escritor Knut Hamsun e o pensador contra-revolucionário Joseph de Maistre. Se, enquanto narrador, me fosse permitido expressar opções políticas, nunca seriam, nem de perto nem de longe, as deles. Contudo, isso não lhes elimina o talento. Autor que estará na mesma categoria é o alemão Ernst Jünger. Gosto bastante dos seus romances. Em Eumeswil, escreve o seguinte: A crítica de Vigo ao espírito do tempo é tão cifrada que resulta de difícil compreensão. Vigo é um professor de História. Não é de excluir que o autor se tenha inspirado no nome da cidade galega para nomear esta personagem. O que me interessa, todavia, é a natureza cifrada da crítica ao espírito do tempo. Porventura, criticar o espírito de uma certa época só poderá ser feito numa linguagem que a época não reconhece e, por isso, se torna cifrada. Se uma crítica ainda e compreensível, então ainda está submetida ao espírito da época. Não será, na realidade, uma crítica. Por isso, este narrador não é um crítico do Zeitgeist. Pelo contrário, é alguém que se banha nele, como outras pessoas o fazem no mar. A cada um a sua praia, e a minha é a da banalidade do quotidiano. Um exemplo? O uso, no início deste texto, da horrível palavra palatável. 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Do bocejo ao sono

Sinto que hoje começaram, de facto, as férias e parecem já estar a acabar. Um almoço tardio e, para vergonha minha, uma sesta na cadeira em frente ao computador até acordar maldisposto. Passada a indisposição, folheio um dos livros que trouxe, pois não há férias se não se trouxer um carregamento de livros em que não se há-de tocar. Uma questão de tradição, da qual, seio-bem, não sou o único participante.  Antes do autor dedicar a obra a Sua Excelência / Senhor de Struensee / Ministro privado do Estado Real da Prússia / e cavaleiro da Ordem da Águia Vermelha, consagra umas linhas ao Esclarecimento provisório do título. Perguntei-me, de imediato, quando o esclarecimento do título passará a definitivo. São estas pequenas incongruências que me animam o espírito. O título e o autor, em si mesmos, são para o caso irrelevantes e o assunto é tão maçador que nem em férias merece que se lhe dê atenção, mas é necessário trazer, de modo equilibrado, obras que raptam o espírito e obras que trazem o sono. Porquê estas últimas? A resposta é simples. Para o caso de, depois de almoço, o sono não chegar, basta começar a folhear um desses livros. Só a capa faz logo bocejar. Todas as coisas têm o seu lugar na ordem do mundo e até mesmo na desordem.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Uma derrota para a ciência e a indústria

Por vezes, temos desagradáveis surpresas e, ao mesmo tempo, descobrimos que o mundo se regula por estranhas leis que a ciência desconhece. Uma pessoa compra um livro e coloca-o numa estante. Mais tarde o lerá. Passam meses, anos, décadas. No dia em que pega nele para, finalmente, o ler, é confrontado com o insólito acontecimento de as letras do livro terem, com a passagem do tempo, encolhido. Quando o comprou, disso tem a certeza, as letras eram legíveis, tinham maior dimensão, bem apropriada para os olhos de leitores humanos. Por pouco que se interesse pelas ciências que estudam as leis que regulam o mundo físico, haveria de ter notícia de alguma que explicasse a razão pela qual, com o passar dos anos, as letras impressas – ou, pelo menos, algumas – vão diminuindo. Algum fenómeno químico haverá para que as manchas negras de tintas num papel mais ou menos branco se vão reduzindo no tamanho com o passar do tempo. Essa diminuição não parece ser paulatina. Durante muito tempo não se dá por nada, mas depois o encolhimento torna-se progressivo e avassalador. Tudo isto põe em causa duas das nossas mais sagradas instituições, a ciência e a indústria. A ciência – talvez a Química – ainda não foi capaz de oferecer uma lei que explicasse o fenómeno, tão pouco ofereceu uma hipótese sobre a composição química das tintas com que se imprimem os livros e que faz, com o passar do tempo, que as letras sofram uma retracção no tamanho. Este fiasco da ciência natural pode ser aproveitado pelas pseudociências que oferecem especulações que calam fundo na alma dos leitores. Por exemplo, a Alquimia poderá propor que o problema está no facto de nas tintas existir chumbo e os impressores não conseguirem transformá-lo em ouro, um metal mais nobre e que, por certo, não quereria depreciar-se, mantendo o tamanho próprio para olhos humanos. O chumbo, infeliz por não se nobilitar, está por tudo e, com o tempo, encolhe-se de vergonha. Também a Astrologia terá muito a dizer sobre este inusitado fenómeno. A conjugação astral em que é feita a preparação das tintas pende sobre o destino das letras. E um astrólogo avisado recordará ao leitor que nem todas as letras impressas encolhem, como poderá constatar abrindo diversos livros. As que encolhem são as que foram produzidas sob uma nefasta conjugação dos astros. É assim que o homem comum – e também a mulher comum – desacreditam da ciência e deixam de vacinar os filhos. Não menos humilhante é o que se passa com a indústria, com a inovação de processos e o controlo de qualidade. Como é possível que imprimam livros com tintas que ameaçam encolher tanto que até podem deixar as páginas em branco? E se depois da morte de Deus, temos de desacreditar da ciência e da indústria, o que fica para merecer a nossa fé? Esta longa meditação ocorreu há pouco quando, peguei no romance Senilidade, de Italo Svevo, que dormia numa estante quase há duas décadas, e disse é agora, neste Agosto, que o vou ler. Abri-o e qual não foi o meu espanto quando constatei que as letras tinham minguado dramaticamente, que as linham eram pouco mais do que traços uniformes e paralelos. Não compreendo a razão por que se insiste em produzir livros para olhos não humanos. Talvez os editores acreditem na história contada por Anatole France em A Revolta dos Anjos, na qual o anjo da guarda de Maurice Esparvieu, cansado da sua função, decide estudar de fio a pavio a biblioteca da família Esparvieu. E como todos nós sabemos, os anjos conseguem ler até em textos com letras de dimensão infra-atómicas. É este um dos seus poderes. É possível que os editores estejam a trabalhar para a eternidade, imprimindo livros com letras que só os anjos podem ler.

