quarta-feira, 15 de maio de 2024

Da anorexia dos caracteres e da felicidade dos canalhas

Estou a tentar ler um certo livro cujo título não vem ao caso, embora a sua matéria exija atenção ao texto. E é aqui que está o problema. O texto utiliza um tipo de caracteres, um fonte, tão elegante, tão elegante, que os meus olhos têm dificuldade de lidar com tanta elegância. Pensando bem, não deveria falar de elegância da fonte, mas de anorexia. O estado anorético dos caracteres choca com os meus olhos. Estes, apesar da prótese a que damos o nome de óculos, já tiveram melhores dias e não lidam bem com todas as fontes que por aí pululam. A certa altura, leio o seguinte: É preciso reconhecer, entretanto, que há certas desordens nesta vida, que se mostram particularmente na prosperidade de muitas pessoas más e na infelicidade de muitas pessoas de bem. Há um provérbio alemão que chega a atribuir a vantagem aos maus, como se normalmente eles fossem mais felizes. Era isto que estava a ler e que estava a ser obliterado da minha consciência pelo estorvo provocado pela anorexia da fonte usada. E o que dirá, perguntará algum leitor, o provérbio alemão? Ora, o que haverá de dizer? Fica a tradução apresentada: Quanto mais curvada a madeira, tanto melhor são as muletas; quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Não querendo pôr em causa o espírito do povo alemão, tão bom a fabricar provérbios como qualquer outra coisa, acho o provérbio excessivo na dimensão e, na verdade, falhado. Bastaria que dissesse: Quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Seria um belo e exacto provérbio. Não se compreende a introdução de um raciocínio analógico. Que relação se poderá estabelecer entre a curvatura da madeira e a perfeição do canalha? E entre a qualidade das muletas e a grandeza da felicidade. Talvez o espírito alemão seja mais obscuro do que aquilo que um latino consegue enxergar, mas também é verdade que os meus olhos não estão nas melhores condições para enxergar seja o que for, apesar de eu viver no melhor dos mundos possíveis. Talvez me tenha perdido na tradução. Por falar em canalhas, segundo o dr. Johnson, Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. O dr. Johnson não escreveu a frase, apenas a proferiu na tarde de 7 de Abril de 1775, tendo sido registada pelo seu amigo, pupilo e biógrafo James Boswell. Terá sido o dr. Johnson um antipatriota? É duvidoso. O canalha é aquele que se serve do patriotismo para disfarçar os seus interesses egoístas, mas este é um assunto perigoso, pois entre por um campo, a política, que me é vedado pelo autor. Como narrador, aceito a limitação da minha liberdade. Fiquemos apenas pela felicidade dos canalhas, até porque o texto vai longo e não há quem tenha paciência para o ler. E estou certo de que os canalhas, chegados a velhos, ainda têm olhos para caracteres anoréticos. Daí a sua felicidade caso sejam dados à leitura, talvez a última.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Idade metabólica

Hoje tive aquela sessão, que não será de todo inútil, com a nutricionista. Pesagens, medições, conversa, patati, patatá. Progressos nuns lados, retrocessos noutros. A idade metabólica, apesar de ter subido e não devia, está bastante lisonjeira, menos dez anos que a idade real. Aliás, estava a recuar demasiado no tempo metabólico e isso poderia ter efeitos deletérios que me recuso a congeminar. Seja como for, acho que devo comemorar os progressos existentes. Descobri um restaurante de comida brasileira e pareceu-me adequado para festejar a perda de peso e de perímetro abdominal. Também evitará recuos na idade metabólica. Não por acaso, deitei a mão a uma estante e tirei de lá o livro You must change your life, do filósofo alemão, Peter Sloterdijk. É isso que a frequência da nutricionista deveria querer dizer. Mudar de vida, abjurar a vida passada, os mil pecados da gula e, sob o comando da enviada do reino das pessoas saudáveis, entregar-me à ascese que me conduzirá não ao paraíso, mas à elegância e à saúde. O meu problema, porém, é que me falta fé, e cada vez que tenho dúvidas, o que é a propensão de uma razão crítica, abro o caminho para aumentar a idade metabólica. Uma chatice. Não serei o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro que não compreende por que razão aquilo que é agradável aos sentidos faz mal à idade metabólica. Há um erro no processo evolutivo da humanidade. Desenvolveu os sentidos também como fonte inesgotável de prazer e, afinal, o organismo só é saudável se evitar os prazeres. A minha esperança é a engenharia genética, que, no futuro, poderá intervir nos nossos genes e desligar os sentidos do prazer, focando-os na sobrevivência. Até lá temos de suportar esta luta infinita entre o prazer e a idade metabólica, ouvir as sorridentes homilias da enviada do reino da saudabilidade e não levar nada disto a sério.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Por uma natureza benevolente

