terça-feira, 29 de novembro de 2022

Sapiens sapiens

Não sei o que será pior, se um dia sem nada para contar ou a falta de vontade para inventar alguma coisa para narrar. Tendo adquirido um gadget novo, tenho passado os tempos livres preso à experimentação para descobrir como funciona. Todas estas coisas tecnológicas prometem muito mais do que aquilo que se dispõem a cumprir. Talvez porque a realidade as teme e lhes resiste, negando-se a dobrar a cerviz ao génio inventor da humanidade. Como todos sabemos, a espécie humana lá vai levando a água ao seu moinho, dobrando as coisas ao desejo, mas estas, depois de serem derrotadas pelo engenho do sapiens sapiens, conspiram e vingam-se. Decidem funcionar mal, se esperamos grandes desempenhos. Funcionam bem, demasiado bem, se pedimos para que não funcionem. Ocorreu-me que somos uma espécie curiosa. Não apenas descobrimos a existência de múltiplas espécies, como damos nome a cada uma delas e à nossa. Para nós, claro, escolhemos o mais elevado, homo sapiens sapiens, o que sabe o que sabe. Esta designação contém uma dilatação ao infinito. Nós não somos apenas o homo que sabe o que sabe, mas também o que sabe que sabe o que sabe, e assim por diante. Tudo isto significa que não apenas desejamos saber, mas queremos ter um saber infinito, porventura, a omnisciência. Em resumo, presunção e água benta, cada qual toma a que quer. Esta é a segunda máxima ao gosto popular. Já chega.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Herança

A luz cai sobre a cidade, lembrando aos mais distraídos que a tarde ainda não acabou. Na avenida, passa gente sem pressa, pessoas atreladas a pequenos cães, carros sem destino visível. A luz desmaiada do sol resplandece nas paredes do hospital e da escola aqui ao lado. Um cão solitário fareja os troncos das árvores, os pneus dos carros, os postes da iluminação eléctrica. Hoje, na busca de uns velhos papéis, encontrei um volumoso envelope castanho com três cadernos manuscritos. Não me pertencem, eram de Eduína. Recordei, ao vê-los, que ela me pedira para os guardar, até que os tornasse a requisitar. Assim fiz, mas ela nunca os pediu de volta e agora é tarde para o fazer. Esquecera-me deles e não faço ideia do seu conteúdo. Imagino que, nesta hora, já não serei o fiel depositário, mas o herdeiro. Um herdeiro acidental, fruto de não haver herdeiros directos nem indirectos. Quando peguei naquele embrulho fiquei perplexo e ainda não sei o que fazer com ele. Não me lembro qual foi a razão para que ela me pedisse para guardar os manuscritos, nem se terá dito alguma coisa sobre o seu conteúdo. Ela nunca deixara de ser esquiva, pelo menos quando isso a interessava. Um dia destes terei de tomar uma decisão sobre o que fazer com aquela herança ocasional. Agora, tenho de me preparar para uma videoconferência. Pelo menos, fico com a certeza de que estou integrado no admirável mundo novo. Não sou um digital nato, mas ainda consigo que me tomem por alguém adaptado às novas tecnologias. Se tivesse paciência, haveria de ver um jogo de futebol, mas este perdeu o encanto que um dia, há dezenas de anos, teve. E não me parece possível que possa ser reencantado. Também os mitos morrem.

domingo, 27 de novembro de 2022

Juízos e paixões

O domingo galopa para o seu fim. Entrou já no túnel negro da noite. Quando, pela aurora, voltar a luz, será a claridade de um outro dia. A casa está agora silenciosa, depois de as netas se terem ido embora. Ecoam ainda as risadas, mas são já pura memória. Ontem, elas tiveram infinita paciência para ele, para brincarem com o novo robot chegado há dias com os quatro anos. Conjugar adolescência e infância nem sempre é uma tarefa fácil. Avanço, com alguma preguiçosa lentidão, na leitura da obra do Marquês de Custine sobre a Rússia. Pus de lado a edição portuguesa, pois está amputada de um quarto das cartas, e leio em francês, a edição de 1843, graças à actividade benévola de quem põe em formato digital as obras caídas no domínio público. Na quinta carta sublinho Um juízo são é a recompensa das paixões reprimidas. Eis uma observação que os nossos dias não poderiam aceitar. A repressão das paixões teria um impacto patológico. Devemos ser compreensivos e aceitar a natureza humana tal como ela é, incluindo o seu carácter passional. A contrapartida, caso se aceite a máxima de Custine, será a ausência de sanidade dos nossos juízos. Talvez a nossa época imagine, caso as épocas imaginem seja o que for, que seja possível compatibilizar a clareza do juízo com uma gestão das paixões. Em vez da sua repressão, teríamos um exercício burocrático de administração passional. Custine pertence ainda a uma cultura que, do ponto de vista teórico, mas não prático, vê em qualquer paixão um princípio de desordem. Reprimi-las é trazer a ordem ao caos que habita no fundo tenebroso de cada ser humano. E será essa ordem, resultado do cultivo de certas virtudes, que permitirá a sanidade dos julgamentos, um discernimento claro e distinto. Oiço o Piano Trio n.º 2, de Franz Schubert, e sei que todos estes pensamentos se desvanecerão.

