sábado, 30 de novembro de 2019

Disposição para a culpa

No lugar onde me encontro neste momento chove de mansinho, uma água hesitante, como se as nuvens se sentissem culpadas de molharem quem passa, mas a culpa não fosse suficientemente forte para se conterem. É isto que também se passa com as acções dos homens. Se eu fosse uma pessoa decente e moderna diria acções dos homens e das mulheres, mas sou anacrónico, certo tipo de decências passam-me ao lado e se cultivo a anáfora tento evitar a redundância. Como as nuvens, também eu não consegui conter-me e deixei que o fel impregnasse a malfadada prosa e me desviasse daquilo que queria dizer. As más acções humanas nascem muitas vezes duma hesitação trazida por um sentimento de culpa não suficientemente treinado e vigoroso. Uma boa educação deveria começar por incrustar bem fundo na alma a disposição para a culpa. O autor destas palavras, ao pô-las na minha boca, não tem qualquer consideração por mim. Que Deus lhe perdoe. A chuva não pára, as pessoas passam alheadas, chapéu aberto, e não tarda tenho de pôr-me a caminho. O que vale é que não me esqueci do guarda-chuva.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Os lírios do campo

A sexta-feira progride entre o cinzento dos céus e a tristeza da cidade. Há sempre neste dia da semana um pathos que, contra o que seria de esperar, faz descer nos corações um véu de melancolia, como se o desejado fim-de-semana fosse mais uma ameaça pela sua transitoriedade que um motivo de júbilo pela sua existência. Somos difíceis de contentar. Talvez exista uma memória histórica que se tenha entranhado no nosso código genético e que dispara, sem que se saiba porquê, estes estados de alma. Li que hoje em dia os seres humanos livres trabalham muito mais que os servos da Idade Média. Eu sei que todo o fulgor que nos rodeia, essa possibilidade de fazer compras sem fim, de não perder qualquer promoção, de nos atafulharmos de tudo o que não precisamos, eu sei, dizia, que isso exige muito trabalho, que devemos estar sempre mobilizados para a grande batalha produtiva. E depois lembro-me que os lírios do campo não trabalham nem fiam, mas que Salomão em toda a sua glória nunca se vestiu como qualquer um deles. Temo que a educação religiosa que recebi me tornou completamente desadequado ao mundo onde sobrevivo. Ou talvez eu fosse já desadequado e que a educação recebida, a que não dei a sequência que era desejada, me sirva de desculpa. São ínvios os caminhos do Senhor.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O caso do santo que não faz milagres

À tarde um acaso profissional levou-me a pensar em Perry Mason e Paul Drake. Não me esqueci, claro, de Della Street. Há muitos anos que não convivo com estas pessoas, mas houve uma altura em que a sua companhia foi para mim fonte de grande prazer. Pensei em Mason e Drake porque necessitava dos seus serviços para uma das tarefas que a existência me impõe. Foi um pensamento instrumental, confesso. Talvez eles possam ajudar-me a resolver o caso do santo que não faz milagres. Sei que estou a tornar-me obscuro, mas a vida também é feita de obscuridades. Quem seja o santo e que milagres queria eu dele, não vem agora à colação. De Della Street lembro-me da imutabilidade da sua aparência, de nunca se aventurar na casa dos trinta anos e da eficiência e fidelidade profissionais. Talvez numa parte recôndita da minha alma habitasse, naquele tempo, um fraquinho por ela. Tudo é possível, pois são mais as coisas que não sabemos que aquelas que sabemos. Estas são as cogitações que me obrigam a pensar, muitas vezes contra a minha vontade, mas quando se é o produto da imaginação doentia de um déspota não é de esperar outra coisa. Se soubesse onde é que guardei o número do escritório do Mason, ainda lhe ligava hoje.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Um belo livro

Tenho entre mãos o belíssimo livro de poesia de Ana Luísa Amaral, Ágora. Comprei-o há pouco e ainda não tive tempo para ler qualquer poema, mas a beleza do objecto, antes que a do espírito se manifeste, vem-lhe do corpo. Uma edição de capa dura, onde se reproduz a pintura Jacob lutando com o anjo, de Bartholomeus  Breenbergh, nascido em Utreque no ano de 1598. Cada poema é acompanhado pela reprodução de um quadro. Num deles, de Georges de La Tour, vê-se uma Madalena penitente, e todo o livro é um jogo de diluição de fronteiras ou de contaminação. A tarde parecia propícia para a leitura. Hoje não houve até agora ensaio do grupo de baile da escola aqui ao lado, mas um aspirador ruidoso teima em assegurar o asseio de um dos apartamentos do prédio. Também nas instalações da antiga agência bancária, prossegue uma batucada sem ritmo, que se repercute nas paredes e desagua em mim. Folheio o livro com cuidado e vejo as pinturas. Há duas Salomés, mas o que me prende os olhos é uma reprodução de Ecce Ancilla Domini, de Dante Gabriel Rossetti. Ali vejo tudo o que há de feminino numa mulher, mas esta minha frase precisa de ser censurada, pois os dias não correm de feição a considerações metafísicas. Enquanto a tarde desliza brandamente sob um céu mesclado de azul e cinza, eu fico a olhar com demora a escrava do Senhor. Afinal, o grupo de baile sempre tem direito ao seu ensaio.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Submetidos à irmandade