domingo, 7 de agosto de 2022

Um domingo

Por preguiça, decidi ir almoçar ao bar da esquina. O domingo tinha entrado por ali dentro sem pedir licença a ninguém, nem ao proprietário. Não me refiro a qualquer domingo, mas a um muito especial, ao domingo de província sob efeitos do calor. É um dia que se torna lento e as pessoas que estavam no bar, talvez também elas tomadas pela preguiça, entregavam-se com demora inusitada à restauração das forças. Cumprida a função, saí e rapidamente cheguei a casa. Agora, sentado no escritório, janelas fechadas, oiço a música mais adaptada que poderia imaginar para o meu estado de espírito dentro do espírito do dia. Um álbum de 1999 da Deutsche Grammophon chamado Après un rêve, onde o violoncelista letão Mischa Maisky acompanhado pela pianista francesa Daria Hovora interpretam peças de múltiplos compositores franceses. O casamento do violoncelo e do piano cria um ambiente onde quem escuta facilmente se deixa levar por uma doce rêverie, sentindo a música deslizar dentro de si, como se fosse uma carícia delicada. Não há o arrebatamento das grandes paixões, a exaltação do ânimo, mas a leve melancolia que acompanha todos os grandes amores. Mesmo numa peça com o nome de Extase, de Henri Duparc, não existe qualquer sinal de euforia, mas de uma grande contenção, como se a intensidade do espírito e da vida interior exigisse a mais vincada serenidade exterior. É a esta serenidade que entrego o meu domingo de província.

sábado, 6 de agosto de 2022

Irritações ortográficas

O Word está a irritar-me. Não quer que escreva Agosto com maiúscula, apesar de estar na versão de pré-acordo ortográfico. Dada a minha natureza anacrónica – para não dizer intempestiva – regulo-me, no caso dos nomes dos meses e das estações do ano, pelo Tratado de Ortografia, de Rebelo Gonçalves, publicado em 1946. Eu sei que o tempo passa, o mundo transforma-se, que tudo é composto de mudança. Apesar de saber tudo isso, não gosto de ver tratados meses e estações do ano tu cá, tu lá, como se tivéssemos andado todos na escola ao mesmo tempo. A principal razão que me move, porém, é estética. A letra maiúscula em Agosto introduz uma ruptura na continuidade da linha, dando-lhe um ponto a partir do qual o olhar se organiza para tirar prazer visual do texto. Escrever agosto acentua a monotonia com que as letras minúsculas se seguem umas às outras, como formigas num carreiro. Estava eu a escrever estas meditações estéticas quando sou surpreendido, mais uma vez, pelo Word e descubro que deve sofrer de um distúrbio do foro psíquico. Explico. Se escrevo Agosto, ele sublinha a azul e recomenda grafar com minúscula no início. Se, porém, escrevo agosto, ele assinala erro, sublinha a vermelho e sugere que se escreva com maiúscula. Como é possível eu escrever alguma coisa com nexo, se utilizo um processador de texto que sofre destas patologias. Só não me sinto preso num círculo infernal, porque há muito decidi que Agosto só o é se for escrito com a inicial maiúscula. Qualquer leitor, apesar de bem-intencionado, não deixará de pensar que estou sem assunto, como acontece tantas vezes. Uma ilusão, pois estava fisgado num comentário a uma frase de uma especialista em finanças pessoais. A senhora, na sua bondade, informa que por cada dia que temos o nosso dinheiro parado estamos a empobrecer. Vinha explicar um método para enfrentar o empobrecimento. Em resumo, seria pegar no dinheiro todo que se tem parado, pô-lo dentro do carro e andar com ela para a frente e para trás. Mesmo que o pobre dinheiro enjoe ou se canse das idas e voltas, não se deve parar. A terapêutica para a pobreza era boa e merecia uma reflexão mais profunda, mas o Word intrometeu-se, irritou-me e contribuiu para que não me candidate ao Nobel da Economia.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Da indiferença

