sábado, 31 de dezembro de 2022

Rituais

Isto parece estar mau para os profetas. As profecias meteorológicas anunciavam quase um dilúvio, mas as nuvens têm-se mostrado renitentes em conceder a sua graça a quem se entrega a este tipo de augúrios. Pelo menos, por aqui. Pude ir à rua sem guarda-chuva. Constatei que o mundo mudou. Durante muito tempo vi fecharem as padarias, as velhas padarias que alimentaram a população durante décadas. Ora, hoje fui a uma padaria nova com o nome de uma encarnação da divindade hindu. Gente na casa dos quarenta anos, talvez um casal, que nunca vira por aqui, abriu um negócio, como aqueles que existem nas grandes cidades, trazendo uma nova forma de conceber o pão e de o vender. Depois, desta visita à inovação, fui a uma mais antiga pastelaria comprar um bolo-rainha. Encontrei pessoas conhecidas, algumas que envelheceram de forma desmedida. Há muito que não as via. Tomei café com um casal amigo e, no fim, desejámo-nos, mutuamente, um bom ano de 2023, embora toda a gente, conhecida ou não, o faça, se, por algum motivo, entra em contacto com qualquer outra pessoa. Estes rituais, muito deles meramente linguísticos, são importantes, pois é o ritual que salva a existência da usura do quotidiano. As sociedades modernas são máquinas de destruição de mitos e ritos, mas estes lá vão resistindo, reinventando-se para balizar a vida de cada um. Amanhã será dia de Ano Novo e este terá também os seus rituais e a sua própria mitologia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Melancolia e inutilidades

As pequenas cidades de província são um poço de melancolia, mais ainda se se junta a pequenez e a interioridade. E para se estar no interior bastam uns meros vinte ou trinta quilómetros de afastamento do litoral, senão menos. Um inexorável despovoamento, aliado ao défice demográfico e à morte dos centros antigos, conduz a essa sensação de que algo se retirou e não mais voltará. Onde existe atracção turística, as coisas ainda são disfarçadas pela presença de mirones à procura de coisas nunca vistas, mas nos lugares que não atraem esses viajantes sem destino nem causa não se pode evitar a constatação de que a morte urbana progride silenciosa. Foi tudo isto que experimentei ao passar pelo centro da cidade onde me acolho, cidade bem mais desconsolada do que a antiga vila, plena de vida. Também é possível que esteja completamente errado e que sejam os meus olhos que, motivados pela idade e cansados do que já viram, vêem as coisas desta maneira. Não seria a melancolia da cidade que se desdobra diante de mim, mas a minha melancolia que ali se projecta. Ora, determinar o que numa certa imagem ou percepção das coisas pertence ao percebido e o que pertence ao sujeito que percebe dava uma bela, apesar de inútil, discussão. Não é que as coisas inúteis não exerçam grande fascínio sobre mim. Exercem, e toda a minha vida me interessei mais por aquilo que é inútil do que por aquilo que pertence à utilidade. Contudo, não me apetece chegar à hora do crepúsculo preso às cadeias da inutilidade. Amanhã será o último dia do ano. Eis uma informação que pode ter mil préstimos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tristezas

O poema Neve, do livro Ararate, de Louise Glück começa assim: Final de dezembro: eu e o meu pai / vamos a Nova Iorque, ao circo. Ao ler estes versos, tive uma reminiscência de uma ida ao circo com o meu. Não era Dezembro, nem foi em Nova Iorque, nem nevava, mas em Lisboa, no Coliseu, e estava calor, pois lembro-me de comer um gelado e de sujar o casaco da senhora que estava à frente. Isso foi há mais de sessenta anos. Não sei que impressão me ficou dessa experiência, mas o circo sempre foi um espectáculo que me deprimiu. Basta pensar nele para sentir tristeza, mesmo naqueles circos ricos que apareciam na televisão no dia de Ano Novo, ou talvez num outro dia qualquer, que me aparece na memória como sendo o primeiro do ano que começava. Trapezistas, palhaços, ricos ou pobres, equilibristas, engolidores de espadas e de fogo, domadores de feras, por todos eles sinto uma estranha compaixão, como se as suas profissões fossem piores do que todas as outras que por aí há. A origem dos nossos sentimentos é obscura e, por certo, desprovida de racionalidade, pois não há quem pondere aquilo que há-de sentir. Talvez todas as profissões sejam fonte de tristeza, mesmo para aqueles que dizem trabalhar por prazer. Uma outra hipótese é ter compreendido, de forma subliminar, que o circo é uma representação do mundo e que a tristeza que perante ele sinto se refira a uma desolação com o próprio mundo. Isto, porém, infringe a alegria que me assalta perante múltiplos acontecimentos que esse mundo transporta consigo. Acabei de ler um romance de Maria Isabel Barreno, autora de que nunca tinha lido nada. Também o mundo que ela narra me deixou um vestígio de tristeza, daquela tristeza que nos toca perante a consciência de que as nossas ilusões não passam disso mesmo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Complacência

O ano está a chegar ao fim. Não faltarão retrospectivas do que passou e profecias para o que há-de vir. Há muito que imagino ser mais acertado fazer profecias sobre o que se passou e retrospectivas do que ainda não aconteceu. É possível que o resultado fosse o mesmo. A Terra prossegue a sua vida, rodando sobre si e girando em torno do Sol, com olímpica indiferença. Que os homens montem, a partir da sua actividade, calendários, será um problema que não a afecta. Durante algum tempo tirei fotografias. Evitava nelas a presença humana. Talvez fossem, penso-o agora, uma forma de reverência ao planeta que nos acolhe e dá vida. Se alguém achar que isso se deve à misantropia terei de considerar o assunto. Duvido, contudo, que a espécie humana gere em mim um sentimento tão forte. Complacência, sim, mas não ódio. A complacência começa comigo e estende-se ao próximo, mesmo que este esteja muito afastado. Na literatura, a complacência tem má fama. A condescendência é vista como uma falta de carácter, tornando o herói vicioso. Ora, no acto de ser complacente existe benevolência e esta, caso fosse universal, não tornaria a vida pior. Ontem levei as minhas netas ao mosteiro de Alcobaça. Enquanto deambulava por ali, ia pensando que o mosteiro está morto. Existe conservação e restauro, mas aquilo para o qual foi erguido desapareceu. Tornou-se um cadáver que não se corrompe, mas não deixa de ser um cadáver, como o são os corpos de Pedro e Inês, ali sepultados. A ânsia que sentimos de preservação do passado em forma de património é uma negação da realidade, uma recusa em perceber que é o espírito que vivifica e, quando este se retira, o monumento, por belo que seja, é apenas um despojo sem vida preso à terra.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ser risível

A páginas 54 e 55 da tradução portuguesa de A Loucura de Hölderlin, do filósofo italiano Giorgio Agamben, o autor faz notar, quase em modo de lamentação, a ausência de menção no poeta à comédia, enquanto reflecte, por diversas vezes, nos géneros épico, lírico e trágico. Ora, segundo Emil Staiger, em Grundbegriffe der Poetik, referido por Agamben, os géneros poéticos nomeiam também “possibilidades fundamentais da existência humana”. Podemos sem dificuldade pensar em existências trágicas, épicas e líricas, todas elas marcadas pelo respectivo arquétipo literário. Se pensarmos, porém, em existências cómicas, fundadas no arquétipo da comédia, sentimos uma qualquer falsificação da realidade. A pista que se poderá seguir é dada por Aristóteles. Sendo toda a arte imitação, a tragédia imita os homens nobres e superiores, enquanto a comédia imita os homens inferiores naquilo que eles têm de ridiculamente torpe. Ora, a torpeza ridícula é uma possibilidade da existência humana, mas não fundamental. Os homens que vivem vidas ingénua ou vilmente torpes sofrem de uma amputação da sua natureza, um eclipse da sua essência e ficam presos nas possibilidades de superfície. É plausível pensamos duas coisas. Em primeiro lugar, nenhum ser humano foge da risibilidade e, de algum modo, todos somos personagens cómicas. Em segundo lugar, as possibilidades fundamentais dadas na literatura – a épica, a trágica e a lírica – não são mais do que modelos, ou arquétipos, que possibilitam a cada ser humano a elevação da sua condição risível a uma condição superior. Essa elevação, note-se, não é um exercício exterior, mas uma experiência interior, que vai da superfície ao fundo de si, mesmo que isso tenha repercussões na sua persona pública. Estes pensamentos desencadeados pelo livro de Agamben vieram recordar-me longas conversas com Eduína, o que abriu em mim uma ferida que nunca estará verdadeiramente sarada. O seu desaparecimento precoce do meu mundo – mais precoce do que a sua morte – pôs um fim a longas conversas em que sensibilidades distintas e antagónicas encontravam estranhos caminhos de pensamento. Esses eram caminhos feitos de indagações, mas o modo como uma mulher indaga é bem diferente daquele que o homem escolhe, embora entre ela e eu houvesse uma partilha fundamental, a da plena consciência de se ser risível.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Uma questão de vogais

Está quase consumada a quadra natalícia. S. Pedro continua muito activo, ele que nos últimos anos se tinha entregado a grandes períodos de greve. Os profetas do tempo indicam, porém, que daqui a pouco ele irá descansar e que a chuva cessará. Como todos os profetas, também os meteorológicos são esquivos e falam numa linguagem ambígua. A equivocidade simbólica dos profetas religiosos foi substituída pela probabilidade. É provável que chova, mas também há uma certa probabilidade que isso não aconteça. As netas afadigam-se, fazem as malas para irem passar uns dias com os avós. Cuidam das toilettes que usarão caso façam isto ou aquilo. Falei no plural, mas parece que é apenas uma que se entrega a estes trabalhos, a outra está presa a uma rede social que os adolescentes usam, no modo que hoje têm de ser adolescentes, pelo menos no Ocidente. Talvez não devesse falar no Ocidente. Tem péssima imprensa. No século XIX, todavia, Cesário Verde pôde escrever um longo poema com o título Sentimento dum Ocidental. Nesses dias, era claro o que significava ser ocidental, hoje talvez não passemos de acidentais. A insignificante troca da vogal inicial traz-nos lições de sociologia que não se poderia suspeitar. Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Isto, porém, era no século XIX, quando ainda éramos ocidentais. Hoje, quando o desejo absurdo de sofrer nos toca, vamos ao psiquiatra, ao psicanalista, quem pode, ao psicólogo, quem não tem dinheiro para, durante anos, se deitar no divã e entregar-se à hermenêutica dos sonhos, à exegese dos actos falhados e ao jogo das associações livres. Também no campo da patologia mental funciona um mercado livre, onde há produtos para todos os gostos e todas as bolsas.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Combater gigantes

As festividades continuam. Este é um tempo que exige uma apurada capacidade de gestão. Um jantar aqui, um almoço acolá, outro jantar noutro lado, ainda o dia 26 com a visita a… É o que dá a multiplicação da espécie, que, com casamentos, divórcios, nascimentos, recasamentos e sei eu lá mais o quê, torna tudo um estranho exercício de cálculo. O Natal é, deste modo, uma espécie de Quaresma, mas no lugar do jejum – quem jejua na Quaresma? – tem por penitência o seu contrário, a possibilidade de engordar com rapidez. Ontem, mantive-me frugal e espero fazer o mesmo nos desafios que ainda tenho de enfrentar. Não é tarefa fácil, os moinhos são mesmo gigantes, mas tenho-me treinado na escola de D. Quixote, embora não passe de um pobre Sancho Pança. Espanta-me sempre como é que a frugalidade do presépio deu origem a estes exercícios pantagruélicos, mas talvez nunca tenhamos deixado de ser pagãos, descendentes dos que se banqueteavam em Atenas ou em Roma. Agora, vou preparar-me para enfrentar os gigantes.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Fidelidades