Gostaria muito de crer que a proposição “os pinguins são seres humanos” é verdadeira, como me afiançaram talvez por desfaçatez ou distracção. Nunca se sabe o que move os indivíduos pertencentes à nossa espécie. Apesar do meu esforço em torcer a consciência, tive de me declarar incrédulo. Não ser crente num mundo como aquele que frequento para obstar à maldita necessidade é errado e começa a ser perigoso. A minha realidade existencial é superintendida por uma espécie particular de teólogos. Estes têm por divisa o quanto mais absurdas forem as nossas crenças com mais empenho as devemos impor. Fazem-no com denodo e sem cansaço. Com o passar dos anos a produção teológica tornou-se exorbitante e não se observa nenhum sinal de abrandamento. A matéria de fé é tão extensa e a dogmática tão hiperbólica que é impossível que qualquer um dos superentendidos pela irmandade não seja numa qualquer altura um verdadeiro heresiarca. Como todos sabemos, os heresiarcas não costumam ter um bom destino, e talvez seja por isso que aqueles que como eu se submetem à irmandade tenham sempre a consciência pesada. Não por um qualquer pecado capital, mas por sustentarem por palavras e acções uma qualquer heresia da qual não têm consciência. Já pensei estabelecer uma correlação entre o tipo de textos que escrevo e os dias da semana. Talvez se mostrasse que as terças-feiras não são especialmente propícias para escrever coisas com nexo. Fico por aqui, pois espera-me uma tarefa sem a qual o mundo ficaria bem pior.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Versão free

Avariou-se o termóstato da caldeira. Pressuroso, fui à etiqueta colada ao dispositivo para ver o número de telemóvel de quem cuida destas coisas, uma empresa familiar. Queria falar para o filho, mas digitei o número do pai que estava na linha de cima. Apareceu uma senhora que não era a mãe, nada sabia de termóstatos e muito menos de caldeiras. Depois de me desculpar, pensei que não estava mal. Dois erros numa única tarefa, das mais simples que se pode atribuir a alguém. Se pudesse despedia-me a mim mesmo e substituía-me por uma versão melhorada, que se enganasse menos ou visse melhor. Temo, porém, que nem numa versão premium, daquelas pagas e renováveis ano a ano, o serviço estaria ao nível desejado. Pensando bem fico-me pela versão gratuita ou para parecer cosmopolita, coisa que não sou, pela free. Não é grande coisa mas tem a vantagem de contribuir para a poupança nacional.

domingo, 24 de novembro de 2019

Neblinas e inacabamentos

O domingo nasceu coberto de neblina. O hospital é apenas um esboço suave perdido numa planície de cinza e o arvoredo da escola ao fundo parece uma cortina de pano escuro suspensa de um tecto indeciso. Os pombos rasgam o céu de penumbra, abrindo pequenas fendas por onde brota mais e mais neblina. Um corvo perdido na paisagem urbana funde-se na névoa e tudo é quietude e silêncio. O café da praceta aqui ao lado está fechado e as crianças que costumam ocupar o parque infantil desertaram, levadas pelos pais para lugares menos húmidos. Estou aqui sentado a enrolar palavras como quem enrola tabaco para se entregar ao prazer de o queimar. Também todas as minhas palavras têm como destino arder, dissolver-se em fumo e mostrar que nelas nada há. Daqui a pouco o meu neto será baptizado e talvez isso mude a sua vida. A minha teria sido muito diferente caso não tivesse sido levado à pia baptismal? O hospital acabou de desaparecer. Agora só vejo um prédio erguido num descampado que uma qualquer crise não deixou acabar. Aquele prédio não é mais que a imagem da vida, um exercício inacabado que dura até que a última crise consagra o inacabamento definitivo. Talvez um dia fale aqui de uma carta que Max Weber dirigiu à viúva de um amigo acabado de morrer. Talvez.

