quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Fine tuning

Apesar de tudo, os dias passam rapidamente. Amanhã já é dia de Todos-os-Santos e daqui ao Natal o tempo correrá à desfilada e eu, como um cavalo enlouquecido, há quem me ache um burro demente, correrei com ele ou arrastado por ele num turbilhão de coisas insensatas. De o pensar, estou já cansado. Correr não é a minha especialidade e cheguei àquela época em que preferia avançar para trás, mas não muito, já que não teria paciência para mim se tornasse ao que fui. Seria penoso. Escureceu há muito. Para surpresa minha, ao final da tarde uns adolescentes quiseram falar comigo sobre os argumentos do fine tuning e do mal, com derivações sobre o determinismo da conduta humana. Poderia pensar que as coisas não estão tão críticas quanto se anuncia. Provavelmente, não estarão.  Recebo uma mensagem no telemóvel. É um convite para uma masterclass de Tequila & Mezcal e começo a pensar que o argumento do fine tuning não será assim tão disparatado. Salva-me amanhã ser dia santo de guarda, um dia onde a santidade se multiplica, como se o regulador destes festejos, cansado, tivesse cedido à paixão da hipérbole. Vou roubar uma broa à cozinha.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Retorno do mesmo

Na escola aqui ao lado, o seu grupo de baile persiste em ensaiar canções que fizeram furor há mais de vinte, trinta ou quarenta anos. Esta obstinação pelo passado não deixa de ser comovente e faz-me lembrar as pessoas que, quando era adolescente, tinham a idade que eu agora tenho. Também elas estavam presas a músicas incompreensíveis, sons que pareciam vir de um planeta distante, e nas quais tinham um prazer que era para mim um enigma. A ideia do eterno retorno do mesmo acabou de me tentar. Resisto à tentação, enquanto, vindo de fora, oiço menina que estás à janela com o teu cabelo à lua. Hoje já não há meninas à janela e os cabelos à lua, também andam ao sol e à maresia do crepúsculo. Dói-me a garganta, recorro a um spray. Logo tenho uma cerimónia à minha espera, embora eu não a esperasse, nem a ela nem a qualquer outra coisa. O carro avariou-se de manhã e tenho de ir ver se já o posso ir buscar. Uma chuva fina diante da janela faz-me lembrar o fumo que se evola dos carros dos assadores de castanhas, mas é só água a descer dos céus. Uma bênção, oiço dizer.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Desvios e mistérios

Hoje li um poema que começa assim Já o gargalo das pedras adormece e fiquei mais tempo do que devia sem saber o que fazer com aquele verso. O poeta, dir-me-ão, pratica o desvio porque esse será o seu ofício. O meu, se é que se pode chamar ofício, fica-se pelo perscrutar da noite, olhá-la no fundo dos olhos para que surpresa revele os seus segredos. Ela porém sorri e olha-me com benevolência e segue o seu caminho, respeitando as estritas regras da gramática que governam o dia e a noite, a passagem das semanas, o devir compassado das estações. O mistério da noite é como o das palavras. Compramo-las presas a um significado, mas se as olharmos longamente, começam a emancipar-se e tornam-se mariposas descuidadas que o vento, à falta de peso, arrasta para onde quer. Hoje escrevi centenas ou milhares de palavras, todas elas pesadas de sentido, todas elas inúteis como uma bóia de salvação nas areias do deserto.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Serei maniqueísta?

Um comentário insinua que estou a caminho do ultra-romantismo. Talvez esteja mais perto do solipsismo mas a carapuça do ultra-romantismo também não me há-de ficar mal. A culpa, assevero-o, não é minha, mas do autor destes textos que teima em fabricar-me deste modo. Eu bem me inclino para os factos e acontecimentos, mas ele, com uma rigidez inesperada, tende a cerrar-me dentro de mim mesmo, fazendo-me crer que a realidade é uma coisa pesada e pouco benévola. Desconfio que pretende fazer de mim um discípulo de Manes e ele mesmo será um cátaro, mas os seus desígnios e pensamentos são-me insondáveis. Se ele quer que eu seja um solipsista ou um romântico ou um maniqueísta, o que posso fazer contra a prepotência da sua vontade? Um dia fosco o de hoje. Olho pela janela e vejo sombras a caminhar na avenida e os ciprestes que abundam por estes lugares. Um silêncio nega a realidade, que logo acorda na figura de uma mensagem a informar-me que alguém partilhou documentos comigo. Um dia ainda acredito que sou maniqueísta e que toda a realidade é fruto de um demiurgo pouco frequentável. Que me salvem da heresia, é aquilo que peço, mesmo que essa seja a vontade daquele que me cria.

domingo, 27 de outubro de 2019

Distâncias

Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela. Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto, cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu, como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai da ode à elegia.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Da circularidade semanal