Mais um Natal quase passado. Foi o que me disse hoje de manhã o padre Lodo, durante o longo telefonema. Desde que nos conhecemos, nunca deixou de ligar na véspera de Natal. Fui acompanhando no decursos dos anos – ou das décadas, para ser mais fiel à realidade – o estado de espírito natalício deste meu amigo. Foi-se transformando, mas, no essencial, manteve-se idêntico. Fiz-lho notar e ele respondeu-me que o Lampedusa tinha razão, que é preciso que alguma coisa mude para que tudo permaneça. A formulação não é bem essa, acrescentou, mas a que fiz serve para descrever a realidade. Mantive-me fiel, continuou, ao que era no início, mas desconfio que nisso não tenho qualquer mérito. Todos são fiéis a si próprios, mesmo que não dêem por isso. Aquele que trai aquilo em que acreditou não deixou de ser fiel a si, pois nele haveria já um não crer. Parece-me, disse-lhe, um discurso herético. Há um determinismo incompatível com o livre-arbítrio, o que contraria a doutrina da Igreja. Talvez, talvez, respondeu, mas é plausível que a omnisciência divina ou a legislação da natureza ainda sejam compatíveis com essa estranha ideia de que possuímos liberdade de escolha. A metafísica, porém, cansou-me há muito. Não era, aliás, nem o meu forte, nem o meu interesse, fazia parte da paisagem onde um jesuíta tinha de viver. A paisagem, porém, transbordava de assuntos, muitos dos quais me interessavam mais do que esse. Depois, mudou de conversa e informou-me que Castorp viria a Lisboa com a mulher e que esperava que nos encontrássemos todos. Sem dúvida, respondi. Antes de desligar, perguntou-me se já tinha comprado os presentes todos ou se tinha guardado algum para a última hora. Respondi-lhe que a vida me tornara previdente. Desejei-lhe um feliz Natal e ele respondeu-me com um santo Natal. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Encontros inesperados

Não só o Outono o foi, como o próprio Inverno chegou invernoso e, segundo vi, promete continuar. Num dos livros que tenho na secretária, encontrei um cartão de um restaurante lisboeta na moda, perto, muito perto, do S. Carlos, e um talão de um depósito em caixa multibanco. Curioso, fui ver a data, 11 de Março de 2002. Um documento histórico. Terei achado que servia para marcar a página de um ensaio sobre espinhosas questões da mais espinhosa de todas as disciplinas que o espírito do homem criou. Do autor, tão espinhoso ele é, omito o nome, pois são lendárias as legiões de seguidores e de detractores. Talvez a personagem não merecesse nem tantos sequazes nem tantos depreciadores, mas como em tudo, também nesse território minado a que alguém um dia terá chamado a rainha das ciências, os seres humanos gostam de se alinhar e, depois de postos na linha, logo começam a marchar. De resto, não faço ideia por que motivo, num mesmo livro, se encontra um cartão recente e um talão antigo, de uma outra encarnação. A vida, porém, é feita destes mistérios. Antes que acabe de escrever, vou arrumar ambos no sítio onde estavam, para que alguém daqui a décadas os encontre. O talão encaixa na perfeição em La question sur l’essence de l’être e o cartão do belo restaurante vai dormir em Sur la grammaire et l’étymologie du mot «être». Que tenham bons sonhos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Movimentos pendulares

Distraído e alienado de tudo o que é essencial, não dei pelo solstício de Inverno. Foi ontem, pelas 21horas e 48 minutos. Estamos na estação mais fria e não me despedi do Outono. Estas coisas são imperdoáveis. Bem faziam os povos antigos que não se esqueciam de assinalar estas efemérides, não fosse o diabo tecê-las. Agora, os dias começam a crescer e as noites a diminuir, pois o ano é regulado por um movimento pendular. Este movimento traz com ele uma mensagem. Por mais que as coisas mudem elas hão-de voltar ao seu lugar. E que lugar é este? Cada um dos pontos que o pêndulo no seu ir e vir vai ocupando. Isso é uma visão muito conservadora, diz um dos homúnculos que habita na caverna da minha consciência, pois não nos podemos banhar duas vezes na mesma água do mesmo rio, acrescentou, alardeando erudição e uma despropositada tendência heraclitiana. Poderia ter-lhe respondido que o fluxo contínuo e a mudança incansável de tudo o que existe não passam de uma ilusão sensorial e de um enviesamento do espírito seduzido pelos dados sensoriais. Evitei, porém, entrar em discussão e mandei-o regressar ao lugar de onde saíra. Não temos um dia luminoso de Inverno, mas uma tristeza sombria a pairar sobre a pequena cidade onde arrasto o peso da existência. O Natal aproxima-se, já que os dias, as horas e até os instantes não sabem fazer outra coisa senão passar, presos a uma ânsia de voltar ao lugar de onde partiram.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Vanitas vanitatum

Chegou a noite com o seu silêncio. A praceta está vazia, o café fechado, os alunos do Centro de Línguas foram para casa. Agora, é o tempo das sombras, a hora dos murmúrios, o instante em que a realidade toma outra direcção, mais secreta, grávida de enigmas. Mais logo terei de sair, para um daqueles jantares que a época natalícia arrasta, como se as pessoas que durante um ano inteiro praticamente se ignoram fossem uma grande família, partilhassem entre si alguma coisa de essencial. Durante muito tempo resisti a este tipo de festividades, mas com o passar dos anos fui cedendo ao espírito da época ou ao amolecimento dos instintos. Bem gostaria de ter aventuras para contar, mas nada me sucedeu digno de nota, a não ser ter caído ao subir umas escadas. Tropecei num degrau e lá fui com joelhos e mãos ao chão. Descobri que ainda dou demasiada importância à minha pessoa, pois antes de me preocupar se me doía alguma coisa, fui ver se ninguém tinha assistido a esta cena humilhante. Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Tranquilizado, dei atenção aos joelhos, doíam, mas pouco, coisa que logo passou. Tenho de começar a subir escadas amparado ao corrimão. Estes dias, diga-se, têm sido dados a moléstias. Consegui combinar uma faringite com uma conjuntivite. Tive de fazer a via sacra dos consultórios. Um para mostrar os olhos, outro para deixar que me espreitassem a garganta. Agora que penso nisso, as duas médicas que me viram ainda são menos novas do que eu. Uma delas pouco usa o computador e prefere escrever com uma caneta de tinta permanente, uma Montblanc. Passa uma receita ou faz uma requisição de análises ou exames manualmente. Depois, usa uma folha branca como mata-borrão, já que os autênticos mata-borrões desapareceram. Devem ter sido descontinuados. Eu que comecei a escrever no tempo dos mata-borrões também tenho uma Montblanc, mas não sei para que me serve. Escrevo em teclados, reais ou virtuais, e quando tenho de escrever manualmente, coisa rara, uso o que estiver à mão. Não tenho nostalgia do arranhar, mesmo que suave e delicado, de um aparo sobre o papel.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Fidelidades

Hoje, o padre Lodovico, no seu habitual telefonema de domingo, estava inclinado para a vexata quaestio de quem será o campeão do mundo de futebol. Não sei, confessou-me, se como europeu devo apoiar a França, se devo ser solidário com o Papa e torcer pela Argentina. Recordei-lhe que o futebol não era uma coisa pela qual tivesse interesse. Eu seu, eu sei, mas eu, com a idade, fiquei pior, tenho uma alma de tifoso, que tenho dominado a custo e com algumas penitências, acredite. O meu problema, continuou, é que as selecções de que seria apoiante natural tiveram o destino que tiveram. Isso parece-me uma tautologia, disse-lhe. Tautologia ou não, a verdade é que a Itália nem entrou em combate e Portugal teve um novo Alcácer Quibir. Sim, respondi, este último caso é preocupante, não venham de novo os Filipes e, agora, um Filipe está no trono de Espanha. Não brinque, disse em tom de admoestação. O problema não será assim tão difícil, sugeri. Depende do grau de fidelidade. Se a maior fidelidade, como membro da Companhia, for ao Papa, deverá apoiar a Argentina. Se o ser europeu se sobrepõe a ser papista, então deverá apoiar a França. Não gosto desse termo papista, mas esse é o meu problema. Sou fiel às duas coisas. Nesse caso, alvitrei, deve acompanhar o jogo dilacerado. Será uma forma de expiação.

sábado, 17 de dezembro de 2022

A ordem das coisas

Já é noite há muito e ainda não li ou vi quaisquer notícias. Desconfio que não terei perdido nada de decisivo, pois as coisas decisivas necessitam de muitos dias e, apesar dessa constância na sua geração, a imprensa raramente – e talvez esteja a ser generoso – dá por elas. As notícias são uma forma de cegueira. Cultivei-a durante décadas, rodeando-me de jornais, e ainda hoje não me furto a ser cego, mas já não sinto necessidade de estar informado sobre o estado do mundo. Outrora, a informação captava com alguma sobriedade a espuma dos dias, hoje desinteressou-se da espuma e aterrou nos sentimentos que a espuma provoca. Não há nada mais penoso do que a exposição pública das dores que atingem os mortais. Chega, porém, ao reino da obscenidade a exploração dos sentimentos de revolta e das emoções nascidas em acontecimentos mais ou menos terríveis. Estive com os meus netos e isso encheu-me o dia. Um interessado em dinossauros, outra na viagem de finalistas – meu Deus, viagem de finalistas do 9.º ano – a Paris, e a outra mais silenciosa, mergulhada no tik-tok, mas exuberante com a nota que vai ter a uma certa disciplina. São estas notícias que agora me preenchem a vida. O mundo não deixa de estar aí, mas cada vez pertenço menos a este mundo. É a ordem das coisas.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Luta de classes

Quase noite. É nisto que dá a passagem do tempo. Caso não passasse, não haveria lugar para este tipo de constatações. A chuva amainou, tornou-se um animal dócil, contrariamente à minha faringe que ainda não dobrou a cerviz aos ataques que tem sofrido. Como é que nós, desventurados humanos, queremos afirmar a nossa autonomia de seres que dão a si mesmo a sua própria lei, como defendia aquele senhor que nasceu, viveu e morreu em Konigsberg, se nem a uma simples faringe conseguimos impor a ordem, deixando que ela deambule feérica por aí e se entregue a inflamações despropositadas? Uma completa autonomia moral exigiria um domínio total do corpo, mas este recusa-se e, de múltiplas maneiras sempre a abarrotar das mais tenazes insídias, entrega-se a perigosos devaneios, a que nós, sempre com a necessidade de a tudo dar nome para a tudo catalogar, chamamos prazer e dor. É possível que exista mesmo um prazer específico de organizar catálogos e de se entregar a taxinomias. Pôr por classes terá um dia fascinado algum dos nossos antepassados que fez disso uma adicção e que transmitiu o vício à descendência. O que acontece é que outros vícios do corpo acabam por desmantelar o edifício classificatório, mas como a inclinação se tornou genética, haverá sempre alguém disposto a empreender a reconstrução dos sistemas classificatórios. Imagino que a luta de classes seja esse esforço para classificar e reclassificar as coisas que caem no horizonte humano. Em resumo, um problema de taxinomias. Ainda posso dizer quase noite. Eis uma frase capturada por essa estranha classe de palavras que são os advérbios, que se recusam a variar em género e número. O facto de não variarem em género significará que são assexuados ou que contêm em si os dois sexos? Como se vê, existem problemas prementes e não há quem lhes preste atenção.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Redenção