sábado, 23 de novembro de 2019

Encontro com o mordomo

Hoje tive, logo pela manhã, um novo desentendimento com a balança. Mais trezentos gramas que no sábado passado. Depois de uma semana inteira de intensa meditação transcendental e de recitações do mantra sagrado e as coisas estão piores. Só pode ser da pilha, pensei. O mais assisado é mudar-lhe a fonte de energia. E foi com estes pensamentos que saí de casa. No café que, uma vez por outra, me acolhe, alguém, voltando-se para mim, diz bom dia. Havia por certo no meu rosto um sinal de perplexidade, pois ouço-o dizer então não me conhece? E sem deixar-me responder, acrescentou sou o mordomo. Ainda há dias falou de mim. Claro, era o mordomo. Deixei a cozinheira de lado e perguntei-lhe pela duquesa. É espanhola, respondeu-me. Não sabia. Sim, continuou, muito próxima do Rei. Ao ver o ricto que se me desenhou na face, riu-se com duas gargalhadas sonoras. Você é um patriota, mas não se preocupe, o Filipe está muito ocupado com a Catalunha que não tem tempo para pensar em invadir Portugal. Essa coisa dos Filipes foi há muito e a traição dos Braganças já foi vingada. Além disso esses eram Habsburgos e este é Bourbon, disse ele com entoação castelhana. Pensei perguntar-lhe o que fazia ali, mas evitei dar-lhe oportunidade à confissão. Declarei que um dia gostaria de conhecer a duquesa, embora estivesse mais interessado na cozinheira, o que omiti. Como despedida perguntei-lhe se ele se lembrava da frase de Talleyrand sobre os Bourbons, ao que respondeu que era um simples mordomo. Eu sorri da vitória e saí. O sábado começou mal, mas compôs-se.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A aceleração do tempo

As minhas sextas-feiras estão longe da perfeição. Começam com uma lentidão exasperante, com os segundos a arrastarem-se trôpegos e indecisos pelo caminho, quase incapazes de se transformarem em minutos, evitando o mais que podem que estes se combinem em horas, ronceiros a fazer gala na indolência, madraços subjugados ao pecado mortal da preguiça. Imagino que por virtude de um almoço revigorante, chegada a tarde, esses mesmos segundos são tomados por uma louca azáfama e dão em acelerar pela pista fora, como se tivessem por missão conquistar a pole position e saírem na frente da corrida. Nada lhes tolhe as pernas e quanto maior é a presteza com que passam, mais rápido se movem. Chegada a noite, cada minuto passa à velocidade de um segundo e não há sinalização de trânsito nem radar que os leve a amolecer o ímpeto. Se eu fosse um homem de engenho, apunhalava uns tantos, deixando-os a sangrar para que os outros segundos os vissem com olhos de ver e tomassem tento, aprendendo com Zenão e tornando-se em verdadeiros Aquiles que nunca hão-de alcançar a vagarosa tartaruga. Falta-me veia para executor e, dir-me-ão, arte para encontrar motivo para escrever coisas decentes, que animem o mundo ou edifiquem as gentes para que estas não entrem no caminho da perdição. Muitas são as vias que nos levam à loucura, umas mais lentas outras mais rápidas. Haverei de lá chegar.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Moral da história

Estava a ler uma pequena história que metia um mordomo e uma cozinheira. Histórias destas são sempre edificantes, mas não a vou contar, pois falta-me talento para pregador. O mais que posso desejar é que um e outro possam prosseguir tranquilos a vida dentro da história, que esta cresça e se torne primeiro numa novela e, depois, num grande romance. Aqui, porém, a realidade torna-se complexa e pode acontecer que o mordomo de passagem pela cozinha e ao ver a faca da cozinheira se sinta inclinado ou a matá-la, ao sentir-se traído pelo motorista, ou a suicidar-se, cansado de esperar o amor da proprietária da faca. Nessa altura o leitor fica confuso, pois não sabe se a faca pertence à cozinheira ou se é propriedade da duquesa para quem a cozinheira dá o melhor dos seus talentos. E uma nova perturbação é introduzida com esta última frase, pois não fica claro que talentos oferece à duquesa a sua cozinheira, pois esta pode ser pessoa de engenho e que sirva na cozinha e noutros lugares do palácio, que por pudor, não me atrevo a especificar. O mais certo, porém, é que o mordomo evite a cozinha, não veja a faca e à falta do objecto não se desencadeie nele a pulsão de morte, o que seria de lamentar. Sempre gostava de saber, por mórbida curiosidade, quem é que anda a dormir com quem e que relações há entre a duquesa e o pessoal que dela cuida, para poder extrair uma moral para história e vir aqui fazer grande pregação.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Inclinação para o plágio

Hoje enrolei o dia com o manto das coisas inúteis. A frase é pretensiosa, mas não me ocorreu melhor início para este diário. Quanto mais inúteis são elas, mais merecem aplauso e consideração. Não estou a protestar contra a ordem da natureza, mas a sublinhar que é assim. Já não tenho idade para me revoltar contra a realidade, até porque ela não deixaria de ser o que é, por mais que eu reclamasse. Este é o melhor dos mundos possíveis e as coisas estão sabiamente ordenadas. Contrariam os meus desejos, desmentem as minhas crenças, riem-se das minhas convicções. Não fosse assim, o mundo não seria mais que a projecção do caos que me habita. Não sei se estas filosofices que me saem dos dedos – e não da razão, pois a minha já teve melhores dias – se devem ao culto do inútil a que me ative todo o dia ou se à sanha esburacadora com que o homem do berbequim eléctrico enfrenta a dureza das paredes naquele sítio que já foi uma agência bancária. Tenho a secretária cheia de livros, mas não se pense que é por avidez de leitura. Estão desarrumados, esperam que tenha piedade deles e os ponha nos seus devidos lugares. Sobre o homem do berbequim têm a infinita vantagem de não fazerem barulho e, se os interrogo sobre o que está neles, mantêm-se mudos. Esta é a segunda citação filosófica não identificada que faço. Ainda sou acusado de plágio. Na escola aqui do lado, o grupo de baile continua perdido no seu Brideshead. Acho que tenho de ir mostrar a garganta à médica. Aposto que um dos dois não vai cumprir o horário.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Da imperfeição do mundo