Os dias úteis começaram carrancudos. Céu cinzento, tempo abafado. Alguém diz estamos no tempo das trovoadas de Maio, oiço responder pois estamos, pois estamos. E a conversa continuou, saltando de assunto para assunto, um modo de ocupar o tempo e de o deixar deslizar. Por certo que, por aqui, Maio tem as suas trovoadas, mas na minha memória são as de Junho que surgem mais rapidamente. Súbitas enxurradas, trovões e relâmpagos. A rua, onde vivi parte da infância, toda adolescência e mais alguns anos, enchia-se de água, que corria para outra rua mais abaixo, talvez com esperança de chegar ao rio. E chegava. Depois, vinha o sol e a Primavera começava a despedir-se do calendário. Hoje podia trovejar e chover, pois a atmosfera está acintosa, era bom que a natureza descarregasse a sua fúria, para depois, mais calma, deixar os mortais entregues aos seus afazeres. Não é bom que a natureza acumula fúrias, raivas, ressentimentos. Não lhe faz bem e quem paga são os homens. Não é que estes não mereçam castigo, mas deixemos isso a quem de direito. Não queremos uma natureza justiceira, mas benevolente e dotada de uma infinita paciência para nos aturar. Bem precisa. Hoje não me ocorre nenhuma ideia. O melhor é parar por aqui, antes que venha o crepúsculo e as sombras se adensem até cobrirem a terra com a folhagem extravagante da noite.

domingo, 12 de maio de 2024

Ser sábio

Em Algumas Lições sobre o Perfil do Erudito, de 1794, Fichte terá afirmado que o erudito deve ser, do ponto de vista moral, o melhor ser humano do seu tempo. Esta tradução do título Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten é equívoca. Fui buscá-la à tradução portuguesa de uma obra de Alexander Kluge, que faz a citação referida. Ora, a tradução francesa é Conférences sur la Destination du Savant, texto que trabalhei arduamente há décadas, mas do qual já não tenho memória. O tradutor automático da DeepL não propõe nem erudito nem sábio (savant), mas académico. A questão não é de somenos. Não se percebe por que um acumulador de informações (um erudito) terá de ser o melhor ser humano do seu tempo. Saber muitas coisas não faz de nós melhores. O mesmo se aplica ao académico. Por que razão o triunfo no mundo académico tornará melhor moralmente o triunfador? A tradução francesa por savant (sábio) é a mais pertinente. Ser sábio é muito mais do que acumular informações ou triunfar na academia, mas uma forma de saber conduzir a sua vida e a relação com os outros. O sábio é o que sabe, efectivamente, traduzir o conhecimento na acção, não porque age segundo um enquadramento teórico, mas porque a sua sabedoria se tornou carne da sua carne e espírito do seu espírito. O sábio é o que está aberto ao acontecer e sabe dançar a música dos acontecimentos. Por certo, esta concepção de sábio está longe daquela proposta por Fichte, que um dia me terá interessado, mas que o tempo, com a sua sabedoria, rasurou da minha memória. Olho para o livro anotado, reconheço a minha letra, mas, na verdade, já não me reconheço como autor dos comentários feitos com a letra que é a minha. Se não me desse trabalho, punha-me a apagar sublinhados e anotações, para retornar a ler aquilo que há muito li diversas vezes, sem me tornar mais sábio.

