domingo, 30 de junho de 2019

Ruminações

Nestes dias não tenho deixado de ruminar na descoberta da minha obsolescência. Hoje também não foi diferente. O que me valeu foi a visita do meu neto. Com os seus sete meses e meio arrasta-se por onde o deixam, movido por objectivos determinados, quase sempre traduzidos na tentativa de capturar um telemóvel esquecido ou de alcançar qualquer coisa que brilhe. Ainda não chegou o momento em que há-de passar pelas estantes e puxar livros e CD para o chão a grande velocidade, como se soubesse que está a fazer uma patifaria. Talvez esta propensão que os netos têm, quando começam a andar, de desarrumar os livros e a música seja um sinal que só agora começo a perceber. Os livros que leio e a música que oiço são coisas que já não fazem sentido, o melhor é desocupar as estantes para que alguém mais de acordo com o espírito do tempo as encha com aquilo que lhe há-de interessar. A ideia consola-me, assim como me consola o vento que ameniza a temperatura por estes lados. O domingo progride, o meu neto já se foi embora, restam-me os livros fora de época e a música que ninguém mais há-de querer ouvir. Não há coisa pior que criar expectativas que a realidade, sem benevolência, se encarregará de desmentir. Às vezes, penso nos meus dois avôs e sinto uma grande tristeza por eles terem morrido bem antes de eu nascer. Nunca pude chamar por eles e descobrir o que tinham para me ensinar.

sábado, 29 de junho de 2019

Exercícios da paciência

Chegou sábado e não devia estar por aqui. Um excesso de zelo, porém, obriga-me a ficar em casa neste fim-de-semana. Tento ser um taxinomista ponderado e razoável na classificação das espécies. Oiço uma voz. Grita, lá em baixo, golo. Depois o rapazola ri-se, tomado pela euforia. Naquelas idades, nada há mais importante que um golo. Há pouco tive de atravessar a cidade para uma visita de família. Foi uma travessia por ruas lentas, morosas, cheias de paciência. As ruas da minha cidade nunca desesperam. São como tartarugas que sabem muito bem que não haverá Aquiles que as vença. Então deixam-se estar na sua modorra, à espera de transeuntes, e eles lá vão passando, inclinados para si, fechados no pequeno habitáculo da sua consciência, indiferentes ao desvelo acolhedor de cada rua, de cada beco, de cada avenida. Espreito à janela. Dois adolescentes disputam uma bola. Fintam-se um ao outro, fintam-se a si próprios. O terreno de jogo é uma mescla de luz e sombra. Recolho-me e penso que poderiam colocar jacarandás no lugar das palmeiras cortadas. Assim, poderia falar na glória dos jacarandás em Junho. Ou, então, renques de ciprestes, para que os homens não se esquecessem de olhar para os céus. Os jogadores calaram-se e o último golo que eu marquei – eu que nunca tive inclinação desportiva – foi há tantos anos que começo a duvidar que realmente o tenha feito.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Revelação

Tenho uma tarde poeirenta pela frente, o que me dá sempre ensejo para considerações esquálidas. Pensamos, medito, que o momento não chegará, que nunca a nossa obsolescência cairá, como uma evidência irrecusável, diante dos nossos olhos. Haveremos sempre de estar na vanguarda. De um momento para o outro, porém, a realidade muda e os nossos reflexos estão enfraquecidos, o corpo cansado e a vontade gasta. Aquilo que valia deixou de valer, as regras e o jogo são outros. É uma hora terrível. Os que nos rodeiam ainda não sabem, mas nós sabemos que estamos definitivamente ultrapassados. Perdemos a corrida. Os gestos estão mais lentos, as mãos mostram uma pele enrugada e, acima de tudo, há em nós a pior das tentações. Não queremos saber. Aquilo que agora nos ultrapassa e nos revela o quão arcaicos somos não nos interessa, são coisas que se dirigem para o futuro e nós, aquilo que nos falta, é futuro. Sobra-nos o passado e é para lá que nos dirigimos, enquanto a nova vanguarda edifica as suas ilusões e ainda não sabe que também ela está grávida da sua obsolescência. Na praceta aqui ao lado, um adolescente bate uma bola de basquetebol. Inebria-o o som e o movimento. Oiço a batida e fecho os olhos. Ainda tenho que disfarçar durante uns tempos.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