Um brruuum contínuo está apostado em estragar-me os poucos momentos que tenho para aqui estar. Decorrem obras no lugar onde existia uma agência bancária que, tomada de inquietação, se cansou de estar onde estava, no rés-do-chão deste prédio. O cansaço dos bancos nunca é coisa que tenha bons resultados. Em vez de haver lá por baixo pessoas com ar grave a tratar de negócios em surdina, temos gente armada de berbequim que fez uma promessa de propagar dores de cabeça pelo prédio inteiro. O mundo nunca se cansa de nos fazer reparar na sua imperfeição. O brruuum persiste e mistura-se com o som de um alarme, os latidos de um cão e os gritos de adolescentes que correm à chuva. Não tarda e há-de passar uma ambulância com a sirene a multiplicar aflição. A realidade não passa de um concerto, embora os nossos ouvidos nem sempre estejam preparados para a musicalidade que dela nasce. Olho para a rua e as árvores estão imóveis, estátuas vivas de deuses cujos nomes esquecemos. Terei de sair e talvez quando voltar o silêncio tenha regressado. A esperança não deixa de ser uma virtude, apesar de alguém ter confundido as paredes com um bombo, em que bate numa cadência descuidada e irritadiça. Uma ópera.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Vou espirrar

Uma das acácias que ainda há poucos dias mostrava a folhagem de um verde exuberante deixa agora ver os primeiros assaltos do amarelo. Só a terceira resiste. Que não amareleçam as três ao mesmo tempo, elas que estão tão próximas, é um enigma ou, para ser mais exacto, a prova da minha ignorância acerca do mundo vegetal. Parece que me constipei. Entrego-me ao ritual dos espirros como quem está numa cerimónia religiosa. Devoto e compungido. Os dias continuam a encolher devorados pelas trevas da noite. É pena que já não temamos a possibilidade do Sol desaparecer e sintamos pleno júbilo no momento em que a luz vence as trevas e os dias vão-se tornando maiores. Havia grandeza no temor e no júbilo, como se o futuro nunca estivesse garantido e fosse preciso propiciar as forças ocultas para que elas não nos arrastassem sabe-se lá para onde. Isto, porém, sou eu a falar comigo, levado pela minha tentação de anacronismo, uma doença grave no dizer dos profetas do progresso e do futuro, os quais não sabem que o único futuro que nos espera é a morte. Não estou tétrico, mas acordei com pouca paciência para os anunciadores de futuros risonhos, frades pregadores da felicidade e comerciantes da auto-ajuda. Vou espirrar, o que vale é que tenho um lenço à mão.

domingo, 17 de novembro de 2019

A minha bipolaridade

Segundo opiniões escutadas aqui e ali, consta que sofro de bipolaridade. Umas vezes pareço leve e irónico e outras que transporto em mim toda a escuridão disponível no mercado dos lutos. Aquilo que sou, eu que não passo de um ser virtual, pois nem sequer de papel é a minha natureza, devo-o ao autor destas palavras, que manipula o meu ser, fazendo-me à sua vontade, mas talvez não à sua imagem e semelhança. Ele não é Deus, por muito que isso lhe possa doer. Se vejo o mundo como um dia escuro e tempestuoso, uma sexta-feira santa, ou se me entrego ao júbilo de um domingo de Páscoa, isso está para além da minha vontade. Todos os meus exageros, todas os meus esgares, todo o riso sardónico que ostento, nada disso sendo meu me pertence. Sofro-o sem possibilidade de lhe fugir. Um raio de luz fende as nuvens e abre-se com um sorriso triste sobre o casario, logo em mim se esboça uma alegria, não porque eu seja alegre, mas porque aquele que escreve quer que o seja por instantes. Lá fora passa um cão e eu sinto-me irmanado com ele, pois a realidade do animal não é maior nem menor que a minha. O pior é a tosse, se tivesse uns rebuçados peitorais Dr. Bayard seria mais fácil.