sábado, 11 de maio de 2024

O caminho da reiteração

Suspendi a marcha pela floresta das sinfonias de Mahler. O que me falta ouvir fica para a próxima semana. O fim-de-semana musical fica dividido entre o silêncio e a música contemporânea. Nesta comecei, com duas composições de Alfred Schnittke, Concert for Choir e Requiem. Agora, viajo por Maurice Kagel, Rrrrrrr… Anagrama e Mitternachsstuk. A parte final da viagem será com Frédéric Durieux, So schnell, zu früh, Devenir e Là, au-delà. Tudo isto proveniente de CD que já não ouvia há bastante tempo. Na música, talvez como em tudo, o importante é a reiteração. Ouvir uma e outra e outra vez. Esta repetição, porém, tem, desde há tempos, má imprensa, digamos assim. Fomenta-se a quantidade das experiências. Ver muitas coisas, ouvir muitas coisas, viajar por muitos sítios, ter muito amores, etc., etc.  Isto, porém, não passa de um exercício superficial e este amor à multiplicidade experiencial é, na verdade, a confissão de uma impotência estrutural perante a verdadeira experiência, que não procura a multiplicidade infinita, mas procura o infinito que há na unidade. A repetição é uma aproximação a essa unidade infinita. Unidade sem fim, seria mais apropriado dizer. A repetição não é a queda na rotina, como um tempo apressado como o nosso pensa. Pelo contrário, é um processo de descoberta, pois a realidade, qualquer realidade, só se deixa conhecer pelo árduo esforço, e mesmo este não garante a apropriação que constitui todo o conhecimento. Voltando à música, a de Alfred Schnittke pertence a universo sonoro bem diferente dos de Kagel e de Durieux, que estão mais próximos, filhos de uma mesma cultura. Enquanto trabalho, deixo a música escorrer por mim. Por vezes, paro e fico apenas a ouvir. Outras vezes, deixo o silêncio reinar. As paredes da escola aqui ao lado reverberam, fustigadas pela inclemência do Sol. O fim-de-semana progride e isso não é uma boa notícia.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esquinas

A disposição das coisas impede-nos de compreender o que se oculta sob essa disposição. Foi esta a primeira lição que tirei ao ler Se não fosse a vida estender-se numa linha contínua, talvez ela tivesse reparado a certa altura que tinha dobrado uma esquina. O excerto é o começo de um breve texto denominado “Borboleta branca”, de O Livro Branco, de Han Kang. A linha contínua do tempo oculta-nos tanto as mudanças de rumo no espaço como as que acontecem na existência. Acumulamos tempo até que o tempo se nos acabe, mas essa acumulação hipnótica esconde outra acumulação, a das esquinas dobradas, as etapas existenciais que só sabemos que o são quando estão acabadas e se tivermos muita sorte e possamos, por instante, quebrar a hipnose que o tempo faz cair sobre nós. Imaginemos que, mortos, somos levados a um tribunal para prestar contas. Não nos perguntarão, por certo, quantos segundos acumulaste ao longo da vida. O promotor público perguntará: quantas esquinas dobraste? Escutada a resposta, dirá vamos agora examinar se as que dobraste são as certas ou se te transviaste no caminho. Talvez o defensor nomeado proteste, argumentando que a existência de esquinas certas ou erradas é uma presunção do promotor, uma mera conjectura que não tem em consideração que o visado, ao abordar uma esquina para a dobrar, está sempre convicto de que é a certa. A discussão entre o promotor e o defensor pode durar várias eternidades, sem que se chegue a alguma conclusão, deixando o visado sem julgamento, isto é, sem punição nem absolvição. Seja como for, o melhor é dar atenção às esquinas que se escondem sob a linha do tempo e também às do espaço, não vá toparmos com quem não queríamos ver.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Dia da espiga

Não fui colher a espiga, hoje que é dia dela. Aliás, nunca participei nessas romarias ao campo, para colher a espiga e fazer um ramo que incluía ainda papoilas, malmequeres, pequenos ramos de oliveira, alecrim e videira. Uma festa claramente pagã e que acabou por coincidir com a festa cristã da Ascensão. Em tempos, a Quinta-Feira de Ascensão foi feriado nacional, mas agora só é feriado em alguns – são bastantes – municípios, como este em que me recolho. Não terá sido muito inteligente acabar com o feriado nacional. Os católicos festejariam a Ascensão, os pagãos iriam à espiga e os outros entregavam-se ao descanso, pois, contrariamente ao que se propaga desde a tenebrosa (por certo, por causa do carvão) Revolução Industrial, o homem não foi feito para o trabalho. Este é um mal, um castigo metafísico. Ora, se o trabalho tem essa natureza, o mais sensato será aliviar os homens, o mais possível, dessa punição. Punição como aliás decorre da própria palavra trabalho, que foi derivada de tripalĭu, um aparelho de tortura composto por três paus. Como a história das palavras nos conta coisas interessantes. Num tempo de grandes preocupações ambientais, seria sensato que um governo decretasse a Quinta-Feira de Ascensão, com a adenda de se considerar também Dia da Espiga, como feriado nacional, e todos fossem passear ao campo, fazer ramos e testar a sua resistência às alergias provocados por pólenes, pós e poeiras. Por ser feriado, tenho passado o dia a trabalhar e a ouvir as sinfonias de Gustav Mahler, dirigidas por Eliahu Inbal e executadas pela Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt, em gravações que datam do século passado. Este é o meu programa musical para hoje e os próximos dias. Daqui a pouco, mais à tardinha, irei caminhar junto ao rio, num lugar onde há papoilas e malmequeres. Não os apanharei, mas olharei para eles e ficarei grato pela sua existência, como pela existência do rio e dos chorões e salgueiros que por lá existem.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Ruminar o futuro

