terça-feira, 30 de junho de 2020

Nada de sedições

Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz. Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo, aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal, ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando, para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo, a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Evitar a mentira

Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito. Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos, há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí, quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini, que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus, talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta. Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para narrar.

domingo, 28 de junho de 2020

Nem uma epopeia para narrar

Cheguei a meio da tarde sem nada para narrar. Sou um narrador digno de compaixão. Se tivesse competência, mesmo a um domingo encontraria uma gesta para descrever, uma situação épica para partilhar, uma tragédia para contar. Bem me esforcei. Saí de casa, caminhei, fui a um café, depois fui trocar um candeeiro que tinha comprado, mas que não funcionava. Este episódio não seria destituído de mérito, pois acabei por não o trocar, já que funcionava na perfeição, só que, motivado por não ter os óculos ou pela estupidez natural que me saiu em sorte, não li a inscrição ON/OFF. O vendedor e eu rimo-nos, ele com vontade de me chamar idiota, eu com vontade de corroborar o pensamento dele, mas o comércio é uma coisa civilizada. Ele não perderá nada em evitar dizer o que pensa e eu lá hei-de voltar para comprar outro candeeiro, só para mostrar que, apesar de idiota, sou um aprendiz esforçado e que à segunda tentativa consigo pô-lo a acender e a apagar, mesmo sem óculos, mesmo que lá esteja escrito ON/OFF. Isto, porém, não dá uma epopeia, nem uma tragédia e para comédia o enredo é curto. Também é verdade que cheguei muito tarde ao mundo. Tudo o que era digno de ser narrado já o foi. Resta sentar-me na varanda, acender um cigarro, apesar de não fumar, deixar o fumo enovelar-se e subir aos céus como se fosse incenso, enquanto pássaros e anjos voam de um telhado para o outro. Na praceta passa alguém que conheço bem, mas fico grato por estar onde estou e de não ser visto. Hoje é domingo, dia 28 de Junho. Celebram-se 182 anos que Vitória foi coroada rainha de Inglaterra, ela que se chamava Alexandrina Vitória. Há 106 o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro do império Austo-Húngaro, foi assassinado, o que contribuiu para o início de uma ampla carnificina a que, posteriormente, se deu o nome de primeira guerra mundial. Ainda no dia de hoje se celebram os 101 anos da assinatura do Tratado de Versalhes, que pôs fim à carnificina e lançou os alicerces de onde emergiu a segunda. Não me tornei um divulgador de efemérides, mas estas informações servem para mostrar que se não escrevo uma epopeia, o problema não estará no assunto, mas no talento do autor, que se recusa a pôr-me a escrever sobre tão elevados temas.

sábado, 27 de junho de 2020

Complemento oblíquo

Acordei cedo e acabei por ir caminhar pelas ruas. Fiz seis quilómetros para ir de casa e chegar a casa. Sou dado a coisas inúteis como deslocar-me para chegar ao mesmo sítio. Fora eu bafejado pela lotaria genética e evitaria humilhações destas. Quem se desloca quer ir de um sítio para o outro. Como nunca soube a onde queria chegar acabo sempre, por mais que me esforce a andar, por ir dar ao sítio preciso em que me encontrava. Nisto sinto-me próximo dos pilotos e fórmula 1. Andam ali às voltas no circuito, a velocidades estonteantes, a vida em risco, para chegarem à meta de onde partiram. Eu sou como eles, mas não uso carro e ando devagar, pois se é para chegar ao mesmo sítio, ao menos que demore mais tempo possível. O jornal que costumo ler substituiu o ranking do coronavírus pelo ranking das escolas. Em ambos se faz notar o desejo de uma vacina que trate as viroses que por aí proliferam. Estou ensonado. Por desfastio abro uma gramática de língua portuguesa e deparo com a belíssima denominação complemento oblíquo. De todos os complementos, o que mais amo é este. O que são, ao pé do oblíquo, os complementos directos, indirectos e agente da passiva? Nada. Só o oblíquo me faz pensar na chuva oblíqua e leva a minha mente, como se entrasse em transe místico, a recitar arrebatada Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios / Que largam do cais arrastando nas águas por sombra / Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... E aqui está o problema que é o meu. Se em vez de andar a pé viajasse num navio, num veleiro, num grande transatlântico, haveria de sair de um porto e ir dar a outro e tudo faria sentido, mas a água não é o meu elemento e assim sou coagido a viajar por terra para chegar ao lugar onde estava. Dias como os de hoje parecem-me funestos para a sanidade mental. A semana foi terrível e, na verdade, fartei-me de trabalhar para fazer aquilo que tinha feito. O que me salva os dias é o complemento oblíquo, mas perde-me o olhar oblíquo que me deitam por não ter vergonha de escrever inanidades e publicá-las. São o retrato da minha vida, a minha verdade, o que mais posso fazer? Hoje é sábado, dia 27 de Junho. Os dias estão a encolher e ninguém protesta. Oiço um galo a anunciar a aproximação da derradeira etapa do dia. É inverosímil, mas mesmo numa cidade se podem ouvir galos. A gramática mostra-me uma frase monstruosa e começo a temer se não encontrarei nela um exemplo extraído destes textos. Tenho de ir comprar um candeeiro para ligar à ficha USB do computador e uma extensão para me ligar à realidade.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O que se avista de uma varanda

Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves, aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão. Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande. Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra, mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu, foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu, os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia? É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais, para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

O zimbório zumbe

Depois de almoço, quase frugal e quase abstémio, fui assaltado por uma palavra. Entrou-me na consciência e não me tem largado. A quem devo apresentar queixa por esta violação da liberdade de pensamento? Não faço ideia por que razão zimbório canta dentro de mim. Não avisto nenhum e não me deu um súbito interesse pela arquitectura, por cúpulas e dispositivos afins. Há na palavra uma sonoridade exuberante e talvez seja isso que me tem prendido a ela. Não deveria escrever tudo o que me passa pela cabeça, não contribui nem para a minha sanidade mental nem para a reputação, ambas já muito desgastadas. Observo ao longe uma rapariga absorta, não há como o eufemismo para suavizar a marcha do tempo. Conheci-a numa outra encarnação ou talvez apenas imagino que a tenha conhecido. Abre os olhos, mas a realidade escapa-lhe, como a beleza se lhe escapou, como os sonhos se finaram na blusa de seda em que nenhum olhar, excepto o meu, pousa. Um cão pára junto a uma árvore e, alçando a perna, marca o território, num assomo de proprietário. O zimbório, porém, não deixa de zumbir em mim. Descubro que uma nova tradução de A Montanha Mágica foi colocada no mercado. Li o romance de Mann na tradução de Herberto Caro, para os Livros do Brasil. Depois, comprei a da D. Quixote e ofereci a que lera. Perante o encómio da nova tradução, já decidi que a vou comprar, depois alinho-as lado a lado na estante. Quando me der a vontade de reler a obra, pego nelas e vou pesá-las. Lerei a mais leve. O critério é mau? Eventualmente, mas mais vale ter um critério mau do que nenhum. Ou será ao contrário? Hoje é quinta-feira, dia 25 de Junho. As palavras associam-se dentro de mim. O zimbório zumbe na cúpula ou na cópula, ou apenas na consciência vazia que para evitar o naufrágio se entrega às leviandades que a assaltam. O dever chama-me.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O pior é a Kryptonite

Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade, ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer hashtag, o que acrescentaria modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos. Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo, cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum lado ou de fugir dela.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Um narrador sem assunto

A barafunda veio para ficar, foi o que ouvi quando, hoje de manhã, caminhei pelas ruas. Não foi um grande passeio, mas um pequeno giro de desentorpecimento mental. Chegado a casa fui informado de que a orquídea branca está completamente desaustinada. Uma qualquer euforia tomou-lhe a vida e ela continua a desfazer-se em flores. Está nisto há bem mais de um ano e não tem aspecto de querer parar. As folhas, todavia, estão a trocar o verde pelo amarelo. A vida corre-me num torvelinho, os neurónios estão em turbilhão e o tempo está cada vez mais quente. Dedilho as tarefas que tenho pela frente e não me parece que os próximos dias sejam promissores. A tarde avança com os seus pelotões sombrios. Marcham em cadência militar, batem as botas cardadas no chão, olham impantes sem nada ver. Nas janelas, os mortais observam-nos com temor, não vão eles apontar-lhes o lança-chamas e deitar fogo à casa, à vida, a sabe-se lá o quê. O que achas disto tudo, perguntaram-me no outro dia. Encolhi os ombros e disse que não achava nada. Já são poucas as coisas sobre as quais tenho opinião e a minha esperança é a de deixar de ter opinião seja sobre o que for. Na passadeira, afogueada e vestida de Verão, uma mulher jovem deixa que os olhos repousem sobre ela, fingindo que não sabe, mas a passadeira é curta e no passeio a luz e as sombras mesclam-se num tecido que turva os olhares. Hoje é terça-feira, dia 23 de Junho. Há 192 anos Miguel de Bragança foi aclamado rei de Portugal. Eis uma informação que não serve para nada, a não ser para dar um matiz histórico ao fim desta narrativa de um narrador sem assunto nem personagens.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

A loucura normal

É o senhor? Sim, sou eu. Está em casa? Estou, estou. É que eu tenho uma encomenda para lhe entregar. O andar é… Não posso subir por causa desta coisa, tem o senhor de descer… Está bem, se é por causa dessa coisa, eu desço. Espere, vou ver se cabe na caixa do correio. É uma ideia. Olhe, cabe mesmo. Óptimo, muito obrigado. Está então a encomenda lá em baixo, ainda por cima vinda da China para me deixar ler noite dentro, e eu aqui em cima. Bem tenho de me despir e vestir para ir à rua. Não posso esquecer de levar máscara para viajar no elevador. Abro a porta, chamo com a ponta da chave o elevador. Ele vem e eu digo ao diabo, abro-o com as mãos e desço. Também escancaro a porta da entrada com as mãos. Vou ao correio, resgato a encomenda e correspondência avulsa e, sem nunca tirar a máscara, entro no elevador, saio, reentro em casa já descalço, fecho a porta, desinfecto as mãos e tiro a máscara, depois de pousar em lugar seguro o que tirei da caixa do correio, dispo-me, penduro a roupa de ir à rua, visto-me, desinfecto as mãos, abro a encomenda, deito o plástico envolvente para reciclagem, em lugar seguro. Abro a caixa, deito-a no sítio para reciclagem e penso que o dispositivo, que já deve andar em viagem há umas três semanas, ainda por cima protegido por plástico hermeticamente fechado, não precisa de ser desinfectado, mas desinfecto-o, não vá o diabo tecê-las e ele é muito dado a tecelagens. Ainda por cima uma coisa vinda da China, sabe-se lá por onde andou. Depois, desinfecto-me a mim. A seguir deveria marcar consulta num psi qualquer. Não o faço, mas lembro-me do título de um filme de Marco Ferreri, baseada num livro de Charles Bukowsi, Contos da Loucura Normal, a Ornella Muti ia muito bem no filme, mas já não me lembro de nada. Isto é um filme, anoto, feito de contos de gente enlouquecida, e a loucura está a tornar-se normal, embora a Ornella Muti já não tenha 25 anos, nem eu. Sim, estamos todos a enlouquecer, tanto os que se cuidam, como os que se descuidam e os que acham que umas festas dionisíacas vêm mesmo a calhar, pois Apolo anda distraído, também de máscara e venda nos olhos. Hoje é segunda-feira, dia 22 de Junho. A temperatura está a subir e a vida tornou-se uma trapalhada sem fim. Se não tivesse a tarde ocupada iria rever o filme do Ferreri. Sendo assim, enlouqueço mesmo sem filme.

domingo, 21 de junho de 2020

Começa o conflito


Hoje é o primeiro dia de Verão e a temperatura já ousa passar os 30 graus, prometendo escalar o conflito nos próximos dias. Tenho de imaginar estratégias de autodefesa, mas ando demasiado ocupado e não tenho tempo para frequentar o von Clausewitz e o Sun-Tzu. Comecei a trabalhar ainda antes das nove da manhã e tenho uma tarde e noite dedicadas ao culto das necessidades. Ontem fiz uma caminhada à noite. A cidade e o movimento eram iguais aos de outros tempos. Uma pessoa caminha furtiva entre sombras, deixa-se guiar pelo hábito e vai olhando para o que acontece. Uma vez por outra, lá passa um viandante ou então alguém que ainda não tem vergonha de correr em público. Um grupo de jovens em quase pós-adolescência faz umas acrobacias de bicicleta, fendendo a noite com o seu gargalhar cheio de incertezas. Depois, as trevas tomaram conta do mundo. Hoje ainda não espreitei a avenida, desconfio que as pessoas se preparam para os almoços em família, caso a tenham. De resto, o vento eriça as folhas das árvores, fá-las tremer e ondular, enquanto as sombras se escondem debaixo das copas e a luz dá uma coloração de antimónio ao verde cinza das oliveiras. A minha mente parece um depósito vazio, mas não vale a pena enchê-la, de tão esburacada que está. Hoje é domingo, dia 21 de Junho. Leio nos jornais que a polícia tem agora uma nova função, a de dispersar as pessoas que se juntam às centenas talvez com a esperança de se infectarem e de lançar o país no caos. Não há nada como medo, pensei. Estás pouco iluminista hoje, disse-me o daimon que vive em mim. Pois estou, talvez nunca tivesse acreditado muito no progresso da razão e da moralidade humana. Calo-me, antes que me torne um reaccionário adepto do absolutismo e o texto comece a tornar-se desmesurado.