sábado, 16 de novembro de 2019

Balanças incrédulas

Guardo para os sábados, ao levantar-me, um ritual que não aconselho a ninguém. Ponho-me em cima da balança e vejo o veredicto. Hoje não foi diferente. A julgadora, amante de hipérboles, concedeu-me uns números excessivos, que não lhe asseguram a meus olhos qualquer credibilidade. Saí de cima dela, respirei fundo e dei-lhe uns segundos para repensar a mensagem que me queria transmitir. Voltei ao rito, ela, contudo, também cultiva a anáfora e devolveu-me o mesmo peso. Tudo isto é inexplicável. Há três semanas que sigo um programa rigoroso de emagrecimento e nada. Todos os dias sento-me tranquilo e apaziguado e dedico vinte minutos a uma profunda meditação transcendental, seguida de cinquenta recitações do mantra Om Mani Padme Hum e, no fim de cada uma, projecto no universo a minha imagem sem barriga e outras adiposidades que não vêm ao caso. A balança, na sua essência digital, não se comove. Estou arrependido de a ter comprado, mancomunada que está com a interpretação científica do mundo, pouco dada à espiritualidade. Se ela não se arrepende e converte substituo-a por uma analógica, que não há-de ter aqueles inconvenientes que Heidegger aponta à técnica moderna. Oiço uma voz insidiosa a exclamar e que tal fazer exercício. Atónito, nem consigo perceber se foi alguém que falou ou se a minha consciência adquiriu alforria e pensa que deve ser o meu personal trainer. Digo silêncio, sento-me e a partir de agora serão trinta minutos de meditação transcendental e cem recitações do mantra sagrado. Hei-de chegar ao peso dos vinte anos.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Ser apócrifo

Entre o original que foi concebido e o que sou vai uma grande distância. Não passo de uma falsificação de mim mesmo, um exercício de apocrifia, como aqueles evangelhos onde Cristo se excede em actos e revelações mas que a Igreja nega-se a reconhecer. Estão lá coisas interessantes, a verdade, porém, está noutro lado. Como todas as pessoas, também gostava de ser o eu autêntico, mas chegado a sexta-feira à noite descubro que não passo de um apócrifo. Vieram os dias frios e isso consola-me. Imagino estar sentado à lareira, com um gato ao pé, a fumar cachimbo, enquanto o lume crepita e o tempo passa a caminho da Primavera. É o meu lado de contrafacção, aliás o único que tenho. A casa não tem lareira, eu não tenho gato nem fumo e o crepitar da lenha no lume não me comove. Quando era adolescente imaginava-me piloto de fórmula 1 e talvez essa tenha sido a única coisa em que me imaginei, embora por escasso tempo. Hoje conduzo resignado e não tenho paciência para saber de carros. Só espero não me enganar na via quando entro para uma auto-estrada. A vida não passa de um conjunto de foras-de-jogo e penaltis falhados.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Da bastardia das acácias

Há pouco desesperei do meu talento de taxinomista (quando escrevo esta palavra penso sempre em taxidermista). Tinha classificado duas árvores que vejo daqui como acácias bastardas. Ter chegado a essa categorização não foi para mim, possuidor de uma ignorância generalizada sobre tudo o que é flora, um exercício fácil. Hoje ao olhar para as árvores lembrei-me que essas acácias são de folha caduca e elas, com Novembro já meio vazio, estão de um verde contumaz. Se são de folha persistente, então não são acácias vítimas de bastardia. Logo veio a ironia fácil e pensei que terão nascido dentro do casamento e são legítimas. Levantei-me, fui à janela para as olhar com mais atenção e tentar perceber mais uma vez o formato da folha. Nesse momento fui salvo. Ao lado das duas está uma irmã, que não via da secretária, já com a folhagem amarela, prenunciando a caducidade das folhas. São-me ocultas as razões que terão levado uma a amarelecer mais depressa que as outras. O meu mundo reduz-se a cada dia que passa. Chove, venta, os astros e os humores andam indispostos e eu penso em coisas tão importantes como a bastardia das acácias, a caducidade das folhas, a caducidade de tudo o que penso, a minha caducidade inexorável. Teria sido mais sensato ter-me dedicado à taxidermia, mas agora é tarde.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Ida à lavandaria

Saí para ir buscar uns livros à lavandaria. Os tempos modernos são assim. Encomendam-se livros online, escolhe-se um sítio onde se podem ir buscar e vai-se lá levantá-los. Antes de termos atingido este grau de modernidade, íamos aos correios e cumpríamos um denso e complicado ritual até termos na mão aquilo que era nosso. Agora, neste tempo em que tudo foi dessacralizado, pode-se fazê-lo na lavandaria ao lado de casa, o que é uma vantagem muito grande. Ficamos certos de que os livros vêm lavados e engomados, prontos a vestir. Também é verdade que já ninguém põe goma na roupa, mas tenho uma certa inclinação para o anacronismo. Quando saí com a encomenda debaixo do braço, a noite tinha caído e na rua havia já vestígios do frio que a partir de amanhã há-de vir da serra para cair sobre os incautos transeuntes. Pego nos livros, cheiro-os, sinto o aroma a asseado. Para ser sincero, dois deles têm um papel reles e é possível que não aguentem muitas idas à máquina de lavar. Quando o mundo começa a trocar as categorias, quando tudo parece fora dos eixos, não sou eu que tenho a sorte maldita de ter de o endireitar. Não há nada como acabar com uma citação de Shakespeare e assim encobrir a funda ignorância que me acomete.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Shift+F7