Hoje, decidi comprar um livro de Ursula K. Le Guin. É conhecida como autora de romances de ficção científica. Li dela apenas três romances do denominado ciclo de Terramar, o qual foi completado, mais tarde, por outros três, que nunca li. Estes romances fazem parte de uma literatura de fantasia, cuja personagem principal é um feiticeiro denominado Ged, o gavião, se bem me recordo. Não eram romances típicos de ficção científica ou de antecipação. A ficção científica foi um género que nunca me atraiu. Talvez seja o contraponto do romance histórico. Enquanto este ficciona o passado, a ficção científica fá-lo-á com o futuro. Talvez este género literário seja mais importante do que aquilo que eu tenho pensado. Não pela literatura em si mesma, mas pelo modo como a imaginação opera para trazer à linguagem as expectativas humanas, o modo como dentro de nós o futuro é ruminado. A compra de Do Outro Lado do Sonho, o romance de Ursula K. Le Guin, é uma tentativa de entrar nesse mundo narrativo, do qual, na verdade, só conheço o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A minha percepção é que esse tipo literário tem uma natureza distópica. Seria interessante perceber a razão por que o futuro é, por norma, antecipado como um lugar de trevas. Isto recorda-me a velha teoria das Idades do Mundo, em que a primeira Idade era a mais ditosa, a de Ouro e a quarta, a última, a Idade de Ferro, aquela que era tenebrosa por essência. Esta inversão da ideia de progresso talvez seja a fonte que alimenta a imaginação dos escritores de ficção científica, ou, porventura, de todos os escritores. O melhor dos mundos possíveis não está no presente, nem no futuro, mas pertence a um passado de que perdemos a memória, restando apenas vestígios inconscientes, cuja luz não é suficiente para iluminar o futuro.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Ondina

Esta noite acabei de ler um conto – talvez fosse mais correcto classificar a obra como uma novela – onde uma das personagens centrais é uma ninfa ou um génio feminino das águas. O autor é Friedrich de La Motte-Fouqué, autor que desconhecia por completo e que um acaso depositou diante de mim a sua obra, Ondina, na tradução portuguesa. É um conto fantástico e mais um episódio daquilo a que se poderia chamar a legenda do amor no Ocidente. Não sou dado à literatura fantástica, mas talvez esteja numa fase de alteração do gosto. Nunca se sabe o que a idade traz aos seres humanos. Sobre aquilo a que chamei a legenda do amor no Ocidente, apenas posso remeter para a obra de um dos pais da Europa, Denis de Rougemont, no seu O Amor e o Ocidente. Presumo que ainda seja obra que mereça ser lida, embora a alteração do gosto tenha sido acentuada nas últimas décadas, e a influência anglo-saxónica tenha obliterado a atenção aos autores da Europa continental. Voltando à bela Ondina, ela abandona o seu mundo em busca de uma alma humana. É o máximo que posso adiantar, mas poderei acrescentar que a pretensão de Ondina será a de todos os seres humanos, quando abandonam o mundo do nada onde existiam, antes de serem concebidos, e são postos sobre a Terra. A partir daí buscam por mil caminhos encontrar e conquistar uma alma humana, a sua alma. A questão que se pode colocar é se eles a encontram ou a perdem, não por a terem, mas por não encontrarem a alma que seria a sua. O que me vale – acabo de o pensar – é não viver num tempo em que o Tribunal do Santo Ofício exercia os seus poderes nesta terra, pois estas formulações acerca da alma são heréticas. Heréticas ou não, são muito mais interessantes. Uma coisa é receber de mão-beijada uma alma na hora da concepção. Outra, bem diferente, é enfrentar o mundo, como D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, para encontrar a sua alma. Que aventuras não há que empreender? Que ilusões não há que desfazer? Sim encontrar e conquistar a sua alma é uma prova difícil, mas todas as coisas belas são difíceis, como o escreveu um dia Platão.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Da fealdade das palavras e da origem das sombras