Irrita-me o rato. Eis um mau começo, uma aliteração em texto prosaico. A verdade, todavia, é essa . O rato decidiu, sem me pedir consentimento, pôr de lado a função de scroll ou, para estar mais de acordo com os tempos actuais, descontinuou-a. E se há coisa útil para percorrer as páginas num monitor é a dita função. Com isto se prova que a autonomia humana está constantemente ameaçada pela autonomia dos objectos que os próprios homens criam para aumentar a sua autonomia. Os homens inventam-nos confiados na sua obediência e passividade de meras coisas, mas logo descobrem que afinal não são coisas, mas entes dotados de vontade. Frustrados, os homens desculpam-se catalogando a recusa em funcionar como avaria ou acidente. Tudo isto por causa do scroll do rato. Tenho de ir comprar outro e despedir este. Uma das odes de Horácio começa assim: Nem sempre das nuvens corre a chuva / sobre os campos agrestes, nem continuamente / inconstantes tempestades o Mar Cáspio / fustigam, nem, na costa arménia, // amigo Válgio, se acumula todos os meses / o imóvel gelo, e nem sempre os carvalhais de Gargano / pelos Áquilos são assolados, /nem o freixo perde as suas folhas. Ora, o nem sempre com que o poema abre traz com ele uma promessa, pois nem sempre o mal reinará. Toda a promessa, porém, contém uma ameaça, pois nem sempre ao bem sucederá o bem. Como certos medicamentos úteis, também o bem sofre de descontinuações. Não consigo scrollar no texto, o que não será muito grave, considerando as inúmeras coisas que não consigo fazer. Redime-me o dia as inconstantes tempestades, o imóvel gelo, os carvalhais de Gargano. Também dessas coisas pode nascer a redenção.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Bric-à-brac

O barulho era tanto que abri a janela do escritório. Havia uma rudeza desenfreada na chuva que caía. Fiquei longos minutos a observar a queda da água e a escutar o som do embate com as pedras da calçada. As acácias estão completamente despidas. Indiferentes, recebem a dádiva celeste. O pequeno bosque da escola ao lado é um maciço sombrio. O dia passou entre ocupações motivadas pela estrita necessidade e a escuta da música pluvial que tem inundado as horas. Abro ao acaso um livro que tenho na secretária e leio Deixe tranquilo o seu bric-à-brac de esteta, e seja honesto, disse ele com frieza. Não foi bem isto que li, mas a versão francesa original. Talvez este narrador, que por falta de assunto fala do estado do tempo, seja apenas movido pela desonestidade de um esteta entregue ao divertissement que o bric-à-brac pseudo-intelectual com que se entretém proporciona. É uma forma de consolo, como ensina Blaise Pascal, para a dificuldade de ser si mesmo. Também é verdade que cada um encontra a salvação onde pode. Dói-me a garganta, a velha faringite está de volta, embora, nos dias que correm, se pense logo noutras causas. A chuva parou, enquanto a noite avança e consolida posições. Na rua, uma criança chora.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Paixões naturais

Tanta seca acabou por trazer chuvas torrenciais, como se a natureza fosse habitada por um impulso para o equilíbrio. Contudo, adoptou uma estranha estratégia para alcançar esse fim. Nasce não da contínua moderação dos estados do tempo, mas de violentas e extremas paixões. À paixão do deserto opõe a paixão do dilúvio. É possível que se tenha convertido aos ideais humanos. Durante muito tempo, as paixões foram vistas com desconfiança, como uma incapacidade de temperança e moderação, uma falta de liberdade perante aquilo que tenta corpo e alma. A partir de certa altura, as grandes paixões foram exaltadas como um estado existencial não apenas desejável, mas como um dever para que se seja um ser humano real. Esta forma de julgar as coisas esqueceu a longínqua lição que ensinava ser a paixão um estado de passividade patológica. A natureza, também esquecida da proverbial sageza que lhe é atribuída, deixou-se envolver pela patologia das paixões e oscila entre extremos violentos. Agora, um dilúvio; amanhã, uma seca. Tem este desarranjo hormonal uma vantagem. Fornece-me, sem fim à vista, motivos para ocupar estes escritos. Eu que ando sempre à míngua de assunto, quer chova, quer faça sol, agradeço.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Traduções cuidadas

Há uns tempos, comprei duas traduções de obras de Alphonse Lamartine. Recordo a motivação dessa compra, mas não vem ao caso agora. Tratam-se dos romances Cláudio e Fior D’Alisa. Em nenhum deles se consegue saber a data da edição portuguesa, tão pouca a da impressão. Os livros têm os caracteres tão diminutos que não os conseguirei já ler, pelo menos nestas edições. Foram publicados pela Livraria Lello. A primeira ainda pela Livraria Chadron, de Lélo & Irmão, Lda. Há algumas coisas curiosas.  Por exemplo, houve uma evolução na grafia da palavra Lélo. Perdeu o acento gráfico, mas ganhou um ‘l’. O tempo apagou o expediente. A cidade de publicação foi o Pôrto e não o actual Porto. Como se vê, tudo muda. O mais interessante, porém, é a indicação, numa das páginas iniciais, de Tradução Cuidada. Deixa supor que, naquele tempo, as traduções estavam longe de serem cuidadas. Não é isso, porém, o mais notável. O que mais chama a atenção é o que não está lá, o nome do tradutor. Sabemos que seria cuidadoso, mas não se sabe quem foi a alma que prodigalizou tanto cuidado em verter o romantismo de Lamartine para português. Podia ter escrito sobre outra coisa, mas não me ocorreu mais nenhuma que se adequasse a este domingo de Outono, quase Inverno. Continuo a ouvir as Variações Goldberg. Alguma razão hei-de ter, mas não imagino qual. A noite chegou e amanhã a realidade bater-me-á à porta, com a sua fúria cantante, trazendo o escândalo dos dias úteis.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Uma história imaginária

Diante de mim, tenho a Crítica III, de João Gaspar Simões. Reúne um conjunto amplo de críticas a obras (romances portugueses) publicadas entre 1942 e 1964. É curioso olhar o índice, organizado por romancista. Muitos daqueles nomes são, hoje em dia, completamente desconhecidos. Há, claro, escritores que ainda são lidos ou, pelos menos, reconhecidos como antigos homens de letras. Encontramos grandes nome como Vitorino Nemésio, Carlos de Oliveira, José Régio, Agustina Bessa Luís, José Cardoso Pires ou Vergílio Ferreira. Constam também Joaquim Paço d’Arcos, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira. Estes nomes ainda dizem alguma coisa a quem se interesse pelas letras pátrias, digamos assim. Quantas pessoas, porém, terão ouvido falar de Francisco Costa, Manuel do Nascimento, Leão Penedo, Aleixo Ribeiro, Faure da Rosa, Judith Navarro, Domingos Monteiro, Afonso Ribeiro, Maria Archer, Maria da Graça Azambuja (na verdade, Maria da Graça Freire, irmã de Natércia Freire) e de mais uns quantos nomes? Todos eles terão tido alguma importância, pelo menos aquela que terá levado um crítico como Gaspar Simões – na altura personagem eminente na crítica nacional – a dedicar-lhes a sua atenção, mesmo que negativa. De todos estes desconhecidos tenho vindo a comprar as obras que vou apanhando com a esperança de as ir lendo, embora desconfie que isso não será boa política, tendo em conta tanta coisa extraordinária que ainda não li. Gostaria, porém, de fazer uma história de Portugal desde o século XIX até à actualidade. Não uma história de historiador, nem uma história da literatura, mas uma história do Portugal imaginado na prosa dos seus ficcionistas. Uma história, claro, para consumo pessoal. Como se percebe, isto são devaneios de sábado à tarde, quando a tarde já se entregou nas ondas negras do anoitecer. Daqui a pouco estará aqui o meu neto. Quando a porta se abrir, estas fantasias cessarão e dedicar-me-ei à realidade de brincar com ele.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Relações físicas

Ao entrar, há pouco, no escritório, senti uma pequena alegria. O sol, no seu caminho para o ocaso, ainda brilhava com veemência e inundava o espaço onde me sento. Entrava por uma janela que, por norma, mantenho fechada, mas que um súbito acaso me levou a abri-la ainda antes da hora de almoço. Naquele instante, senti o que há de benfazejo na vida e no mundo, apesar de ser apenas um sol outonal. Agora, enquanto escrevo, tudo mudou. O crepúsculo aproxima-se com rapidez e não tarda a noite estará cerrada sobre a cidade. Vou esquecendo muitas coisas a que, noutros tempos, terei dado importância, mas não são poucas as vezes que me lembro de como o sol incidia na brancura das paredes da casa onde nasci, ou como o vento soprava diante da escola primária, ou como a água corria apressada rua abaixo, e eu a olhava da janela de uma casa onde passei parte da minha vida. Também sou revisitado por aquelas noites de Verão em que o vento vindo da serra domesticava o tropel do calor. São múltiplas as formas como nos relacionamos com a terra e o céu. Tratam-se de relações físicas, onde o corpo com os seus sentidos desempenha o papel principal. Mesmo quando, numa noite transparente e sem poluição luminosa, ficava a contemplar, com demora, aquilo que os olhos captavam do universo e o enigma do que via se transformava numa emoção contida, era ainda a relação do corpo com esse universo que era o fundamento dos pensamentos que então me assaltavam. Nem o infinito e o sem medida escapam ao corpo para se tornarem motivo puramente espiritual. É na finitude e na limitada medida do corpo físico que encontro o ponto de partida para o desmedido e para o que nunca terá fim.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Meditações

S. Pedro, o CEO da empresa que gere o clima, está muito volúvel. Há instantes, chovia por aqui torrencialmente. Agora, um sol radioso. Nada garante, porém, que essa luz clara e vibrante dure mais de uns minutos. Umas compras inadiáveis levaram-me à rua. A cidade pareceu-me, apesar de lavada, sombria. Quando digo cidade sinto sempre uma certa estranheza. Em tempos, uma tradição ligada à fundação da nacionalidade, havia uma divisão clara, caso o fosse, entre cidades, vilas e aldeias. Interrupção do profundo pensamento. Tornou a chover torrencialmente. Continuação. Agora, as cidades cresceram como cogumelos. Talvez os habitantes de um burgo queiram ser cidadãos e não vilões. Não percebem que é muito mais interessante ser vilão do que cidadão. Um cidadão só tem um plural, cidadãos. Um vilão, todavia, tem três plurais possíveis: vilães, vilãos e vilões. Por aqui, somos todos uns vilães, mas fingimos ser cidadãos. Estas promoções a cidade enternecem os habitantes e excitam ao paroxismo os dirigentes autárquicos. Alguns grandes aglomerados populacionais, porém, insistem em ser apenas vilas e com isso mostram o seu toque aristocrático. Pensarão os vilãos daqueles sítios: não há cão nem gato que não seja cidade, nós mantemo-nos fiéis à nossa memória histórica. O sol brilha de novo. Enfim, talvez seja caso para marcar consulta num psicanalista para S. Pedro. Haverá, neste comportamento, qualquer coisa ligada a um recalcamento na infância. Sim, porque os santos também tiveram infância e terão sofrido do complexo de Édipo. Depois de dois dias de descanso, o narrador não encontrou nada de útil para discorrer. Agora, vou fruir o feriado.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Vícios e virtudes

Desiludo-me sempre, eu que gostava de ser conciso. Juro que vou escrever meia dúzia de linhas, mas devo sofrer de alguma variante pérfida de logomania. Quanto menos tenho para dizer, mais as palavras se arregimentam para formar frases. A contenção é uma virtude, mas, pelos vistos, não a cultivo. Também é verdade que a virtude tem má imprensa e pior fama. Ser-se virtuoso era um ideal ético que, em aparência, regulava a vida. Hoje, toda a gente prima pela autenticidade e manda para o diabo as aparências. Com estas foi-se a virtude e restam, para ostentar perante o público, os vícios, como se fossem virtuosos. A logomania expande-se, como se vê. Entrego-me ao sestro das palavras, enquanto deveria cultivar a virtude do silêncio, talvez mesmo tornar-me cartuxo e deixar a vida deslizar no grande silêncio. Um dos homúnculos que habita em mim fez questão de me recordar que não tenho idade para entrar para a Cartuxa e quando a tinha não estava preocupado com o silêncio, que é coisa de velho, sublinhou, mas com coisas bem sonoras. Fiz-lhe um gesto indecoroso e ele fugiu para a caverna onde habita. Começou a semana e não sei o que dizer dela, nem sei se tenho poder para o fazer. Sigo, então, o conselho de Wittgenstein: Sobre o que não se pode falar, deve-se calar. Eis o silêncio como imperativo.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Pura quietação