Chega-se a terça-feira e tudo está perdido. Nessas alturas, tomado por um desvario, quase acredito que seria óptimo crer no bom selvagem, mas logo penso que me falta tempo para conviver com a prolixidade do senhor Rousseau e passo à frente. Da janela avisto um bando de adolescentes. Não disfarçam o selvagem, mas esquivam-se a mostrar a bondade. Já estão corrompidos pelo processo civilizacional, admito. Agora deixo mesmo o genebrino em paz. Tenho uns documentos para concluir, mas sempre convivi não sem beatitude com a procrastinação. Alguém me segreda não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Ah essas memórias vindas do passado são insolências que se intrometem para impedir uma vida feliz. Também o thesaurus do word deu em protelar. Com a palavra a substituir seleccionada, bem carrego no Shif+F7, mas nada se move, deixando-me desolado na minha ânsia de trocar o vocábulo amaldiçoado. Se pudesse também me seleccionava, carregava em Shift+F7 e ficaria à espera de um sinónimo que me servisse melhor do que o original, mas nem para isso estou apto. O céu está cinzento, respiro devagar e vejo o tempo a escorrer. Pressinto a glória do futuro, esse momento em que estaremos todos mortos, e rio como se riem os loucos.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Zé ninguém

Acordei com uma ideia que não me abandonou até agora. Não há grandeza maior do que ser nada, não ter nome, ser ninguém. Terá sido um mau sonho ou terei acordado com os pés de fora. Ao ouvir a algaravia vinda da rua, rio-me da ideia ou de mim, que não serei mais que uma ideia. Toda a gente quer ser alguma coisa, até o maior dos colectivistas ama a colectividade para lhe impor o seu nome. Se a vida fosse uma cartuxa ou uma trapa, haveria menos ruído e qualquer zé ninguém não seria mais nem menos que um zé ninguém. De súbito, descubro que num mundo onde toda a gente é alguém o melhor é ser um zé ninguém. Por vezes, sou levado a dizer coisas com que não concordo, mas não está nas minhas mãos ser dono das palavras que escrevo. Poderia acabar com uma injunção bíblica do tipo quem tiver ouvidos, oiça!, mas não acabo, pois ainda não é chegado o tempo.

domingo, 10 de novembro de 2019

Nostalgia de domingo à tarde

Há pouco tive de passar por um dos supermercados de origem alemã que existem por aqui. Fiquei espantado com a quantidade de pessoas que falavam uma língua que não sei se era russo ou ucraniano. É possível que uns falassem uma e outros, a outra, mas aos meus ouvidos a musicalidade era a mesma. Imaginei que combinassem encontrar-se num sítio daqueles para sentirem estar perto do lugar onde nasceram, criando por instantes uma ilusão que lhes suavizasse a nostalgia das terras do norte. Talvez fosse apenas um mero acaso, irrepetível, fruto do dia triste e chuvoso que desabou sobre a cidade. Os domingos são sempre tristes nas pequenas cidades de província. E ao dizer isto também eu fui tocado pela nostalgia do tempo em que esta cidade era uma vila. Essa designação era justa e nela havia uma nobreza reforçada pela história. Se eu vivesse agora nas terras frias da Ucrânia e da Rússia, também iria a um supermercado para ver se alguém falava a minha língua, para poder recordar-me do pequeno rio que, sob o olhar apaziguado das torres do castelo, atravessa a avenida, numa caminhada solta até se afogar no Tejo. A noite bate-me à janela e eu recebo-a como se recebesse a dádiva de um deus.

sábado, 9 de novembro de 2019

Quantos-queres

Armada com o origami preso aos polegares e indicadores, a minha neta mais velha, apanhando-me distraído, perguntou-me quantos quer? Sete, respondi-lhe inconsciente das consequências, e ela lá manipulou o dispositivo de papel para trás e para frente de modo a que o número cabalístico se cumprisse. Que cor quer? Verde, repliquei incauto. Ela desdobra a maquineta e diz: feio, o avô é feio. É grave, pergunto-lhe. Não, mas o avô é lindo. Esta minha neta tem uma propensão indisfarçável para a correcção social. Eu agradeço-lhe, mais vale uma bela mentira do que sentir o estilete da verdade a sair-lhe da boca. Está uma tarde lacrimosa, batida pelo vento, propícia a um stabat mater. Levá-las a andar de bicicleta ou de hoverboard na rua está fora de causa, mas elas não se importam. Quem paga são as folhas A4, vítimas de uma súbita inclinação para o desenho. Daqui a pouco chega o outro neto, mas esse ainda não quer papel para dar vazão à veia artística, ocupado que está em consolidar os passos para poder explorar a casa e semear o chão com livros e CD. O sábado escorre em direcção à noite, para desaguar num domingo de inverno, imagino.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O terceiro-excluído