Os dias, por agora, apresentam-se nublados pela manhã, o que permite que um ar fresco invada a casa e a arrefeça. Depois, com a partida de nuvens e neblinas, chega o calor. A tarde torna-se difícil. Ir à rua é um exercício penoso. Saí, para fazer uma visita, que é sempre um choque. A cidade estava tomada por uma lenta melancolia. As sombras, a essa hora, ainda eram escassas, as pessoas andavam afogueadas, como se o calor lhes desse uma energia suplementar, para rapidamente encontrarem um abrigo. Tílias, acácias e castanheiros, porém, estão ainda de folhagem exuberante, indiferentes ao penar dos humanos. Por muito que custe ao nosso narcisismo, os outros seres do universo ostentam, para connosco, uma olímpica indiferença, a não ser que a nossa acção os perturbe ou algum predador esfaimado necessite da nossa carne. Por vezes, existem excepções, mas estas servem apenas para confirmar a regra da indiferença que reina no universo. O Sol, por exemplo, não quer saber de nós para nada, nem sequer sabe que existimos ou que ele próprio existe. É indiferente aos outros e a si mesmo. O universo não passa de um concerto de indiferenças, com vários andamentos. Será isso a música das esferas celestes. Foi isto que eu disse, com tom sério, à Lu, a irmã da Marília, que há muito tempo não via. Não se pense, porém, que enlouqueci – ainda será cedo – para estar com esta conversa vinda do nada. Por vezes, a Lúcia – daí chamarem-lhe Lu – sofre de algumas alucinações sobre a bondade do mundo, em geral, e da espécie humana, em particular. E como fui dotado, à nascença, de um espírito de contradição, sempre que oiço certas coisas, ainda por cima ditas com veemência, como o foram, apetece-me, de imediato, provar o contrário. O que vale é que nos conhecemos há muito e fazemos da condescendência mútua uma forma de não indiferença, talvez mesmo de amizade.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Questões de estilo

Tarefas urgentes, embora não ingentes, chamaram-me ao remanso do lar, com um corte no fio das férias. Cheguei aqui e encontrei o Verão, que, por lá onde eu estava, se tinha perdido. O encontro, todavia, não foi coisa que me agradasse. Oiço em mim uma voz dizer, não sem escárnio, que não deveria ter escrito, tão avizinhadas, as palavras urgentes e ingentes. Isso, essa repetição sonora não se coaduna com a limpeza da prosa. Estraga o estilo e o estilo, como há muito se sabe, é o próprio homem. Rimas, assonâncias e aliterações são truques de poesia. A prosa quer-se limpa de repetições. Pois, respondi a mim mesmo, acrescentando: de facto as tarefas são urgentes, mas não ingentes. Se acreditarmos no conde de Buffon, o estilo é a expressão do indivíduo e do seu carácter. Podemos pensar: um mau estilo, um mau carácter; um bom estilo, um bom carácter.  Ora, o que acontece é que excepcionais estilistas são dotados de péssimo carácter e vice-versa. O melhor é não acreditarmos no conde, fruto de uma época que estava subjugada pela descoberta do indivíduo. James Ussher, arcebispo de Armagh, publicou no século XVII uma obra – The Annals of the World – em que determinava, através da análise bíblica, que o mundo tinha sido criado por Deus 4004 anos antes de Jesus Cristo. Ora, Bouffon, a partir das suas experiências laboratoriais, defendeu ser isso impossível. A Terra teria, na altura, 75 mil anos. Há uma diferença substancial entre o erro de Ussher e o de Bouffon. O primeiro procurou no lugar errado. O segundo abriu o caminho para a descoberta da verdade. Essa diferença não tem a ver com o estilo, mas com o lugar de onde e o lugar para onde olham. Ora, esses lugares de onde se olha são muito mais que a cabeça do indivíduo que olha. São comunidades onde se juntam olhadores para orientarem os olhos numa certa direcção. Agora, vou-me dedicar à urgência das tarefas não ingentes.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Capitais e Dias