Um domingo sem história, mas talvez este domingo não se distinga de todos os dias da semana, desta e de todas as outras. A história, seja grafada com ou sem capitular, é coisa humana, demasiado humana. Quando se diz um dia histórico estamos a acrescentar um qualificativo postiço a um evento natural. Os dias limitam-se ao fenómeno do nosso pobre planeta rodar sobre si mesmo. Sucedem-se uns aos outros. Quanto aos fenómenos históricos são o fruto de uma doença que atingiu a espécie humana e que a leva a não estar quieta. Em resumo, este domingo foi para mim pura quietude. Suspensão de toda a actividade, a não ser aquela estritamente necessária. Sempre podia ter aproveitado para fazer algumas pequenas arrumações, mas nem isso. Também a mente se manteve em pura quietação. Nada de pensar, nem de me deixar levar pelas fantasias com que a imaginação costuma enlamear a clareza e distinção dos raciocínios, infectando-os com o óxido dos delírios e das utopias. Há dias, tive de participar numa espécie de mesa-redonda sobre um assunto que não vem ao caso. Um dos participantes estava entusiasmadíssimo com o dito assunto, pois ele representava a presença da utopia. Já não tenho idade para este tipo de coisas e calei-me. Sempre que os homens se lembram de realizar utopias, aquilo que obtêm é a mais hedionda distopia. Um dia o padre Lodo, sabendo-me um adversário das utopias sociais e políticas, aprovou a minha posição, acrescentando-lhe uma motivação teológica que nunca me tinha ocorrido. Todo o pensamento utópico, com a sua desterritorialização, é uma revolta contra Deus, uma fuga da terra tal como ela é, o lugar de exílio a que fomos condenados pela precipitação dos pais da nossa espécie. Eu ri-me, confessei que não era essa a razão das minhas preocupações e disse-lhe que não deixava de ser interessante partir-se de sítios diferentes e chegar ao mesmo lugar. Todos os caminhos vão dar a Roma, respondeu-me ele. Na verdade, nunca deixa de ser jesuíta.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Um dia perdido

Ainda há coisas que correm bem. Um problema com persianas. Ocorreu-me ligar para a empresa de montagem e manutenção. Estava aberta. Expus o caso e disseram-me que tinham homens na rua. Já me iriam contactar. Assim foi. Daí a pouco apareceu um funcionário – um imigrante brasileiro – e ocupou parte substancial da manhã a consertar duas persianas e a afinar mais uma meia dúzia. Agora tudo sobe e desce, desliza nas calhas e, fundamentalmente, não há persiana que não trave quando deve, coisa que nem todos os seres humanos fazem. Uma manhã perdida, mas ganha. A tarde foi pior, pois tive de enfrentar uma coisa sobre a qual não tenho poder, mas que acabo por ter alguma responsabilidade moral, digamos assim. Ter responsabilidade sem ter o poder de decidir é uma situação desagradável, mas a realidade é feita de situações desagradáveis. Tal como a manhã, também a parte luminosa da tarde foi perdida, mas o sucesso foi muito menor que o da manhã. Continuo a ler as cartas do marquês de Custine, da sua visita à Rússia em 1839. Passados quase dois séculos, as coisas não serão substancialmente diferentes. Também é plausível pensar que entre o Portugal de 1839 e o de hoje haverá grandes continuidades. As coisas são muito mais lentas do que o desejo dos reformadores do mundo. Escurece. Oiço as Variações Goldberg. Não, não é o Glenn Gould, mas o Pedro Burmester.  Logo, irei ouvir o Messias, de Händel. Talvez o dia não seja completamente perdido. Veremos.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dedicatórias e vozeios

Abro um livro e encontro de imediato uma dedicatória da autora a uma prezada amiga, seguindo-se o nome desta. O texto data de 10 de Abril de 1944. A escrita é espantosa, pois completamente incompreensível, com excepção de raras palavras. Estas mais se adivinham do que se lêem. É uma escrita com letras enormes, inclinadas para a frente, combinando arestas vincadas e ameaçadoras com enormes arcos, como se certas letras sofressem de uma gravidez adiantada. Pouco consegui perceber, mas a pessoa objecto da dedicação não seria das relações próximas da romancista. Se o fosse, a prezada amiga seria querida amiga. Se ainda fosse mais próxima constaria apenas o nome. As palavras nunca deixam de trazer com elas os marcos com que se assinalam as distâncias. Ora as distâncias entre as pessoas pertencem a uma ordem subtil que vai muito para além das distâncias sociais. A noite já caiu, mas na praceta ainda há um vozear adolescente que, com corridas e gritos, enfrenta o frio. Sim, é o vozear adolescente que enfrenta o frio e não os adolescentes. Estes são apenas o suporte daquele vozear, a possibilidade escolhida para ele se revelar. Esperam-me ainda algumas actividades. Há dias que nem a noite lhes põe fim.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Chegou Dezembro

Chegámos ao último mês do ano e ao dia da Restauração. É pena que o dia em que nos livrámos dos Filipes tenha uma designação que o pode confundir como uma não pouco útil actividade económica, onde, em vez de nos livrarmos desses filipes indesejados que são os quilos, somos ajudados a acumulá-los. Aqui, não tendo sido possível fazê-lo no primeiro domingo de Advento, é dia de montagem dos enfeites de Natal. Até aos Reis, a tradição é cumprida com rigor. Além disso é exposta uma pequena colecção, não deste narrador, pouco propenso a coleccionar, de pequenos presépios, verdadeiras miniaturas, quase sempre reduzidos à Sagrada Família. Coisa sem valor, mas que, por graça, tem vindo a crescer. Também, hoje, é o primeiro dia em que se ouve o Ensemble Alba, no CD It barn er foed - Old Yuletide Songs from Scandinavia. Um álbum com velhas canções escandinavas de Natal, comprado num museu da Dinamarca, há uns bons anos. Entrou na tradição familiar e só é escutado nesta quadra. Cada casa tem as suas idiossincrasias. De manhã, tive de sair e estava um belo dia de Inverno, apesar de ainda estarmos no Outono. O frio da manhã, já tardia, combinava-se com um sol vigoroso. O orvalho em plantas e relvas resplandecia e a Terra, nessa hora, estava banhada na mais pura perfeição, como se tivesse sido encantada. Caminhei devagar para o meu destino, sentindo o ar frio nas narinas e vendo o sol a cintilar nos vidros dos automóveis. Depois, tudo passou, o feitiço foi quebrado e o tempo voltou a correr, ele que tinha sido suspenso. Já chegou a noite.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Sapiens sapiens

Não sei o que será pior, se um dia sem nada para contar ou a falta de vontade para inventar alguma coisa para narrar. Tendo adquirido um gadget novo, tenho passado os tempos livres preso à experimentação para descobrir como funciona. Todas estas coisas tecnológicas prometem muito mais do que aquilo que se dispõem a cumprir. Talvez porque a realidade as teme e lhes resiste, negando-se a dobrar a cerviz ao génio inventor da humanidade. Como todos sabemos, a espécie humana lá vai levando a água ao seu moinho, dobrando as coisas ao desejo, mas estas, depois de serem derrotadas pelo engenho do sapiens sapiens, conspiram e vingam-se. Decidem funcionar mal, se esperamos grandes desempenhos. Funcionam bem, demasiado bem, se pedimos para que não funcionem. Ocorreu-me que somos uma espécie curiosa. Não apenas descobrimos a existência de múltiplas espécies, como damos nome a cada uma delas e à nossa. Para nós, claro, escolhemos o mais elevado, homo sapiens sapiens, o que sabe o que sabe. Esta designação contém uma dilatação ao infinito. Nós não somos apenas o homo que sabe o que sabe, mas também o que sabe que sabe o que sabe, e assim por diante. Tudo isto significa que não apenas desejamos saber, mas queremos ter um saber infinito, porventura, a omnisciência. Em resumo, presunção e água benta, cada qual toma a que quer. Esta é a segunda máxima ao gosto popular. Já chega.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Herança

A luz cai sobre a cidade, lembrando aos mais distraídos que a tarde ainda não acabou. Na avenida, passa gente sem pressa, pessoas atreladas a pequenos cães, carros sem destino visível. A luz desmaiada do sol resplandece nas paredes do hospital e da escola aqui ao lado. Um cão solitário fareja os troncos das árvores, os pneus dos carros, os postes da iluminação eléctrica. Hoje, na busca de uns velhos papéis, encontrei um volumoso envelope castanho com três cadernos manuscritos. Não me pertencem, eram de Eduína. Recordei, ao vê-los, que ela me pedira para os guardar, até que os tornasse a requisitar. Assim fiz, mas ela nunca os pediu de volta e agora é tarde para o fazer. Esquecera-me deles e não faço ideia do seu conteúdo. Imagino que, nesta hora, já não serei o fiel depositário, mas o herdeiro. Um herdeiro acidental, fruto de não haver herdeiros directos nem indirectos. Quando peguei naquele embrulho fiquei perplexo e ainda não sei o que fazer com ele. Não me lembro qual foi a razão para que ela me pedisse para guardar os manuscritos, nem se terá dito alguma coisa sobre o seu conteúdo. Ela nunca deixara de ser esquiva, pelo menos quando isso a interessava. Um dia destes terei de tomar uma decisão sobre o que fazer com aquela herança ocasional. Agora, tenho de me preparar para uma videoconferência. Pelo menos, fico com a certeza de que estou integrado no admirável mundo novo. Não sou um digital nato, mas ainda consigo que me tomem por alguém adaptado às novas tecnologias. Se tivesse paciência, haveria de ver um jogo de futebol, mas este perdeu o encanto que um dia, há dezenas de anos, teve. E não me parece possível que possa ser reencantado. Também os mitos morrem.

domingo, 27 de novembro de 2022

Juízos e paixões

O domingo galopa para o seu fim. Entrou já no túnel negro da noite. Quando, pela aurora, voltar a luz, será a claridade de um outro dia. A casa está agora silenciosa, depois de as netas se terem ido embora. Ecoam ainda as risadas, mas são já pura memória. Ontem, elas tiveram infinita paciência para ele, para brincarem com o novo robot chegado há dias com os quatro anos. Conjugar adolescência e infância nem sempre é uma tarefa fácil. Avanço, com alguma preguiçosa lentidão, na leitura da obra do Marquês de Custine sobre a Rússia. Pus de lado a edição portuguesa, pois está amputada de um quarto das cartas, e leio em francês, a edição de 1843, graças à actividade benévola de quem põe em formato digital as obras caídas no domínio público. Na quinta carta sublinho Um juízo são é a recompensa das paixões reprimidas. Eis uma observação que os nossos dias não poderiam aceitar. A repressão das paixões teria um impacto patológico. Devemos ser compreensivos e aceitar a natureza humana tal como ela é, incluindo o seu carácter passional. A contrapartida, caso se aceite a máxima de Custine, será a ausência de sanidade dos nossos juízos. Talvez a nossa época imagine, caso as épocas imaginem seja o que for, que seja possível compatibilizar a clareza do juízo com uma gestão das paixões. Em vez da sua repressão, teríamos um exercício burocrático de administração passional. Custine pertence ainda a uma cultura que, do ponto de vista teórico, mas não prático, vê em qualquer paixão um princípio de desordem. Reprimi-las é trazer a ordem ao caos que habita no fundo tenebroso de cada ser humano. E será essa ordem, resultado do cultivo de certas virtudes, que permitirá a sanidade dos julgamentos, um discernimento claro e distinto. Oiço o Piano Trio n.º 2, de Franz Schubert, e sei que todos estes pensamentos se desvanecerão.