sábado, 26 de novembro de 2022

Pousio

Daqui a pouco chega o meu neto com os pais. As netas já cá estão desde ontem para sessões de trabalho contínuo com a avó. Consta que vão ter avaliações de Matemática. Agora foram sair. Enfim, a escola não faz bem a ninguém, embora existam coisam que, apesar do mal que sabem, acabam por ser boas. Tal como certos medicamentos. Este blogue esteve em pousio uns dias. Pousio é um termo do mundo agrícola. Traz com ele uma promessa, a de a Terra se regenerar e tornar mais fértil. Duvido, porém, que a analogia chegue até aí. O blogue tem poucas possibilidades de regeneração e é certo que a escrita não se tornará mais fértil. Há muito que não fazia uma caminhada. Fiz hoje. Embora não tenha qualquer prova de que tenha contribuído para a minha regeneração e fertilidade, senti a sensação agradável do ar frio, mas não em demasia, no rosto. Enquanto andava, ao final da tarde, pensava que estes são os dias mais magníficos do ano. Um dia de sol e de frio. São um sinal de uma presença daquilo que é arcaico, embora este arcaico se resuma ao meu arcaico e não ao da espécie. Em vez de pousio estive para escrever interregno, mas há que ser modesto. Estes escritos não representam reino de coisa nenhuma. Imagino mesmo que serão escritos republicanos, mas isto não diz nada, pois há monarquias que são efectivas repúblicas. Este assunto, todavia, está-me vedado, apesar de me ser permitido ler um poema de Horácio que é um panfleto contra a ascensão social de um ex-escravo. O Epodo 4 começa assim: Entre lobos e cordeiros não tão grande inimizade calhou em sorte / como aquela entre mim e ti, / tu, que tens os lombos queimados pelos açoites da Ibéria, e as pernas marcadas por durões grilhões! Não contente, acrescenta: Embora andes por aí a pavonear a tua riqueza, / a fortuna não muda o berço. Horácio deveria saber que a Fortuna é deusa caprichosa e se não muda o berço, pode muito bem mudar o leito.

domingo, 20 de novembro de 2022

D. Carlo

Como ontem tive de ir a Lisboa, cumprir com grande prazer a obrigação de avô, hoje saí para ir às compras. Dei uma volta pela cidade. Pareceu-me mais sombria do que habitualmente, as pessoas estavam de semblante carregado, como se temessem a aproximação do Inverno. Registei alguns quadros humanos que me fizeram lembrar um certo filme italiano, cujo título, por pudor, omito. Tenho estado a ouvir um CD com o título Gesualdo. Uma obra da etiqueta ECM. Apresenta duas peças de Carlo Gesualdo, príncipe de Venosa, uma do compositor australiano Brett Dean e outras duas do estoniano Erkki-Sven Tüür. Gesualdo foi uma personagem tortuosa, não apenas por ter assassinado a primeira mulher e o amante desta, mas também pelos estados depressivos de que sofreu na parte final da vida, na qual se entregou ao sentimento de culpa e a exercícios de punição, tendo contratado mesmo alguém para o açoitar com regularidade. Viveu, contudo, para a música e a sua obra é uma das mais significativas e inovadoras do Renascimento. Werner Herzog fez um filme-documentário sobre o compositor com o título Gesualdo – Death for Five Voices. Talvez a lenda negra que o rodeava tenha contribuído para o seu esquecimento até que o século XX o redescobriu. Desde o início dos anos noventa do século passado até hoje, segundo informa a inevitável Wikipedia, foram escritas pelo menos sete óperas que têm por tema a vida de D. Carlo Gesualdo. A primeira – o drama musical Maria di Venosa – é do compositor italiano Francesco d’Avalos, um descendente de um tio de Maria d’Avalos, a primeira mulher de D. Carlo. A justiça da altura, tendo os homicídios ocorrido numa situação de flagrante delicto, considerou que o príncipe de Venosa não cometera qualquer crime, apesar dos requintes de malvadez que envolveram o acto de vingança. Numa leitura mais suspeitosa poder-se-á pensar que a família de Venosa seria mais influente que a do duque de Andria, Fabrizio Carafa, o amante, e a dos de Avalos. Nestas coisas e naqueles dias, o direito e a força teriam cada um a sua lei. Lembro-me perfeitamente do disco em que descobri Gesualdo. Foi em Tenebrae (1991), em que a música do compositor é interpretada pelo The Hilliard Ensemble. Julgo que queria escrever sobre outra coisa. Perdi-me e agora já não me lembro sobre o quê. Imagino que o cinzento deste domingo me tenha levado ao encontro de D. Carlo. Também dos dias devemos desconfiar.

sábado, 19 de novembro de 2022

Motivos e causas

Um dia cinzento e húmido. É possível que chova, mas não é certo. Ouvem-se já desabafos sobre o excesso de chuva. Ora, as pessoas queixam-se da seca, ora temem o dilúvio. Uma coisa não é incompatível com a outra, mas há que admitir uma certa justiça cósmica. Se há grandes períodos de seca, é aceitável a existência de períodos dilatados de chuva. Contudo, nada prova a existência de uma justiça cósmica e o mais provável é que as coisas aconteçam um pouco ao acaso ou segundo motivações que não conseguimos determinar. É insensato, diz-me um homúnculo que vive dentro de mim, utilizar palavras como motivações para se referir aos acontecimentos naturais. Os acontecimentos não têm motivos, têm causas, acrescenta ele. Se essas causas apresentarem regularidade acabamos por lhes chamar leis. Eu encolho os ombros. O homúnculo, por vezes, irrita-me, mas, por norma, deixa-me indiferente. Se a natureza tem as suas leis, por que razão não haverá de ter os seus motivos? Isso é cair na mitologia, murmura o homúnculo. Que seja, digo. Aos sábados de manhã é necessário reencantar o mundo. Já basta quando chegarem os dias úteis. Nessa hora, a natureza deixa de ter motivos e passa a ter causas e mesmo os seres humanos, sempre tão cheios de motivos, não terão mais do que causas que os levarão a agir para enfrentar a dura necessidade e suprir os desejos naturais e os outros. Na verdade, está um dia cinzento e húmido. As nuvens permanecem indecisas. Conferenciam umas com as outras. Talvez chova, talvez não.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Epitáfios