sábado, 20 de junho de 2020

Divagações por territórios inóspitos

Avanço com pouca diligência por um lugarejo perdido no Tennessee. Nesses anos, os que ligaram uma guerra mundial a outra, a lei seca criou uma coorte de bootleggers, perseguida com afinco pelas autoridades, o que prova que é a lei que faz o criminoso. Falo do primeiro romance de Cormac McCarthy, O Guarda do Pomar. Aquele é um universo estranho para um europeu e essa não será a menor das virtudes da literatura, colocar-nos em mundos excêntricos, fazer a imaginação raptar-nos da nossa instalação sedentária e obrigar-nos a territórios inóspitos e vidas extravagantes. Também um leitor americano poderia pensar o mesmo se confrontado com uma narrativa passada nas terras em que os homens teimam, não se sabe bem porquê, a pegar touros bravos de caras, touro e homem a olharem-se nos olhos, a espreitarem-se, a estudar como se hão-de encaixar e acabar com aquela incerteza, para que haja aplausos e a banda filarmónica se desfaça em música. Eu sei que o universo das touradas é um território minado, pronto a explodir numa paróquia desejosa de pegar fogo por tudo e por nada. Não sou dado a verónicas e a chicuelinas, nem uso palavras como faena ou tenho especial predilecção pelo paso-doble, mas grandeza, mesmo se inútil, haverá no homem que enfrenta sem nada nas mãos um animal daqueles, ainda que cansado e sangrado, grandeza, mesmo que tinta de loucura, haverá no matador que joga a sua vida contra a de um miura. De resto, a tauromaquia não me interessa para nada, mas isso não a distingue de milhares de outras coisas que também não me interessam. Há pouco, ao espreitar, a Sá Carneiro, o movimento dos carros parecia a de um sábado pré-pandémico. As pessoas na rua conversam, enquanto o Sol sobe no céu e as sombras vão minguando na Terra. Uma mosca pousou na parte exterior do vidro da janela, mas logo partiu. O fim-de-semana desdobra-se diante de mim, tem ainda as mãos limpas, sem sombras nos dedos ou sangue nas unhas. A inocência todavia é coisa que se perde com facilidade e, com o passar das horas, a exaltante candura inicial dará lugar à cínica condescendência de quem vive com o que tem de ser, antes de chegar a melancolia elegíaca com que os ombros se encolhem perante o que está a chegar, descobrindo no fim-de-semana as mãos pretas de sujidade e as unhas tintas de sangue. Talvez tenha acordado com a velha disposição para a hipérbole. Hoje é sábado, dia 20 de Junho. O solstício de Verão está marcado para as 22h e 44m e os dias começarão a declinar. O Tennessee naqueles dias escolhidos por McCarthy para o seu primeiro romance era um lugar difícil, mas também, chegados os calores, o abrigo da Serra de Aire, com o seu sistema de grutas e acontecimentos inusitados, não é fácil.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Diferenças ontológicas

Devias paragrafar estes textos, mudas de assunto a torto e a direito e vai tudo de seguida, as pessoas cansam-se. Uma das coisas que há para aprender na vida é que não se deve dar atenção ao que diz aquele daimon, como se translitera o raio da palavra?, que vive dentro de nós para expelir, a torto e a direito, opiniões que não lhe pedimos. Sim, não foi apenas Sócrates que teve um daimon, eu também tenho um e conheço pessoas que têm vários. Esta será aliás a melhor explicação para a heteronímia de Fernando Pessoa, embora me abstenha de dar opinião sobre tal assunto. Respondi-lhe, ao daimon, que sou dado a monoblocos, portanto fazer parágrafos nestes textos está fora das minhas cogitações. Ainda bem que não te dá para escreveres romances, atirou ele, pois teríamos oitocentas páginas com um único parágrafo. Olhei-o de soslaio, ameaçador, e ele desapareceu para as caves da minha consciência. Quando não temos nada para dizer sobre o mundo, como é o meu caso, inventamos coisas sem nexo, só para preencher o espaço em branco. Ontem o meu neto esteve aqui e confirmei que existe uma diferença ontológica entre rapazes e raparigas. Quando as minhas netas tinham a idade dele, mesmo a mais azougada, e azougue e autoridade não lhe faltavam, se sentadas comigo à secretária, ficavam a ver em sossego A Galinha Pintadinha no computador, negociando apenas o episódio que se seguiria. Ele, ao fim de uns minutos de ambientação, achou que o programa não seria ver a Masha e o Urso mas trepar para cima da secretária e mexer nos monitores, nos teclados, no rato e no mais que houvesse à disposição do dedo em riste. À minha frente tenho uns livros, na verdade são apenas dois, de um filósofo norte-americano sobre a construção da realidade social. Talvez ele me explique por que razão um aglomerado de electrões e protões fica quieto a ver a galinha pintadinha e o pintinho (é assim mesmo) amarelinho e outro julgue que a sua função é cabriolar em cima de secretárias. Hoje é sexta-feira, dia 19 de Junho. A semana desliza para o momento em que entregará a alma ao criador. Num poema de Eugénio de Andrade leio Toda a manhã procurei uma sílaba, mas noutro de Luís Quintais depara-mo com uma resposta extravagante Cruéis miragens, / pânico de moribundos. Evito a discussão e fecho ambos os livros. Consta que a epidemia continua e os infectados se multiplicam. Acho que vou almoçar. Eis uma coisa que me devolve a humanidade.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A blasfémia do Rei Afonso X

Ao levantar-me fui espreitar a rua para ver a máscara com que o dia se apresenta. Como se fora vítima de um sortilégio, fiquei a olhar a luz, as sombras e as folhas batidas pelo vento. Transportado para o mundo arcaico da infância, reconheci aquela tonalidade da luz da manhã, o ramalhar das árvores e o alongamento disforme das sombras, lembrando fantasmas e monstros. O fascínio não nasceu da evocação do passado nem da saudade desses tempos, mas da constância que se esconde por debaixo do turbilhão do mundo. Eram a mesma luz, o mesmo vento, as mesmas sombras. Também Parménides e Platão ficaram fascinados pela permanência e pela imobilidade, esses quase milagres num mundo que parece ser uma máquina de produzir metamorfoses e inconstâncias. A meditação logo se interrompeu. O canto de um pássaro, o grito de uma criança, o barulho rugoso de uma máquina e o mundo desassisado de Heraclito retomou o seu lugar. De imediato, as coisas começaram a transformar-se, o telemóvel a disparar avisos e as corveias quotidianas a chamarem-me. Mandei-as calar, mas recusaram-se e não tive outro remédio senão começar a fazer pela vida. Agora escrevo e observo o mundo a partir da minha secretária e não sei o que fazer com ele. Talvez não fosse ociosa a discussão sobre se este é ou não o melhor dos mundos possíveis. Se a resposta for sim, nem quero imaginar como seriam todos os outros. Seja como for, muito eu gosto de usar bordões e frases feitas, o melhor é não me aventurar em blasfémias como aquela que perdeu o sábio rei Afonso X de Castela. Se eu houvesse podido aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Nunca se sabe se os pombos que por aqui volteiam nos ares são ou não anjos e sendo, não sabemos se eles são dos caídos ou dos fiéis. Todo o cuidado é pouco e mesmo para lidar com pombos ou anjos é recomendável que se use máscara. Muitas coisas haveria para discorrer, mas o melhor é não maçar o leitor. Hoje é quinta-feira, dia 18 de Junho. Uma sirene anuncia a chegada das treze horas. Suponho que é tempo de pensar em almoçar, em vez de estar a carregar nas teclas para escrever um punhado de tolices. Não me conformo porém com o desprezo de Sancho, filho e sucessor de Afonso, pela última vontade do pai, a quem traíra. Pedira este que o coração fosse enterrado no Monte Calvário, talvez para se fazer perdoar da blasfémia, mas o filho deixou-o a apodrecer em Sevilha e, como se sabe, as coisas em Sevilha apodrecem muito depressa.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Preservativos faciais na meia-estação