Está a chegar o fim-de-semana e já o vejo a escoar-se, perdido nem se sabe como. As semanas são círculos viciosos, em que se parte de uma sexta-feira para chegar a outra, sem que um sentido para tudo isto se desenhe. Quando oiço falar no território encantado da infância, apesar da expressão me provocar uma certa náusea, lembro-me sempre daqueles anos longínquos em que não havia semanas, com os seus dias fastos e nefastos. Lá em baixo, no parque infantil, um bando de crianças grita. Parecem felizes e, por certo, ainda não descobriram que existem semanas, com a sua corveia e a ilusão de algumas horas de liberdade, para que o jugo férreo pareça mais leve. Eu sei que a civilização tem um preço, as comodidades outro e que nada cai do céu. Isso, porém, não nos deve impedir de increpar a ordem das coisas ou de maldizer aquele descuido de Eva e Adão que nos atirou para a deplorável situação de à sexta-feira já sentir o odor mascavado da segunda. O sol ainda brilha, mais intenso que nos últimos dias e o arvoredo perfila-se imóvel com os seus dedos de azougue voltados para o céu. Bem podia ter evitado o pathos da última frase, mas fui obrigado a dizê-la.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Penúria de realidade

Dentro de mim há uma enorme sombra. Faço dela a casa de onde raras vezes saio. Vejo o mundo por uma janela e aquilo que nele se passa cada vez me interessa menos. Demorei muitos anos a ligar a comédia humana ao que Aristóteles disse da comédia clássica, mas isso são contas de outro rosário, pelo qual já ninguém ora. O dia passou e é o que tenho a dizer dele. Não se trata de escassez de imaginação, mas penúria de realidade. Vivo cercado de pessoas cheias de realidade. Habituei-me à condição de ilhota nebulosa perdida num oceano vigoroso, a transparecer certezas e particular inclinação para a exuberância da felicidade. Mares destes, sempre navegados, cansam-me. A noite chegou, uma ambulância cavalga pela estrada em direcção ao hospital e tanta realidade é insuficiente para me sequestrar à ruminação que crepúsculo abriu em mim. Já é tarde, digo e volto os olhos para o lugar onde a escuridão nasce.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Mudar de vida

Cheguei a casa quando o crepúsculo já se anunciava no descolorido do sol. Sentei-me e os meus olhos embateram numa tradução inglesa de um livro de um pensador alemão contemporâneo. Os alemães são particularmente competentes para encontrar títulos dramáticos que soam ora como uma sombra arremessada pelo infinito, ora como um imperativo a que se deve obedecer, embora não se saiba porquê. Este pretende resumir a religião através do imperativo You must change your life. Peguei no livro, folheei-o lentamente e pensei que mais que mudar a minha vida, o acertado era ter mudado de vida há muito. Há equívocos que se tornam numa condenação perpétua. Os pássaros meus vizinhos sublinharam o meu pensamento com um trilo equívoco e eu sorri agradecido. As vozes lá em baixo calaram-se de súbito, como se um anjo tivesse poisado e a sua beleza fosse sentida como a presença do terrível, tal como nos ensina certa ode. Destemido, o vento empurra os ramos do arvoredo, desenhando murmúrios coloridos na praça vazia. Mudar a sua vida, que penosa injunção para aquele que se prendeu na teia dos seus hábitos.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Sobre as oliveiras

Na escola aqui ao lado há umas quantas oliveiras. Vejo-as envoltas em folhas verde cinza, indiferentes ao vento, esquecidas dos anos. Lembraram-me do tempo em que por aqui ainda era fácil, ao caminhar sem destino, ser invadido pelo cheiro que se desprendia dos lagares. Estes foram morrendo uns atrás dos outros, como pessoas velhas e sem família a que já ninguém conhece. Levaram com eles os aromas quentes que anunciavam o azeite novo, abriam o caminho que ia dos santos ao natal, e deixaram órfãs as oliveiras que escaparam à voragem sem medida dos homens. Conheci oliveiras que tinham, supunha-se, mais de mil anos. Imagino-as indiferentes ao espectáculo da história, ao cortejo de esperanças e desgraças que tocaram esta terra. É possível que já tenham sido arrancadas, levadas pelo despeito daqueles que não têm mais que uma vida breve, risível, impotente para enfrentar o tempo e enganá-lo numa faena de arte consumada. Talvez o touro que os homens lidam nas arenas não seja outra coisa senão o tempo, mas hoje tornou-se perigoso falar de touros e de lides, pois todos têm medo do tempo, dos cornos que ele alça para nos varar, pobres peões de brega.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Um desajustado