A morte da senhora de Segelfoss

Ao olhar a capa do velho livro que estou a ler, pergunto-me o que terá a literatura para que eu dê uma especial atenção à queda do senhor do domínio de Segelfoss. Eu sei que o senhor e o seu domínio, assim como a própria queda são apenas palavras criadas pelo romancista Knut Hamsun. Nada daquilo se relaciona com uma realidade substancial. Não basta, porém, dizer, como Coleridge, que se suspende a descrença para acompanhar a trama romanesca. O enigma está no motivo por que o fazemos. Interessamo-nos pelo destino de pessoas que não existem, que estão embrenhadas em situações que não existem e que têm destinos que nunca existirão. Estamos conscientes desta irrealidade e, no entanto, não paramos de virar as páginas. Talvez o façamos porque estamos certos dessa irrealidade. Talvez o façamos porque, apesar de termos opiniões sobre tudo o que acontece, não suportamos a realidade. Talvez o façamos porque na morte de Adelheid, a senhora de Segelfoss, pensamos a morte como uma ficção e assim evitamos olhar nos olhos a nossa própria morte.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Popeline

Ao ler um post sobre música deparei-me com a palavra popelina. Há muito que não a escutava  e, tanto quanto me lembro, ouvia-a como popeline. Uma camisa de popeline. Na altura, não imaginava – ou imagino que não imaginava – que a palavra fosse francesa e estivesse em vias de nacionalização lexical. Também o sentido exacto devia escapar-me e, talvez para infelicidade minha, nunca senti curiosidade em saber precisamente que tipo de tecido era realmente a popeline. Aquela era uma linguagem esotérica de uma seita, para mim, fechada. Os tecidos não eram, nem são, o meu forte, se é que tenho algum forte. Um raio de sol, ao fender as nuvens, iluminou-me e pensei que, para pessoas como eu, deveriam existir dicionários ilustrados de tudo e até de tecidos. Fiz uma pesquisa no Google e ele, na sua infinita bondade, devolveu-me vários dicionários ilustrados. Um de moda, uma aproximação, mas também outros mais adequados ao meu presente estado. Um dicionário Ilustrado de fisioterapia e outro de saúde, que terá, por certo, uma secção de saúde mental. Ainda não é agora que vou saber alguma coisa sobre os tecidos que vestem as personagens com que me cruzo na rua, pensei desanimado. O Google, contudo, não dá ponto sem nó e indicou-me um guia prático de tecidos. O problema é que é brasileiro e lá os tecidos hão-de ter um nome que nada terá a ver com o que se usa por cá. Por causa das coisas, o Google ainda me indica, não sem perspicácia, o dicionário Houaiss ilustrado. Infantil, claro. Fico a pensar na insinuação e acabo por aceitar que não faltará muito para que seja esse o dicionário que me é mais apropriado.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O taxinomista que boceja

Tomado pelo sono, bocejo atrás de bocejo, uma tentação quase irresistível de fechar os olhos e deixar descair a cabeça, suspendi a minha função actual de taxinomista. Por vezes sou agraciado com a divina dádiva de me entreter com categorizações, exercícios de ordenação de certos elementos através do jogo das semelhanças e diferenças. Estou a ficar esotérico, o melhor é mesmo, caso não consiga calar-me, falar de outra coisa. Na verdade, há coisas que me incomodam como ir a um restaurante e sair de lá a cheirar a comida. Imprevidência, dir-me-ão. Um juízo precipitado. Era o que estava mais à mão e que me permitia voltar mais rapidamente para a minha função de organizador de taxinomias. Por vezes, as refeições são um incómodo, mas ainda não consigo dispensar o suplemento de energia que fornecem. Sempre podia jejuar ou mesmo fazer como o burro do espanhol, mas conheço o funesto destino do pobre animal. A verdade é que me senti melhor ao sair. Havia uma luz triste a lembrar a melancolia dos sábados à tarde na província. Os carros passavam, as pessoas cruzavam-se, as folhas das árvores, batidas pelo vento, abanavam. Fiquei siderado pela proliferação de pretéritos imperfeitos na frase anterior. O que me vale é que os macacos-prego usam ferramentas de pedra há três mil anos e os chimpanzés do Congo possuem um tipo de cultura diferente de outros chimpanzés. Isto tranquiliza-me e rouba-me à minha solidão. Agora não sei se hei-de voltar para as taxinomias ou ir bocejar para outro lado.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Autossexuais