No livro do poeta Jorge Gomes Miranda, A Última Pedra (2022), existem três breves citações em epígrafe. Uma de Eliot, every poem is an epitaph. Outra de Auden, breaking bread with the dead. Por fim, uma de Genet, offerte à l’innombrable peuple des morts. Fico sempre perplexo com a existência de epígrafes. Parecem funcionar como uma cobertura de autoridade ao que se vai ler. Das três, pelo menos hoje, prefiro a de Eliot. Há nela um critério para separar poemas de não poemas. Se cada poema é um epitáfio, então o que não for um elogio fúnebre não será poema. Poder-se-ia radicalizar a posição de Eliot e afirmar que cada poema é um requiem. Do elogia passar-se-ia para uma função soteriológica da poesia. Em vez do panegírico dos mortos, um pedido de salvação. O conjunto dos mortos – a quem se elogia ou por quem se celebra o requiem – não será composto apenas por seres humanos. Qualquer ser pode desencadear um poema, mesmo os mais insignificantes. Também a classe dos eventos é propícia a que se escreva poemas. É possível, porém, que nem Eliot acreditasse que cada poema é um epitáfio, mas terá achado que a junção das palavras poema e epitáfio compunha uma bela metáfora, que a predicação impertinente de epitáfio ao sujeito poema era um óptimo achado, que a verdade literal do que está dito é irrelevante. Por mim, deveria, porém, falar do poeta português. O quinto e último poema de um pequeno ciclo com o título CEMITÉRIOS diz: A própria terra / se pudesse / usaria máscara. / Protegia-se / de nós. Será que a terra não usa máscara? Pensei. Se a terra não usa máscara, se nos oferece o rosto despido, então para que servirá a poesia? Não é ela o rasgar da máscara com que a terra cobre o rosto? Hoje é sexta-feira. Choveu, ao contrário do que profetizavam os sites meteorológicos. Também eles se deixam enganar pela máscara com que a terra se cobre.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Bom senso

Há conversões curiosas. Por exemplo, a do marquês de Custine. O avô e o pai foram guilhotinados na época do Terror. A mãe esteve presa até à queda de Robespierre. Em 1839, faz uma viagem à Rússia. Vai, segundo diz, em busca de argumentos contra o governo representativo. Volta de lá adepto das constituições, isto é, adversário do absolutismo. Talvez fosse um espírito aberto à aprendizagem e por isso converteu-se. Na tradição cultural que nos forma, a mais célebre conversão é a de Saulo de Tarso, conhecido como S. Paulo. Todas as conversões trazem consigo um perigo, o da substituição de um fanatismo por outro. Não parece ter sido o caso de Custine. Tudo isto vem a propósito de uma viagem pela informação sobre o estado do mundo. Neste, existem convicções a mais e pouca gente com capacidade de se converter ao bom senso. Talvez porque este, segundo afirmava, não sem ironia, Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que possui. Sempre podemos questionar se a nossa época é mais insensata do que as anteriores. Não sei se a insensatez se mantém constante ou se vai variando, talvez de forma cíclica. O que sei é que nunca como hoje os meios para a difundir foram tão grandes e tão poderosos. Pena esses meios não terem qualquer poder para difundir o bom senso. Se as pessoas tivessem a predisposição para aprender, como a teve Astolphe Louis Léonor, marquis de Custine, as coisas por certo seriam menos desagradáveis. Porém, as pessoas assim como não querem ter mais bom senso do que aquele que possuem também não querem aprender mais do que aquilo que sabem. O que vale é que a noite já caiu e há-de trazer consigo o sono, onde tudo isto será apagado. Talvez a realidade também precisasse de um apagão.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Kitsch

Num ensaio de 1939, Vanguarda e Kitsch, Clemente Greenberg sugere que o kitsch é uma forma de arte sintética, na qual o artista digere a arte para o espectador, poupando-lhe o esforço, fornecendo-lhe um atalho para o prazer da arte que evita o que é necessariamente difícil na arte genuína. Este texto constata já a ruptura, nunca mais ultrapassada, entre arte e grande público. O grande público, cada vez mais, espera o que é fácil, aquilo que lhe provoca, de modo imediato, prazer. Os artistas, porém, procuram o difícil. Fazem, de certo modo, da arte um programa de interrogação sobre o real, procuram ir para além das aparências, para esse reino tão adverso à experiência sensível e ao sentimento que procuram rápida satisfação. Também as relações entre as pessoas deveriam ser assim, asseverou-me, um dia, Eduína. No amor e na amizade, não os confundo, acrescentou, devemos apenas buscar aquilo que é difícil, o que se esconde para além das aparências. Respondi-lhe fazendo notar que a imersão nessas paisagens desconhecidas dos sentidos e dos sentimentos não assegura mais autenticidade do que navegar por aquilo que é conhecido, conforta a sensibilidade e exalta o sentimento. O amor e mesmo a amizade serão do domínio do kitsch, vivem da facilidade. Estava a provocá-la. Por isso, respondeu, interditei-me o amor e relativizo a amizade. É a minha forma de mergulhar no difícil e evitar o kitsch na minha existência. Preciso do esforço e este não se compadece com certos estados de alma. Encontrei estas linhas num velho caderno datado de Setembro de 1992. Não se trata de um diário, mas de um registo de coisas que gostaria de não esquecer. Há notas sobre vinhos, indicações sobre livros a ler, resenhas de filmes, descrições de conversas havidas. Uma delas era esta, que se prolongou muito para além do que aqui escrevi.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Meios e fins