sábado, 26 de novembro de 2022

Pousio

Daqui a pouco chega o meu neto com os pais. As netas já cá estão desde ontem para sessões de trabalho contínuo com a avó. Consta que vão ter avaliações de Matemática. Agora foram sair. Enfim, a escola não faz bem a ninguém, embora existam coisam que, apesar do mal que sabem, acabam por ser boas. Tal como certos medicamentos. Este blogue esteve em pousio uns dias. Pousio é um termo do mundo agrícola. Traz com ele uma promessa, a de a Terra se regenerar e tornar mais fértil. Duvido, porém, que a analogia chegue até aí. O blogue tem poucas possibilidades de regeneração e é certo que a escrita não se tornará mais fértil. Há muito que não fazia uma caminhada. Fiz hoje. Embora não tenha qualquer prova de que tenha contribuído para a minha regeneração e fertilidade, senti a sensação agradável do ar frio, mas não em demasia, no rosto. Enquanto andava, ao final da tarde, pensava que estes são os dias mais magníficos do ano. Um dia de sol e de frio. São um sinal de uma presença daquilo que é arcaico, embora este arcaico se resuma ao meu arcaico e não ao da espécie. Em vez de pousio estive para escrever interregno, mas há que ser modesto. Estes escritos não representam reino de coisa nenhuma. Imagino mesmo que serão escritos republicanos, mas isto não diz nada, pois há monarquias que são efectivas repúblicas. Este assunto, todavia, está-me vedado, apesar de me ser permitido ler um poema de Horácio que é um panfleto contra a ascensão social de um ex-escravo. O Epodo 4 começa assim: Entre lobos e cordeiros não tão grande inimizade calhou em sorte / como aquela entre mim e ti, / tu, que tens os lombos queimados pelos açoites da Ibéria, e as pernas marcadas por durões grilhões! Não contente, acrescenta: Embora andes por aí a pavonear a tua riqueza, / a fortuna não muda o berço. Horácio deveria saber que a Fortuna é deusa caprichosa e se não muda o berço, pode muito bem mudar o leito.

domingo, 20 de novembro de 2022

D. Carlo

Como ontem tive de ir a Lisboa, cumprir com grande prazer a obrigação de avô, hoje saí para ir às compras. Dei uma volta pela cidade. Pareceu-me mais sombria do que habitualmente, as pessoas estavam de semblante carregado, como se temessem a aproximação do Inverno. Registei alguns quadros humanos que me fizeram lembrar um certo filme italiano, cujo título, por pudor, omito. Tenho estado a ouvir um CD com o título Gesualdo. Uma obra da etiqueta ECM. Apresenta duas peças de Carlo Gesualdo, príncipe de Venosa, uma do compositor australiano Brett Dean e outras duas do estoniano Erkki-Sven Tüür. Gesualdo foi uma personagem tortuosa, não apenas por ter assassinado a primeira mulher e o amante desta, mas também pelos estados depressivos de que sofreu na parte final da vida, na qual se entregou ao sentimento de culpa e a exercícios de punição, tendo contratado mesmo alguém para o açoitar com regularidade. Viveu, contudo, para a música e a sua obra é uma das mais significativas e inovadoras do Renascimento. Werner Herzog fez um filme-documentário sobre o compositor com o título Gesualdo – Death for Five Voices. Talvez a lenda negra que o rodeava tenha contribuído para o seu esquecimento até que o século XX o redescobriu. Desde o início dos anos noventa do século passado até hoje, segundo informa a inevitável Wikipedia, foram escritas pelo menos sete óperas que têm por tema a vida de D. Carlo Gesualdo. A primeira – o drama musical Maria di Venosa – é do compositor italiano Francesco d’Avalos, um descendente de um tio de Maria d’Avalos, a primeira mulher de D. Carlo. A justiça da altura, tendo os homicídios ocorrido numa situação de flagrante delicto, considerou que o príncipe de Venosa não cometera qualquer crime, apesar dos requintes de malvadez que envolveram o acto de vingança. Numa leitura mais suspeitosa poder-se-á pensar que a família de Venosa seria mais influente que a do duque de Andria, Fabrizio Carafa, o amante, e a dos de Avalos. Nestas coisas e naqueles dias, o direito e a força teriam cada um a sua lei. Lembro-me perfeitamente do disco em que descobri Gesualdo. Foi em Tenebrae (1991), em que a música do compositor é interpretada pelo The Hilliard Ensemble. Julgo que queria escrever sobre outra coisa. Perdi-me e agora já não me lembro sobre o quê. Imagino que o cinzento deste domingo me tenha levado ao encontro de D. Carlo. Também dos dias devemos desconfiar.

sábado, 19 de novembro de 2022

Motivos e causas

Um dia cinzento e húmido. É possível que chova, mas não é certo. Ouvem-se já desabafos sobre o excesso de chuva. Ora, as pessoas queixam-se da seca, ora temem o dilúvio. Uma coisa não é incompatível com a outra, mas há que admitir uma certa justiça cósmica. Se há grandes períodos de seca, é aceitável a existência de períodos dilatados de chuva. Contudo, nada prova a existência de uma justiça cósmica e o mais provável é que as coisas aconteçam um pouco ao acaso ou segundo motivações que não conseguimos determinar. É insensato, diz-me um homúnculo que vive dentro de mim, utilizar palavras como motivações para se referir aos acontecimentos naturais. Os acontecimentos não têm motivos, têm causas, acrescenta ele. Se essas causas apresentarem regularidade acabamos por lhes chamar leis. Eu encolho os ombros. O homúnculo, por vezes, irrita-me, mas, por norma, deixa-me indiferente. Se a natureza tem as suas leis, por que razão não haverá de ter os seus motivos? Isso é cair na mitologia, murmura o homúnculo. Que seja, digo. Aos sábados de manhã é necessário reencantar o mundo. Já basta quando chegarem os dias úteis. Nessa hora, a natureza deixa de ter motivos e passa a ter causas e mesmo os seres humanos, sempre tão cheios de motivos, não terão mais do que causas que os levarão a agir para enfrentar a dura necessidade e suprir os desejos naturais e os outros. Na verdade, está um dia cinzento e húmido. As nuvens permanecem indecisas. Conferenciam umas com as outras. Talvez chova, talvez não.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Epitáfios

No livro do poeta Jorge Gomes Miranda, A Última Pedra (2022), existem três breves citações em epígrafe. Uma de Eliot, every poem is an epitaph. Outra de Auden, breaking bread with the dead. Por fim, uma de Genet, offerte à l’innombrable peuple des morts. Fico sempre perplexo com a existência de epígrafes. Parecem funcionar como uma cobertura de autoridade ao que se vai ler. Das três, pelo menos hoje, prefiro a de Eliot. Há nela um critério para separar poemas de não poemas. Se cada poema é um epitáfio, então o que não for um elogio fúnebre não será poema. Poder-se-ia radicalizar a posição de Eliot e afirmar que cada poema é um requiem. Do elogia passar-se-ia para uma função soteriológica da poesia. Em vez do panegírico dos mortos, um pedido de salvação. O conjunto dos mortos – a quem se elogia ou por quem se celebra o requiem – não será composto apenas por seres humanos. Qualquer ser pode desencadear um poema, mesmo os mais insignificantes. Também a classe dos eventos é propícia a que se escreva poemas. É possível, porém, que nem Eliot acreditasse que cada poema é um epitáfio, mas terá achado que a junção das palavras poema e epitáfio compunha uma bela metáfora, que a predicação impertinente de epitáfio ao sujeito poema era um óptimo achado, que a verdade literal do que está dito é irrelevante. Por mim, deveria, porém, falar do poeta português. O quinto e último poema de um pequeno ciclo com o título CEMITÉRIOS diz: A própria terra / se pudesse / usaria máscara. / Protegia-se / de nós. Será que a terra não usa máscara? Pensei. Se a terra não usa máscara, se nos oferece o rosto despido, então para que servirá a poesia? Não é ela o rasgar da máscara com que a terra cobre o rosto? Hoje é sexta-feira. Choveu, ao contrário do que profetizavam os sites meteorológicos. Também eles se deixam enganar pela máscara com que a terra se cobre.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Bom senso

Há conversões curiosas. Por exemplo, a do marquês de Custine. O avô e o pai foram guilhotinados na época do Terror. A mãe esteve presa até à queda de Robespierre. Em 1839, faz uma viagem à Rússia. Vai, segundo diz, em busca de argumentos contra o governo representativo. Volta de lá adepto das constituições, isto é, adversário do absolutismo. Talvez fosse um espírito aberto à aprendizagem e por isso converteu-se. Na tradição cultural que nos forma, a mais célebre conversão é a de Saulo de Tarso, conhecido como S. Paulo. Todas as conversões trazem consigo um perigo, o da substituição de um fanatismo por outro. Não parece ter sido o caso de Custine. Tudo isto vem a propósito de uma viagem pela informação sobre o estado do mundo. Neste, existem convicções a mais e pouca gente com capacidade de se converter ao bom senso. Talvez porque este, segundo afirmava, não sem ironia, Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que possui. Sempre podemos questionar se a nossa época é mais insensata do que as anteriores. Não sei se a insensatez se mantém constante ou se vai variando, talvez de forma cíclica. O que sei é que nunca como hoje os meios para a difundir foram tão grandes e tão poderosos. Pena esses meios não terem qualquer poder para difundir o bom senso. Se as pessoas tivessem a predisposição para aprender, como a teve Astolphe Louis Léonor, marquis de Custine, as coisas por certo seriam menos desagradáveis. Porém, as pessoas assim como não querem ter mais bom senso do que aquele que possuem também não querem aprender mais do que aquilo que sabem. O que vale é que a noite já caiu e há-de trazer consigo o sono, onde tudo isto será apagado. Talvez a realidade também precisasse de um apagão.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Kitsch

Num ensaio de 1939, Vanguarda e Kitsch, Clemente Greenberg sugere que o kitsch é uma forma de arte sintética, na qual o artista digere a arte para o espectador, poupando-lhe o esforço, fornecendo-lhe um atalho para o prazer da arte que evita o que é necessariamente difícil na arte genuína. Este texto constata já a ruptura, nunca mais ultrapassada, entre arte e grande público. O grande público, cada vez mais, espera o que é fácil, aquilo que lhe provoca, de modo imediato, prazer. Os artistas, porém, procuram o difícil. Fazem, de certo modo, da arte um programa de interrogação sobre o real, procuram ir para além das aparências, para esse reino tão adverso à experiência sensível e ao sentimento que procuram rápida satisfação. Também as relações entre as pessoas deveriam ser assim, asseverou-me, um dia, Eduína. No amor e na amizade, não os confundo, acrescentou, devemos apenas buscar aquilo que é difícil, o que se esconde para além das aparências. Respondi-lhe fazendo notar que a imersão nessas paisagens desconhecidas dos sentidos e dos sentimentos não assegura mais autenticidade do que navegar por aquilo que é conhecido, conforta a sensibilidade e exalta o sentimento. O amor e mesmo a amizade serão do domínio do kitsch, vivem da facilidade. Estava a provocá-la. Por isso, respondeu, interditei-me o amor e relativizo a amizade. É a minha forma de mergulhar no difícil e evitar o kitsch na minha existência. Preciso do esforço e este não se compadece com certos estados de alma. Encontrei estas linhas num velho caderno datado de Setembro de 1992. Não se trata de um diário, mas de um registo de coisas que gostaria de não esquecer. Há notas sobre vinhos, indicações sobre livros a ler, resenhas de filmes, descrições de conversas havidas. Uma delas era esta, que se prolongou muito para além do que aqui escrevi.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Meios e fins