As coisas que uma pessoa aprende só pelo passar dos olhos pela informação disponível. Uma notícia informa-me que para além dos heterossexuais e dos homossexuais existem ainda os autossexuais. Atraídos por si mesmos, não encontram prazer sexual maior que aquele que retiram de si. Poderíamos ter sobre o assunto uma discussão sobre se deveríamos interpretar o facto mais do ponto de vista psicanalítico, apontando-lhes os dedos e clamando narcisos, narcisos, ou de uma perspectiva filosófica, exibindo-os como amostra de radical solipsismo, se é que tal coisa existe. Isso, porém, poderia conduzir a más interpretações e, nos dias que correm, o melhor é mostrar-se neutro e esquecer qualquer opinião que se possa ter tido sobre sexualidade. O que me consolou, perante esta autocensura, foi outra notícia que me diz ter a NASA descoberto metano em quantidades apreciáveis em Marte. Talvez isso seja sinal de existência de vida microbiana no planeta vermelho. A minha esperança é que os possíveis micróbios sejam verdes e declaro, para memória futura, que não tenho nenhum interesse em saber como se reproduzem nas alcofas marcianas.

domingo, 23 de junho de 2019

De Profundis

Contra o hábito, fui fazer ao domingo compras a uma das grandes superfícies comerciais que, como cogumelos, brotaram por aqui. O dia está cinzento e abafado e eu, por falta de talento ou por conflito com a situação atmosférica, não estou particularmente inspirado para criar analogias. Uso as que estão, como eu, gastas e quase sem préstimo. Na charcutaria, local que também tem a função de takeaway (estas coisas em inglês acentuam o carácter degradante da realidade), um homem que já terá, há muito, ultrapassado a casa dos oitenta, falava com outro, mais novo. Este escutava atento e complacente, enquanto o primeiro, hesitante, de voz quebrada e gestos lentos, ia confessando a mágoa com a vida. Vinha comprar o almoço. Tem de ser, dizia, conformado, com as palavras a saírem manchadas de angústia. Não sei cozinhar e ela, que tão bem o fazia, agora é incapaz de fazer seja o que for. É tarde para eu aprender, tenho de me valer disto. Salvou-me o terem chamado o meu número e a vida, que parecia suspensa naquela conversa escutada inadvertidamente, tomava o seu rumo. Um rumo impiedoso, penso agora que escrevo isto. Do leitor de CD, desprende-se o De Profundis, de Arvo Pärt. Um acaso, penso, enquanto olho pela janela e vejo a calmaria do arvoredo a clamar por uma grande tempestade.

sábado, 22 de junho de 2019

Aliviar o fígado

Atravesso, na passadeira, a avenida. À minha frente vai uma mulher de blusa branca, cintada e que termina no que poderia ser o rodapé de uma página, onde ninguém se lembraria de fazer qualquer anotação. Chegados ao lado de lá, ela segue para um lado e eu para outro. Entro num café e sento-me. Antes de pedir o café e abrir o jornal, oiço uma mãe a encomiar a prole, perante uma pequena assistência silenciosa e constrangida. Nunca deixa de me maravilhar a penetrante visão dos pais que vêem nos seus filhos seres pelo menos ligeiramente superiores em inteligência a Einstein e nunca menos virtuosos moralmente que os santos que enchem os altares. Nessas alturas, bendigo a criação. Chega o café, abro o jornal, a senhora não se cala, tal a abundância de virtudes e o excesso de perspicácia que os filhos receberam, por certo, dos seus genes e daqueles que o seu coração escolheu para produzir deuses. Estas pessoas são perigosas, pois a realidade é desagradável e quando, inexoravelmente, os limites da criançada se revelam, a culpa é dos outros, uns aleivosos incapazes de reconhecer o génio e a superioridade moral. O melhor, pensei, é fechar o jornal e sair. Quando cheguei à rua, as nuvens erguiam uma barreira débil à luz. “Não há nada de novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é eterna repetição dos males”, citei em pensamento, como quem alivia o fígado.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Solstício de Verão

Há pouco atravessei a cidade e senti-me defraudado. As pessoas passavam envoltas no grande véu de indiferença que as cobre, empurravam sem paixão a sua sombra, ninguém tinha cara de ir comemorar o solstício de Verão. Compreendo que gente como eu, filho da névoa e da cinza, que tem uma incompatibilidade visceral com o Estio, se sinta acabrunhada e tente ostentar, só por impertinência, uma cara de enterro. Ora, os meus conterrâneos, que há muito se vestem para receber a estação do calor em apoteose, andarem pelas ruas como se nada fosse com eles, sem uma euforia exteriorizada que anuncie a alegria pela chegada da grande época, é coisa que não consigo compreender. Talvez os mais entusiastas, pensei, tenham viajado para Stonehenge para participar naqueles rituais que se imaginam pagãos, mas que são apenas uma forma de escandir o desespero. Talvez, mas a verdade é que a gente que se cruzou comigo não trazia no rosto a exaltação dos dias de festa. Não era fremente a luz que a iluminava. E como a cidade ou como eu, iam, avenida fora, baços, de asa caída, sem que uma estrela os iluminasse. Um adolescente berra, eu viro-me, mas é apenas uma bravata consigo mesmo. Cala-se e mergulha na nuvem de tristeza que cobre os telhados. Os dias vão começar a diminuir.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Confissões modernas