Não deixo de ser um enigma para mim mesmo. Gostei da frase mal surgiu não porque ela refira a minha natureza especial mas por ser um exercício inócuo de banalidade. Não há quem não se ache enigmático aos seus próprios olhos, embora os outros vejam com acintosa transparência, e não menor perfídia, aquilo que o próprio julga ser a obscuridade das obscuridades. A nossa verdade reside nos olhos dos outros. Em vez de enigmático pressinto que sou anacrónico. Lancei a mão a três CD para me acompanharem a tarde. Não escolhi, deixei que o acaso revelasse aquilo que eu quero ouvir. Um CD de música Sufi, outro de música tradicional japonesa e para completar um outro de canções de amor trovadorescas do norte de França. Só um desajustado poderia ser contemplado com tal combinação. Estou fora do tempo e do lugar. Poderia ter sido um trovador ou então um monge em busca da realização espiritual. Só não posso ser o que sou, que é a única coisa que posso ser. São difíceis certas segundas-feiras depois do almoço.

domingo, 20 de outubro de 2019

Ser personagem

Por vezes finjo que me interessam os graves problemas da humanidade, tomo posição como se acreditasse nas minhas opiniões, mas deixo antever que não tenho nenhuma solução para qualquer problema quanto mais para os graves, se é que os há. Isto não é propício à minha credibilidade como profeta. Um anunciador de futuros deve ter sempre uma inabalável certeza, uma voz tonitruante e um olhar furibundo. O criador esqueceu-se de mim na hora de distribuir esses talentos. Não se pense que o criador é Deus. Isso seria um engano deplorável, uma heresia das mais terríveis. O meu criador é aquele que escreve estas palavras e que me conforma em consonância com a sua volubilidade. Admito que não o suporto. Obriga-me ora à melancolia, ora à irrisão. É uma vida difícil nas catacumbas da humanidade. O que me vale é que ele desdenha em dar-me paixões temíveis e desejos inconfessáveis. Molda-me nas águas tépidas da existência, sem que me permita mergulhar nos insondáveis mistérios da alma humana. Estou mesmo desconfiado que nem uma alma ele me atribui. Ser personagem nunca foi fácil. Ser uma péssima é um desconsolo de que nunca hei-de recuperar.

Parecer um anhuca

Pareces um anhuca, foi o comentário que recebi ao vestir um velho par de calças esquecido no fundo de um roupeiro. Não faço a mínima ideia o que seja um anhuca nem qual a sua aparência, mas fiquei com a certeza de que parecia um e, como aquilo que parece é, atirei com o atavio para as profundas de onde viera. Um colóquio sobre a palavra não me esclareceu o sentido e uma consulta na internet não deu melhores resultados. Pelo contrário, há inclusive divergência sobre a sua acentuação, havendo os partidários da sua natureza proparoxítona e os que a grafam como paroxítona, onde me passei a incluir, pois caso eu seja na verdade um anhuca não o quero ser de forma esdrúxula. Um domingo que começa com estas preocupações não me parece fadado a grandes desígnios. Também eu não os tenho. Com o passar dos anos a minha ambição reduziu-se a não parecer um anhuca e estou longe de estar convencido de a conseguir realizar.

sábado, 19 de outubro de 2019

Roupa de Todos os Santos

Quando, depois de acordar, espreitei pela janela, o dia estava vestido como se fora o feriado de Todos os Santos. Fiquei a olhar o céu carregado de cinza escura, que logo desabou em chuva grossa e pensei na sábia decisão de criar esse dia santo de guarda em honra de todos os santos e mártires conhecidos e também daqueles que são desconhecidos. Passados instantes já o pensamento se desinteressava do exército dos santos e mártires e acompanhava o voo rápido de um corvo que se atreveu a passar de uma para outra árvore. A tarde, resolvi-me então, dedico-a à leitura de Jean Bodin, não aos Seis Livros da República, tão pouco a O Teatro da Natureza Universal, mas ao mais prosaico Da Demomania dos Feiticeiros. Será que os demónios transportam os feiticeiros em corpo? Será que estes conseguem transformar os homens em animais? São perguntas destas, para minha perdição em vida, que me movem a curiosidade. Chegada a tarde, faltou-me a vontade para perscrutar tais arcanos e deixei em paz os feiticeiros e os demónios com que aqueles andam mancomunados. Aliás, um almoço pouco frugal tirou-me qualquer interesse pelas opiniões do senhor Bodin, que foi levado desta vida em 1596, não por um feiticeiro nem por um demónio, mas pela peste negra. Neste momento não chove. O sol assoma aqui e ali, mas o dia não deixou de lado a roupa de Todos os Santos. Vou sair para ver o que acontece.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A virtude de ressonar