S. Pedro foi benévolo com os adeptos de S. Martinho, o que parece mostrar a existência de concórdia entre os diversos santos que se cultuam nesta terra. Passada a efeméride, o gestor – será o CEO? – dos humores climáticos continuou o combate à seca neste pobre país. Ordenou que as nuvens se juntem por cima do território nacional e deixem escorrer a água que as empanturra. E elas, obedientes, desfazem-se da carga. Está um magnífico dia de chuva, embora exista uma contínua oscilação de intensidade. Nas ruas, quase que não se avista vivalma. Tudo recolhido. Hoje comecei o dia com uma daquelas videoconferências cuja finalidade é não possuírem qualquer finalidade, mas cuja importância fundamental todos reconhecem. Somos uma pátria muito curiosa. Não temos fins, mas não regateamos esforços aos meios, embora se desconheça a que fins esses meios devem servir. Há pátrias em situação muito pior. Imaginem-se aquelas que além de não terem fins, também não têm meios. Outras há que estão cheias de fins, mas faltam-lhes os meios. São pátrias infelizes, pois vivem sempre frustradas, como se fossem atormentadas por um desejo muito intenso, mas que não encontram em si potência para o consumar. Não sendo o mais favorável, o nosso caso não é mau de todo. Ao não termos fins, não sofremos a angústia de não os atingir e ainda ficamos alegres porque usamos os meios, fazemos qualquer coisa, embora se desconheça para quê. Isto, escrevi-o antes de almoço. Caso fosse depois, teria opiniões completamente diferentes, pois a opinião é uma coisa variável, e as minhas opiniões variam em conformidade com os ponteiros do relógio. É verdade, o meu relógio ainda tem ponteiros. Sou um anacrónico.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A tentação da profecia

Um bom profeta é aquele que se inibe de profetizar sobre o futuro. Se já é difícil fazer profecias sobre o presente e o passado, mais difícil é fazê-las sobre aquilo que há-de vir. Ocorreu-me tudo isto ao ler um certo pensador que não se eximiu de descrever um quadro de possibilidades e de impossibilidades. Nem as possibilidades se realizaram, nem as impossibilidades deixaram de acontecer. Sobre o que acontecerá nos negócios humanos o mais indicado é manter um prudente silêncio. Ora, a prudência, apesar dos panegíricos feitos em sua honra ao longo dos séculos, nunca foi virtude que se cultivasse. No coração dos homens há uma inclinação para o excesso que os impele para o mar revolto, onde confundem a realidade com as paisagens fantasmagóricas do seu desejo. As acácias da praceta atingiram o ponto em que, nas suas folhas, o amarelo se sobrepõe ao verde, coexistindo ambos numa harmonia que tempo acabará por destruir. Como se vê, também este narrador tem alma de profeta, embora a profecia se funde na observação do carácter cíclico da natureza, o qual não assegura que a profecia se realize necessariamente. Penso muitas vezes que a segunda-feira não é dia propício para escrever, pois raramente me ocorre alguma coisa que valha a pena narrar. Passam das cinco da tarde e os cavalos da noite já galopam na planície. Não tarda, eles ocuparão a cidade que se defenderá das trevas com a luz lugubremente amarelada da iluminação pública. Nova profecia.

domingo, 13 de novembro de 2022

Peroração sem sentido

Fizeram-me, hoje, notar que tenho um comportamento de velho. O caso é simples. Como tinha compras para fazer e ontem não as tinha feito, hoje levantei-me cedo e resolvi o assunto a horas bem razoáveis. Razoáveis para mim, não para outros, claro. Nestas coisas, o perspectivismo e o relativismo são aceitáveis. Noutras, nem pensar. Seria absurdo, por exemplo, aceitar que para uns a Terra pode ter uma configuração mais ou menos esférica e para outros ela ser plana, e que ambos os partidos estariam na verdade, que tudo dependeria da perspectiva. O melhor, porém, é não me meter por estes caminhos, pois são quase tão tortuosos quanto os caminhos da política, se não mais. Está um domingo deslavado de província. Uma luz solar anémica, uma tarde sem fulgor. Nas ruas, passam rumorosos automóveis, passam gentes entediadas, perdidas, sem saber o que fazer destas horas livres. A liberdade sempre foi um grande peso e as pessoas atrapalham-se com ela, trocam mãos e pés e acabam por sentir saudades das cadeias que as prendem à estrita necessidade. Tinha razão Sartre naquela ideia de o homem estar condenado a ser livre. Muitos sentem a liberdade como uma condenação. Reparo agora que o padre Settembrini não me ligou, como costuma fazer aos domingos de manhã. Terei de investigar as causas, pois tudo o que acontece e o que não acontece terá a sua causa. Umas coisas terão causa para acontecer e outras terão causa para não acontecer. Isto significa que existem muito mais causas do que coisas que acontecem. A luz desmaiada do dia está a levar-me por maus caminhos. Será mais sensato continuar a beber o chá de gengibre, sempre me ajudará na digestão dominical, em vez de me entregar a perorações sem sentido. Diga-se, em abono da verdade, que a legião de coisas sem sentido é muito maior que a das coisas com sentido. O telemóvel está a tocar. Não, não é o padre Lodo. É uma neta. O que me quererá ela?

sábado, 12 de novembro de 2022

Coisas de poesia

Tinha encomendado online e fui, há pouco, levantar na Fnac que por aqui existe. Trata-se da tradução da obra poética de Paul Celan, que a Assírio & Alvim deu agora à luz, numa tradução de Maria Teresa Dias Furtado. Tinha lido a crítica, onde se salientava que traduzir Celan é um empreendimento muito arriscado, pois a sua poética implica quase uma reinvenção da língua em que escreveu, o alemão. Descobri que Celan, cujos pais morreram num campo de concentração nazi, se envolveu amorosamente, numa relação tensa, com a escritora austríaca Ingeborg Bachmann, cujo pai pertenceu ao partido nazi. Imagino que o antagonismo das origens terá desencadeado a centelha que os aproximou, mas isso é já colocar um motivo extrínseco à paixão que Eros neles terá incendiado. Voltando à tradução e não pondo em causa o que o crítico – aliás, merecedor da máxima atenção – disse, decidi-me pela compra, pois por problemática que seja a tradução, ela aproxima-me da poesia de Celan, a qual me é completamente inacessível no original. Não contente, com a obra de Celan, encontrei, mal olhei para os livros, a tentação é terrível, O Olhar Diagonal das Coisas, obra que reúne a poesia de Ana Luísa Amaral, a poeta – era assim que ela se reconhecia – desaparecida há muito pouco tempo, um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa das últimas décadas. Ambos os livros têm uma belíssima edição, com capa cartonada. O problema é que, em conjunto, exigem uns dez centímetros de estante, para além de cada um pesar mais de mil e quinhentos gramas. Poderia ainda falar de Nathalie Sarraute e de Joseph Roth ou da belíssima revista Electra, mas ficará para outro dia, caso me lembre e me apeteça. Daqui a pouco chega o meu neto e tenho de mudar de registo. Terei de ir preparar os carros – as miniaturas, entenda-se – para fazermos uma corrida.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dilemas

Sou assaltado pelo reino do ruído. O cão não encontra outro lugar para ressonar a não ser no meu escritório O que vale é que amanhã retornará ao lar e eu à tranquilidade. Esta experiência veio confirmar a decisão de não ter animais domésticos. São muito engraçados na casa dos outros. Sei que não é muito popular esta posição, mas é aquela que me cabe. A humanidade é marcada, como se fizesse parte da sua essência, pelo pluralismo sobre todos os assuntos. O mesmo se passa relativamente aos animais domésticos. Há quem adore tê-los, quem não os suporte, quem apenas não os queira por casa, embora não tenha qualquer sentimento negativo perante eles. É o meu caso. Tudo então se conforma, segundo o gosto de cada um. Estou perante um caso momentoso. Ou oiço a terceira sinfonia de Gorécki e expulso o cão do escritório, ou oiço-o ressonar e esqueço a música do compositor polaco. Abro a janela, deixo entrar o ar outonal. A luz cai sobre a copa das árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado. Um verde luminoso sobrepõe-se ao verde sombrio das ramadas que não apanham luz. Mais ao longe, o hospital permanece estático, com as paredes cobertas de fungos, cada vez mais cinzentas. Ainda mais longe, erguem-se colinas de pouca monta, pontilhadas pelo casario de aldeias sem nome O que vem depois delas, não sei. E isto é o que acontece à humanidade, nunca saber o que vem depois. Suspeito, contudo, que depois desta sexta-feira, virá um sábado, mas é uma conjectura.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

O bombo

O primeiro terço de Novembro está consumado, não tarda e chega o Advento, depois virá o Natal e, sem se dar por isso, o novo ano abrirá portas por entre as exéquias do velho. Talvez esteja a ouvir coisas. Oiço um barulho longínquo, como se alguém estivesse a bater compassadamente num bombo, ininterruptamente. Não consigo determinar a origem do som, nem, na verdade, se ele não será uma alucinação auditiva. Agora, parou. Talvez o tocador de bombo se tenha cansado, lhe doa o braço, sinta o pulso aberto de tanto bombar, sei lá. Não encontro designação para o tocador de bombo. Sempre se poderá pensar que se o tocador de oboé é um oboísta, o de bombo será um bombista, mas, lamentavelmente, não é. Os bombistas podem ter duas ocupações. Fabricar bombas ou atirar/colocar bombas, mas não se ocupam em tocar bombo, a não ser por acidente. Sempre se pode imaginar um bombista, daqueles que põem bombas, pertencer a uma banda filarmónica e, nessa, ser o tocador de bombo. Um nome interessante para esse músico seria o de bombeiro, mas este já está ocupado. Sabe-se que existem duas espécies de bombeiros. O artilheiro que disparava bombas e aquele que usa bombas de água para apagar fogos. Uma outra coisa que convém evitar é dizer, como se disse mais acima, que bombar é tocar bombo. Não é. O ruído voltou. Descubro que a palavra bombo deriva do grego bómbos, que significa ruído. Comecei com uma fenomenologia profética relativamente ao desenrolar do calendário e acabei a falar de bombos, coisa que não me interessa para nada, mas se falasse só de coisas que me interessam, passaria o tempo calado, ou quase. Envelhecer é desapegar-se dos seus interesses. O cão das minhas netas decidiu vir para o escritório ressonar. É pior que o bombo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Um enigma

Ontem mostraram-me uma fotografia com cerca de cinquenta anos. Era um torneio de Xadrez, viam-se diversos jogadores frente aos respectivos tabuleiros. No meio da fotografia estava alguém que tinha um certo ar de família. Perguntaram-me se eu era aquele. Fiquei perplexo porque não soube o que responder. Há várias razões para dizer que sim. Naquela idade, jogava Xadrez, aquela pessoa é parecida comigo, com aquilo que eu era naquela época, o perfil do rosto, o cabelo. Há também razões contra. Não me lembro de alguma vez ter estado naquele lugar a jogar Xadrez. É um sítio que vim a conhecer, penso, mais tarde, uma dúzia de anos depois, e nunca o liguei ao Xadrez. A camisa ou pólo não me recordaram nada que eu vestisse na época. Os óculos, naquele tempo usava óculos no dia-a-dia, também não os identifiquei. Fiquei perplexo por dois motivos. Se sou eu que estou na fotografia, como é possível que não me reconheça? Se não sou eu, quem será essa pessoa que era tão parecida comigo, pelo menos de perfil, e como eu jogava Xadrez? Hoje, o assunto assaltou-me uma e outra vez e não consigo ter uma certeza. Imaginemos que aquela pessoa dava pelo mesmo nome pelo qual respondo. Tudo apontaria para que fosse eu, mas este hiato na memória pode sugerir uma outra coisa. Eu era aquela pessoa, mas entre ela e eu estabeleceu-se uma cisão tal que nos tornámos em duas pessoas que já não se reconhecem entre si. Ele, porque ficou preso no papel da fotografia e eu porque não sei, ao certo, quem ele é. Cada vez que rememoro a minha existência nessa época longínqua em que jogava Xadrez, nunca me encontro naquele lugar, que na época, juraria, nem sabia que existia. Um enigma.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Pensamentos mórbidos