S. Pedro foi benévolo com os adeptos de S. Martinho, o que parece mostrar a existência de concórdia entre os diversos santos que se cultuam nesta terra. Passada a efeméride, o gestor – será o CEO? – dos humores climáticos continuou o combate à seca neste pobre país. Ordenou que as nuvens se juntem por cima do território nacional e deixem escorrer a água que as empanturra. E elas, obedientes, desfazem-se da carga. Está um magnífico dia de chuva, embora exista uma contínua oscilação de intensidade. Nas ruas, quase que não se avista vivalma. Tudo recolhido. Hoje comecei o dia com uma daquelas videoconferências cuja finalidade é não possuírem qualquer finalidade, mas cuja importância fundamental todos reconhecem. Somos uma pátria muito curiosa. Não temos fins, mas não regateamos esforços aos meios, embora se desconheça a que fins esses meios devem servir. Há pátrias em situação muito pior. Imaginem-se aquelas que além de não terem fins, também não têm meios. Outras há que estão cheias de fins, mas faltam-lhes os meios. São pátrias infelizes, pois vivem sempre frustradas, como se fossem atormentadas por um desejo muito intenso, mas que não encontram em si potência para o consumar. Não sendo o mais favorável, o nosso caso não é mau de todo. Ao não termos fins, não sofremos a angústia de não os atingir e ainda ficamos alegres porque usamos os meios, fazemos qualquer coisa, embora se desconheça para quê. Isto, escrevi-o antes de almoço. Caso fosse depois, teria opiniões completamente diferentes, pois a opinião é uma coisa variável, e as minhas opiniões variam em conformidade com os ponteiros do relógio. É verdade, o meu relógio ainda tem ponteiros. Sou um anacrónico.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A tentação da profecia

Um bom profeta é aquele que se inibe de profetizar sobre o futuro. Se já é difícil fazer profecias sobre o presente e o passado, mais difícil é fazê-las sobre aquilo que há-de vir. Ocorreu-me tudo isto ao ler um certo pensador que não se eximiu de descrever um quadro de possibilidades e de impossibilidades. Nem as possibilidades se realizaram, nem as impossibilidades deixaram de acontecer. Sobre o que acontecerá nos negócios humanos o mais indicado é manter um prudente silêncio. Ora, a prudência, apesar dos panegíricos feitos em sua honra ao longo dos séculos, nunca foi virtude que se cultivasse. No coração dos homens há uma inclinação para o excesso que os impele para o mar revolto, onde confundem a realidade com as paisagens fantasmagóricas do seu desejo. As acácias da praceta atingiram o ponto em que, nas suas folhas, o amarelo se sobrepõe ao verde, coexistindo ambos numa harmonia que tempo acabará por destruir. Como se vê, também este narrador tem alma de profeta, embora a profecia se funde na observação do carácter cíclico da natureza, o qual não assegura que a profecia se realize necessariamente. Penso muitas vezes que a segunda-feira não é dia propício para escrever, pois raramente me ocorre alguma coisa que valha a pena narrar. Passam das cinco da tarde e os cavalos da noite já galopam na planície. Não tarda, eles ocuparão a cidade que se defenderá das trevas com a luz lugubremente amarelada da iluminação pública. Nova profecia.

domingo, 13 de novembro de 2022

Peroração sem sentido

Fizeram-me, hoje, notar que tenho um comportamento de velho. O caso é simples. Como tinha compras para fazer e ontem não as tinha feito, hoje levantei-me cedo e resolvi o assunto a horas bem razoáveis. Razoáveis para mim, não para outros, claro. Nestas coisas, o perspectivismo e o relativismo são aceitáveis. Noutras, nem pensar. Seria absurdo, por exemplo, aceitar que para uns a Terra pode ter uma configuração mais ou menos esférica e para outros ela ser plana, e que ambos os partidos estariam na verdade, que tudo dependeria da perspectiva. O melhor, porém, é não me meter por estes caminhos, pois são quase tão tortuosos quanto os caminhos da política, se não mais. Está um domingo deslavado de província. Uma luz solar anémica, uma tarde sem fulgor. Nas ruas, passam rumorosos automóveis, passam gentes entediadas, perdidas, sem saber o que fazer destas horas livres. A liberdade sempre foi um grande peso e as pessoas atrapalham-se com ela, trocam mãos e pés e acabam por sentir saudades das cadeias que as prendem à estrita necessidade. Tinha razão Sartre naquela ideia de o homem estar condenado a ser livre. Muitos sentem a liberdade como uma condenação. Reparo agora que o padre Settembrini não me ligou, como costuma fazer aos domingos de manhã. Terei de investigar as causas, pois tudo o que acontece e o que não acontece terá a sua causa. Umas coisas terão causa para acontecer e outras terão causa para não acontecer. Isto significa que existem muito mais causas do que coisas que acontecem. A luz desmaiada do dia está a levar-me por maus caminhos. Será mais sensato continuar a beber o chá de gengibre, sempre me ajudará na digestão dominical, em vez de me entregar a perorações sem sentido. Diga-se, em abono da verdade, que a legião de coisas sem sentido é muito maior que a das coisas com sentido. O telemóvel está a tocar. Não, não é o padre Lodo. É uma neta. O que me quererá ela?