Fui obrigado a retroceder. Já me tinha estivalado, já olhava com desconforto para o termostato, pensando que ele só serve para dar ordens de aquecimento e não de arrefecimento, quando a impância, e esta é a segunda palavra acabada de inventar, do Verão antecipado foi quebrada, a soberba da estação que se aproxima calcada na praça pública e eu tive me vestir à meia-estação, seja lá onde for que há uma estação que é apenas meia. O mundo está cheio de designações cujo sentido é obscuro, o que é uma vantagem para certos filósofos que à falta de melhor corrigem a linguagem. Isso talvez não seja pior que corrigir o mundo, como pretendem outros. Eu também gostaria muito de possuir um ânimo corrector, do género que habita a alma não dos filósofos mas dos correctores ortográficos. Quando algo em mim fosse sublinhado a vermelho, clicava no botão direito do rato e mandava substituir. Se não houvesse substituição disponível, mandava adicionar à minha natureza. Seria um defeito mas pela sua singularidade talvez se transformasse em virtude. Não está a ser um mês fácil, este Junho. Na esplanada do café aqui ao lado, estão as mesas dispostas com intervalos de segurança, à espera que pessoas com máscaras se sentem nelas, para depois tirar esse novo preservativo facial. Ninguém aparece, mas ao escrever preservativo facial tive uma epifania e percebi a natureza erótica de tudo o que se passa. Não entrarei em detalhes, mas a junção de face, boca e o que mais se deve mascarar por uma questão de segurança não terá deixado de dar ideias estranhas ao deus Cupido, isto para nos mantermos no nível da alta cultura clássica. Descobri ontem que há uma nova tradução da Eneida, de Virgílio, ao que consta muito boa. Vou encomendá-la, mesmo que alguém tenha dito em voz alevantada Cessem do sábio Grego e do Troiano / as navegações grandes que fizeram. Hoje é quarta-feira, diz 17 de Junho. Leio no jornal que a China parece estar a reconfinar e que as faculdades de medicina portugueses recusam abrir mais vagas para candidatos a senhores doutores. Fora eu um sábio como aqueles que existiam no Antigo Testamento, ou mesmo na Grécia antes desta se ter entregado nos braços dos filósofos, e diria nada de novo sob o Sol, mas não digo, pois propus-me, quando acordei, a evitar lugares comuns.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Deu-lhes um tranglimango

Pobres orquídeas, deu-lhes o trangolomango. Não, o que lhes deu foi mesmo o tanglomanglo. Para não faltar à verdade aquilo que muitas vezes ouvi foi coitado, deu-lhe um tranglimango e foi-se desta para melhor. Aliás, é a forma sonora mais agradável, mas nenhum dicionarista, nem o Houaiss, se dignou vir aqui, a este nobre rincão, para registar o uso da corruptela. Seja como for, alguém deitou um feitiço às orquídeas e elas perderam a cabeça. Começam a despir-se, em sessões de strip-tease, como se o friso onde habitam fosse um cabaret. Já as intimei a comportarem-se, mas elas olham-me com olímpico desprezo e deixam cair, com ademanes desapropriados, mais uma flor. Isto levanta um problema filosófico dos mais difíceis, o da relação entre o mal moral e o mal natural. Muito se discutiu sobre a ligação entre os desmandos da natureza, terramotos, furacões, epidemias e outros, com a maldade humana, a imoralidade com que os homens conduzem as suas vidas. Chegou a supor-se que a maldade da natureza era um castigo da maldade dos homens, mas ao olhar o desaforo das orquídeas percebe-se que o problema é mais complexo e que a própria natureza possui uma propensão para a imoralidade que convém castigar, embora não se saiba quem aplicará tal punição. Ao olhar para o que está escrito perguntei-me se o acentuado arrefecimento nocturno terá alguma influência no meu estado mental, na decomposição de que o texto é um sintoma a não desprezar. Ando há dias para me lembrar do nome de uns arbustos de jardim que dão umas flores assalmonadas e viscosas, é o que me parece, e que polvilham a escola aqui ao lado. Não consigo. Presumo, ao olhar para a minha agenda, que o dia não vai ser fácil. Na secretária estão umas moedas que, esquecidas num bolso, foram à máquina de lavar. Das sete, apenas três são portuguesas. Um euro alemão e outro espanhol, vinte cêntimos franceses e dez cêntimos holandeses. Talvez a União Europeia seja isto, a possibilidade de andar com moedas vindas sabe Deus de onde e de as lavarmos na máquina, para as purificarmos e evitarmos que se transformem em orquídeas dadas ao strip-tease. Hoje é terça-feira, dia 16 de Junho. O sol desce vagaroso sobre os telhados do casario, tomado por uma anemia que nos protege dos seus furores. Na rua, há gente a conversar e no telhado do prédio em frente dois pombos imitam anjos prontos para se precipitarem na balbúrdia humana. Como sempre, nada de novo sob o Sol.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Aproximação ao solstício

Hoje é um dia de difícil gestão, como o vão ser os próximos. Ainda por cima a herança genética recusou-me a inclinação para gestor, de tal maneira foi veemente a recusa que nem inveja sinto por quem é CEO – consta que significa chief executive officer e é uma das novas fontes de poluição da linguagem – quanto mais por quem não passa de simples gestor de produto. Não tenho alma de pastor nem de pai dos povos. Eu sei que todas estas metáforas vêm de lugares diferentes, mas no fundo assemelham-se, apenas as cores originais as distinguem, mas cor é coisa que facilmente se muda. Ainda não pus um pé na rua. O dia está melancólico, talvez pela aproximação do solstício. A Primavera exausta caminha em direcção ao Verão e, não tarda, os dias começarão a declinar, dando lugar a noites cada vez maiores, mais negras, mais opacas. Ontem, quando cheguei, havia uma grande confusão no friso das orquídeas. Flores tombadas, folhas cobertas de uma viscosidade doentia, um ar de abandono. Uma, completamente despida, parece que não resistirá. Oiço vozes na rua, vozes como antigamente se ouviam. Não percebo o que dizem, mas pela toada trata-se de conversa pacífica, algumas asserções sobre a vida, uma experiência que se narra para edificação de quem escuta, talvez um desfiar de velhas máximas entrecortadas por comentários. Apesar do vírus não se entregar, as coisas do mundo vão voltando com os seus dramas e as suas comédias, sendo uns o reverso das outras. Deveria dormir uma sesta para compensar as horas em que durante a noite o sono me abandonou. Hoje é segunda-feira, dia 15 de Junho. À meia-noite, o mês terá completado metade da sua existência, mas não encontro préstimo para esta informação, como não o encontro para quase todas as outras. As pálpebras, pesadas, podem-me que as deixe fecharem-se, mas eu pergunto-lhes se me julgam espanhol. Elas recuam no pedido e atarantadas deixam-se ficar entreabertas, para que os olhos vejam o que está diante deles, mesmo que eu não perceba o que é.

domingo, 14 de junho de 2020

Não fora astigmático...

