sábado, 31 de dezembro de 2022

Rituais

Isto parece estar mau para os profetas. As profecias meteorológicas anunciavam quase um dilúvio, mas as nuvens têm-se mostrado renitentes em conceder a sua graça a quem se entrega a este tipo de augúrios. Pelo menos, por aqui. Pude ir à rua sem guarda-chuva. Constatei que o mundo mudou. Durante muito tempo vi fecharem as padarias, as velhas padarias que alimentaram a população durante décadas. Ora, hoje fui a uma padaria nova com o nome de uma encarnação da divindade hindu. Gente na casa dos quarenta anos, talvez um casal, que nunca vira por aqui, abriu um negócio, como aqueles que existem nas grandes cidades, trazendo uma nova forma de conceber o pão e de o vender. Depois, desta visita à inovação, fui a uma mais antiga pastelaria comprar um bolo-rainha. Encontrei pessoas conhecidas, algumas que envelheceram de forma desmedida. Há muito que não as via. Tomei café com um casal amigo e, no fim, desejámo-nos, mutuamente, um bom ano de 2023, embora toda a gente, conhecida ou não, o faça, se, por algum motivo, entra em contacto com qualquer outra pessoa. Estes rituais, muito deles meramente linguísticos, são importantes, pois é o ritual que salva a existência da usura do quotidiano. As sociedades modernas são máquinas de destruição de mitos e ritos, mas estes lá vão resistindo, reinventando-se para balizar a vida de cada um. Amanhã será dia de Ano Novo e este terá também os seus rituais e a sua própria mitologia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Melancolia e inutilidades

As pequenas cidades de província são um poço de melancolia, mais ainda se se junta a pequenez e a interioridade. E para se estar no interior bastam uns meros vinte ou trinta quilómetros de afastamento do litoral, senão menos. Um inexorável despovoamento, aliado ao défice demográfico e à morte dos centros antigos, conduz a essa sensação de que algo se retirou e não mais voltará. Onde existe atracção turística, as coisas ainda são disfarçadas pela presença de mirones à procura de coisas nunca vistas, mas nos lugares que não atraem esses viajantes sem destino nem causa não se pode evitar a constatação de que a morte urbana progride silenciosa. Foi tudo isto que experimentei ao passar pelo centro da cidade onde me acolho, cidade bem mais desconsolada do que a antiga vila, plena de vida. Também é possível que esteja completamente errado e que sejam os meus olhos que, motivados pela idade e cansados do que já viram, vêem as coisas desta maneira. Não seria a melancolia da cidade que se desdobra diante de mim, mas a minha melancolia que ali se projecta. Ora, determinar o que numa certa imagem ou percepção das coisas pertence ao percebido e o que pertence ao sujeito que percebe dava uma bela, apesar de inútil, discussão. Não é que as coisas inúteis não exerçam grande fascínio sobre mim. Exercem, e toda a minha vida me interessei mais por aquilo que é inútil do que por aquilo que pertence à utilidade. Contudo, não me apetece chegar à hora do crepúsculo preso às cadeias da inutilidade. Amanhã será o último dia do ano. Eis uma informação que pode ter mil préstimos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tristezas

O poema Neve, do livro Ararate, de Louise Glück começa assim: Final de dezembro: eu e o meu pai / vamos a Nova Iorque, ao circo. Ao ler estes versos, tive uma reminiscência de uma ida ao circo com o meu. Não era Dezembro, nem foi em Nova Iorque, nem nevava, mas em Lisboa, no Coliseu, e estava calor, pois lembro-me de comer um gelado e de sujar o casaco da senhora que estava à frente. Isso foi há mais de sessenta anos. Não sei que impressão me ficou dessa experiência, mas o circo sempre foi um espectáculo que me deprimiu. Basta pensar nele para sentir tristeza, mesmo naqueles circos ricos que apareciam na televisão no dia de Ano Novo, ou talvez num outro dia qualquer, que me aparece na memória como sendo o primeiro do ano que começava. Trapezistas, palhaços, ricos ou pobres, equilibristas, engolidores de espadas e de fogo, domadores de feras, por todos eles sinto uma estranha compaixão, como se as suas profissões fossem piores do que todas as outras que por aí há. A origem dos nossos sentimentos é obscura e, por certo, desprovida de racionalidade, pois não há quem pondere aquilo que há-de sentir. Talvez todas as profissões sejam fonte de tristeza, mesmo para aqueles que dizem trabalhar por prazer. Uma outra hipótese é ter compreendido, de forma subliminar, que o circo é uma representação do mundo e que a tristeza que perante ele sinto se refira a uma desolação com o próprio mundo. Isto, porém, infringe a alegria que me assalta perante múltiplos acontecimentos que esse mundo transporta consigo. Acabei de ler um romance de Maria Isabel Barreno, autora de que nunca tinha lido nada. Também o mundo que ela narra me deixou um vestígio de tristeza, daquela tristeza que nos toca perante a consciência de que as nossas ilusões não passam disso mesmo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Complacência