Depois de um almoço tardio, como se tornou hábito às sextas-feiras, acabei por adormecer sentado num sofá em frente de um jogo de snooker oferecido por um canal televisivo. Prova provada de que a arte de enfiar bolas num buraco me interessa muito pouco, embora seja preferível às notícias que outros canais repetem incansavelmente com a intenção de enlouquecer os espectadores. Adormeci e ressonei. Pessoas que se prezam não ressonam, mas por muito que me preze não consigo deixar de ressonar. Ao sentar-me para pagar a corveia, dei uma espreitadela às notícias online. Uma empresa oferece 115 mil euros pelos direitos ao rosto das pessoas. Ainda examinei a possibilidade de vender os direitos do meu, mas reconsiderei. Não é que eu seja particularmente humano, mas haver um robot com a minha cara com a finalidade de ser um amigo virtual para idosos é como querer vender-me para ser amigo de mim mesmo. Coisa que de bom grado dispenso. Pior que isso foi receber o convite para gostar da página de uma academia jovem de uma agremiação política daquelas que são novas mas dirigidas por gente que deveria estar reformada há muito. Pensei, não sem terror, que se vendesse os direitos do meu rosto, ainda me calhava ser amigo virtual de políticos velhos que em desespero de causa incentivam a existência de academias jovens. Por menos, foi Sócrates executado na Grécia. Antes ressonar em frente a um emocionante jogo de snooker.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A farda da ilusão

A manhã desce a encosta do dia, um declive escorregadio, terreno pedregoso molhado pela chuva. Quando, ainda cedo, me levantei e abri a janela deparei-me com uma neblina impenitente que sufocava os prédios e o arvoredo, deixando apenas transparecer algumas sombras a lembrar velhos fantasmas exaustos, cansados pelos anos, indecisos sobre se se devem manifestar ou voltar para o tugúrio onde abrigados da intempérie se escondem aos olhos dos mortais. Isto era a primeira manhã, depois como sempre acontece tudo mudou com o passar das horas. Nuvens mais escuras deslocam-se sob a vigilância de outras mais claras. Talvez seja o contrário, são as esbranquiçadas que se movem dando a ilusão do oposto. Quantas vezes, estando num comboio parado, pensei estar a deslocar-me iludido pelo movimento de um outro que se tinha posto em marcha. Demorava sempre alguns segundos até perceber a ilusão sensorial. A essas ainda as fui detectando, as outras, as ilusões decisivas e sob o efeito das quais nunca deveria viver, nunca tive o poder de as desfazer. Visto-as como se fossem a farda do exército em que milito. Têm a vantagem de nunca envelhecerem e de não passarem de moda. Um raio de luz fende o vidro da janela, anunciando a hora em que o meio-dia chegará. São parcos os poderes que me foram conferidos e escassa a virtude que cultivo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Amor à compensação

Podia ter sido um business coach ou mesmo um finantial coach, mas não passei de um mero coxo, cuja perna manca nunca teve poder para se alçar ao business ou ao finantial. Admiro a infinita criatividade de todas estas pessoas que, aproveitando a época de saldos, compram palavras inglesas, vestem-se com elas e andam assim fardadas pela vida, pois há sempre quem lhes compre os ersatzes. Adoro esta palavra. Empreguei-a para compensar o meu complexo de não ser um coach de qualquer coisa. Sou frequentador assíduo da compensação. Sem ela, como poderia olhar a vida e não ter vontade de me esventrar com um sabre afiado. Das poucas coisas em que sou versado, confesso não sem orgulho, é a poética da compensação. Não posso ser rei, ao menos que proclame a não existência de coisa mais nobre do que ser súbdito. Assim a vida em vez de um vale de lágrimas soprado pelo vento do ressentimento é uma festa, onde todos os súbditos que não podendo ser trigo descobrem a alegria de nascerem joio. E é isso o que eu sou, embora tivesse um indisfarçável talento para coach ou para rei, talvez mesmo para grilo falante.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Frugalidade

Até a frugalidade parece-me um excesso. Foi o que pensei depois de almoço. Não vivo num tempo de coisas mínimas, mas numa circunstância em que devo minimizar-me. Diminuindo-me, mais fácil será desaparecer. Foi a isto que um antigo ateniense chamou aprender a morrer e a estar morto. Era uma escola rude, a que não faltavam inimigos. Não é de agora o desejo de maximização, apesar de nenhuma época que não a nossa ter insuflado tanto os pequenos egos. Oiço, lá em baixo, risadas alarves, saídas da boca impenitente da adolescência. Essa, compreende-se, é pouco dada ao minimalismo, entregando-se antes ao exercício da hipérbole. Deveria escrever, passou-me pela cabeça, como se escrevia nos antigos telegramas. Chego amanhã stop Espera porta sul stop. E em tudo isto havia a beleza da contenção, do exercício da economia, da redução do discurso à informação e ao mandamento. Pena que não exista um florilégio da escrita telegráfica. Que profissão mais nobre pode haver do que a do antigo boletineiro, que voava levando em mão palavras urgentes e decisivas? Quando se fala do crepúsculo dos deuses é do desaparecimento de gente como os boletineiros, esses hermes da modernidade, que falamos. Como se vê a frugalidade das palavras não é virtude que pratique.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um fingidor