Hoje o meu pai faria anos, noventa e três, mas há muito que deixou de os fazer, ao tomar o comboio para aquele mundo que tem porta de entrada mas não de saída. A última vez que ele fez anos eu já sabia que seria a última, mas não me recordo desse dia, nem do que falámos. Minto como é habitual. Almoçou em minha casa, um almoço em família em que se comeu um prato de que ele gostava particularmente. Já não me recordo como se combinava em mim a alegria e a tristeza ou como nele se manifestava o saber da escassez do tempo. A memória é uma rameira fantasiosa, devemos olhá-la com desconfiança e não lhe dar crédito. Passo os olhos pelas primeiras páginas dos jornais. Descubro que após a quarentena o número de divórcios dispara. Consigo imaginar o número a empunhar um revólver e a disparar divórcios como se fossem balas para um alvo a 100 metros de distância. Só espero que o número seja melhor atirador do que eu. Um dia, no serviço militar, fomos à carreira de tiro que havia para os lados de Espinho. Foram-nos dadas 5 balas de G3 que tínhamos de disparar para um alvo longínquo. Cada tiro no centro valia dez pontos. Deixei o meu alvo imaculado e cheguei aos zero pontos em cinquenta possíveis. Em contrapartida, o disparador do lado, rapaz exímio no manejo de armas e filho de um famoso, na época, inspector da judiciária, alcançou a proeza de obter oitenta pontos em cinquenta. Depois de se conferenciar naquela linguagem que só existe no serviço militar pensou-se que eu teria disparado no alvo errado. Deve ser do astigmatismo, informei. Esta é uma boa explicação para o facto de na vida errar continuamente o alvo. Não fora eu astigmático e toda a minha existência seria outra. As pessoas nem imaginam como coisas sem importância, pequenos defeitos do cristalino ou da córnea, as desviam do alvo que seria o delas e da glória a que ascenderiam caso o defeito não lhes desviasse os tiros. No sítio onde estou, mas de onde me irei embora não tarda, as pessoas entregam-se à existência como se tivessem sido submetidas a uma longa provação. De todos os casais que avistei na caminhada matinal não sei quantos se divorciarão nem se neles há astigmáticos, prontos a falhar o próximo casamento ou divórcio. Hoje é domingo, dia 14 de Junho. A manhã levantou-se ensolarada, mas um manto de nuvens estende os seus tentáculos no céu e ameaça os que gostam de pisar a areia como se uma praia fosse o paraíso. Os pássaros não se calam e também eles foram vítimas do castigo imposto aos que se atreveram a erguer a torre de Babel.

sábado, 13 de junho de 2020

Citações apócrifas

Junho aproxima-se rapidamente daquele ponto em que começará a declinar. Tem sido uma árdua ascensão ao cume, mas cumprida a etapa a velocidade da descida irá crescendo paulatinamente até que o mês se despenhe no abismo negro de onde não há retorno. Deveria ter começado este texto de outra maneira. Um pássaro canta e eu oiço-lhe o linguajar sem que dele perceba a mensagem. Outros respondem-lhe numa conversa secreta sobre o rumo do mundo. Para as aves, o mundo é diferente do nosso. Preocupam-se com os ares e a sua atenção à terra é, por certo, menor que aquela que lhe damos. Consta que a espécie humana anda muito preocupada com a questão das estátuas. Uns erguem, outros derrubam e quando os que derrubam erguem as suas, haverá outros que as derrubarão. Imagino que estes tempos de pandemia tenham diminuído as possibilidades de ocupação humana e, sem que fazer, a humanidade preocupa-se com estátuas. Faz sentido, pois elas são como espelhos que nos reproduzem e, como os malditos espelhos que multiplicam a humanidade, isto é a citação de uma citação apócrifa, elas mostram-nos a nossa horrível carantonha. Para me disfarçar, saí à rua não de máscara mas de panamá, se é que aquilo que pus na cabeça pode receber tal nome. Comprei-o o ano passado à porta de uma praia do Algarve. Vendiam-nos a dez euros. Todos iguais, fabricados numa república popular asiática e todos de papel. Pensei que no fim daquele dia teria de o mandar reciclar junto com os jornais e o cartão. Enganei-me. Usei-o hoje e tem ar de que ainda resistirá a mais uma dúzia de usos. O almoço será mais tarde, uma honra concedida ao Santo António por injunção das minhas netas. Já enfeitaram o lugar do repasto e cheira a sardinha assada. Leio o boletim epidemiológico como se lesse o meteorológico. Apesar do sol, o tempo está longe de ser benevolente. Continuam os raios e os coriscos. Hoje é sábado, dia 13 de Junho. O mundo caminha desatinado, mas isso não é uma novidade. Sento-me e olho o espectáculo sem presunção de compreendê-lo. Fui educado na terrível tradição daqueles que vão ao estádio não para competir nem para fazer negócio, mas apenas para ver. Também esta frase é o resultado de uma citação apócrifa, tal como eu.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Ó meu santo antoninho

Estão incertos os dias de Junho, um humor volúvel, euforia e depressão. Onde me encontro neste momento, chove. Os pingos de chuva batem nos vidros da janela, fazem pequenas bolhas para depois deslizarem, enchendo o vidro de pequenos regatos que, ao confundirem-se, transformam-se em lago. O mundo está cheio destas metamorfoses, um conjunto de coisas que ao juntarem-se forma uma outra. Estava a ler o jornal e vejo a palavra palimpsesto. É uma bela palavra, dotada de musicalidade, embora eu não a recomendasse para uso poético. Todos nós somos textos que se escrevem no lugar onde outros textos foram escritos e logo apagados. Queria eu dizer que também as nossas vidas fazem parte de um palimpsesto de que não sabemos a origem nem temos a mais leve desconfiança como ele, um dia muito depois do nosso texto ter sido apagado, acabará. Talvez nas mãos de algum antiquário cósmico contrabandista de velharias. De manhã, caminhei durante seis quilómetros, o corpo começou a etapa muito exuberante, mas a partir de certa altura a energia começou a definhar e o ritmo da passada abrandou, deixando-me longe do record pessoal, que já de si é miserável. Cães ladram na rua e um buraco nas nuvens deixa ver um céu anil. Avisto duas torres altas, antigas chaminés industriais feitas em tijolo, por onde a fumaça negra se elevava aos céus, desenhando círculos, espirais, nuvens densas e tóxicas. São agora pacíficos adornos de memórias que, com o passar dos dias, mudaram de infelizes para o seu contrário, como acontece sempre. O meu email continua sob fogo inimigo. Como bombas, caem nele mensagens, ainda por cima já nem se pode matar o mensageiro que fica no resguardo do lar a disparar setas envenenadas como Cupido lançava as de amor, não menos venenosas, claro. O melhor é cessar por aqui, para que a deriva não me leve a mostrar a loucura que há muito disfarço, não sem algum êxito. Hoje é sexta-feira, dia 12 de Junho. Um tempo de santos populares – ó meu rico santo antoninho – pouco aberto a comemorações. As adolescentes da casa querem uns santos caseiros, com sardinhas e bandeiras de uma certa marca que se promove nestas ocasiões em Lisboa. Não digo qual, porque isto não é uma agência de publicidade. Antes fora, grita-me a consciência. Olho-a com desprezo e encolho os ombros. Sardinhas, então, mas no dia do santo. Sentença lida.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O génio maligno e o canto do galo