O ano está a chegar ao fim. Não faltarão retrospectivas do que passou e profecias para o que há-de vir. Há muito que imagino ser mais acertado fazer profecias sobre o que se passou e retrospectivas do que ainda não aconteceu. É possível que o resultado fosse o mesmo. A Terra prossegue a sua vida, rodando sobre si e girando em torno do Sol, com olímpica indiferença. Que os homens montem, a partir da sua actividade, calendários, será um problema que não a afecta. Durante algum tempo tirei fotografias. Evitava nelas a presença humana. Talvez fossem, penso-o agora, uma forma de reverência ao planeta que nos acolhe e dá vida. Se alguém achar que isso se deve à misantropia terei de considerar o assunto. Duvido, contudo, que a espécie humana gere em mim um sentimento tão forte. Complacência, sim, mas não ódio. A complacência começa comigo e estende-se ao próximo, mesmo que este esteja muito afastado. Na literatura, a complacência tem má fama. A condescendência é vista como uma falta de carácter, tornando o herói vicioso. Ora, no acto de ser complacente existe benevolência e esta, caso fosse universal, não tornaria a vida pior. Ontem levei as minhas netas ao mosteiro de Alcobaça. Enquanto deambulava por ali, ia pensando que o mosteiro está morto. Existe conservação e restauro, mas aquilo para o qual foi erguido desapareceu. Tornou-se um cadáver que não se corrompe, mas não deixa de ser um cadáver, como o são os corpos de Pedro e Inês, ali sepultados. A ânsia que sentimos de preservação do passado em forma de património é uma negação da realidade, uma recusa em perceber que é o espírito que vivifica e, quando este se retira, o monumento, por belo que seja, é apenas um despojo sem vida preso à terra.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ser risível

A páginas 54 e 55 da tradução portuguesa de A Loucura de Hölderlin, do filósofo italiano Giorgio Agamben, o autor faz notar, quase em modo de lamentação, a ausência de menção no poeta à comédia, enquanto reflecte, por diversas vezes, nos géneros épico, lírico e trágico. Ora, segundo Emil Staiger, em Grundbegriffe der Poetik, referido por Agamben, os géneros poéticos nomeiam também “possibilidades fundamentais da existência humana”. Podemos sem dificuldade pensar em existências trágicas, épicas e líricas, todas elas marcadas pelo respectivo arquétipo literário. Se pensarmos, porém, em existências cómicas, fundadas no arquétipo da comédia, sentimos uma qualquer falsificação da realidade. A pista que se poderá seguir é dada por Aristóteles. Sendo toda a arte imitação, a tragédia imita os homens nobres e superiores, enquanto a comédia imita os homens inferiores naquilo que eles têm de ridiculamente torpe. Ora, a torpeza ridícula é uma possibilidade da existência humana, mas não fundamental. Os homens que vivem vidas ingénua ou vilmente torpes sofrem de uma amputação da sua natureza, um eclipse da sua essência e ficam presos nas possibilidades de superfície. É plausível pensamos duas coisas. Em primeiro lugar, nenhum ser humano foge da risibilidade e, de algum modo, todos somos personagens cómicas. Em segundo lugar, as possibilidades fundamentais dadas na literatura – a épica, a trágica e a lírica – não são mais do que modelos, ou arquétipos, que possibilitam a cada ser humano a elevação da sua condição risível a uma condição superior. Essa elevação, note-se, não é um exercício exterior, mas uma experiência interior, que vai da superfície ao fundo de si, mesmo que isso tenha repercussões na sua persona pública. Estes pensamentos desencadeados pelo livro de Agamben vieram recordar-me longas conversas com Eduína, o que abriu em mim uma ferida que nunca estará verdadeiramente sarada. O seu desaparecimento precoce do meu mundo – mais precoce do que a sua morte – pôs um fim a longas conversas em que sensibilidades distintas e antagónicas encontravam estranhos caminhos de pensamento. Esses eram caminhos feitos de indagações, mas o modo como uma mulher indaga é bem diferente daquele que o homem escolhe, embora entre ela e eu houvesse uma partilha fundamental, a da plena consciência de se ser risível.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Uma questão de vogais

Está quase consumada a quadra natalícia. S. Pedro continua muito activo, ele que nos últimos anos se tinha entregado a grandes períodos de greve. Os profetas do tempo indicam, porém, que daqui a pouco ele irá descansar e que a chuva cessará. Como todos os profetas, também os meteorológicos são esquivos e falam numa linguagem ambígua. A equivocidade simbólica dos profetas religiosos foi substituída pela probabilidade. É provável que chova, mas também há uma certa probabilidade que isso não aconteça. As netas afadigam-se, fazem as malas para irem passar uns dias com os avós. Cuidam das toilettes que usarão caso façam isto ou aquilo. Falei no plural, mas parece que é apenas uma que se entrega a estes trabalhos, a outra está presa a uma rede social que os adolescentes usam, no modo que hoje têm de ser adolescentes, pelo menos no Ocidente. Talvez não devesse falar no Ocidente. Tem péssima imprensa. No século XIX, todavia, Cesário Verde pôde escrever um longo poema com o título Sentimento dum Ocidental. Nesses dias, era claro o que significava ser ocidental, hoje talvez não passemos de acidentais. A insignificante troca da vogal inicial traz-nos lições de sociologia que não se poderia suspeitar. Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Isto, porém, era no século XIX, quando ainda éramos ocidentais. Hoje, quando o desejo absurdo de sofrer nos toca, vamos ao psiquiatra, ao psicanalista, quem pode, ao psicólogo, quem não tem dinheiro para, durante anos, se deitar no divã e entregar-se à hermenêutica dos sonhos, à exegese dos actos falhados e ao jogo das associações livres. Também no campo da patologia mental funciona um mercado livre, onde há produtos para todos os gostos e todas as bolsas.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Combater gigantes