Onde estou avisto duas acácias bastardas, mas não estou certo da denominação. Ainda não lhes vejo sinais a anunciar a caducidade das folhas. Os ramos agitam-se, balançam, enovelam-se, batidos por um vento invisível, empurrado pelo calcário da serra. Apetecia-me passar a tarde a ler, mas as minhas ocupações são incompatíveis com leituras. Há que domesticar os apetites. Se cultivar a estultícia, estarei de acordo com o que se me exige. Olho as árvores, tento focar a visão e distinguir as folhas, mas o que vejo são manchas de verde em metamorfoses contínuas, movidas por um jogo de claros e escuros tremeluzentes, como se a realidade saísse de dentro de um quadro impressionista para invadir a vida e torná-la mais fugidia. Muitas vezes faço a apologia do rigor e da precisão, mas sou um fingidor, o melhor é não me dar crédito. Do que gosto mesmo é do vacilar das fronteiras, do desgaste das estremas, para que tudo se contamine, seja continuamente outra coisa e eu possa ser coisa nenhuma. Desloco-me para dentro da tarde, fecho a porta atrás de mim e escondo-me da indiscrição do meu próprio olhar.

domingo, 13 de outubro de 2019

O Rei Recaredo

Contaminamo-nos facilmente. Mergulhei um rectângulo de chocolate no café. Quando dei por mim tinha as mãos manchadas de castanho. Se as manchas alastrarem, o que farei? Este pensamento risível foi afastado pelo ranger do baloiço no parque infantil, e numa associação ociosa de palavras passo de ranger para Recaredo, o filho de Leovigildo e rei dos Visigodos, perdendo-me em aliterações para compor a prosódia. Deveria ser um mundo esplêndido aquele que tais nomes descobria para distribuir por quem deles necessitava. Olho as mãos e as manchas de chocolate continuam à espere que me levante e as vá lavar, mas não posso abandonar o rei nesse momento difícil, em que o vejo converter-se da heresia ariana à fé de Roma. Convertido o rei, a fé contaminou o reino visigodo. Tenho de vigiar a história para que ela chegue até aos meus dias e eu possa escrever o que estou a escrever. Tremo só de pensar que Recaredo, abandonado a si mesmo, se arrepende e volta ao arianismo. Tudo seria diferente e eu não estaria aqui com as mãos sujas de chocolate nem a criança que lá em baixo se deixa ir embalada pelo estrugido mecânico que não se cala. O domingo progride dentro de mim. Alguém, suponho que o autor destas palavras, diz-me em tom imperativo: lê isto. Nem olho. Respondo: não leio. Hoje é o dia do Senhor, vou meditar na conversão de Recaredo e lançar um anátema ao arianismo. Servo, posso ser, mas não é voluntária a minha servidão. Agora vou lavar as mãos.

sábado, 12 de outubro de 2019

Tornar-me Domingo

Adicionei ao meu eReader um livro do príncipe Piotr Kropotkin. Nunca tive uma alma dada à rebelião contra a existência do Leviatã. Para seres que albergam dentro de si um catálogo ilimitado de monstros, não me parece uma ideia sensata libertá-los do temor pelo monstro bíblico. Sei que almas sensíveis e outras que nem tanto gostam de se afirmar anarquistas, pelo menos ao sábado à tarde. Vou ler o livro como se lesse um romance, mas antes disso terei de atravessar a cidade para uma visita. Melhor que ser anarquista aos sábados à tarde é ir aonde nos esperam e temos o dever de ir. O vento não pára e as persianas da janela chocalham, enviando-me mensagens num código que não consigo decifrar. Também não será mentira se se disser que muitos são os códigos para mim indecifráveis. O autor destes textos poderia ter-me feito um pouco menos limitado, conceder alguma graça e deixar-me ser, aqui e ali, um pouco mais inteligente. Não quer. Um dia ainda me revolto e, contra ele, torno-me anarquista, daqueles que habitavam o mundo de O Homem que Era Quinta-Feira. A minha ambição será então tornar-me Domingo.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O ranger do dia