Um aguaceiro não previsto encurtou a minha caminhada de hoje em mais de dois quilómetros. Estava eu tão docilmente disposto a acumular pontos cardio, que segundo a app que me monitoriza as deambulações, são recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e os elementos decidiram conspirar contra a minha saúde, a minha vontade de me roubar à inércia do ser sedentário que vive dentro do meu corpo. Conforme os anos passam e a experiência do mundo aumenta, mais convencido estou que a realidade é um tecido perverso que um génio maligno, mais poderoso do que aquele que assombrou as meditações melancólicas do senhor Descartes, vai tecendo para se rir dos mortais, estragando-lhes os projectos, baldando-lhe as expectativas, transformando a esperança na indiferença ou mesmo no mais profundo desespero. É possível, penso, que o desespero não tenha profundidade, que seja apenas um ser bidimensional, uma superfície, e que seja ilegítimo dizer profundo desespero. Tudo é possível neste mundo, mesmo as coisas mais dignas de descrédito. É inverosímil, mas a verdade é que estou a ouvir um galo a cantar, se é que se pode chamar canto à propensão vocal dos galarotes para o exibicionismo. Ele insiste, insiste, levado por uma estranha necessidade de manifestar a sua existência. Fora ele humano e seria caso de lhe recomendar uma terapia psicanalítica, deitá-lo no divã, para que rememorasse o acontecimento traumático passado na infância que o leva a este exibicionismo vocálico. Ele haveria de falar de sonhos e entregar-se à associação livre, enquanto o psicanalista tomaria notas num caderno de capas azuis. Sempre se trataria de um galarote e convinha não desmoralizá-lo com um caderno de capas cor-de-rosa. Desconfio que estas últimas palavras não serão particularmente apreciadas e adaptadas ao tempo em que vivemos, mas eu já não pertenço a este tempo. Seja como for, a linguagem sempre foi uma coisa perigosa e agora está cheia de vigilantes, não vá ela incendiar-se e atear um fogo maior que o grande incêndio de Roma. Hoje é quinta-feira, dia 11 de Junho. Feriado religioso do Corpo de Deus que há uns anos foi abolido, mas depois restaurado, colocando o corpo divino no seu devido lugar, com gratidão geral de crentes, agnósticos e ateus, e desespero daqueles que julgam que o ócio dos outros é vicioso e que só o trabalho liberta. Será esta frase uma versão da falácia reductio ad Hitlerum?

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A vida assim

São precisas umas coisas do supermercado. Muito bem. Entra-se no carro e vai-se direito ao templo onde o necessário é vendido como se de uma simonia se tratasse. Quando se chega, descobre-se que são muitos os que tiveram a mesma precisão, uma fila enorme de fiéis que tenta manter a distância e aguarda que o acólito lhes dê entrada. O carro nem pára. O melhor é ir a outra paróquia. Constata-se que a nova igreja tem menos fiéis. Onde está a máscara? Põe-se a máscara, entra-se, higieniza-se as mãos e lá se descobrem as coisas de que havia precisão. Não me agradam os vinhos que por aqui há, digo. Sai-se, tira-se a máscara e sorve-se o ar lentamente. Uma esplanada à espera. Quero ver o que há para comer. Onde pus o raio da máscara, pergunto-me. Lá a descubro. Ponho-a, entro, higienizo as mãos e escolho. Saio, sento-me e tiro a máscara. Torno a sorver o ar com lentidão. Uma chamuça, ainda antes do almoço, oiço. Haveria de ser um rissol, um croquete? É o que há. Também quero avô. São duas, então. Temos de tornar a higienizar as mãos, pergunta a mais nova, para logo querer saber se há bolos. Não há. A vida agora é isto, já nem sei onde pôr as mãos, os olhos, a boca, o nariz. Vale-me a chamuça, que me há-de aumentar o colesterol, mesmo se higienizo as mãos. Chegado a casa ligo o computador depois de higienizar as mãos e mudar de roupa. A máquina informa-me que está actualizar, só mais um momento, mas este dilata-se, dilata-se num nunca mais acabar. Pego num livro de poemas e num verso vejo a palavra inconsútil. Franzo o sobrolho. Não seria melhor usar sem costura, interrogo-me. As actualizações continuam. Só um momento, não desligue o computador. Não desligo e agradeço por ele não me tratar por tu, ao menos ele, dou-lhe os momentos todos e até me actualizava a mim se pudesse, só para lhe agradar. Leio desci pela imponente escada da juventude e fico perplexo, o que fará ali o adjectivo? Os pneus das bicicletas estão vazios, retine nos meus ouvidos. Eu sei, já trato disso, respondo. Hoje é quarta-feira, dia 10 de Junho. A pátria celebra-se na voz do presidente. O cardeal poeta assevera que Camões desconfinou Portugal e eu penso na chamuça, nos meses que passaram sem ter ido a Lisboa, que não ponho um pé num restaurante indiano ou goês, que não deixa de ser indiano, mas tem um travo do desconfinamento camoniano. Tenho de procurar a bomba das bicicletas das crianças.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Divagações de terça à tarde

Entardece. Escrevo esta palavra como se ela contivesse um destino, como se o pôr-do-sol, ainda por chegar, anunciasse um crepúsculo final, ao qual se seguiria a noite eterna. Este pathos que enterneceu gerações tomadas pela angústia existencial é uma falsificação. As tardes são seguidas pelas noites e estas pelas auroras que trarão manhãs que declinarão e ao meio-dia hão-de morrer nos braços da tarde, numa monotonia sem fim. Não estava previsto que o narrador se entregasse a estas divagações, que tentasse raptar os leitores do contacto com a vida, para os enrodilhar em assuntos que não movem o mundo e, por isso, não interessam a ninguém. Muitas foram as vezes que escutei isso não interessa ao Menino Jesus, numa tentativa blasfema de limitar os interesses do filho do Homem. Afastemo-nos do território escorregadio da teologia. Uma conversa chega aos meus ouvidos. Vem cheia de realidade. Um drama qualquer, vidas desestruturadas, gente perdida, abandonada pelos deuses. Gente desnorteada, oiço. Há exclamações de espanto, comiseração, enquanto uma sombra se prolonga pela rua, pisada por um transeunte de calções e boné que vai apressado para um encontro secreto, imagino-o pelo andar comprometido, o olhar furtivo a espiar horizontes. Caio em mim e digo-me que ninguém vai para um encontro secreto de calções e boné. Um gato equilibra-se no muro, dá uns passos, procura uma mancha de sol e deita-se. Dedilho o calendário e descubro que há dois feriados seguidos, um cívico e outro religioso. A cada um a sua liturgia. As vozes não se calam, a desgraça é infinita e o vozear limitado. Hoje é terça-feira, dia 9 de Junho. Enrolo-me na tarde, esqueço o infortúnio, ponho de lado as tragédias e sento-me. Hei-de abrir um livro e começar a ler ou pego em mim e obrigo as pernas a porem-se em movimento.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Um grito escalofriante