Durante séculos, pensei ao acabar uma tarefa que tinha entre mãos, as pessoas confessavam-se para aligeirar a consciência e acertarem contas com o bom Deus. Era um assunto religioso, tratava dos negócios da alma e da vida no além. Agora a confissão tomou conta das vidas profissionais sobre a forma de auto-avaliação. Os confessados, todavia, já não se interessam pela salvação da alma nem pelo além. Confessam-se para salvar o pêlo e mostrarem que, num mundo onde transborda o mérito, eles são merecedores, não do céu, mas de uma daquelas recompensas que fazem lembrar a cenoura que se deve pôr à frente dos burros, para que estes se tornem diligentes. O propósito destas confissões é mesmo – meditei, enquanto olhava para as estranhas configurações das nuvens no céu – mostrar que somos excelentes burros e que merecemos se não a cenoura, pelo menos um rabanete. Nas velhas confissões – um dos pássaros meu vizinho não se cala, não sei se estará a confessar-se em voz alta – expunham-se as chagas da alma, os deméritos da vida, a podridão em que as inclinações do corpo depunha o paroquiano. Agora, exibe-se a imaginação no seu poder criador de feitos e milagres. Os confessados de hoje são todos heróis do trabalho e não pecadores contumazes. Burros de carga, para usar uma linguagem coloquial. Não tarda e começo a zurrar.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Manuscritor e profetas da desgraça

Li que foram descobertas mais duas terras. Fiquei apreensivo, apesar da notícia já poder ser antiga. Agora é moda andarem a descobrir terras por dá cá aquela palha. Percebo que os astrónomos tenham de passar o tempo de qualquer maneira, mas descobrir terras não me parece a mais honrosa. Basta olhar para esta que nos coube e afastar, por uns instantes, a cortina das belas paisagens e das boas acções, para logo se ter uma ideia real do que é uma terra. Um sítio que não se recomenda nem a um inimigo. Por falar em coisas pouco honrosas, também eu tive de ir comprar um material de escrita, pois os próximos dias vão obrigar-me a voltar a escrever manualmente. Numa era tecnológica como a nossa, escrever manualmente é prova provada de que se é um indigente de alto calibre. Além do mais, fico com dores nas costas. Pensando nisso, após comprar o material de escrita, um material reles e barato, fui comprar uns analgésicos. Uma pessoa pode ser indigente, mas precavida. Uma coisa, porém, posso assegurar. Escrever manualmente, ainda o farei, apesar de contrariado, mas nunca me apanharão a descobrir terras, a focar telescópios em estrelas e exultar de alegria porque houve uma intercepção na radiação luminosa, por causa de uma miserável terra passar, ofegante e mal educada, em frente da estrela. Manuscritor, ainda vá que não vá, agora profeta da desgraça, nunca.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Capital de distrito

Por motivos profissionais, seria lícito pensar que essas razões são penitência por alguns pecadilhos veniais, tive de ir à capital de distrito. Não há nada como capitais e o país está cheio delas, desde as dos distritos até à do fumeiro ou a dos caracóis com urtigas. Se esta ainda não foi criada, certamente sê-lo-á a breve prazo. Sob o céu cinzento a capital do meu distrito estava bisonha, exaurida, bocejava a torto e a direito. Mal escrevo estas últimas palavras o word sublinha-as a verde e informa-me, obsequioso, que formam uma expressão idiomática da linguagem informal. Eu agradeço e o software responde-me com um imperativo hipotético: Pondere o emprego de uma expressão alternativa. Eu ponderar, posso ponderar, mas não deixo de constatar que o mundo se tornou um lugar onde fervilham conselheiros para tudo e para nada. Voltando à capital, lembro-me como ela era garrida e animosa para os olhos que eu tinha na infância e ia lá para ver parte da família. Os olhos envelheceram e a cidade, apesar das inovações no trânsito e a proliferação de rotundas, envelheceu com eles, levando-me a família e os sítios que, na altura e sem o saber, amava. O mundo poderia ser perfeito, mas há nele uma aposta firme e obstinada na imperfeição.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Estado do tempo