Parecem gritos de aflição que um animal lança em desespero para partilhar a dor que lhe dilacera o ânimo. Uma ilusão, sei-o bem, pois não é mais que o ranger rouco e angustiado do baloiço que vai e vem, numa repetição intérmina, no parque infantil lá em baixo. Não começa bem a tarde de sexta-feira. Leio um poema e nele encontro araucárias e magnólias, mas se olhar pela janela apenas dou conta de cedros e pinheiros. Ao longe descortino um cipreste. Há tempos, um amigo vindo a esta terra pela primeira vez perguntou-me por que razão havia tantos ciprestes nos campos. Não soube o que lhe responder e a partir desse dia reparei que os havia por aqui mais do que noutros lados. Somos cegos para aquilo que vemos, foi o que me ocorreu, agora que o ranger doloroso se apaziguou. Se me habituar a ele, deixarei de o ouvir. Sinto o dia deslizar. Range como se gritasse dorido pelo punhal do entardecer que lhe abre o peito. Devia eliminar comparações e metáforas, conjecturo, mas o autor não mo permite. A nossa inimizade progride. Penso no punhal, mas ele leva-o para longe e guarda-o num cofre de que só ele conhece o segredo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Falta de apetite

Tenho de levar o carro à oficina, mas não me apetece. Tenho, aliás, uma série de coisas para fazer para as quais me falta o apetite. Ao escrever esta palavra lembrei-me da saga que eram as minhas refeições. Não tem apetite, dizia-se. Recusava-me a abrir a boca, vomitava, não mastigava a comida. Imagino o exaspero da minha mãe nessas horas épicas. Naqueles tempos acreditava-se em coisas inimagináveis. O Ceregumil e o óleo de fígado de bacalhau. Parece que vinham de Espanha, frutos do contrabando, trazidos por alguém conhecido. Ao primeiro, ainda anuía, apesar de reticente. Ao outro, a minha submissão era mais difícil. Um nojo. Não imagino se aquilo fazia bem a alguém. A verdade é que não morri. A certa altura, fui operado à garganta para extracção das amígdalas, coisa que então estava na moda, e, milagre, o apetite nasceu de um dia para o outro. É este o meu problema. Falta-me o apetite para muita coisa, não tenho fé no Ceregumil nem no óleo de fígado de bacalhau e já não tenho amígdalas para extrair.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Uma quimera senil

Chegam a passar meses, mas de súbito o perfume ressurge perdido dentro do elevador. A primeira vez que me deparei com ele a minha alma rangeu, literalmente. Como era possível? Não era um perfume floral a sublinhar uma feminilidade reservada. A força e o calor que se evolava da fragância era de alguém que não teme o olhar indiscreto. Uma intensa curiosidade apoderou-se de mim. Com o tempo e a repetição, aquele odor foi modelando alguém que me assombra os sentidos. Não vale a pena descrevê-la. Alturas há que chego a sentir-lhe a pele a deslizar sob o império dos meus dedos. A construção do corpo foi um trabalho demorado. Começou, nesse primeiro encontro, com uma figura geral, desejável, embora indefinida. Conforme as experiências se repetiam, o perfume, como um vinho vigoroso, diferenciava-se dando-me a ver ombros, seios, o ventre. O desejo nascido no olfacto ia compondo aquela que era a fonte de um devaneio ridículo, de uma quimera senil nascida numa animalidade cansada. Sonhei-a acordado e a dormir, sonhei-a a cores e a preto e branco. Apenas os olhos se recusavam a nascer da fragância. Depois de um intervalo de várias semanas, anteontem, ao entrar no elevador, lá estava o cheiro que me atormenta. Ao fechar a porta, os olhos revelaram-se-me. Olharam-me onde ninguém me pode olhar. Estremeci. A partir de então subo e desço aterrorizado. Agora que o objecto do meu desejo se completou temo que a realidade, que durante tantos anos me evitou, invada os meus sentidos e faça naufragar o navio onde a fantasia viajou na esperança de um porto desconhecido.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A passo

Antigamente conhecia por aqui vários loucos. Tinham enlouquecido lentamente, uns, outros eram-no desde sempre ou foram vítimas fulminantes de um esgotamento, como se dizia na altura. Não sei se fui eu que me afastei do local por onde eles deambulavam ou se foi a morte que os livrou da sua loucura. Sei que eram estimados e enquadravam com recato na paisagem social. Talvez fossem um espelho para nos certificarmos que fazíamos parte do grupo que ainda não tinha endoidecido. Hoje, ao passar pela avenida, deparei-me com um que não conhecia. Caminhava depressa e imitava o trote de um cavalo, enquanto com um pingalim batia na própria perna dizendo nada de galopes, nada de galopes. Segui-o com os olhos, até que ele se perdeu no horizonte ensolarado, escondido entre a sombra dos transeuntes que o olhavam com desconfiança. Parei e uma estranha deliberação tomou conta do meu cérebro. Estava na dúvida se deveria seguir a trote ou a galope para o sítio que me esperava. A hesitação demorou uns instantes. A passo, disse-me, até por que me falta o pingalim para me fustigar na perna e apressar o andamento.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Ensaio sobre a vida