As festividades continuam. Este é um tempo que exige uma apurada capacidade de gestão. Um jantar aqui, um almoço acolá, outro jantar noutro lado, ainda o dia 26 com a visita a… É o que dá a multiplicação da espécie, que, com casamentos, divórcios, nascimentos, recasamentos e sei eu lá mais o quê, torna tudo um estranho exercício de cálculo. O Natal é, deste modo, uma espécie de Quaresma, mas no lugar do jejum – quem jejua na Quaresma? – tem por penitência o seu contrário, a possibilidade de engordar com rapidez. Ontem, mantive-me frugal e espero fazer o mesmo nos desafios que ainda tenho de enfrentar. Não é tarefa fácil, os moinhos são mesmo gigantes, mas tenho-me treinado na escola de D. Quixote, embora não passe de um pobre Sancho Pança. Espanta-me sempre como é que a frugalidade do presépio deu origem a estes exercícios pantagruélicos, mas talvez nunca tenhamos deixado de ser pagãos, descendentes dos que se banqueteavam em Atenas ou em Roma. Agora, vou preparar-me para enfrentar os gigantes.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Fidelidades

Mais um Natal quase passado. Foi o que me disse hoje de manhã o padre Lodo, durante o longo telefonema. Desde que nos conhecemos, nunca deixou de ligar na véspera de Natal. Fui acompanhando no decursos dos anos – ou das décadas, para ser mais fiel à realidade – o estado de espírito natalício deste meu amigo. Foi-se transformando, mas, no essencial, manteve-se idêntico. Fiz-lho notar e ele respondeu-me que o Lampedusa tinha razão, que é preciso que alguma coisa mude para que tudo permaneça. A formulação não é bem essa, acrescentou, mas a que fiz serve para descrever a realidade. Mantive-me fiel, continuou, ao que era no início, mas desconfio que nisso não tenho qualquer mérito. Todos são fiéis a si próprios, mesmo que não dêem por isso. Aquele que trai aquilo em que acreditou não deixou de ser fiel a si, pois nele haveria já um não crer. Parece-me, disse-lhe, um discurso herético. Há um determinismo incompatível com o livre-arbítrio, o que contraria a doutrina da Igreja. Talvez, talvez, respondeu, mas é plausível que a omnisciência divina ou a legislação da natureza ainda sejam compatíveis com essa estranha ideia de que possuímos liberdade de escolha. A metafísica, porém, cansou-me há muito. Não era, aliás, nem o meu forte, nem o meu interesse, fazia parte da paisagem onde um jesuíta tinha de viver. A paisagem, porém, transbordava de assuntos, muitos dos quais me interessavam mais do que esse. Depois, mudou de conversa e informou-me que Castorp viria a Lisboa com a mulher e que esperava que nos encontrássemos todos. Sem dúvida, respondi. Antes de desligar, perguntou-me se já tinha comprado os presentes todos ou se tinha guardado algum para a última hora. Respondi-lhe que a vida me tornara previdente. Desejei-lhe um feliz Natal e ele respondeu-me com um santo Natal. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Encontros inesperados

Não só o Outono o foi, como o próprio Inverno chegou invernoso e, segundo vi, promete continuar. Num dos livros que tenho na secretária, encontrei um cartão de um restaurante lisboeta na moda, perto, muito perto, do S. Carlos, e um talão de um depósito em caixa multibanco. Curioso, fui ver a data, 11 de Março de 2002. Um documento histórico. Terei achado que servia para marcar a página de um ensaio sobre espinhosas questões da mais espinhosa de todas as disciplinas que o espírito do homem criou. Do autor, tão espinhoso ele é, omito o nome, pois são lendárias as legiões de seguidores e de detractores. Talvez a personagem não merecesse nem tantos sequazes nem tantos depreciadores, mas como em tudo, também nesse território minado a que alguém um dia terá chamado a rainha das ciências, os seres humanos gostam de se alinhar e, depois de postos na linha, logo começam a marchar. De resto, não faço ideia por que motivo, num mesmo livro, se encontra um cartão recente e um talão antigo, de uma outra encarnação. A vida, porém, é feita destes mistérios. Antes que acabe de escrever, vou arrumar ambos no sítio onde estavam, para que alguém daqui a décadas os encontre. O talão encaixa na perfeição em La question sur l’essence de l’être e o cartão do belo restaurante vai dormir em Sur la grammaire et l’étymologie du mot «être». Que tenham bons sonhos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Movimentos pendulares