sábado, 12 de novembro de 2022

Coisas de poesia

Tinha encomendado online e fui, há pouco, levantar na Fnac que por aqui existe. Trata-se da tradução da obra poética de Paul Celan, que a Assírio & Alvim deu agora à luz, numa tradução de Maria Teresa Dias Furtado. Tinha lido a crítica, onde se salientava que traduzir Celan é um empreendimento muito arriscado, pois a sua poética implica quase uma reinvenção da língua em que escreveu, o alemão. Descobri que Celan, cujos pais morreram num campo de concentração nazi, se envolveu amorosamente, numa relação tensa, com a escritora austríaca Ingeborg Bachmann, cujo pai pertenceu ao partido nazi. Imagino que o antagonismo das origens terá desencadeado a centelha que os aproximou, mas isso é já colocar um motivo extrínseco à paixão que Eros neles terá incendiado. Voltando à tradução e não pondo em causa o que o crítico – aliás, merecedor da máxima atenção – disse, decidi-me pela compra, pois por problemática que seja a tradução, ela aproxima-me da poesia de Celan, a qual me é completamente inacessível no original. Não contente, com a obra de Celan, encontrei, mal olhei para os livros, a tentação é terrível, O Olhar Diagonal das Coisas, obra que reúne a poesia de Ana Luísa Amaral, a poeta – era assim que ela se reconhecia – desaparecida há muito pouco tempo, um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa das últimas décadas. Ambos os livros têm uma belíssima edição, com capa cartonada. O problema é que, em conjunto, exigem uns dez centímetros de estante, para além de cada um pesar mais de mil e quinhentos gramas. Poderia ainda falar de Nathalie Sarraute e de Joseph Roth ou da belíssima revista Electra, mas ficará para outro dia, caso me lembre e me apeteça. Daqui a pouco chega o meu neto e tenho de mudar de registo. Terei de ir preparar os carros – as miniaturas, entenda-se – para fazermos uma corrida.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dilemas

Sou assaltado pelo reino do ruído. O cão não encontra outro lugar para ressonar a não ser no meu escritório O que vale é que amanhã retornará ao lar e eu à tranquilidade. Esta experiência veio confirmar a decisão de não ter animais domésticos. São muito engraçados na casa dos outros. Sei que não é muito popular esta posição, mas é aquela que me cabe. A humanidade é marcada, como se fizesse parte da sua essência, pelo pluralismo sobre todos os assuntos. O mesmo se passa relativamente aos animais domésticos. Há quem adore tê-los, quem não os suporte, quem apenas não os queira por casa, embora não tenha qualquer sentimento negativo perante eles. É o meu caso. Tudo então se conforma, segundo o gosto de cada um. Estou perante um caso momentoso. Ou oiço a terceira sinfonia de Gorécki e expulso o cão do escritório, ou oiço-o ressonar e esqueço a música do compositor polaco. Abro a janela, deixo entrar o ar outonal. A luz cai sobre a copa das árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado. Um verde luminoso sobrepõe-se ao verde sombrio das ramadas que não apanham luz. Mais ao longe, o hospital permanece estático, com as paredes cobertas de fungos, cada vez mais cinzentas. Ainda mais longe, erguem-se colinas de pouca monta, pontilhadas pelo casario de aldeias sem nome O que vem depois delas, não sei. E isto é o que acontece à humanidade, nunca saber o que vem depois. Suspeito, contudo, que depois desta sexta-feira, virá um sábado, mas é uma conjectura.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

O bombo

O primeiro terço de Novembro está consumado, não tarda e chega o Advento, depois virá o Natal e, sem se dar por isso, o novo ano abrirá portas por entre as exéquias do velho. Talvez esteja a ouvir coisas. Oiço um barulho longínquo, como se alguém estivesse a bater compassadamente num bombo, ininterruptamente. Não consigo determinar a origem do som, nem, na verdade, se ele não será uma alucinação auditiva. Agora, parou. Talvez o tocador de bombo se tenha cansado, lhe doa o braço, sinta o pulso aberto de tanto bombar, sei lá. Não encontro designação para o tocador de bombo. Sempre se poderá pensar que se o tocador de oboé é um oboísta, o de bombo será um bombista, mas, lamentavelmente, não é. Os bombistas podem ter duas ocupações. Fabricar bombas ou atirar/colocar bombas, mas não se ocupam em tocar bombo, a não ser por acidente. Sempre se pode imaginar um bombista, daqueles que põem bombas, pertencer a uma banda filarmónica e, nessa, ser o tocador de bombo. Um nome interessante para esse músico seria o de bombeiro, mas este já está ocupado. Sabe-se que existem duas espécies de bombeiros. O artilheiro que disparava bombas e aquele que usa bombas de água para apagar fogos. Uma outra coisa que convém evitar é dizer, como se disse mais acima, que bombar é tocar bombo. Não é. O ruído voltou. Descubro que a palavra bombo deriva do grego bómbos, que significa ruído. Comecei com uma fenomenologia profética relativamente ao desenrolar do calendário e acabei a falar de bombos, coisa que não me interessa para nada, mas se falasse só de coisas que me interessam, passaria o tempo calado, ou quase. Envelhecer é desapegar-se dos seus interesses. O cão das minhas netas decidiu vir para o escritório ressonar. É pior que o bombo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Um enigma