Um belíssimo aguaceiro. O vento Sul inclina a água, dá-lhe energia e uma aparência perfurante. Reparo que os alunos da escola aqui ao lado marcham sob o aguaceiro sem chapéu-de-chuva. Talvez as novas gerações achem o artefacto dispensável, uma parca com capuz pela cabeça bastará para enfrentar os desígnios dos céus, mesmo em dias irados como o de hoje. Trovejará, sou informado. Nos tempos mortos, leio o livro do filósofo Michael Sandel, Contra a Perfeição – Ética na Era da Engenharia Genética. Agrada-me a sua argumentação contra a manipulação genética para aperfeiçoamento humano, mas duvido que a imoralidade arguida seja suficiente para evitar que caminhemos para aí. Imaginemos dois mundos possíveis. O mundo A em que, por motivos morais, a espécie humana proscreve o uso da engenharia genética para melhoramento dos seres humanos. O mundo B é uma edição exacta do Admirável Mundo Novo, tal como Aldous Huxley o concebeu. Estou convencido de que o mundo B é muito mais provável de ser o futuro do que o A. Isto significa que não apenas melhoraremos uns, como, caso seja necessário, pioraremos outros. Isso já é feito há muito, mas de uma forma artesanal, digamos assim. Com o recurso não à selecção genética, mas à social. Como a selecção social não nos incomoda a consciência, também o facto de elevarmos o nível de eficácia diferenciadora não perturbará muita gente. Aquela ideia nascida com o cristianismo de que todos os homens são iguais perante Deus sempre perturbou uma quantidade assinalável de seres humanos, muitos deles cristãos. Dentro do homem já nasceu o desejo de introduzir, na própria espécie, diferenças tais que dela surjam várias espécies que, de preferência, não se possam misturar. Isso ainda não será possível, mas a porta está aberta para a chegada dessa possibilidade. A chuva parou e com ela os meus pensamentos mórbidos sobre a bondade dos homens.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

A platonizar

Ao abrir um livro deparei-me com um cartão de um restaurante da cidade francesa de Agen, onde estive há uns anos. Por curiosidade, decidi investigar se ainda existia. Confirmei a crença de que também os restaurantes são seres vivos. Nascem, crescem e morrem. Foi o caso. Não me lembro de qualquer traço característico. Isso não significa que não tivesse. Significa apenas que não me lembro. Por aqui – e aqui significa um conjunto de concelhos vizinhos – havia dois restaurantes de que gostava bastante. Ambos entregaram a alma ao criador por decisão dos respectivos proprietários. Cansaram-se da actividade. Quando as coisas são boas, temos uma forte inclinação para as sentir como eternas. Talvez isto tenha a ver com a própria ideia de bem, a qual só preenche o seu significado se for eterna. Um bem perecível não é um efectivo bem, mas um simulacro. As coisas a que chamamos boas, como aqueles restaurantes, reflectiam o bem, mas eram apenas um reflexo dele e, por isso, fecharam as portas. Alguém dento de mim faz-me notar que estou a platonizar. É possível, pois terei chegado à idade em que o platonismo faz mais sentido do que nunca. O problema, todavia, é que há muito mais realidade no platonismo do que aquela que existe nos diversos realismos. O melhor é não prosseguir por este caminho, antes que me peçam provas para tais afirmações. O que caracteriza estes textos é o não fornecerem provas para nada, porque tudo aquilo que preciso de ser provado sofre de um défice de realidade. Julgo que alguém já terá afirmado algo como isto, mas não me consigo lembrar quem foi ou sequer se alguém o fez. Estou afectado do cérebro. As minhas netas decidiram deixar, por uma semana, o cão aqui em casa. Ele é completamente pacífico e sofre de uma indolência que não é possível descrever. Até aqui, não vem mal ao mundo. O pior é que ele teima em estar ao pé de mim, onde dorme horas seguidas, ressonando que nem um perdido. Isto perturba-me. Quando perturbado, torno-me platónico.

domingo, 6 de novembro de 2022

Código genético

Talvez este ano não exista o Verão de S. Martinho, pensei ao consultar as previsões meteorológicas. Será um Outono dentro do Outono. Seria pior, para os amantes da época, se fosse um Inverno dentro de um Outono. Está um domingo perfeito de província. Nada bole. O vento suspendeu a actividade, a luz do dia, talvez pela carestia das fontes energéticas, reduziu-se ao mínimo, as pessoas, se por acaso põe um pé fora de casa, fazem-no com inusitada lentidão. Domingos como este são um sintoma de que na natureza, incluindo a humana, existe uma tendência para a hibernação, embora recessiva. O que introduz um tema tão interessante como a discussão do sexo dos anjos ou das categorias em que estes se dividem. Trata-se do código genético dos elementos não vivos da natureza. O código genético da luz do sol, da chuva que cai, do vento que sopra. Argumentar-se-á que código genético é uma característica dos seres vivos, não dos elementos da natureza não vivos. Nunca em nenhum foi encontrado. É verdade, mas pode-se chamar a atenção que talvez isso seja uma falácia. O facto de não ter sido encontrado não é sinónimo de que não exista. Podemos imaginar que se poderá fazer a atribuição de código genético aos elementos não vivos do universo por transposição metafórica. Falar-se-ia então do ADN da luz de domingo, isto significaria que a luz dos domingos teria certas características determinadas e determinantes. O problema nesta teoria é que o domingo não é um ser natural, mas uma invenção humana. Será que as invenções humanas, como este copo pelo qual bebo água, terão ADN? A transposição metafórica que serve para os elementos não vivos da natureza, por certo poderá ser estendida aos artefactos humanos – ou mesmo não humanos – que não deixam de ser coisas na e da natureza. Uma das características vindas no código genético da luz de domingo é que afecta o cérebro de quem se põe a escrever coisas sem qualquer nexo, como se este fosse um lugar para ficções mais ou menos científicas. Talvez a culpa esteja no facto de a própria expressão código genético ter uma natureza metafórica. Sempre posso dizer que foi a ciência que começou a ficcionalizar e que eu apenas acrescento uns corolários mais ousados. Como se prova, a luz deste domingo não me ajuda.

sábado, 5 de novembro de 2022

As vãs proezas do espírito

Mais do que os acontecimentos trágicos que marcam Édipo Rei (melhor, Édipo Tirano) foi o destino de Antígona que, no fim da adolescência, me acendeu a imaginação e, porventura, o sentimento. Talvez esse incêndio tenha desencadeado a busca de razões e tornado manifesto, sem que eu então o percebesse, que a razão, essa diferença aparente que nos separa dos outros animais e que exibimos com muito orgulho e não menor desfaçatez, que a razão, dizia, encontra os seus fundamentos não em si, mas nessas águas turvas da imaginação e do sentimento. Tudo o que é claro e transparente nasce do obscuro e opaco. Obscuridade e opacidade são o ponto de partida e, não poucas vezes, o de chegada de quem se atreve a fazer uma caminhada para fora do território tenebroso de onde extrai a sua existência. Todas estas considerações não são da minha lavra, pobre de mim. Foram proferidas há muito, numa daquelas reuniões informais que juntava gente que se conhecia à volta de uma mesa, onde não faltava o pão e o vinho, embora o pão fosse uma designação metonímica, onde se tomava a parte pelo todo. O autor da tirada, o meu querido amigo Xavier, estava particularmente eloquente. Era, na verdade, uma eloquência culposa e instrumental, como mais tarde reconheceu. A razão tinha um nome e, mais do que um nome, um corpo e uma alma de mulher. A presença quase diáfana de Eduína perturbara-o e abrira-lhe o pensamento para a especulação. Esta é, ou era, uma estratégia muito em voga entre os machos da espécie, usar o discurso para perturbar o coração ou incendiar o desejo de quem, com a sua presença, perturba o nosso coração ou incendeia o nosso desejo. Ela, porém, manteve-se imperturbável com as façanhas atlético-espirituais do meu amigo, o que o deixou ainda mais perturbado, como, anos depois, me confessou. Eduína passou a noite a falar com alguém com quem ainda tinha laços familiares remotos, como, inesperadamente, descobrira logo no início da noite. O afastamento desses laços foi, contudo, um motivo de aproximação. É possível que nem tenha dado pelas proezas retóricas que a sua presença desencadeara.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Apanhado

Fui apanhado pelo vírus. Foi o que ouvi, naquele português que nunca deixa de ter um acento italianizado, quando atendi o telemóvel. Uma chamada do padre Lodovico Settembrini a uma sexta-feira depois de almoço não é habitual, talvez nunca tenha ocorrido. Quando vi o nome, uma sombra de preocupação caiu sobre mim. O entusiasmo italiano, porém, tranquilizou-me. Não haveria de ser coisa grave. Contou-me que ontem, sentindo-se sem forças e com tosse, fez, por uma questão de disciplina, notou, o teste. O miserável deu positivo, informou-me, embora tenha acrescentado uma expressão italiana intraduzível. Fui aconselhado a manter uma discreta quarentena, o que cumpro, ainda por disciplina. Um jesuíta é um soldado disciplinado, gracejou. Sinto-me bem, mas aproveito para fazer telefonemas, escrever emails e arrumar as minhas coisas, embora tenha poucas e, mesmo essas, são demais. Está com uma propensão muito franciscana, fiz-lhe notar. Riu-se, ao mesmo tempo que tossia. Para franciscano não tinha vocação, isso eu sei, continuou. Queria saber quando eu ia a Lisboa. Estava na altura de marcar um jantar do grupo. Sugeri-lhe que marcasse e enviasse uma convocatória a todos, caso o vírus não o impedisse da tarefa. Anuiu e de súbito disse: qualquer dia volto para Itália. Foi lá que nasci, tenho o dever de morrer lá. Talvez seja cedo para pensar nisso, retorqui. Nunca é cedo para pensar naquilo que não tem hora marcada. Seja como for, acrescentou, eu disse qualquer dia, o que também não deixa de ser completamente indeterminado, mas por vezes, mais vezes do que habitualmente, dou por mim a sofrer do mal du pays, apesar de me sentir em casa. A Companhia ainda acha que tenho algum préstimo por estes lados. Eu, que não pertenço à Companhia – a essa ou a qualquer outra – também acho, disse e acrescentei: quem é que marcaria os jantares? Ele concordou e salientou que a tarefa não é de pouca importância e nem todos a sabem fazer.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Beber água

Devia beber água, penso. Tenho duas garrafas cheias na secretária, mas a vontade de as usar é nula. Consta que beber não sei quantos litros por dia faz bem à saúde, mas tenho um problema com a teoria. Não há acordo sobre o número de litros que têm um efeito benéfico, nem se a água contida nos alimentos ingeridos conta. E, caso conte, como poderei saber qual a sua quantidade em cada um dos alimentos, tendo ainda em conta se são frescos ou cozinhados. Também não é claro se existe um rácio entre litros de água e peso, ou litros de água e altura. Seja como for, saber tudo isto exigiria entrar em cálculos tais que acabariam por me secar a existência. O mais sensato será beber quando tenho sede. Se isso chega ou não, reconheço a minha ignorância. O mundo está cheio de teorias destas, que alguém se lembra de pôr a circular na internet. Ocorre-me que talvez existam dois tipos de pessoas que dão origem a esta literatura moral. Umas fazem-no com piedosas intenções. Querem contribuir para o bem da humanidade e, se pudessem, tornar-nos-iam a todos imortais à conta de beber água, chás, infusões, comer isto e aquilo, fazer exercício, meditação e tudo aquilo que a imaginação seja capaz de forjar. Outros, desconfio, inventam estas coisas para se divertirem, como quem lança boatos porque não tem nada para fazer. Vi, na na benévola rede que a todos liga, um livro com o extraordinário título Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficientes. Nos dias que correm, quem não quer ser altamente eficiente? Fiquei entusiasmado. Comprava o livro e deixava de ser, após duzentas páginas, o ineficiente que sou, para me tornar um exemplo de eficiência. Valeu-me ter acesso ao índice. Logo o primeiro hábito me pareceu desadequado: ser proactivo. Em primeiro lugar, acho a palavra horrorosa. Não sei a razão, mas faz-me lembrar probiótico. Depois, desconfio que muitos dos males do mundo – e estes não são poucos – têm origem em pessoas proactivas. Não houvesse tanta gente a sofrer de proactividade, também não haveria tanta subjugada à reactividade. Caso no paraíso a serpente não fosse proactiva e o pobre casal que lá vivia reactivo, ainda hoje estaríamos a gozar das delícias do Éden. Dito de outra maneira, ser proactivo não me parece uma virtude, mas o começo de todos os males. O que achei, porém, mais estranho nos hábitos foi o sétimo, que tem por título Afinando o instrumento. Que instrumento será esse, perguntei-me, que precisará de afinação. Evito fazer divagações, até porque se o primeiro e o sétimo hábito não fossem razão suficiente para não querer ser eficiente, haveria ainda o sexto: sinergizar. Só a palavra me dá vómitos, convulsões. Decididamente, se não fui eficiente até aqui, bem posso continuar docemente embalado na minha ineficiência. Não me obriguem, por favor, a sinergizar. Prefiro beber dois litros de água ou mesmo três.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Bendito colírio