Há quem perca a vida de um momento para o outro e há aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la. Nem no exercício da perda há igualdade. E eu que fui tão igualitário. Aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la sofrem de uma qualquer dissonância cognitiva que os impede de perceber o sentido de estarem neste mundo. Alguns deles chegam depois de múltiplas experiências e longas meditações à conclusão de que não tem sentido nenhum, outros nem isso. O importante é que se continue, a perda é sempre certa. Talvez tudo isto me tenha ocorrido pela minha actividade da manhã ou como antecipação da que virá a meio da tarde. Hoje atravessei a cidade e não reparei em coisa alguma, só a mecânica dos hábitos me permitiu fazê-lo sem sobressaltos. Todos os dias dou mais um passo para dentro de mim, vou cerrando porta a porta até que já não conheça nada nem ninguém. Isso é triste, dizem-me. Talvez, mas não tenho nada para vender e não há mercadoria que o meu desejo cobice.

domingo, 6 de outubro de 2019

Cenas de um domingo eleitoral

Pela primeira vez o meu neto ficou sozinho com os avós. Chegou eram oito da manhã. Vinha a dormir e quando acordou trocou-me pela avó. Como recompensa levei-o a votar. Não me pareceu particularmente entusiasmado e eu nem sequer lhe mostrei o boletim de voto. Na realidade, entre a descida pelo elevador, o atravessar a estrada, a entrada na escola e a ida à secção de voto, quase que adormeceu. Segurou-se, bocejou, aguentou firme na fila para recolher o boletim. Não protestou quando fui à cabine de voto. Nem sequer teve curiosidade em saber em que partidos os avós votaram. Uma olímpica indiferença. Só espero que, quando começar a exprimir por palavras a sua vontade, não diga aos pais que não quer ir para casa dos avós, que eles levam-no a votar. Agora está a dormir ao meu lado. Mais logo veremos uns desenhos animados no computador. Daqui a uns meses iremos ao parque infantil lá em baixo. A vida passa depressa.

sábado, 5 de outubro de 2019

Meditação transcendental

Hoje é um dia especial, uma hora solene votada à meditação transcendental e à reflexão, para que amanhã possa preencher o papel a depositar na urna em consciência plena. Vi por aqui um conselho interessante para meditação, o de O Livro das Falácias, de Jeremy Bentham. Não é uma ideia desprezível e a meditação seria agradável, por certo, mas não transcendental, como a hora exige. Por mim, recolho-me e medito sobre a cláusula filioque. Será que o Espírito Santo procede apenas do Pai, no dizer dos cristãos ortodoxos, ou, como pretendem os católicos romanos, precede do Pai e do Filho. Não se pense que a pendência não teve consequências práticas dolorosas. Levou ao Grande Cisma do Oriente e talvez sem este Constantinopla não tivesse caído na mão dos infiéis. Como se vê, o assunto é momentoso e apropriado à situação grave em que nos encontramos. Como decidir a precedência do Espírito Santo e dissolver a querela teológica não faço ideia. Não estou só, embora os teólogos de ambos os lados tenham certezas antagónicas. A minha convicção, porém, segreda-me que o Espírito Santo me iluminará amanhã na cabine de voto e me contemplará, ao sair dela, com um jackpot, segredando-me no silêncio da minha razão a sua verdadeira origem. Até lá, estarei em reclusão meditativa. Transcendental, claro.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A campanha alegre

Na caixa do correio tive, de novo, a evidência de que se estará em campanha eleitoral. Não sei se será uma prova irrefutável. Durante estes dias ainda não encontrei nenhum daqueles carros que, nos dias que antecedem o depósito do voto nas urnas, nos anunciam o paraíso que há-de vir, bem como os santos que nos hão-de ajudar, com o seu exemplo casto e virtuoso, a encontrar o caminho da salvação. Ao atravessar a cidade, pensava nestas coisas e ocorreu-me que os santos – na verdade, santos apóstolos – estejam cansados ou, então, perceberam que ninguém quer comprar uma estadia nos paraísos à disposição. Não tarda e teremos eleições civilizadas, sem gente a arruar por aqui e por ali, sem bombos e zés pereiras, palavras inúteis e gestos dispensáveis. Não sei o que me deu hoje para falar de política, mas presumo que sexta-feira seja um dia que nos inclina para a demência. Ainda discuti com o autor destes textos, fiz-lhe ver que o assunto não se quadrava com a minha índole, mas ele foi inflexível e pôs-me, para infelicidade minha, estas palavras na boca. Cansa-me o déspota.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Irrelevâncias