Distraído e alienado de tudo o que é essencial, não dei pelo solstício de Inverno. Foi ontem, pelas 21horas e 48 minutos. Estamos na estação mais fria e não me despedi do Outono. Estas coisas são imperdoáveis. Bem faziam os povos antigos que não se esqueciam de assinalar estas efemérides, não fosse o diabo tecê-las. Agora, os dias começam a crescer e as noites a diminuir, pois o ano é regulado por um movimento pendular. Este movimento traz com ele uma mensagem. Por mais que as coisas mudem elas hão-de voltar ao seu lugar. E que lugar é este? Cada um dos pontos que o pêndulo no seu ir e vir vai ocupando. Isso é uma visão muito conservadora, diz um dos homúnculos que habita na caverna da minha consciência, pois não nos podemos banhar duas vezes na mesma água do mesmo rio, acrescentou, alardeando erudição e uma despropositada tendência heraclitiana. Poderia ter-lhe respondido que o fluxo contínuo e a mudança incansável de tudo o que existe não passam de uma ilusão sensorial e de um enviesamento do espírito seduzido pelos dados sensoriais. Evitei, porém, entrar em discussão e mandei-o regressar ao lugar de onde saíra. Não temos um dia luminoso de Inverno, mas uma tristeza sombria a pairar sobre a pequena cidade onde arrasto o peso da existência. O Natal aproxima-se, já que os dias, as horas e até os instantes não sabem fazer outra coisa senão passar, presos a uma ânsia de voltar ao lugar de onde partiram.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Vanitas vanitatum

Chegou a noite com o seu silêncio. A praceta está vazia, o café fechado, os alunos do Centro de Línguas foram para casa. Agora, é o tempo das sombras, a hora dos murmúrios, o instante em que a realidade toma outra direcção, mais secreta, grávida de enigmas. Mais logo terei de sair, para um daqueles jantares que a época natalícia arrasta, como se as pessoas que durante um ano inteiro praticamente se ignoram fossem uma grande família, partilhassem entre si alguma coisa de essencial. Durante muito tempo resisti a este tipo de festividades, mas com o passar dos anos fui cedendo ao espírito da época ou ao amolecimento dos instintos. Bem gostaria de ter aventuras para contar, mas nada me sucedeu digno de nota, a não ser ter caído ao subir umas escadas. Tropecei num degrau e lá fui com joelhos e mãos ao chão. Descobri que ainda dou demasiada importância à minha pessoa, pois antes de me preocupar se me doía alguma coisa, fui ver se ninguém tinha assistido a esta cena humilhante. Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Tranquilizado, dei atenção aos joelhos, doíam, mas pouco, coisa que logo passou. Tenho de começar a subir escadas amparado ao corrimão. Estes dias, diga-se, têm sido dados a moléstias. Consegui combinar uma faringite com uma conjuntivite. Tive de fazer a via sacra dos consultórios. Um para mostrar os olhos, outro para deixar que me espreitassem a garganta. Agora que penso nisso, as duas médicas que me viram ainda são menos novas do que eu. Uma delas pouco usa o computador e prefere escrever com uma caneta de tinta permanente, uma Montblanc. Passa uma receita ou faz uma requisição de análises ou exames manualmente. Depois, usa uma folha branca como mata-borrão, já que os autênticos mata-borrões desapareceram. Devem ter sido descontinuados. Eu que comecei a escrever no tempo dos mata-borrões também tenho uma Montblanc, mas não sei para que me serve. Escrevo em teclados, reais ou virtuais, e quando tenho de escrever manualmente, coisa rara, uso o que estiver à mão. Não tenho nostalgia do arranhar, mesmo que suave e delicado, de um aparo sobre o papel.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Fidelidades

Hoje, o padre Lodovico, no seu habitual telefonema de domingo, estava inclinado para a vexata quaestio de quem será o campeão do mundo de futebol. Não sei, confessou-me, se como europeu devo apoiar a França, se devo ser solidário com o Papa e torcer pela Argentina. Recordei-lhe que o futebol não era uma coisa pela qual tivesse interesse. Eu seu, eu sei, mas eu, com a idade, fiquei pior, tenho uma alma de tifoso, que tenho dominado a custo e com algumas penitências, acredite. O meu problema, continuou, é que as selecções de que seria apoiante natural tiveram o destino que tiveram. Isso parece-me uma tautologia, disse-lhe. Tautologia ou não, a verdade é que a Itália nem entrou em combate e Portugal teve um novo Alcácer Quibir. Sim, respondi, este último caso é preocupante, não venham de novo os Filipes e, agora, um Filipe está no trono de Espanha. Não brinque, disse em tom de admoestação. O problema não será assim tão difícil, sugeri. Depende do grau de fidelidade. Se a maior fidelidade, como membro da Companhia, for ao Papa, deverá apoiar a Argentina. Se o ser europeu se sobrepõe a ser papista, então deverá apoiar a França. Não gosto desse termo papista, mas esse é o meu problema. Sou fiel às duas coisas. Nesse caso, alvitrei, deve acompanhar o jogo dilacerado. Será uma forma de expiação.