Hoje tive de enfrentar a golpes de paracetamol os efeitos da vacina anti-COVID. Nada de grave, apenas uma vontade de nada fazer, num dia que foi tão ocupado, uma quase febre, algumas quase dores, alguma quase irritação. Nada que o comprimido não resolva. Ontem a enfermeira que me injectou disse, com a benevolência com deve falar ao pai, que o melhor seria ir para casa e tomar o medicamento milagroso receitado para tudo. Eu disse que sim, mas pensei que não. Nas três primeiras vezes em que fui vacinado, nada solicitou que recorresse a esse colírio, o mesmo tendo acontecido quando o vírus decidiu visitar-me, mas é possível que esteja a mentir. Hoje, porém, o corpo deu sinal da sua existência. Ainda tentei fazer um pacto com ele, mas não esteve para aí virado. Tenho ouvido relatos que corroboram a ideia de que a quarta dose é um pouco mais espevitada do que as anteriores, mas pode ser que seja falso. Vale-me Valentin Silvestrov e a sua música para piano, tocada por Elisaveta Blumina. Há nela uma rêverie que me arrasta para dentro da noite. Não fora a reacção do corpo, não teria nada para contar aqui. Há males que vêm por bem. A sabedoria popular é como o google. Sabe tudo e, quando não sabe, inventa.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Bruxas e Santos

Começou hoje o mês de Novembro. Não fora feriado e nem daria pela efeméride. Consta que há por aí uma pequena luta entre os adeptos do Halloween, o dia das bruxas, e os das tradições nacionais da qual faz parte o dia de Todos-os-Santos. De facto, eles não coincidem no calendário. Um foi ontem, outro é hoje, mas talvez as disposições para um e para outro sejam incompatíveis. Consta que bruxas e santos – e logo todos os santos – nunca se deram bem e não pertencem ao mesmo exército. O Halloween é uma importação comercial anglo-saxónica. Julgo, porém, que a importação veio através das escolas que, a certa altura, nas aulas de inglês, julgaram que seria pedagógico introduzir o tema. Isto, porém, é uma conjectura. Cada um dos acontecimentos tem um slogan que pode servir como imperativo. O das bruxas orienta-se pelo doçura ou travessura. O de Todos-os-Santos pelo pão por Deus. O primeiro é uma ameaça, o segundo uma súplica. Nesta zona, não se usava o pão por Deus, mas o ir aos bolinhos. Imagino que seja uma combinação atravessada entre o doçura ou travessura e o pão por Deus. Para mim, porém, hoje é dia de ir às vacinas. A da Covid e, espero, a da gripe, pois passei a frequentar o grupo que deve também tomar esta. Não peço que sejam uma doçura, mas espero que não sejam uma travessura que me deixe sem energia. Já basta o que basta. O pior, porém, são as broas.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Estilhaços do passado

Hoje, ao abrir o belíssimo livro, publicado em 1974, The Fall of Public Man, do sociólogo norte-americano Richard Sennett, encontrei duas evidências de que já tive um passado. A primeira delas é um cartão de um parque de estacionamento, o parque Camões, em Lisboa. Terei entrado nele às 16:43 do dia 11 de Fevereiro de 2006. Não consta hora e data de saída. Não faço ideia o que andaria a fazer, a 11 de Fevereiro, naquela zona da capital. Uma outra prova de que tive um passado é um bilhete de cinema para uma sessão no Nimas, a 25 de Março, pelas 18:15, para ver O Grande Silêncio, filme documentário sobre os monges da Cartuxa. O problema das provas é a sua incompletude. Assim como não sei a que horas saí do parque Camões, também não sei qual é o ano em que fui ver o filme. Posso conjecturar que terá sido em 2007, ano da sua estreia, mas é uma conjectura que não consigo confirmar. Ainda tentei, mas em vão. Somos constituídos por um passado do qual apenas possuímos alguns estilhaços e, quando tentamos reconstruir a vida vivida, esses estilhaços não encaixam uns nos outros. Depois, contamos uma história sobre tudo isso, mas essa história não passa de uma invenção. Tanta coisa, e o livro de Sennett? Trata do refluxo sentido já nos anos setenta do século passado da vida pública e do fechamento das pessoas na vida privada, no seu ego. Lembrei-me deste livro porque talvez exista nele, com os seus quase cinquenta nos, alguma coisa que permita perceber os nossos dias. Deparei-me, porém, com um obstáculo, que não existia noutros tempos, o tamanho dos caracteres. Terei de o comprar de novo em ebook. Aí posso aumentar o tamanho da letra. Em poucos dias, é o segundo caso em que sou confrontado com o facto das lentes estarem a ficar desadequadas. Poderia especular, ainda, sobre o filme e o livro, sobre se eles se podem articular, mas hoje não estou com grande imaginação. Ficará para outro dia, caso me lembre do assunto.

domingo, 30 de outubro de 2022

O ogonek

Trocaram outra vez a hora. Agora andaram com o ponteiro para trás. Já é tempo de pôr fim a esta volubilidade de quem tem o poder de decidir que horas são neste momento. Para mim, são dez horas e quarenta minutos, mas os relógios digitais de telemóveis e computadores, subservientes a esse estranho mandante, marcam nove horas e quarenta minutos. Quando acordei, estava um esplêndido dia de Outono. Uma névoa branca trespassada pelos raios solares. Entretanto, a névoa, que me fez lembrar um vestido de noiva, desapareceu e apenas existem raios solares. São estas metamorfoses que mostram a inconstância do mundo, sempre inclinado a ser outra coisa. Se o mundo é assim, por que razão não o haveriam de ser os homens, criaturas fracas, de discernimento reduzido e alma cansada. Wislawa Szymborska escreveu no início do poema “Um pouco da alma”: A alma vai-se tendo / Ninguém a tem constantemente / nem para sempre. Bem, ela não terá escrito isto, quem o escreveu foram os tradutores. Terá, eventualmente, escrito algo equivalente em polaco. Tenho diante de mim o texto na língua original: Duszę się miewa. / Nikt nie ma jej bez przerwy / i na zawsze. Não compreendo nada, mas não deixo de admirar o ę, isto é, um e com ogonek, que sinaliza a nasalização da vogal. Onde me documentei, dizem que o ogonek se utiliza em polaco, lituano e navajo, bem como noutras línguas indígenas. Eu pensava que todas as línguas eram indígenas, mas parece que umas são mais que outras. As que são mais indígenas usam ogonek e os seus falantes têm penas na cabeça. As que são menos indígenas não usam ogonek e os seus habitantes dispensam enfeitar-se com penas. Basta-lhes as penas da alma, mas estas só ocorrem quando se tem alma e, como escreve a Szymborska, não se tem sempre alma. Nessa altura é-se, verdadeiramente, um desalmado. As nuvens chegaram, os raios de sol esconderam-se e há muito que não são nove horas e quarenta minutos. Tudo muda.

sábado, 29 de outubro de 2022

Broas taoistas

Age sem agir, terá sugerido, nos seus dias, Lao-Tsé, o velho sábio chinês. Com poucos segundos de intervalo vi duas traduções para o seu nome. Numa, Lao-Tsé significaria Velho Mestre; na outra, Jovem Sábio. Não serão incompatíveis, o jovem sábio ter-se-á tornado em velho mestre. A injunção taoista tem um enorme potencial para fascinar os espíritos. Em primeiro lugar, os espíritos cansados de acção. Contudo, não se está perante um imperativo para o descanso ou a inacção. Suspender a acção é uma forma de agir, porventura a forma suprema. No mundo ocidental, encontramos a mesma ideia em Aristóteles, mas como qualidade divina. Deus, o motor imóvel, faz o mundo mover-se a partir da sua imobilidade. Estas formulações não deixam de conter uma sugestão erótica. Aquele que suspende a acção e deixa de voltejar em torno do objecto desejado torna-se um centro de atracção irresistível. É dessa maneira que o próprio Aristóteles vê a relação entre as coisas do mundo e Deus. Se me perguntarem a razão por que escrevi o que escrevi, não tenho nenhuma para dar. Ocorreu-me e é tudo o que posso dizer. Poderia falar de outra coisa. Por exemplo, das broas que comprei hoje. Aproximam-se os Santos e, como em muitos outros lugares, há aqui uma tradição bem estabelecida. A data é acompanhada por uma profusão de broas de múltiplas espécies. Nelas o azeite tem, por norma, um papel relevante. As que comprei são de cacau, umas, e de mel, outras. Encarnam perfeitamente o imperativo de Lao-Tsé. Sem agir, pois estavam deitadas no expositor sem qualquer tipo de movimento, atraíram-me para elas, pobre insensato que sou, incapaz de resistir às pequenas tentações. Elas agiram sem agir. Serão broas taoistas, pensei quando paguei a conta.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Os liquidâmbares

Os liquidâmbares da avenida estão esplendorosos. As folhas desdobram-se numa multidão de tons, e assim como o cisne entoa o mais belo canto antes de morrer, também as folhas dos liquidâmbares, antes de se arrojarem mortas por terra, oferecem aos olhos desprevenidos o melhor dos espectáculos. Se a vida tivesse ficado pelo patamar vegetal, medito muitas vezes, a Terra seria um belíssimo mundo. Há qualquer coisa de tenebroso na vida animal, na voracidade com que ela, incapaz de extrair directamente do solo alimento, se entrega à carnificina. Este espectáculo tenebroso terá originado as crenças maniqueístas e a hipótese deste mundo ter sido obra não do Deus misericordioso, mas de um deus malévolo, obstinado em fruir este espectáculo de sangue a correr pelas bocas nunca saciadas. Aqui, Eduína, pela primeira vez, interrompeu a conversa nessa noite. Tinha estado estranhamente silenciosa. Referiu que a hipótese de duplicação dos deuses era desnecessária, bastaria aceitar o deísmo como verdadeiro. Deus, na sua infinita omnipotência, teria criado o mundo, extraído do nada a matéria, dando-lhe algumas regularidades, apenas esboçadas, a que os homens chamam leis da natureza. Depois, entregou esse mundo com as suas toscas regularidades ao devir e decidiu não mais intervir no que nele acontecia. O esboço das regularidades eram possibilidades em aberto e o acaso poderia ter conduzido a mundos muito diferentes. Ao voltar as costas a esse mundo, Deus abdicou também de sobre ele fazer incidir a sua presciência. Não sei, todavia, acrescentou Eduína, se esse desconhecimento ostensivo será suficiente para lhe salvaguardar a inocência. Seja como for, prefiro, continuou, a versão de um Deus interventivo na criação, mesmo que não consiga nunca compreender as suas razões. Entra esta conversa e a notícia que tive da sua morte, soube que teria entrado num convento, embora julgo que nunca tenha chegado a professar. É mesmo possível que tenha acabado por o abandonar. Uma das coisas que ela amava, disso lembro-me bem, era os liquidâmbares nesta altura do ano.