O tempo está mesmo a pedir chuva, pensei. Fui consultar um site de meteorologia e anuncia-se por lá que ela cairá nos próximos dias. Lembro-me, quando era adolescente, de algumas pessoas mais velhas se preocuparem excessivamente com o estado do tempo. Havia uma espécie de ritual na escuta do boletim meteorológico na Emissora Nacional ou em assistir, no fim do telejornal, à sua emissão na televisão, onde alguém, comentando uma carta cheia de curvas e sinais esotéricos, anunciava a boa ou má nova do tempo por vir. Talvez fosse um exercício para determinar o que deveriam vestir no dia seguinte, imaginava então. Hoje penitencio-me por esses juízos precipitados. Também eu comecei a interessar-me pelas informações acerca do estado do tempo, embora nunca pense no que vá vestir amanhã. A minha nova tese é que o interesse pela meteorologia é um hobby que se desenvolve a partir de certa idade. Até a esse momento de viragem na vida, tanta faz que faça sol ou chova. Passada a fronteira, as coisas mudam e começamos, primeiro de forma encapotada e depois quase maníaca, a consultar a meteorologia. Principiámos, por certo, a detestar – ou a temer – as surpresas.

domingo, 16 de junho de 2019

Domingos

Os domingos são dias óptimos para surgirem salvadores e venderem-se técnicas de salvação. Na verdade, passam-se poucas coisas ao domingo e a imaginação, fora do controlo que o ganhar a vida impõe, desata a fantasiar. Mesmo há pouco, num dos grandes jornais, encontrei um novo salvador, com uma teoria que nos há-de trazer a definitiva redenção. Para memória futura, fica aqui o registo que o encontrei, que li a prosa remidora. Também é verdade que encolhi os ombros e fui dar uma volta pela cidade. Esta insiste em não encontrar quem a salve e vai enfezando sob o sol. As coisas nunca são como os homens as querem, pensei, enquanto deixava o carro deslizar pelas ruas. As tardes de domingo sempre foram especialmente melancólicas por aqui. Não porque no outro dia seja segunda-feira, mas apenas porque é domingo e as ruas estão desertas, as pessoas fugiram ou mancomunaram-se para criar um ambiente de irrealidade insuperável, como se esse fosse o cenário ideal para uma distopia. O calor é aceitável, valha-nos isso.

sábado, 15 de junho de 2019

Falta de palavras

Uma das coisas que me acontece com frequência é esquecer-me da palavra que estou prestes a proferir. No momento em que a ia mobilizar, ela furta-se à tarefa, foge de mim e, por mais que corra atrás dela, não a consigo apanhar. A sensação com que fico é desagradável. A ausência da palavra é uma lacuna no saber, porque não é apenas o som que me escapa é também aquilo que ele evoca. Estas lacunas devido ao passar dos anos, porém, são menos graves que outras. Olho pela janela e vejo um arbusto cheio de flores que me parecem hesitar entre o rosa e o salmão. Não tenho, todavia, palavra para o designar. Esta falta de palavras para dizer o que se vê pesa-me mais que o esquecimento, mostra-me como eu passo pelas coisas com sobranceria e desdém, sem querer saber-lhes o nome. E se não sabemos o nome delas como falar delas, sem lhes faltar ao respeito? Um pequeno pássaro poisa no arbusto, e é tudo o que a minha pobre linguagem consegue dizer. Deveria passar o tempo a fazer listas dos nomes da flora e da fauna, ou do mobiliário ou, mesmo, dos tecidos. Como se pode falar do mundo se não se tem palavras para ele?

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Segundas naturezas

Um pequeno pardal estava pousado no muro da varanda. Parecia olhar, inclinando a cabeça, para o abismo que havia diante dele. Por vezes, recuava, com leves estremeções das asas, mas logo se aproximava da borda. Sentado, olhava-o e perguntava-me se ele saberia voar, se estaria ferido. A ave recuava um pouco, abanava as asas e dava novos passos para o precipício. O vento fazia-lhe tremer as penas. Tanta hesitação era sintoma de uma incerteza, de uma falta de confiança nos seus poderes. A cena prolongou-se por alguns minutos, até que, num súbito impulso se atirou da varanda para o espaço aberto diante de si, estendeu as asas, bateu-as e desapareceu. Encontrou-se, naquele, instante consigo mesmo, pensei. Não tinha outro remédio, a não ser a morte. Aos homens, porém, é-lhe dada uma terceira hipótese entre encontrar-se consigo mesmos ou perecer. A de viverem num limbo onde a hesitação e a contingência se tornam a sua natureza. Não voam nem morrem, ficam a olhar o precipício encolhidos. Talvez seja isso a natureza humana, uma longa hesitação. As sextas-feiras fazem-me mal. O pássaro voou, mas eu apenas me deixo divagar, enquanto uma pilha de livros se ergue perante mim e uma varejeira, que aproveitou o descuido de uma porta de varanda aberta, choca com o vidro para retornar aos espaço livres, onde tecerá o seu império. Vou abrir-lhe a janela.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Passar o tempo