A sala é desmesurada para o meu tamanho, para a experiência que tinha do mundo. Ao fundo, um friso de professores com ar inóspito, mapas nas paredes. Depois de mostrar sabedoria sobre as produções das províncias ultramarinas, um eufemismo em voga, vou para o quadro negro. Vestido com bata branca, um dos oficiantes inquire-me sobre questões esotéricas, tais como aritmética, geometria. Escrevo na ardósia, resolvo problemas, faço contas, desenho figuras, apago. O cabelo do interrogador era branco, talvez tivesse sido louro, e a face rubicunda, com ar severo que lhe sublinhava a dignidade, apesar do tom rosáceo da pele. Havia espectadores numa bancada improvisada. Não podiam, suponho, aplaudir ou patear, mas guardar reverente silêncio. Estou ali solitário perante um tribunal que me julgará sem piedade. Faltavam-me ainda uns meses para ter dez anos. Isto não foi um pesadelo, mas uma memória antiga que irrompeu em mim depois de almoço. Por vezes sou assaltado por fragmentos do passado, coisas mortas que ressuscitam, sem que eu saiba como. Vêm da terra do esquecimento, abrem caminhos sinuosos e desembocam na grande praça da consciência. Não sei o que fazer deles. Se a minha fosse uma alma de coleccionador juntava-os para os catalogar e depois arrumar numa vitrine e os contemplar de quando em vez. Estou a falar de um tempo muito arcaico, onde a vida ainda era regulada por ritos de passagem, mas do que tenho saudades é de uma certa literatura de aventuras do oeste, livros pequenos, com 64 páginas e seis desenhos, letras minúsculas, organizados em colecções com nomes como 6 Balas, Cow-Boy, Fúria dos Bravos e, supremo encanto, Gatilho. Naqueles dias em que as férias se prolongavam por três meses, as tardes de calor eram enfrentadas com a pistola na mão e o dedo no gatilho. Se havia pandemias, não me informavam, mas os bons ganhavam sempre aos maus e a justiça não era uma quimera. Não me perguntam, mas se perguntassem que livros influenciaram o meu gosto literário, diria de imediato os da colecção 6 Balas ou Fúria dos Bravos. Como é que se pode ler Kafka, Mann ou Dostoiévski, se nunca se leu Um Milionário no Far-West ou A Terra das Caveiras? Sim, é verdade, não tenho assunto. Hoje é segunda-feira, dia 8 de Junho. A temperatura está moderada e o sol cordato. Leio: Recuperando o revólver, despejou a carga sobre o segundo assaltante, quando este tentava apanhar Bill Shaterly desprevenido, no momento em que carregava a arma. O meliante soltou um grito escalofriante – isso mesmo, escalofriante – e, em seguida, caiu de bruços, com o estômago perfurado (Uriah Moltan, Matar ou Morrer). Se o leitor não sabe o que é escalofriante nem tão pouco um escalofrío, recomendo um dicionário de espanhol. Eu também não sabia.

domingo, 7 de junho de 2020

Não dar por nada


Uma vertigem, daquelas que se sentem quando se bebeu um pouco, mas não tanto que não se permaneça no estado de sobriedade. Depois, uma sonolência que não pára de atormentar as pálpebras, incitando-as a cerrarem-se, a cortarem-me as imagens do mundo, como se me tivesse esquecido de pagar a conta na operadora que prodigaliza os serviços de televisão. Olhei pela janela e a paisagem pareceu-me uma pintura de um pintor que muito se cultua por aqui, como se fosse um santo. O pior é que o lugar dos pintores não é o altar. Ele esteve em Paris, que é um lugar certo para pintores do tempo dele, naqueles anos em que tudo efervescia e as artes plásticas sofreram tal revolução que uma era nova começou. Ele não deu por nada. Talvez seja por isso que muito se gosta dele. Cultivamos com esmero quem não dá por nada e persistimos em não dar por nada. Uma luz esbranquiçada dilacera a tarde, abre-lhe sulcos, pequenos veios por onde deslizam os raios solares, sombras se algum objecto se interpõe pelo caminho. Uma das coisas mais inúteis que o homem inventou foi as instruções. Mesmo as mais claras e distintas não servem para nada. Não há quem as escute ou leia. Quem teve a ideia de criar instruções para facilitar a execução das tarefas sobrevalorizou a humanidade. Ninguém quer saber de instruções para coisa alguma. As pessoas preferem a tentativa e erro do que a comodidade de seguir uma instrução. Têm à sua frente a eternidade para fazerem aquilo que, seguindo as indicações coligidas com amor e destreza, se faria num abrir e fechar de olhos. Não sei o que me deu para estar aqui a moralizar. Deveria pegar em mim, pôr a máscara descer no elevador, tirar a máscara e ir ao campo comprar laranjas. Do outro lado da avenida, um jacarandá está exuberante. Deixo os olhos presos nele por alguns instantes, depois movo-os em direcção ao castelo e recolho-os em mim, fechando as pálpebras. Hoje é domingo, dia 7 de Junho. A semana que entra será na utilidade mais curta, mais sensata, pois também as semanas podem ser insensatas. Vou comprar laranjas ao campo ou limões à praça, desde que não necessite de instruções, pois também eu não as escuto ou leio. Eu bem tento encurtar os textos, mas depois esqueço-me.

sábado, 6 de junho de 2020

Um dia estragado

Acordei a desoras. A manhã corria já desenfreada para a tarde quando me levantei. Não gosto de estar na cama para além das nove da manhã, e isso apenas em dias excepcionais, mas uma insónia deu-me oportunidade para ler durante o amanhecer umas duas horas. Depois adormeci e foi o que se viu. Um dia estragado, pensei ao pôr os pés no chão e ir abrir a persiana da porta que dá para a varanda. Valeu-me ao humor a benevolência da balança. Continua cordata, evitando insultar-me ou entregar-se ao culto da hipérbole. Fui às compras numa grande superfície. Como numa festa de Carnaval, estava toda a gente mascarada, mas agora a dança tem uma nova particularidade. Os corpos afastam-se em vez de se aproximarem. Os passos não visam o encontro harmónico mas o afastamento prudente. Também é verdade que ninguém vai a um hipermercado para dançar, mesmo que seja com a rapariga da caixa. Um dia destes escrevo um ensaio sobre o erotismo em tempo de pandemia. Levantar tarde, tarde almoçar. Fico a olhar para estas palavras, com vontade de as apagar, mas resisto. A caixa de email está a sofrer um ataque aéreo. Parecem bombas a cair nela. Terei de lhe dar alguma atenção, montar as antiaéreas e começar a disparar sempre que o inimigo enviar um email. Ontem tive uma revelação. Estive tentado em escrever epifania. Um anúncio mostrou-me o caminho da salvação. Apregoava um dispositivo que se coloca em cima da página do livro e a ilumina, permitindo a leitura sem perturbar o sono de quem, ao lado, ainda há pessoas que dormem com outras ao lado, de quem, dizia, tenha dificuldade em dormir com luz. Apressei-me a comprar, mas segundo me informaram vai demorar tempo a chegar. Vem de longe, tem muito que andar. Só espero que não se transvie no caminho, pois não há coisa pior do que perder aquilo que nos pode salvar. Hoje é sábado, dia 6 de Junho. A temperatura está amena, a luz remeteu-se à sobriedade e o mundo rumoreja em diálogo com uma máquina doméstica que se excede no zelo para que foi criada. Até uma máquina foi criada para alguma coisa, só eu é que ainda não percebi para que fui criado. Não blasfemes, diz-me a consciência. No telemóvel, uma aplicação pergunta-me se eu quero optimizar as fotografias. Respondo-lhe que gostaria de optimizar muitas coisas, mas as fotografias podem ficar como estão. Não blasfemo.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