sábado, 17 de dezembro de 2022

A ordem das coisas

Já é noite há muito e ainda não li ou vi quaisquer notícias. Desconfio que não terei perdido nada de decisivo, pois as coisas decisivas necessitam de muitos dias e, apesar dessa constância na sua geração, a imprensa raramente – e talvez esteja a ser generoso – dá por elas. As notícias são uma forma de cegueira. Cultivei-a durante décadas, rodeando-me de jornais, e ainda hoje não me furto a ser cego, mas já não sinto necessidade de estar informado sobre o estado do mundo. Outrora, a informação captava com alguma sobriedade a espuma dos dias, hoje desinteressou-se da espuma e aterrou nos sentimentos que a espuma provoca. Não há nada mais penoso do que a exposição pública das dores que atingem os mortais. Chega, porém, ao reino da obscenidade a exploração dos sentimentos de revolta e das emoções nascidas em acontecimentos mais ou menos terríveis. Estive com os meus netos e isso encheu-me o dia. Um interessado em dinossauros, outra na viagem de finalistas – meu Deus, viagem de finalistas do 9.º ano – a Paris, e a outra mais silenciosa, mergulhada no tik-tok, mas exuberante com a nota que vai ter a uma certa disciplina. São estas notícias que agora me preenchem a vida. O mundo não deixa de estar aí, mas cada vez pertenço menos a este mundo. É a ordem das coisas.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Luta de classes

Quase noite. É nisto que dá a passagem do tempo. Caso não passasse, não haveria lugar para este tipo de constatações. A chuva amainou, tornou-se um animal dócil, contrariamente à minha faringe que ainda não dobrou a cerviz aos ataques que tem sofrido. Como é que nós, desventurados humanos, queremos afirmar a nossa autonomia de seres que dão a si mesmo a sua própria lei, como defendia aquele senhor que nasceu, viveu e morreu em Konigsberg, se nem a uma simples faringe conseguimos impor a ordem, deixando que ela deambule feérica por aí e se entregue a inflamações despropositadas? Uma completa autonomia moral exigiria um domínio total do corpo, mas este recusa-se e, de múltiplas maneiras sempre a abarrotar das mais tenazes insídias, entrega-se a perigosos devaneios, a que nós, sempre com a necessidade de a tudo dar nome para a tudo catalogar, chamamos prazer e dor. É possível que exista mesmo um prazer específico de organizar catálogos e de se entregar a taxinomias. Pôr por classes terá um dia fascinado algum dos nossos antepassados que fez disso uma adicção e que transmitiu o vício à descendência. O que acontece é que outros vícios do corpo acabam por desmantelar o edifício classificatório, mas como a inclinação se tornou genética, haverá sempre alguém disposto a empreender a reconstrução dos sistemas classificatórios. Imagino que a luta de classes seja esse esforço para classificar e reclassificar as coisas que caem no horizonte humano. Em resumo, um problema de taxinomias. Ainda posso dizer quase noite. Eis uma frase capturada por essa estranha classe de palavras que são os advérbios, que se recusam a variar em género e número. O facto de não variarem em género significará que são assexuados ou que contêm em si os dois sexos? Como se vê, existem problemas prementes e não há quem lhes preste atenção.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Redenção

Irrita-me o rato. Eis um mau começo, uma aliteração em texto prosaico. A verdade, todavia, é essa . O rato decidiu, sem me pedir consentimento, pôr de lado a função de scroll ou, para estar mais de acordo com os tempos actuais, descontinuou-a. E se há coisa útil para percorrer as páginas num monitor é a dita função. Com isto se prova que a autonomia humana está constantemente ameaçada pela autonomia dos objectos que os próprios homens criam para aumentar a sua autonomia. Os homens inventam-nos confiados na sua obediência e passividade de meras coisas, mas logo descobrem que afinal não são coisas, mas entes dotados de vontade. Frustrados, os homens desculpam-se catalogando a recusa em funcionar como avaria ou acidente. Tudo isto por causa do scroll do rato. Tenho de ir comprar outro e despedir este. Uma das odes de Horácio começa assim: Nem sempre das nuvens corre a chuva / sobre os campos agrestes, nem continuamente / inconstantes tempestades o Mar Cáspio / fustigam, nem, na costa arménia, // amigo Válgio, se acumula todos os meses / o imóvel gelo, e nem sempre os carvalhais de Gargano / pelos Áquilos são assolados, /nem o freixo perde as suas folhas. Ora, o nem sempre com que o poema abre traz com ele uma promessa, pois nem sempre o mal reinará. Toda a promessa, porém, contém uma ameaça, pois nem sempre ao bem sucederá o bem. Como certos medicamentos úteis, também o bem sofre de descontinuações. Não consigo scrollar no texto, o que não será muito grave, considerando as inúmeras coisas que não consigo fazer. Redime-me o dia as inconstantes tempestades, o imóvel gelo, os carvalhais de Gargano. Também dessas coisas pode nascer a redenção.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Bric-à-brac