Junho progride sem glória nem ignomínia. Vai em passo desengonçado e arrasta consigo corpos, casas, ruas, as memórias que começam a desvanecer-se ou os desejos, tomados por súbita aquietação. Têm sido dias ventosos, oiço dizer. Uma mulher confirma a constatação da outra, enquanto passam por mim e se afastam, logo sendo devoradas pelo espaço onde caminham e pelo tempo que passa. Observo os carros da avenida. Alguns aceleram para travar bruscamente ao aproximarem-se das passadeiras, outros seguem vagarosos, enquanto os seus ocupantes devaneiam, como se ainda estivessem naquele limbo que faz a ligação entre o sono e a vigília. Também eu me sinto nesse limbo. Mantenho os olhos abertos, mas a minha vontade é de correr para casa e deixar-me adormecer. Contenho-me e luto contra o demónio da preguiça. O dever chama-me, digo sem ironia e rio-me. Por motivos terapêuticos, comecei por rir-me das coisas que fazia. Agora, sem esperança de cura, rio-me de mim. Cada um passa o tempo como pode.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Distracção

Peguei há pouco no romance O Beijo ao Leproso, de François Mauriac. Ainda não o vou ler, observo-o apenas como objecto físico. É um velho livro da Colecção Miniatura da Edição «Livros do Brasil» Lisboa. Não tem data, um acidente corrente até certa altura na edição portuguesa, mas o papel está muito amarelado. O livro, comprado há pouco, nunca foi lido. As páginas ainda estão coladas por um pequeno lacre branco. A capa e a contracapa apresentam sinais de sujidade, talvez por terem estado muito tempo em exposição. Não sei se o hei-de abrir. Tenho a sensação de que, quando acabar de o ler, todas as folhas estarão descoladas da frágil lombada e hão-de cair para me obrigarem a restituí-las à ordem. Agrada-me, porém, a estética da capa. Enquanto penso em todas estas coisas, penso também nos motivos que arranjo para me distrair. O sol continua, para minha felicidade, anémico, uma luz aguada lava paredes e telhados, embate nas árvores para que sombras sejam projectadas na terra, como se fossem reflexos das copas. Não me apetece ver ninguém, mas não tarda haverá gente à minha espera. Não há distracção que nos salve daquilo que tem de ser.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Fora do paraíso

Para fazer uns escassos 100 km, utilizei, para além de um IP, quatro auto-estradas. Estas coisas nunca deixam de me maravilhar e não posso deixar de agradecer aos fundos europeus a misericórdia que têm tido connosco, poupando-nos àquelas viagens homéricas, em que para se fazer aquilo que fiz hoje em bem menos de uma hora, quase se tinha de partir na véspera. Talvez seja para usar tantas auto-estradas que existem feriados como o 10 de Junho. Cheguei ainda cedo, com a cidade banhada por uma luz solar anémica, de tonalidade esbranquiçada, um ar fúnebre. Que peçonha lhe terão dado não faço a ideia. Uns quantos emails caídos fora de tempo lembram-me que a realidade volta amanhã de manhã e o melhor será preparar-me para ela. Respiro fundo, olho para o arvoredo agitado pelo vento e enfrento com denodo a melancolia que se desprende da luz da tarde. Nunca me prometeram que a terra, mesmo com auto-estradas, seria um paraíso.