Pensava que o terceiro estava excluído, mas não é verdade. Afinal o velho princípio do terceiro-excluído é contingente. A revelação aconteceu inopinadamente, como todas as verdadeiras revelações, ao abrir a conta da água e, por curiosidade mórbida, ter olhado para as parcelas que a compõem. Contas de água, constas de saneamento e contas de terceiros. Quando menos se espera descobrimos que o que pagamos são formas de solidariedade muito activas e capazes de sacrificar os velhos princípios lógicos em nome duma luta contra a exclusão. Alguém menos caridoso dir-me-á que já devia ter há muito lido a factura para ver o que dela consta. É verdade, mas nem tenho propensão para esse tipo de literatura nem sou excessivamente cioso das coisas que o mundo me impinge. Sofro-as sem grande protesto ou particular curiosidade. Um caso perdido. O que vale é que hoje é sexta-feira, a noite caiu e eu espero que o silêncio se propague pelo mundo que me envolve. Depois hei-de sentar-me e, sabendo que não passo do terceiro que é excluído, bendirei quem tal exclusão ditou.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Desengano

Por vezes, vejo num jornal ou numa revista a fotografia de uma mulher e penso que poderia apaixonar-me por ela até que o coração se desengonçasse e o peito rasgado oferecesse ao mundo o espectáculo do amor, pois o mundo nunca o viu, a esse castelo derrubado pelo tempo, a essas ruínas onde crescem ervas daninhas, as entranhas reviradas e o sangue seco e malcheiroso de tudo o que é sentimento. Quando acordo, a fotografia lá está, espera o meu olhar sem a súplica do meu amor. Olho-a e na legenda descubro que a beleza daquela mulher feneceu há muito e o seu corpo foi devolvido à poeira de onde veio. Depois procuro outro retrato da mesma mulher e ao descobri-lo vejo o amor a desvanecer-se ali mesmo, na falta de coerência com que os fotógrafos manejam a câmara, semeando ilusões e desenganos, apenas porque o tempo passou e lhes falta o talento para apagar os vestígios do crime. É assim que o amor está pendente do acaso e da pérfida desatenção do retratista. Não faço ideia por que razão o autor me faz dizer estas coisas, pois o nosso contrato tinha uma cláusula, escorada num direito a rescisão, que o impedia de me dar uma vida privada ou fazer-me falar de coisas para as quais o meu ser não foi criado.

Desinscrição

Em cima da secretária está uma ficha de inscrição. Por certo irei inscrever-me em qualquer coisa, pois assim determina o fado. As pessoas gostam muito de pertencer e não haverá caminho mais fácil para ser parte do que inscreverem-se. Inscritas, logo serão chamadas e o desejo diz-lhes que hão-de ser escolhidas. Olho para a rua e vejo um sol tímido com vergonha de refulgir nas paredes, avisto as folhas agitadas pelo vento nas árvores que por aqui há. Em tudo o que observo há uma tristeza, uma hesitação, como se a realidade não soubesse que caminho tomar na encruzilhada que um deus colocou diante dela. Não tarda terei de abandonar o lugar onde estou para ir para outro onde me esperam. No caminho não há encruzilhadas, apenas rotundas e cruzamentos. A encruzilhada encontrei-a há muito e escolhi o caminho errado, mas nunca sabemos se, mesmo numa encruzilhada, há um caminho certo. O melhor é preencher a ficha e inscrever-me antes que seja tarde, embora eu pratique a despertença e de tudo me desinscreva. Parece que hoje não chove. Uma pena, as barragens precisam de água como eu de me calar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Errata

Sentei-me para fazer alguma coisa que me alivie do facto de estar vivo. É preciso não levar este tipo de declarações a sério. Quando se escreve um texto, e quando ele é em si mesmo irrisório, temos de começar de alguma maneira. O pathos do começo pode ser uma coisa deplorável, mas se eliminássemos do mundo tudo o que é deplorável, ficaríamos com quê? Comigo não. Sentei-me, dizia, mas esquecera-me que hoje é quarta-feira, o dia em que o grupo de baile da escola vizinha aproveita para a sua sessão de reviver o passado em Brideshead. Cada um tem o Brideshead que pode. Essa é a justiça do mundo e não há outra, foi o que me ocorreu. Estou perturbado. Andei dois dias para me lembrar de uma palavra para título de um singelo documento e, por mais que porfiasse, a memória nunca me deu o que lhe implorava. É uma senhora caprichosa e recusa-se a conceder os seus favores ao primeiro idiota que apareça a cortejá-la. Quando já não necessitava da palavra, ela caiu-me do céu. Errata. Era por esta a palavra que suspirava há dois dias. Que faço agora com ela? O melhor é fazer uma errata, escrever onde se vê (a minha fotografia) deve-se ver (uma outra fotografia corrigida e melhorada), e depois distribuí-la por aí. O grupo de baile silenciou-se, já tem que chegue da sua Brideshead, ou talvez não. O problema dos seres humanos é que eles só aparecem no lado a substituir da errata. Se não os outros, pelo menos eu.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A verdade pela mentira