Ontem mostraram-me uma fotografia com cerca de cinquenta anos. Era um torneio de Xadrez, viam-se diversos jogadores frente aos respectivos tabuleiros. No meio da fotografia estava alguém que tinha um certo ar de família. Perguntaram-me se eu era aquele. Fiquei perplexo porque não soube o que responder. Há várias razões para dizer que sim. Naquela idade, jogava Xadrez, aquela pessoa é parecida comigo, com aquilo que eu era naquela época, o perfil do rosto, o cabelo. Há também razões contra. Não me lembro de alguma vez ter estado naquele lugar a jogar Xadrez. É um sítio que vim a conhecer, penso, mais tarde, uma dúzia de anos depois, e nunca o liguei ao Xadrez. A camisa ou pólo não me recordaram nada que eu vestisse na época. Os óculos, naquele tempo usava óculos no dia-a-dia, também não os identifiquei. Fiquei perplexo por dois motivos. Se sou eu que estou na fotografia, como é possível que não me reconheça? Se não sou eu, quem será essa pessoa que era tão parecida comigo, pelo menos de perfil, e como eu jogava Xadrez? Hoje, o assunto assaltou-me uma e outra vez e não consigo ter uma certeza. Imaginemos que aquela pessoa dava pelo mesmo nome pelo qual respondo. Tudo apontaria para que fosse eu, mas este hiato na memória pode sugerir uma outra coisa. Eu era aquela pessoa, mas entre ela e eu estabeleceu-se uma cisão tal que nos tornámos em duas pessoas que já não se reconhecem entre si. Ele, porque ficou preso no papel da fotografia e eu porque não sei, ao certo, quem ele é. Cada vez que rememoro a minha existência nessa época longínqua em que jogava Xadrez, nunca me encontro naquele lugar, que na época, juraria, nem sabia que existia. Um enigma.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Pensamentos mórbidos

Um belíssimo aguaceiro. O vento Sul inclina a água, dá-lhe energia e uma aparência perfurante. Reparo que os alunos da escola aqui ao lado marcham sob o aguaceiro sem chapéu-de-chuva. Talvez as novas gerações achem o artefacto dispensável, uma parca com capuz pela cabeça bastará para enfrentar os desígnios dos céus, mesmo em dias irados como o de hoje. Trovejará, sou informado. Nos tempos mortos, leio o livro do filósofo Michael Sandel, Contra a Perfeição – Ética na Era da Engenharia Genética. Agrada-me a sua argumentação contra a manipulação genética para aperfeiçoamento humano, mas duvido que a imoralidade arguida seja suficiente para evitar que caminhemos para aí. Imaginemos dois mundos possíveis. O mundo A em que, por motivos morais, a espécie humana proscreve o uso da engenharia genética para melhoramento dos seres humanos. O mundo B é uma edição exacta do Admirável Mundo Novo, tal como Aldous Huxley o concebeu. Estou convencido de que o mundo B é muito mais provável de ser o futuro do que o A. Isto significa que não apenas melhoraremos uns, como, caso seja necessário, pioraremos outros. Isso já é feito há muito, mas de uma forma artesanal, digamos assim. Com o recurso não à selecção genética, mas à social. Como a selecção social não nos incomoda a consciência, também o facto de elevarmos o nível de eficácia diferenciadora não perturbará muita gente. Aquela ideia nascida com o cristianismo de que todos os homens são iguais perante Deus sempre perturbou uma quantidade assinalável de seres humanos, muitos deles cristãos. Dentro do homem já nasceu o desejo de introduzir, na própria espécie, diferenças tais que dela surjam várias espécies que, de preferência, não se possam misturar. Isso ainda não será possível, mas a porta está aberta para a chegada dessa possibilidade. A chuva parou e com ela os meus pensamentos mórbidos sobre a bondade dos homens.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

A platonizar

Ao abrir um livro deparei-me com um cartão de um restaurante da cidade francesa de Agen, onde estive há uns anos. Por curiosidade, decidi investigar se ainda existia. Confirmei a crença de que também os restaurantes são seres vivos. Nascem, crescem e morrem. Foi o caso. Não me lembro de qualquer traço característico. Isso não significa que não tivesse. Significa apenas que não me lembro. Por aqui – e aqui significa um conjunto de concelhos vizinhos – havia dois restaurantes de que gostava bastante. Ambos entregaram a alma ao criador por decisão dos respectivos proprietários. Cansaram-se da actividade. Quando as coisas são boas, temos uma forte inclinação para as sentir como eternas. Talvez isto tenha a ver com a própria ideia de bem, a qual só preenche o seu significado se for eterna. Um bem perecível não é um efectivo bem, mas um simulacro. As coisas a que chamamos boas, como aqueles restaurantes, reflectiam o bem, mas eram apenas um reflexo dele e, por isso, fecharam as portas. Alguém dento de mim faz-me notar que estou a platonizar. É possível, pois terei chegado à idade em que o platonismo faz mais sentido do que nunca. O problema, todavia, é que há muito mais realidade no platonismo do que aquela que existe nos diversos realismos. O melhor é não prosseguir por este caminho, antes que me peçam provas para tais afirmações. O que caracteriza estes textos é o não fornecerem provas para nada, porque tudo aquilo que preciso de ser provado sofre de um défice de realidade. Julgo que alguém já terá afirmado algo como isto, mas não me consigo lembrar quem foi ou sequer se alguém o fez. Estou afectado do cérebro. As minhas netas decidiram deixar, por uma semana, o cão aqui em casa. Ele é completamente pacífico e sofre de uma indolência que não é possível descrever. Até aqui, não vem mal ao mundo. O pior é que ele teima em estar ao pé de mim, onde dorme horas seguidas, ressonando que nem um perdido. Isto perturba-me. Quando perturbado, torno-me platónico.