O barulho era tanto que abri a janela do escritório. Havia uma rudeza desenfreada na chuva que caía. Fiquei longos minutos a observar a queda da água e a escutar o som do embate com as pedras da calçada. As acácias estão completamente despidas. Indiferentes, recebem a dádiva celeste. O pequeno bosque da escola ao lado é um maciço sombrio. O dia passou entre ocupações motivadas pela estrita necessidade e a escuta da música pluvial que tem inundado as horas. Abro ao acaso um livro que tenho na secretária e leio Deixe tranquilo o seu bric-à-brac de esteta, e seja honesto, disse ele com frieza. Não foi bem isto que li, mas a versão francesa original. Talvez este narrador, que por falta de assunto fala do estado do tempo, seja apenas movido pela desonestidade de um esteta entregue ao divertissement que o bric-à-brac pseudo-intelectual com que se entretém proporciona. É uma forma de consolo, como ensina Blaise Pascal, para a dificuldade de ser si mesmo. Também é verdade que cada um encontra a salvação onde pode. Dói-me a garganta, a velha faringite está de volta, embora, nos dias que correm, se pense logo noutras causas. A chuva parou, enquanto a noite avança e consolida posições. Na rua, uma criança chora.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Paixões naturais

Tanta seca acabou por trazer chuvas torrenciais, como se a natureza fosse habitada por um impulso para o equilíbrio. Contudo, adoptou uma estranha estratégia para alcançar esse fim. Nasce não da contínua moderação dos estados do tempo, mas de violentas e extremas paixões. À paixão do deserto opõe a paixão do dilúvio. É possível que se tenha convertido aos ideais humanos. Durante muito tempo, as paixões foram vistas com desconfiança, como uma incapacidade de temperança e moderação, uma falta de liberdade perante aquilo que tenta corpo e alma. A partir de certa altura, as grandes paixões foram exaltadas como um estado existencial não apenas desejável, mas como um dever para que se seja um ser humano real. Esta forma de julgar as coisas esqueceu a longínqua lição que ensinava ser a paixão um estado de passividade patológica. A natureza, também esquecida da proverbial sageza que lhe é atribuída, deixou-se envolver pela patologia das paixões e oscila entre extremos violentos. Agora, um dilúvio; amanhã, uma seca. Tem este desarranjo hormonal uma vantagem. Fornece-me, sem fim à vista, motivos para ocupar estes escritos. Eu que ando sempre à míngua de assunto, quer chova, quer faça sol, agradeço.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Traduções cuidadas

Há uns tempos, comprei duas traduções de obras de Alphonse Lamartine. Recordo a motivação dessa compra, mas não vem ao caso agora. Tratam-se dos romances Cláudio e Fior D’Alisa. Em nenhum deles se consegue saber a data da edição portuguesa, tão pouca a da impressão. Os livros têm os caracteres tão diminutos que não os conseguirei já ler, pelo menos nestas edições. Foram publicados pela Livraria Lello. A primeira ainda pela Livraria Chadron, de Lélo & Irmão, Lda. Há algumas coisas curiosas.  Por exemplo, houve uma evolução na grafia da palavra Lélo. Perdeu o acento gráfico, mas ganhou um ‘l’. O tempo apagou o expediente. A cidade de publicação foi o Pôrto e não o actual Porto. Como se vê, tudo muda. O mais interessante, porém, é a indicação, numa das páginas iniciais, de Tradução Cuidada. Deixa supor que, naquele tempo, as traduções estavam longe de serem cuidadas. Não é isso, porém, o mais notável. O que mais chama a atenção é o que não está lá, o nome do tradutor. Sabemos que seria cuidadoso, mas não se sabe quem foi a alma que prodigalizou tanto cuidado em verter o romantismo de Lamartine para português. Podia ter escrito sobre outra coisa, mas não me ocorreu mais nenhuma que se adequasse a este domingo de Outono, quase Inverno. Continuo a ouvir as Variações Goldberg. Alguma razão hei-de ter, mas não imagino qual. A noite chegou e amanhã a realidade bater-me-á à porta, com a sua fúria cantante, trazendo o escândalo dos dias úteis.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Uma história imaginária