Uma sombra projecta-se no muro da escola aqui ao lado. Depois, desaparece. Este é o destino de todas as sombras, oiço dizer dentro de mim. Por uma vez, aquiesço, no sentido de condescendo com a opinião que foi soprada nem sei bem de onde e por quem, talvez um homúnculo que vive escondido nas terras escuras do meu subconsciente. Aquiescer é um verbo horrível. Não pelo seu significado, mas pela sua sonoridade. Há palavras assim, nascem feias e, por mais tratamentos de beleza que façam, nunca se tornam umas belas palavras. Há pelo menos três categorias de palavras feias. Uma categoria fonológica, em que a fealdade deriva do som, como o verbo aquiescer. Uma categoria semântica, em que a palavra é feia pelo seu significado; por pudor, omito um exemplo. Uma categoria do uso, em que a fealdade deriva da palavra ser usada para tudo e para nada, como a horrível palavra empreendedorismo. Imagine-se, agora, que uma palavra é feia pelo som, pelo sentido e pelo uso. Não haverá palavra que queira casar com ela. No muro, continuam a projectar-se sombras. Umas desaparecem rapidamente, outras permanecem, como a das árvores ou dos carros parados. Todos nós, dotados de bom senso – a coisa mais bem distribuída no mundo, pois, como ensinava o bom Descartes, não há quem queira mais do que aquele que tem – todos nós, dizia, afirmamos que as sombras naquele muro se devem a uma interposição de corpos opacos entre o muro e uma fonte luminosa. É sensato acreditar nisto. Seria, porém, insensato crer que aquelas sombras são emanações de um mundo interior ao muro e que chega até nós não sua vividez real, mas num estado penumbroso, pois perdeu a energia para se manifestar vivo e cintilante na superfície externa do mundo? Se esta hipótese parece inverosímil, há que sublinhar que ela tem um papel relevante na nossa sociedade. Oferece uma solução alternativa à explicação da sombra, o que assegura a concorrência no mercado das ideias e promove a liberdade de escolha dos cidadãos.

domingo, 5 de maio de 2024

Do necessário e do contingente

Peguei num romance que li décadas atrás. Deixou-me, então, um sentimento de prazer. Ao pegar nele, ainda sem saber se vou voltar a lê-lo, dei por mim a pensar se na literatura não se passa o mesmo que no vestuário, onde a moda reina despótica, mas por um reinado curto, o e uma estação. Este romance, do romeno Mircea Eliade, publicado em Portugal com o título Rua Mântuleasa, terá passado de moda? Sempre imaginei a literatura, a arte em geral, sub species aeternitas, o que, seguindo a lição do velho Baruch Espinosa, implica não apenas a eternidade das obras de arte, mas também a sua necessidade. Contrariamente a nós, seres humanos marcados pela contingência, as obras de arte teriam em si uma necessidade intrínseca que as fez vir ao mundo para permanecerem eternamente. O que significa que elas teriam necessariamente de ser criadas, mesmo que os seus autores sejam seres contingentes que poderiam não ter existido. Parece haver uma contradição insanável entre a natureza necessária da criatura, a obra de arte, e a contingência do criador, o artista. Aparentemente, para manter o carácter necessário da obra de arte e a sua eternidade, haverá duas soluções. A primeira diz-nos que o criador, tal como a criatura é um ser necessário, o que significa que um Leonardo, um Joyce, um Pessoa ou um Picasso, por exemplo, não poderiam não ter nascido e não se terem tornado artistas. Uma hipótese que nunca poderemos verificar. A segunda solução, talvez mais interessante, diz-nos que os criadores são contingentes e que são as obras de arte, antes de serem realizadas, que escolhem entre os seres humanos disponíveis aqueles que as irão criar, a elas que já existiam, num mundo potencial, antes de virem à existência. Eu sei que estas soluções são estranhas, mas haverá alguma coisa no mundo que o não seja? Ora, e era aqui que queria chegar, se as obras de arte são necessárias, então não estão sujeitas ao império da moda, o que me permitirá voltar a ler o livro de Mircea Eliade. Admito a culpa que me atribuírem de escrever coisas sem nexo. É verdade, mas isso faz parte da estranheza de tudo o que existe, inclusive a de um narrador sem nome e sem narrativa, como eu.