A realidade está de volta

Depois de almoço, o estilete de cristal do sono perfurou-me as têmporas e a cabeça descaiu, o queixo tombou contra o peito e devo ter ressonado. Se sonhei, não dei por isso. Quando acordei, um fio de baba corria-me da boca, mas há coisas em que convém ser parco na descrição. O computador tinha hibernado e aquilo que eu estava a fazer congelou. Terei agora de recorrer ao micro-ondas para o descongelar, para o retirar da gélida petrificação em que caiu. O mais acertado seria também meter-me no aparelho e descongelar-me, para ver se me ocorre alguma coisa que faça sentido. Tenho uma revista em cima da secretária há mais de duas semanas. Tinha intenção de ler um artigo, mas olho a capa onde a prosa se anuncia, encolho os ombros e passo para outra coisa. Noutra altura, penso. E se essa altura nunca chegar, por certo não perderei grande coisa. A realidade está de volta ao lar dos portugueses. Voltou o futebol, a metafísica da bola na trave, a estética do fora-de-jogo e a ontologia da bola na mão ou mão na bola. Pressinto uma parte da pátria apaziguada, depois de uma longa ressaca. Não deveria tecer comentários jocosos sobre uma indústria tão poderosa e que alimenta tanta gente. Cada um aguarda a morte como quer ou pode e há coisas piores do que a bola, que ao menos é redonda, e nisso está, como bem sabiam os gregos, toda a perfeição. Nos relatos de futebol que eu ouvia na infância, pois também eu tive infância e gostei muito de futebol, os locutores tratavam a bola por esférico. Hoje não sei se continuam influenciados pela geometria ou se a origem das metáforas com que narram o jogo será outra, mais rude, mais de acordo com uma massa que não suporta erudições. Isto são suposições de um velho que, vendo a areia da ampulheta a correr demasiado depressa para seu gosto, é tocado pela equívoca nostalgia dos bons velhos tempos, como se os tempos alguma vez fossem bons. Bom é aquilo que não muda, que não se move, que não corre, e o tempo não pára de mudar, mover-se, correr como uma lebre perseguida por um cão de caça. Esta triste analogia venatória era dispensável, bem o sei, mas foi a que consegui. Hoje é sexta-feira, dia 5 de Junho. O fim-de-semana anunciou-se e sinto calor. Se abrir uma janela, talvez a temperatura desça. Anoto na agenda não dormir após o almoço e nunca mais usar expressões ridículas como o estilete de cristal do sono. Um vómito.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Sem nome

As ruas embrulham-se no ruído de antigamente. Vozes, rumores de automóveis, roncos de motociclos sempre indispostos, gritos de crianças. Os pássaros calaram-se. Estarão em algum estúdio a calibrar a potência do canto para se sobreporem à novo situação. Com ímpeto muito moderado, avanço por dentro de O Jardim dos Finzi-Contini. Tendo lido já mais de cinco sextos do romance há um problema que não deixa de me assaltar. Desconheço o nome do narrador – um narrador autodiegético, daqueles que são protagonistas da história – e não faço a mínima ideia se alguma vez o nome é referido ou não. Compenso-me imaginando que, por uma questão de contenção, se tenha abstido de se nomear. Se for assim, compreendo-o muito bem, pois eu também sou um narrador que não me autonomeio. Não porque seja contido, mas porque sou destituído de nome. É possível que um dia, ao escrever mais um destes textos infelizes, descubra o nome que me hei-de dar. À minha frente tenho correspondência. Orçamentos para obras e uma carta de uma seguradora. Tudo isto é cansativo. As cláusulas do orçamento, a informação de que ao preço indicado acresce IVA, segundo as tabelas em vigor, as letras invisíveis da seguradora, aquilo que ela segura e o que larga de mão. Não tivesse eu almoçado há pouco e o sono não me chamasse, teria aqui uma grande oportunidade para meditar sobre a prisão do mundo da vida nas malhas intrincadas da burocracia. Que belas analogias haveria de fazer com os romances de Kafka ou com alguma das distopias que a imaginação humana criou. A sonolência, porém, impede-me meditações a esta hora. Tenho há dois dias um livro, ainda embrulhado, em quarentena numa varanda. Desconfio que não devo estar bem, mas resisto em libertá-lo do papel que o envolve. Hoje é quinta-feira, dia 4 de Junho. O tempo por aqui está ameno, as horas deslizam sorrateiras, um casal passa na praceta em passo cambado, ele à frente, ela atrás, cansados um do outro, esquecidos da ilusão que os juntou. Um cão uiva e nesse uivo está toda a sabedoria do mundo.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A conquista da glória dos altares

Da gárgula escorre uma água suja, malcheirosa. Abre um sulco na terra, um ribeiro minúsculo, e desliza sem pressa para ir morrer num buraco fétido, coberto de ervas e arbustos secos. Não faço ideia de que sonho faz parte esta descrição, pois raramente me recordo dos sonhos, mas não tenho dúvidas que se extraviou de algum e começou a dançar dentro de mim, até que saiu em forma de texto, antes que a sua pestilência destilasse e se transformasse numa bebida amarga e venenosa. Lá em baixo, há vozes. Um homem, pelo menos um, e uma mulher conversam. A voz dela ouve-se menos, é mais exígua, quase sumida dentro do silêncio. Ele enche a praceta com um som redondo, saltitante, como se fosse uma bola excessivamente cheia. Há risos de conveniência, hesitações. Pela primeira vez em muitas semanas fui ao sítio onde oficio um ritual que me permite enfrentar a terrível necessidade. Ao sair de lá, estive tentado em ir a uma pastelaria. Lembrei-me da velha disputa com a balança e contive-me. Há que cultivar a paz. Ao chegar ao prédio onde vivo tomei a decisão de evitar o elevador e dispus-me a subir os cinco andares que me separam da terra. Ao entrar em casa, pensei que subir aos céus é muito árduo e pessoas haverá com pernas tão fracas que desistem a meio do caminho. Talvez a santidade seja uma questão de musculação dos membros inferiores, um trabalho contínuo de ginásio, onde os candidatos à glória dos altares encontrarão os seus personal trainers. Agora que esses templos do músculo reabriram, não lhes hão-de faltar devotos ansiosos de ganhar vigor para subirem ao céu. Não se pense que sou dado à blasfémia. Não sou. O que acontece é que nem sempre me ocorrem metáforas decentes e então pego no que me vem à cabeça, e aquilo que vem à cabeça das pessoas raramente é coisa que se recomende. A rede de internet está a irritar-me e, como se sabe, a impaciência não ajuda a subir a escada que nos leva ao alto. Hoje é quarta-feira, dia 3 de Junho. Este é um mês cuja função nunca percebi. Serve para quê? Daqui a uns minutos vou videoconferenciar. Respiro fundo e digo-me que isso é como ir ao ginásio para treinar os músculos das pernas para subir aos céus. As persianas tamborilam batidas pelo vento, enquanto as folhas das acácias tremem como se sofressem de uma doença degenerativa. Não sofrem.

terça-feira, 2 de junho de 2020

As frívolas amenidades

Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem. Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software  que uso seja de tão má qualidade que não consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado, cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões, gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2 de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

A força do prefixo des-

O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso, mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem por fundamento o Urmensch, cada um de nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.