domingo, 6 de novembro de 2022

Código genético

Talvez este ano não exista o Verão de S. Martinho, pensei ao consultar as previsões meteorológicas. Será um Outono dentro do Outono. Seria pior, para os amantes da época, se fosse um Inverno dentro de um Outono. Está um domingo perfeito de província. Nada bole. O vento suspendeu a actividade, a luz do dia, talvez pela carestia das fontes energéticas, reduziu-se ao mínimo, as pessoas, se por acaso põe um pé fora de casa, fazem-no com inusitada lentidão. Domingos como este são um sintoma de que na natureza, incluindo a humana, existe uma tendência para a hibernação, embora recessiva. O que introduz um tema tão interessante como a discussão do sexo dos anjos ou das categorias em que estes se dividem. Trata-se do código genético dos elementos não vivos da natureza. O código genético da luz do sol, da chuva que cai, do vento que sopra. Argumentar-se-á que código genético é uma característica dos seres vivos, não dos elementos da natureza não vivos. Nunca em nenhum foi encontrado. É verdade, mas pode-se chamar a atenção que talvez isso seja uma falácia. O facto de não ter sido encontrado não é sinónimo de que não exista. Podemos imaginar que se poderá fazer a atribuição de código genético aos elementos não vivos do universo por transposição metafórica. Falar-se-ia então do ADN da luz de domingo, isto significaria que a luz dos domingos teria certas características determinadas e determinantes. O problema nesta teoria é que o domingo não é um ser natural, mas uma invenção humana. Será que as invenções humanas, como este copo pelo qual bebo água, terão ADN? A transposição metafórica que serve para os elementos não vivos da natureza, por certo poderá ser estendida aos artefactos humanos – ou mesmo não humanos – que não deixam de ser coisas na e da natureza. Uma das características vindas no código genético da luz de domingo é que afecta o cérebro de quem se põe a escrever coisas sem qualquer nexo, como se este fosse um lugar para ficções mais ou menos científicas. Talvez a culpa esteja no facto de a própria expressão código genético ter uma natureza metafórica. Sempre posso dizer que foi a ciência que começou a ficcionalizar e que eu apenas acrescento uns corolários mais ousados. Como se prova, a luz deste domingo não me ajuda.

sábado, 5 de novembro de 2022

As vãs proezas do espírito

Mais do que os acontecimentos trágicos que marcam Édipo Rei (melhor, Édipo Tirano) foi o destino de Antígona que, no fim da adolescência, me acendeu a imaginação e, porventura, o sentimento. Talvez esse incêndio tenha desencadeado a busca de razões e tornado manifesto, sem que eu então o percebesse, que a razão, essa diferença aparente que nos separa dos outros animais e que exibimos com muito orgulho e não menor desfaçatez, que a razão, dizia, encontra os seus fundamentos não em si, mas nessas águas turvas da imaginação e do sentimento. Tudo o que é claro e transparente nasce do obscuro e opaco. Obscuridade e opacidade são o ponto de partida e, não poucas vezes, o de chegada de quem se atreve a fazer uma caminhada para fora do território tenebroso de onde extrai a sua existência. Todas estas considerações não são da minha lavra, pobre de mim. Foram proferidas há muito, numa daquelas reuniões informais que juntava gente que se conhecia à volta de uma mesa, onde não faltava o pão e o vinho, embora o pão fosse uma designação metonímica, onde se tomava a parte pelo todo. O autor da tirada, o meu querido amigo Xavier, estava particularmente eloquente. Era, na verdade, uma eloquência culposa e instrumental, como mais tarde reconheceu. A razão tinha um nome e, mais do que um nome, um corpo e uma alma de mulher. A presença quase diáfana de Eduína perturbara-o e abrira-lhe o pensamento para a especulação. Esta é, ou era, uma estratégia muito em voga entre os machos da espécie, usar o discurso para perturbar o coração ou incendiar o desejo de quem, com a sua presença, perturba o nosso coração ou incendeia o nosso desejo. Ela, porém, manteve-se imperturbável com as façanhas atlético-espirituais do meu amigo, o que o deixou ainda mais perturbado, como, anos depois, me confessou. Eduína passou a noite a falar com alguém com quem ainda tinha laços familiares remotos, como, inesperadamente, descobrira logo no início da noite. O afastamento desses laços foi, contudo, um motivo de aproximação. É possível que nem tenha dado pelas proezas retóricas que a sua presença desencadeara.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Apanhado

Fui apanhado pelo vírus. Foi o que ouvi, naquele português que nunca deixa de ter um acento italianizado, quando atendi o telemóvel. Uma chamada do padre Lodovico Settembrini a uma sexta-feira depois de almoço não é habitual, talvez nunca tenha ocorrido. Quando vi o nome, uma sombra de preocupação caiu sobre mim. O entusiasmo italiano, porém, tranquilizou-me. Não haveria de ser coisa grave. Contou-me que ontem, sentindo-se sem forças e com tosse, fez, por uma questão de disciplina, notou, o teste. O miserável deu positivo, informou-me, embora tenha acrescentado uma expressão italiana intraduzível. Fui aconselhado a manter uma discreta quarentena, o que cumpro, ainda por disciplina. Um jesuíta é um soldado disciplinado, gracejou. Sinto-me bem, mas aproveito para fazer telefonemas, escrever emails e arrumar as minhas coisas, embora tenha poucas e, mesmo essas, são demais. Está com uma propensão muito franciscana, fiz-lhe notar. Riu-se, ao mesmo tempo que tossia. Para franciscano não tinha vocação, isso eu sei, continuou. Queria saber quando eu ia a Lisboa. Estava na altura de marcar um jantar do grupo. Sugeri-lhe que marcasse e enviasse uma convocatória a todos, caso o vírus não o impedisse da tarefa. Anuiu e de súbito disse: qualquer dia volto para Itália. Foi lá que nasci, tenho o dever de morrer lá. Talvez seja cedo para pensar nisso, retorqui. Nunca é cedo para pensar naquilo que não tem hora marcada. Seja como for, acrescentou, eu disse qualquer dia, o que também não deixa de ser completamente indeterminado, mas por vezes, mais vezes do que habitualmente, dou por mim a sofrer do mal du pays, apesar de me sentir em casa. A Companhia ainda acha que tenho algum préstimo por estes lados. Eu, que não pertenço à Companhia – a essa ou a qualquer outra – também acho, disse e acrescentei: quem é que marcaria os jantares? Ele concordou e salientou que a tarefa não é de pouca importância e nem todos a sabem fazer.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Beber água