sábado, 4 de maio de 2024

Honrar o Floreal

A 24 de Novembro de 1793 entra em vigor, em França, um novo calendário, cujos meses tinham um pendor ecológico, tendo as denominações por fundamento aspectos do clima e da agricultura. Havia o mês das brumas, o do vento, o da neve, o das geadas, o do calor, mas também o das vindimas, o das colheitas, o das pradarias. Estes nomes foram fabricados por um poeta, segundo consta, Fabre d'Églantine. Se o calendário tivesse vingado e as invasões napoleónicas o tivessem exportado, hoje estaríamos no Floreal, o mês das flores. Este amor ao mundo da natureza e à vida nos campos, visto a partir dos nossos dias, parece uma premonição, uma tentativa de evitar aquilo que germinava em Inglaterra e que tomou o nome de Revolução Industrial. Esta, ao contrário da Revolução Francesa, não se predispôs a reformar o calendário. Onde iria ela buscar o nome dos meses? O mês do carvão, o mês das minas, o mês do vapor, o mês das máquinas, o mês da ferrovia? Fizeram bem os ingleses em não contratarem nenhum poeta para renomear os meses do ano, nem nenhum cientista para reformular o calendário. Os franceses são mais dados a este tipo de rasura. Estamos cansados do passado. Vamos começar tudo de novo. Que se reforme o calendário. Doze meses, parece boa ideia, mas há que ser racional e consequente com os ideais da Revolução. Para respeitar a Igualdade, têm todos 30 dias e são divididos em décadas, isto é, uma espécie de semana de dez dias. Os outros 5 dias – ou seis, no caso dos anos bissextos – ficam fora dos meses e são feriados nacionais, talvez para compensar a exclusão. Chamavam-lhe os dias sans-cullottes. Cada dia era dividido em 10 partes e cada uma destas em cem outras. Isto foi para acabar com aquela conta das 24 horas, dos sessenta minutos e dos sessenta segundos. Se nos pomos a pensar, talvez esse fosse o calendário mais razoável alguma vez inventado. Tudo contas certas, com um sistema decimal a funcionar. E posso provar que, mesmo hoje, seria o mais correcto dos calendários. As orquídeas cá de casa estão quase todas em flor, ou não honrassem elas o Floreal.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Palavras

O dia deslizou rapidamente. Ainda vai durar um pouco, antes de se entregar no crepúsculo, mas a luz já perdeu o viço e ninguém que passa nas ruas precisa de se acoitar nas sombras das árvores ou dos prédios. Ao escrever acoitar, pensei que estranhos e extraordinários instrumentos são as línguas que os povos vão criando na sua peregrinação sobre este pobre planeta. Basta uma simples cedilha e tudo muda. De acoitar passa-se para açoitar. De encontrar refúgio transita-se para o exercício da violência. Como pode uma coisa tão insignificante como a cedilha mudar o universo em que se vive. Em tempos contaram-me uma história que não tinha que ver com açoitar, nem acoitar, mas de algum modo se ligava com esta última palavra. Um professor, já não me recordo de quê, pessoa excessivamente religiosa, tinha um aluno de apelido Coito. Ora, coito é também a designação do acto sexual e, por isso, nunca tratou o aluno pelo apelido, imaginando, possivelmente, que cada vez que dissesse Coito cometia um pecado. E como se peca por pensamentos, temera cair num pecado mortal, ao chamar o Coito e pensar no coito. Asseveraram-me ser a história verdadeira, mas a imaginação das pessoas é coisa que, não poucas vezes, transborda para lá dos muros da verdade. Coito é, ainda, uma forma de dizer couto, e assim como há Coutos, também há Coitos. Já sou tão arcaico que me lembro de haver um comentador político da RTP denominado João Coito e nunca constou, apesar daquele tempo ser dado ao pudor e à censura, que o seu nome fosse censurado. Por aqui, coito também é um lugar que, nos jogos infantis, serve de abrigo. Se aquele professor em conflito com o coito tivesse de ensinar lógica, não sei como substituiria a palavra cópula que, numa proposição categórica, une o sujeito ao predicado. Quem bane o coito, por certo não admite a cópula. Chegou o fim-de-semana e com ele os dias inúteis onde nos acoitamos do açoite da realidade.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Destino