Diante de mim, tenho a Crítica III, de João Gaspar Simões. Reúne um conjunto amplo de críticas a obras (romances portugueses) publicadas entre 1942 e 1964. É curioso olhar o índice, organizado por romancista. Muitos daqueles nomes são, hoje em dia, completamente desconhecidos. Há, claro, escritores que ainda são lidos ou, pelos menos, reconhecidos como antigos homens de letras. Encontramos grandes nome como Vitorino Nemésio, Carlos de Oliveira, José Régio, Agustina Bessa Luís, José Cardoso Pires ou Vergílio Ferreira. Constam também Joaquim Paço d’Arcos, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira. Estes nomes ainda dizem alguma coisa a quem se interesse pelas letras pátrias, digamos assim. Quantas pessoas, porém, terão ouvido falar de Francisco Costa, Manuel do Nascimento, Leão Penedo, Aleixo Ribeiro, Faure da Rosa, Judith Navarro, Domingos Monteiro, Afonso Ribeiro, Maria Archer, Maria da Graça Azambuja (na verdade, Maria da Graça Freire, irmã de Natércia Freire) e de mais uns quantos nomes? Todos eles terão tido alguma importância, pelo menos aquela que terá levado um crítico como Gaspar Simões – na altura personagem eminente na crítica nacional – a dedicar-lhes a sua atenção, mesmo que negativa. De todos estes desconhecidos tenho vindo a comprar as obras que vou apanhando com a esperança de as ir lendo, embora desconfie que isso não será boa política, tendo em conta tanta coisa extraordinária que ainda não li. Gostaria, porém, de fazer uma história de Portugal desde o século XIX até à actualidade. Não uma história de historiador, nem uma história da literatura, mas uma história do Portugal imaginado na prosa dos seus ficcionistas. Uma história, claro, para consumo pessoal. Como se percebe, isto são devaneios de sábado à tarde, quando a tarde já se entregou nas ondas negras do anoitecer. Daqui a pouco estará aqui o meu neto. Quando a porta se abrir, estas fantasias cessarão e dedicar-me-ei à realidade de brincar com ele.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Relações físicas

Ao entrar, há pouco, no escritório, senti uma pequena alegria. O sol, no seu caminho para o ocaso, ainda brilhava com veemência e inundava o espaço onde me sento. Entrava por uma janela que, por norma, mantenho fechada, mas que um súbito acaso me levou a abri-la ainda antes da hora de almoço. Naquele instante, senti o que há de benfazejo na vida e no mundo, apesar de ser apenas um sol outonal. Agora, enquanto escrevo, tudo mudou. O crepúsculo aproxima-se com rapidez e não tarda a noite estará cerrada sobre a cidade. Vou esquecendo muitas coisas a que, noutros tempos, terei dado importância, mas não são poucas as vezes que me lembro de como o sol incidia na brancura das paredes da casa onde nasci, ou como o vento soprava diante da escola primária, ou como a água corria apressada rua abaixo, e eu a olhava da janela de uma casa onde passei parte da minha vida. Também sou revisitado por aquelas noites de Verão em que o vento vindo da serra domesticava o tropel do calor. São múltiplas as formas como nos relacionamos com a terra e o céu. Tratam-se de relações físicas, onde o corpo com os seus sentidos desempenha o papel principal. Mesmo quando, numa noite transparente e sem poluição luminosa, ficava a contemplar, com demora, aquilo que os olhos captavam do universo e o enigma do que via se transformava numa emoção contida, era ainda a relação do corpo com esse universo que era o fundamento dos pensamentos que então me assaltavam. Nem o infinito e o sem medida escapam ao corpo para se tornarem motivo puramente espiritual. É na finitude e na limitada medida do corpo físico que encontro o ponto de partida para o desmedido e para o que nunca terá fim.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Meditações

S. Pedro, o CEO da empresa que gere o clima, está muito volúvel. Há instantes, chovia por aqui torrencialmente. Agora, um sol radioso. Nada garante, porém, que essa luz clara e vibrante dure mais de uns minutos. Umas compras inadiáveis levaram-me à rua. A cidade pareceu-me, apesar de lavada, sombria. Quando digo cidade sinto sempre uma certa estranheza. Em tempos, uma tradição ligada à fundação da nacionalidade, havia uma divisão clara, caso o fosse, entre cidades, vilas e aldeias. Interrupção do profundo pensamento. Tornou a chover torrencialmente. Continuação. Agora, as cidades cresceram como cogumelos. Talvez os habitantes de um burgo queiram ser cidadãos e não vilões. Não percebem que é muito mais interessante ser vilão do que cidadão. Um cidadão só tem um plural, cidadãos. Um vilão, todavia, tem três plurais possíveis: vilães, vilãos e vilões. Por aqui, somos todos uns vilães, mas fingimos ser cidadãos. Estas promoções a cidade enternecem os habitantes e excitam ao paroxismo os dirigentes autárquicos. Alguns grandes aglomerados populacionais, porém, insistem em ser apenas vilas e com isso mostram o seu toque aristocrático. Pensarão os vilãos daqueles sítios: não há cão nem gato que não seja cidade, nós mantemo-nos fiéis à nossa memória histórica. O sol brilha de novo. Enfim, talvez seja caso para marcar consulta num psicanalista para S. Pedro. Haverá, neste comportamento, qualquer coisa ligada a um recalcamento na infância. Sim, porque os santos também tiveram infância e terão sofrido do complexo de Édipo. Depois de dois dias de descanso, o narrador não encontrou nada de útil para discorrer. Agora, vou fruir o feriado.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Vícios e virtudes