Devia beber água, penso. Tenho duas garrafas cheias na secretária, mas a vontade de as usar é nula. Consta que beber não sei quantos litros por dia faz bem à saúde, mas tenho um problema com a teoria. Não há acordo sobre o número de litros que têm um efeito benéfico, nem se a água contida nos alimentos ingeridos conta. E, caso conte, como poderei saber qual a sua quantidade em cada um dos alimentos, tendo ainda em conta se são frescos ou cozinhados. Também não é claro se existe um rácio entre litros de água e peso, ou litros de água e altura. Seja como for, saber tudo isto exigiria entrar em cálculos tais que acabariam por me secar a existência. O mais sensato será beber quando tenho sede. Se isso chega ou não, reconheço a minha ignorância. O mundo está cheio de teorias destas, que alguém se lembra de pôr a circular na internet. Ocorre-me que talvez existam dois tipos de pessoas que dão origem a esta literatura moral. Umas fazem-no com piedosas intenções. Querem contribuir para o bem da humanidade e, se pudessem, tornar-nos-iam a todos imortais à conta de beber água, chás, infusões, comer isto e aquilo, fazer exercício, meditação e tudo aquilo que a imaginação seja capaz de forjar. Outros, desconfio, inventam estas coisas para se divertirem, como quem lança boatos porque não tem nada para fazer. Vi, na na benévola rede que a todos liga, um livro com o extraordinário título Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficientes. Nos dias que correm, quem não quer ser altamente eficiente? Fiquei entusiasmado. Comprava o livro e deixava de ser, após duzentas páginas, o ineficiente que sou, para me tornar um exemplo de eficiência. Valeu-me ter acesso ao índice. Logo o primeiro hábito me pareceu desadequado: ser proactivo. Em primeiro lugar, acho a palavra horrorosa. Não sei a razão, mas faz-me lembrar probiótico. Depois, desconfio que muitos dos males do mundo – e estes não são poucos – têm origem em pessoas proactivas. Não houvesse tanta gente a sofrer de proactividade, também não haveria tanta subjugada à reactividade. Caso no paraíso a serpente não fosse proactiva e o pobre casal que lá vivia reactivo, ainda hoje estaríamos a gozar das delícias do Éden. Dito de outra maneira, ser proactivo não me parece uma virtude, mas o começo de todos os males. O que achei, porém, mais estranho nos hábitos foi o sétimo, que tem por título Afinando o instrumento. Que instrumento será esse, perguntei-me, que precisará de afinação. Evito fazer divagações, até porque se o primeiro e o sétimo hábito não fossem razão suficiente para não querer ser eficiente, haveria ainda o sexto: sinergizar. Só a palavra me dá vómitos, convulsões. Decididamente, se não fui eficiente até aqui, bem posso continuar docemente embalado na minha ineficiência. Não me obriguem, por favor, a sinergizar. Prefiro beber dois litros de água ou mesmo três.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Bendito colírio

Hoje tive de enfrentar a golpes de paracetamol os efeitos da vacina anti-COVID. Nada de grave, apenas uma vontade de nada fazer, num dia que foi tão ocupado, uma quase febre, algumas quase dores, alguma quase irritação. Nada que o comprimido não resolva. Ontem a enfermeira que me injectou disse, com a benevolência com deve falar ao pai, que o melhor seria ir para casa e tomar o medicamento milagroso receitado para tudo. Eu disse que sim, mas pensei que não. Nas três primeiras vezes em que fui vacinado, nada solicitou que recorresse a esse colírio, o mesmo tendo acontecido quando o vírus decidiu visitar-me, mas é possível que esteja a mentir. Hoje, porém, o corpo deu sinal da sua existência. Ainda tentei fazer um pacto com ele, mas não esteve para aí virado. Tenho ouvido relatos que corroboram a ideia de que a quarta dose é um pouco mais espevitada do que as anteriores, mas pode ser que seja falso. Vale-me Valentin Silvestrov e a sua música para piano, tocada por Elisaveta Blumina. Há nela uma rêverie que me arrasta para dentro da noite. Não fora a reacção do corpo, não teria nada para contar aqui. Há males que vêm por bem. A sabedoria popular é como o google. Sabe tudo e, quando não sabe, inventa.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Bruxas e Santos

Começou hoje o mês de Novembro. Não fora feriado e nem daria pela efeméride. Consta que há por aí uma pequena luta entre os adeptos do Halloween, o dia das bruxas, e os das tradições nacionais da qual faz parte o dia de Todos-os-Santos. De facto, eles não coincidem no calendário. Um foi ontem, outro é hoje, mas talvez as disposições para um e para outro sejam incompatíveis. Consta que bruxas e santos – e logo todos os santos – nunca se deram bem e não pertencem ao mesmo exército. O Halloween é uma importação comercial anglo-saxónica. Julgo, porém, que a importação veio através das escolas que, a certa altura, nas aulas de inglês, julgaram que seria pedagógico introduzir o tema. Isto, porém, é uma conjectura. Cada um dos acontecimentos tem um slogan que pode servir como imperativo. O das bruxas orienta-se pelo doçura ou travessura. O de Todos-os-Santos pelo pão por Deus. O primeiro é uma ameaça, o segundo uma súplica. Nesta zona, não se usava o pão por Deus, mas o ir aos bolinhos. Imagino que seja uma combinação atravessada entre o doçura ou travessura e o pão por Deus. Para mim, porém, hoje é dia de ir às vacinas. A da Covid e, espero, a da gripe, pois passei a frequentar o grupo que deve também tomar esta. Não peço que sejam uma doçura, mas espero que não sejam uma travessura que me deixe sem energia. Já basta o que basta. O pior, porém, são as broas.