domingo, 9 de junho de 2019

O contra turista

Deveria estar a ver o ondular do oceano, sentado numa esplanada, fingindo ser um turista contumaz. Não estou, há muito que me descobri sem alma turística, coisa de que não paro de me penitenciar. Encontrei há anos, numa romance de Xavier de Maistre, o meu ideal de viajante. A literatura não é coisa que faça bem a ninguém. O título iluminou-me: Viagem à Volta do Meu Quarto. Li o livro com voracidade, como se tivesse descoberto no jovem oficial detido no seu quarto uma alma gémea. Sei que isto parece inusitado, num tempo em que não há quem não viaje, não corra Ceca e Meca, não tenha aventuras que só o turismo permite para gáudio dos ousados calcorreadores do mundo, que hão-de contar, sem falha de pormenores reais e inventados, as mil aventuras que o mundo lhes proporcionou. Tudo para desgraça do ouvinte que, tomado por uma educação caída em desuso, escuta silencioso, sorrindo como quem faz dura penitência. Eu não tenho aventuras turísticas para contar, a não ser as viagens sentado à minha secretária, coisa que omitirei para desprazer dos leitores ávidos de novidades. O oceano espera-me, mas eu não me espero no oceano.

sábado, 8 de junho de 2019

O começo do futuro

Pego na National Geographic de Abril e abro-a ao acaso. O tema é as cidades do futuro e desenrola-se à minha frente um sem número de utopias que nos hão-de salvar da perdição. Fecho a revista. O futuro cansa-me e mais ainda os profetas, os planeadores e todos os que têm uma redenção fácil ali mesmo à mão, pronta para nos retirar do purgatório, ou mesmo do inferno, em que vivemos. Talvez a minha cidade também tenha um futuro, o futuro de não ter futuro e, assim, se arraste como uma tartaruga, lenta e pausadamente, sabendo que tem todo o tempo do mundo e que, por mais vagarosa que seja, há-de sempre vencer o veloz Aquiles. Não sei como é que a revista veio parar onde está, mas também não me interessa o enigma. Algum dos filhos a trouxe e a deixou por ali, também ele já exausto de futuro. Os sábados que têm uma segunda-feira de feriado à sua frente são dias esplendorosos. Enrolo-me neles e deixo passar as horas, vejo-as desfiarem-se e desaparecerem nessa garganta funda que é o passado. Nos jornais descubro que, em Nova Iorque, uma centena de seres humanos se despiram para protestarem contra a censura dos mamilos femininos no Facebook. Fico mais tranquilo, o mundo, apesar do futuro, continua a ser o que era. Uns vestem, outros despem. Talvez vá dar uma volta e procurar o lugar onde, aqui mesmo, começa o futuro.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Os outros

Sentado à secretária, bebo café. Há muito que troquei a errância pela rua em demanda do sítio onde o líquido negro me fosse servido pela comodidade de não sair de casa. Tudo na vida, constato de imediato, conspira para que nos apartemos dos outros, que cortemos o fino arame que nos vincula e faz partilhar crenças e aspirações. Noutros tempos, os outros poderiam ser obstáculos ou aliados, hoje são apenas aqueles que não estão aqui, e o facto de se manterem à distância é motivo se não de júbilo, pelo menos de verdadeiro alívio. Os pássaros meus vizinhos não se calam, parecem repetir, inclementes e obstinados, a mesma sequência de sons, como se quisessem que a mensagem fosse percebida e o seu sentido não fosse vítima de distorções. Para eles ainda parece que existem outros, eu sou quase uma mónada, mas a palavra provocou-me de imediato um refluxo gástrico. O pássaro volta a cantar, enquanto termino o café e sussurro que preferiria ser um grão de areia do que uma mónada. A inércia é um belo exercício.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Uma ilusão

Chove. O vento agita a tarde vestida de cinza e rouba-a à melancolia dos dias quentes e sem história. Nas persianas fazem-se já sentir as indisposições atmosféricas, uma depressão a que deram o nome de Miguel, em honra do temível arcanjo, espero. Recordo as grandes chuvadas de Junho, as saraivadas indispostas que deixavam as ruas cobertas de granizo e as vinhas destroçadas. Por vezes, eram acompanhadas por grandes trovoadas, uma atmosfera tensa e um desejo irracional que tudo desabasse, mas que, por fim, se pudesse respirar livremente. Com ou sem depressão, a vida continua. Prendem-me à secretária afazeres inadiáveis, que vou cumprindo com zelo e sem prazer. Um cedro balança, carros passam, enquanto observo os livros que se acumulam nas estantes, muitos dos quais não terei tempo para ler. Sinto irritação, não porque os não vá ler, mas porque ainda julgo que não os ler é uma perda irreparável. Uma ilusão nefasta.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Insistência