Acabei de comprar um presente para uma das minhas netas. Já lhe tinha dito várias vezes que não lho daria e ela sempre fingiu acreditar. O avô finge, a neta finge e é nessa ficção que se aprende a lidar com a realidade. Talvez um dia estes jogos em que se diz a verdade através da mentira sejam proibidos e um avô terá de dizer brutalmente a um neto que já lhe comprou o que ele deseja, impedindo o divertimento que ensina a ver para lá das aparências, a lidar com a frustração e, acima de tudo, a ser civilizado ao aprender que o prazer está na incerteza e no diferimento do gozo. Enquanto pensava nisto ia olhando pela janela e via a luz diminuir lentamente como se estivesse ainda na sua mão evitar a chegada da noite, adiá-la para que ela venha festiva e seja o mais desejado dos convidados. Também a natureza ama a verdade dita sob a forma da mentira e, por isso, ela é tão enigmática para aqueles que escondem a estultícia na proclamação que são muito directos e manejam a verdade como se fosse um punhal a cravar nas costas distraídas do próximo. Quando vir a minha neta e ela me falar do presente, dir-lhe-ei “nem pensar” e ela há-de pensar que tudo se encaminha para o seu destino, enquanto diz com ar resignado “está bem”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Incongruência

As persianas tamborilam nas calhas por onde correm, tocadas pelo trote do vento, inquietas e temerosas de alguma tempestade que venha tirá-las do sossego bonançoso em que vivem. Uma réstia de sol perfura o negro das nuvens para desabar na humidade das paredes e reverberar, enchendo de luz o campo de jogos e de esperança os jogadores que se batem com o ardor da sua inocência culposa. O que escrevo é de tal modo exaltante que adormeci depois de escrever a última frase, para acordar agora com uma dor no pescoço. Nem a mim o meu verbo anima. Apesar das bolas continuarem a saltitar, a luz de há pouco recolheu-se para que as paredes perdessem a reverberação que lhes dava alma e embaciadas permanecessem na quietude que é a delas. Com um tema destes não admira que adormeça de novo antes de dar por terminado este texto. Pessoas há que têm muito para contar, as suas vidas são aventurosas e elas heroínas que hão-de permanecer na memória dos vindouros, mas eu quanto mais vivo menos tenho para dizer, apesar do palavrório que me ataca aqui ou ali. O mundo é feito destas incongruências e se não é o mundo, sou eu. A palavra incongruência brilhou dentro de mim e, por instantes, entrevejo a verdade do que sou. Tocaram à campainha. Levanto-me e vou espreitar. Não era ninguém ou talvez fosse eu.

domingo, 3 de novembro de 2019

Um rio brando e sem água

A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e eu pensei que o pathos que nela se manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade. Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da alma. É domingo.

sábado, 2 de novembro de 2019

Memórias no Dia de Finados

Nos últimos anos não há Dia de Fiéis Defuntos que não me recorde de um poema que se cantava na adolescência para fingir que se era rebelde. Não me lembro do texto completo, mas apenas de alguns versos que ficaram na memória como um refrão: Era dia de finados, / E os mortos muitos animados / Lá andavam a dançar. / Tudo estava forrado a preto, / No centro havia um coreto / Feito dos ossos da testa. E o cântico continuava neste tom até que nos cansássemos e, desconfio, nos reconciliássemos com a nossa natureza mortal. Estas recordações não são um desrespeito aos que se foram, mas uma mensagem que recebo de mim mesmo para que não me esqueça que mais do que rir da minha morte devo rir-me de mim e das coisas que me atravancam a memória. Hoje já fui às compras e, devido às inutilidades que me povoam o cérebro, esqueci-me de algumas coisas que tinha de comprar. Valia mais ter feito uma lista do que andar por aí a alvitrar sobre o que se passa num coreto forrado a preto.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Os Santos e os mortos

É com desconsolo que olho para as broas dos Santos. Em tempos eram para mim motivo de perdição eterna. O pecado da gula atirava-me sem freio sobre elas, arrastando-me para o mar das múltiplas espécies que por aqui se cultivam. Depois a vesícula começou a queixar-se e a satisfação do desejo foi sendo diminuída até proporções frugais. Liberto do órgão malfazejo, não me livrei da frugalidade. Os Santos deixaram de ser o que eram. Hoje passei duas vezes perto do cemitério e não faltavam pessoas com pequenos ramos de flores na mão, nem sempre crisântemos, para homenagear os seus mortos. Também eu tenho os meus mortos, mas não vou ao cemitério, nem lhes compro flores. Trago-os nos meus genes e nos meus pensamentos. Com alguns, converso. Falo por eles e falo por mim. Eu sei o que eles me diriam e eles, estou certo, sabem o que lhes estou a dizer. Talvez devesse também ir amanhã ao cemitério, não por eles, mas para que as tradições não morram por falta de comparência. Sei que não vou, até porque espero o meu neto. Um dia, se me for possível, falar-lhe-ei dos meus mortos, que hão-de também ser os dele.