Hoje, Dia da Melancia, passei pela Capital da Onda. Não bastavam os dias disto e daquilo, este pobre país sofre de uma outra doença grave. Se não mortal, pelo menos, crónica. Agora, não há terra que não seja capital de alguma coisa. Espanta-me, mas não devia espantar, que os idólatras das povoações elevadas, por eles, à categoria de capitais não percebam o ridículo que é afirmar-se como capital do capilé, do caracol, da castanha pilada ou do papo-seco. Conseguimos, ao transformar cada cidade minúscula ou vilória esquecida em capital de qualquer coisa, cobrir o país de ridículo. Por outro lado, esta ânsia de capitalizar evidencia a inveja que se tem da verdadeira capital. Ah… os lisboetas têm a capital do país, mas quem são eles? Nós também somos capital, até mais importante, pois somos a capital do pêlo púbico e não há no mundo nada mais importante que os pêlos púbicos, que também hão-de ter o seu dia, se não o tiverem já. E não há coisa que o pêlo púbico mais deseje do que se tornar público na comemoração da data que lhe é consagrada. Onde me encontro há um ditado. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Estou há três dias em pleno Inverno, o que não me desagrada, mas também não me inspira para escrever estes textos, que, em verdade vos digo, não valem um pêlo púbico.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Criações e heresias

O romance Os Suicidas, de Antonio di Benedetto, começa com a frase O meu pai acabou com a própria vida sexta-feira à tarde. Acaba com uma outra mais curta: Assim se nasce. Isto é quase tudo o que sei desse romance. Este não é outra coisa senão o texto que liga a primeira à última frase. Também é a sequência lógica – ainda que seja ilógica – que vai de uma premissa a uma conclusão. É possível que esta sequência escolhida por di Benedetto explique a razão por que nenhuma vida, por mais interessante que seja, dá um romance, apesar de não faltar gente a jurar que a sua vida dava um romance. Não dava. Façamos uma experiência e alteremos levemente as frases do autor, ouvi e assenti. A primeira diria o seguinte: O meu pai nasceu sexta-feira à tarde. A outra rezaria: Assim se morre. Esta sequência é lógica. Começa com o nascimento e acaba com a morte, tal como a ordem natural das coisas. Ora, aquilo que faz do romance um romance é não se submeter à ordem natural das coisas. Subverte essa ordem, ao mesmo tempo que cria no leitor a ilusão de que o não faz. É possível que por detrás de todo o trabalho artístico se esconda um problema teológico, uma revolta contra a ordem criada das coisas. Todos os criadores serão verdadeiros heresiarcas. Tudo isto contou-me hoje no café o padre Lodo, na longa conversa que tivemos. A não ser, acrescentou ele, que se veja no acto da criação divina uma revolta contra a inexistência e o nada. Nesse caso, aqui o meu amigo jesuíta riu-se, os artistas seriam os únicos seres humanos autenticamente ortodoxos, e pessoas como eu hereges, já que me falta talento para criar heresias e me tornar um autêntico heresiarca.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Memórias

Eu pensava que era um programa de férias já acabado. Ir a um café numa praça onde existe um parque infantil. Durante anos, enquanto as minhas netas eram crianças, era uma alternativa à praia, caso o dia não estivesse propício, ou uma ocupação do pós-praia. Agora, que são decididamente adolescentes, pensei que não queriam lá ir. Puro engano. Querem ir ao café e, vergonha minha, ao parque. Sugeri que talvez não tivessem tamanho adequado ao parque. Não interessa, responderam, vamos lá ver para recordar. Lá terei de ir com elas. O que me espantou foi o papel da memória ser já decisivo em altura tão precoce. Vão lá apenas para recordar outros Verões. Não me lembro se também eu fui assim. Haverá, depois, um momento de rasura das memórias, como se cada um tivesse necessidade de limpar espaço no disco rígido para acumular novas informações, para depois, paulatinamente, os ficheiros apagados irem sendo recuperados mesclados de nostalgia. Um dia dirão: vínhamos aqui com os avós e brincávamos a isto e àquilo. Nesse dia, os avós já não estarão presentes, mas, de alguma maneira, terão feito o seu trabalho.