Demorei um tempo sem fim a encontrar uns documentos digitais sobre os quais tenho de trabalhar. Tinha-os deixado de lado há dias e, ao querer voltar a eles, não os encontrava. A hipótese de os ter apagado de forma inadvertida foi o que me ocorreu. Lá fiz as pesquisas que tinha de fazer e nada. Por fim, encontrei-os precisamente no lugar onde deveriam estar. Tinha-me esquecido desse lugar. Nada disto me exalta como herói de uma narrativa. Mesmo num tempo como o actual, um herói não trabalha sobre documentos irrelevantes, para produzir outros ainda mais irrelevantes que hão-de ser louvados na sua absoluta irrelevância. Por outro lado, um herói que se digne de o ser tem uma boa memória e, para além dela, uma inteligência verrumante que, em caso de falência memorial, perfura, no tempo de um relâmpago, o espesso véu do esquecimento. Os deuses decidiram não me dar nada disso. Resolveram, na sua douta sabedoria, que eu deveria ser o prolongamento da irrelevância dos documentos com que tenho de compor a realidade. Sem tristeza aceito o decreto e mergulho na composição de mais uma insignificância. O que me vale é que depois de almoço hei-de passar a tarde a dar de comer a quem não tem fome. Ao menos que me fosse dado o talento de confundir moinhos com gigantes. Nem isso.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Profetas

Pouco frequento cafés. Apesar de múltiplas tentativas, sempre os achei desconfortáveis para ler e, no entanto, eles são uma fonte narrativa que não deveria desprezar. Hoje entrei num. Numa mesa, um homem fulminava os acompanhantes e na sua boca geminavam-se confusamente pragas dirigidas aos homens e injunções que a serem cumpridas os salvariam a todos. O mal do mundo, cogitei, é não darmos ouvidos aos profetas que nele abundam. Entramos num táxi e, se não nos cuidamos, apanhamos com a sabedoria infinita de um Jeremias ou de um Daniel. Passamos distraídos pela rua e a uma esquina lá está um Zacarias irado. Não haverá, porém, lugar mais próprio para a profecia do que um café. Na mesa ao lado do fulminador, duas mulheres ainda novas entreolhavam-se. Havia nelas vontade de escarnecer do profeta, mas continham-se não as fulminasse ele com um raio. Saí dali como quem sai de uma página do Antigo Testamento. A rua acolheu-me benevolente. Olhei o céu e nele não havia sinais da cólera divina. Respirei fundo, entrei no carro e pensei no anunciador de futuros. É pena que não saiba que ninguém é profeta na própria terra.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

O fascínio da fé

Fascina-me sempre a fé que as pessoas têm na sua própria opinião. Também eu terei tido fé nas minhas opiniões. Depois, tornei-me agnóstico e, hoje em dia, sou francamente ateu perante muitas das ideias que me atribuo. A primeira coisa de que desconfio é das opiniões que nascem dentro de mim. Deito-lhes um olhar enviesado, rosno-lhes e, se calha partilhá-las, não é porque creia nelas, mas para me livrar do seu cheiro negro, para evitar que azedem e me empestem os pulmões. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que o caminho da Cartuxa tornaria o mundo bem mais habitável. Isto, todavia, não passa de uma opinião, para qual também me falta fé. Li já não sei onde que a Cartuxa de Évora iria fechar e os monges partiriam para Espanha. Faz sentido, num país onde todos têm opiniões para dar, que não haja quem decida calar-se de vez e entrar na pátria do grande silêncio.

Terapia para o caos

Há um momento na tarde em que a luz parece fixar-se sobre o dia e assim tornar-se eterna. Depois, a ilusão desaparece e o tempo acelera, anunciando nos tons das árvores ou no matizado das paredes a noite que há-de vir. Lá em baixo, um bando de adolescentes entrega-se a rituais ruidosos, numa liturgia eterna, antes de entrar para um centro de línguas. Os dias outonais são-me propícios e acolho-os com a benevolência de um sorriso. À minha frente tenho um livro cuja capa reproduz uma gravura de Pieter Bruegel. Percorro-a com os olhos, demoro-me em cada uma das figuras e interrogo-me sobre o que motiva o autor para a teratologia. Também no meu inconsciente habitarão terríveis monstros, mas faltar-me-á coragem para os trazer à luz e com eles compor uma figuração do caos. Chega até mim a voz de uma mãe a perguntar a uma filha se está aí. Depois, diz Maria, Maria. Não se ouve resposta, apenas o ranger rouco de um baloiço. Ao longe, a crista dos cedros inclina-se, dobrada pelo vento. Outubro entrou vitorioso pelo calendário. Enquanto continuo a espiar a gravura de Bruegel, oiço um grito prolongado de golo. Por cada golo gritado, penso, adormece um monstro no fundo do coração daquele que grita. Uma terapia para o caos.