Entrámos em Maio no meio da incerteza climática. Os dois primeiros dias do mês parecem pagamento de juros ao Inverno. Uns juros moderados – talvez o Inverno não seja dado à agiotagem – pois o frio não é excessivo, a chuva é moderada e o vento não é tão exuberante que lembre um vendaval. O mais grave é que, neste momento, ainda não sei se lá pelas seis da tarde poderei ir caminhar junto ao rio. Dependerá dos humores de quem gere a grande empresa que fabrica o tempo. Acabei de ler o romance O Caminho do Sacrifício, do escritor alemão Fritz von Unruh. O destino das pessoas é mais estranho do que aquilo que se espera. Este aristocrata prussiano pertencia a uma família de militares. O pai era General e ele próprio foi militar. Deixou de o ser, para se dedicar à escrita, em 1911 e voltou a sê-lo com o início da primeira grande guerra. O Caminho do Sacrifício é uma obra baseada na sua experiência na mais longa das batalhas desse conflito. Contudo, não é uma obra para glorificar a guerra e promover heróis, mas um libelo pacifista. Foi este o destino de Unruh. Pertencer a uma tradição guerreira e a uma casta feita para o combate e tornar-se em pacifista. Quando os nazis chegaram ao poder, os livros de Unruh foram proibidos e ele emigrou para França e, de seguida, para os Estados Unidos. A primeira guerra mundial foi fértil do ponto de vista literário. Do lado alemão, por exemplo, há, para lá de Unruh, Erich Maria Remarque ou Ernst Jünger. É provável que a Europa nunca se tenha recomposto dessa guerra, que assinala o fim de um mundo que começara a acabar em França, no ano de 1789, e dá origem a um outro onde essa Europa deixou de ser o centro e começou a sua inexorável caminhada para a periferia onde se encontra nos dias de hoje. O destino das nações é tão estranho quanto o das pessoas. Aliás, não há coisa mais estranha do que o próprio destino.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Sem retorno

Sem se dar por isso, Abril de 2024 escapuliu-se para um lugar de onde não há retorno possível. Se tem de prestar contas – e que mês não terá as suas a prestar? –, não será aqui, mas naquele lugar para onde vão os meses que acabam. Talvez lá, mas isto é uma especulação sem dados empíricos, exista um tribunal, onde, após um processo rigoroso, o mês é julgado por aquilo que deixou acontecer no seu reinado e aquilo que deveria ter acontecido, mas não aconteceu. Será, parece-me, um tribunal de júri, mas também isto é incerto. Como qualquer outro mês, também Abril terá uma equipa de advogados que o defenderão. São especialistas no direito dos meses, gente treinada na barra dos tribunais e que a cada mês tem um cliente novo para defender. Os honorários serão altos – também as acusações são graves – e não se sabe como cada mês encontra dinheiro para saciar a voracidade dos seus defensores. Nesse reino para onde vão os meses acabados ou mortos, houve em tempos uma célebre disputa constitucional. Girou em torno de uma das penas propostas para o caso de um mês ser condenado, o que não é caso raro. Alguém defendeu, mas é incerto quem foi, que em determinadas ocasiões um mês, especialmente culposo, seria condenado a retornar ao calendário e ter uma segunda vida. Argumentou-se que isso possibilitaria a sua redenção, ao tornar-se mais propício a uma existência sensata dos homens. Os defensores da proposta viam na pena um instrumento de recuperação do condenado. Formou-se, de imediato, um partido oposto. Este argumentou que a pena de retorno ao calendário de um mês condenado feria dois direitos fundamentais. Em primeiro lugar, punha em causa o direito de um mês que, assim, não vinha à existência, pois o calendário teria sido ocupado por outro que já fizera o seu papel e agora regressava. Em segundo lugar, o retorno de um mês condenado seria a antecâmara de uma segunda condenação, quando acabasse e voltasse ao reino dos meses mortos para ser de novo julgado, o que contradizia uma norma constitucional que afirma que cada mês só pode ser julgado uma vez. O tribunal constitucional acolheu esta última interpretação e, a partir dessa decisão, já muito antiga, sabemos que nenhum mês que acaba torna a voltar às suas funções no calendário humano. Portanto, não voltaremos a ter um Abril de 2024.