A tarde de voz rouca e agreste desfila como se fosse um girassol entontecido pela luz. Frases destas enfureciam uma certa seita de filósofos. Destituídas de sentido, diriam os pensadores tomados pela raiva, dedos apontados, acusação sem direito a defesa. Como eu os compreendo. Também os sons da bateria vindos de algum evento festivo aqui perto me chegam destituídos de sentido. Pressinto o esforço do baterista, o movimento dos músculos, a cadência das baquetas ao chocar contra pratos e tambores. Definitivamente, a percussão nem sempre me cai bem. Acontecem as coisas mais estranhas nesta terra onde nada acontece. A semana desenovela-se com indiferença. Já esqueceu a segunda e a terça, não tarda aniquilará a quarta. O baterista ensaia um solo, mas logo desiste. Há pouco corria uma aragem fria, agora é uma nuvem que tapa o sol. Os músicos insistem e imagino que os ouvintes resistem. Tocam êxitos do rock dos anos sessenta ou setenta, e eu, suspendendo o meu ressentimento e incómodo, fico extasiado perante o engenho de quem tenta parar a roda do tempo e imagina que tem vinte anos e uma vida pela frente. Não tem, mas também não se cala.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Grafias

Olho a capa de uma velha revista e, de súbito, revela-se toda a perfeição encoberta no limbo do passado. Não por acaso há pretéritos perfeitos e até mais que perfeitos, apesar de também os haver imperfeitos, como certas capelas na Batalha. Todas as famílias têm as suas ovelhas negras, foi, à falta de melhor, a explicação que me ocorreu. A revista, publicada em MCMXXX pela Litografia Nacional, tem por título Monumentos de Portugal – Cintra. Aí está toda a perfeição. Que diferença entre a velha Cintra e a Sintra de hoje. O leitor pode objectar, não sem alguma razão, que a actual é marcada pela dupla curvatura da linha, ora para trás ora para a frente, de um esse que se contorce, como se a vila quisesse, nestes tempos de funâmbulos, moldar-se à instabilidade acidental de qualquer turista. A concavidade da velha Cintra tem, porém, outro carácter. O cê está ali disponível para acolher dentro de si todas as outras letras e fechar-se num mistério insondável, que nenhum intruso pressentirá. Enquanto oiço a algazarra vinda de uma das escolas que há por aqui, medito que só os desavisados pensarão que a grafia das palavras é coisa neutra, destituída de significado e das mais terríveis consequências.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Agustina Bessa-Luís

Afinal, também os imortais morrem. Foi o que me ocorreu ao tomar conhecimento da morte de Agustina Bessa-Luís. Em tempos, tive com os livros dela uma relação complexa, um misto de fascínio e ódio. Há na sua escrita uma crueldade enorme que coloca o leitor de cócoras perante o seu talento. Lê-la era ao mesmo tempo um grande prazer e um exercício de humilhação. Ao voltar da página, na luz de uma frase, brilhava um estilete que deslizava sobre a pele do leitor para se enterrar no lugar de onde brota a vaidade. Há uns anos conheci alguém que vociferava contra todos aqueles que, como o inútil que escreve estas palavras, julgavam a escritora genial. Uma idiotice, asseverava. Como é possível julgar genial alguém que não passava de um Camilo requentado, uma escritora do século XIX? Esqueci o nome e o rosto dessa pessoa e nunca dei por que tivesse dado à luz a escrita que haveria de iluminar o século XXI. Um dia destes voltarei aos romances de Agustina, agora que as ilusões juvenis murcharam e a realidade crua desceu sobre mim. Por certo, já não os jogarei ao chão e à parede, como, despeitado e preso ao feitiço da sua escrita, cheguei a fazer. Mesmo quando os pássaros meus vizinhos cantam, Junho é um mês difícil.

sábado, 1 de junho de 2019

Tagarela

O culpado de tudo isto é o pobre do Coleridge, caturrei, que ensinou aos leitores que deveriam suspender a descrença quando lêem qualquer ficção. Um péssimo trabalho, o do poeta inglês, que gerou mais equívocos do que qualquer outra patranha que a literatura inventou. Agora tendem a confundir-me com quem escreve estes textos e atribuir-lhe os pensamentos que são meus. Entre mim e o autor há uma desconformidade tal que há dias e dias que passamos um pelo outro e nem trocamos um olhar quanto mais uma saudação. Desconfio que o tipo nem me suporta. Eu, para dizer a verdade, dispenso de bom grado o convívio, mas é triste para mim esta confusão, rouba-me a identidade e atribui ao tolo do autor as descobertas, sensações e exalações que são minhas. Se fosse ele a arvorar-se dono do que digo e sinto ainda o acusava de plágio, mas ele é burro velho e não cai na esparrela. Remete-se ao silêncio e deixa-me tagarelar. Tagarela, foi assim que ele me criou.