Desiludo-me sempre, eu que gostava de ser conciso. Juro que vou escrever meia dúzia de linhas, mas devo sofrer de alguma variante pérfida de logomania. Quanto menos tenho para dizer, mais as palavras se arregimentam para formar frases. A contenção é uma virtude, mas, pelos vistos, não a cultivo. Também é verdade que a virtude tem má imprensa e pior fama. Ser-se virtuoso era um ideal ético que, em aparência, regulava a vida. Hoje, toda a gente prima pela autenticidade e manda para o diabo as aparências. Com estas foi-se a virtude e restam, para ostentar perante o público, os vícios, como se fossem virtuosos. A logomania expande-se, como se vê. Entrego-me ao sestro das palavras, enquanto deveria cultivar a virtude do silêncio, talvez mesmo tornar-me cartuxo e deixar a vida deslizar no grande silêncio. Um dos homúnculos que habita em mim fez questão de me recordar que não tenho idade para entrar para a Cartuxa e quando a tinha não estava preocupado com o silêncio, que é coisa de velho, sublinhou, mas com coisas bem sonoras. Fiz-lhe um gesto indecoroso e ele fugiu para a caverna onde habita. Começou a semana e não sei o que dizer dela, nem sei se tenho poder para o fazer. Sigo, então, o conselho de Wittgenstein: Sobre o que não se pode falar, deve-se calar. Eis o silêncio como imperativo.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Pura quietação

Um domingo sem história, mas talvez este domingo não se distinga de todos os dias da semana, desta e de todas as outras. A história, seja grafada com ou sem capitular, é coisa humana, demasiado humana. Quando se diz um dia histórico estamos a acrescentar um qualificativo postiço a um evento natural. Os dias limitam-se ao fenómeno do nosso pobre planeta rodar sobre si mesmo. Sucedem-se uns aos outros. Quanto aos fenómenos históricos são o fruto de uma doença que atingiu a espécie humana e que a leva a não estar quieta. Em resumo, este domingo foi para mim pura quietude. Suspensão de toda a actividade, a não ser aquela estritamente necessária. Sempre podia ter aproveitado para fazer algumas pequenas arrumações, mas nem isso. Também a mente se manteve em pura quietação. Nada de pensar, nem de me deixar levar pelas fantasias com que a imaginação costuma enlamear a clareza e distinção dos raciocínios, infectando-os com o óxido dos delírios e das utopias. Há dias, tive de participar numa espécie de mesa-redonda sobre um assunto que não vem ao caso. Um dos participantes estava entusiasmadíssimo com o dito assunto, pois ele representava a presença da utopia. Já não tenho idade para este tipo de coisas e calei-me. Sempre que os homens se lembram de realizar utopias, aquilo que obtêm é a mais hedionda distopia. Um dia o padre Lodo, sabendo-me um adversário das utopias sociais e políticas, aprovou a minha posição, acrescentando-lhe uma motivação teológica que nunca me tinha ocorrido. Todo o pensamento utópico, com a sua desterritorialização, é uma revolta contra Deus, uma fuga da terra tal como ela é, o lugar de exílio a que fomos condenados pela precipitação dos pais da nossa espécie. Eu ri-me, confessei que não era essa a razão das minhas preocupações e disse-lhe que não deixava de ser interessante partir-se de sítios diferentes e chegar ao mesmo lugar. Todos os caminhos vão dar a Roma, respondeu-me ele. Na verdade, nunca deixa de ser jesuíta.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Um dia perdido

Ainda há coisas que correm bem. Um problema com persianas. Ocorreu-me ligar para a empresa de montagem e manutenção. Estava aberta. Expus o caso e disseram-me que tinham homens na rua. Já me iriam contactar. Assim foi. Daí a pouco apareceu um funcionário – um imigrante brasileiro – e ocupou parte substancial da manhã a consertar duas persianas e a afinar mais uma meia dúzia. Agora tudo sobe e desce, desliza nas calhas e, fundamentalmente, não há persiana que não trave quando deve, coisa que nem todos os seres humanos fazem. Uma manhã perdida, mas ganha. A tarde foi pior, pois tive de enfrentar uma coisa sobre a qual não tenho poder, mas que acabo por ter alguma responsabilidade moral, digamos assim. Ter responsabilidade sem ter o poder de decidir é uma situação desagradável, mas a realidade é feita de situações desagradáveis. Tal como a manhã, também a parte luminosa da tarde foi perdida, mas o sucesso foi muito menor que o da manhã. Continuo a ler as cartas do marquês de Custine, da sua visita à Rússia em 1839. Passados quase dois séculos, as coisas não serão substancialmente diferentes. Também é plausível pensar que entre o Portugal de 1839 e o de hoje haverá grandes continuidades. As coisas são muito mais lentas do que o desejo dos reformadores do mundo. Escurece. Oiço as Variações Goldberg. Não, não é o Glenn Gould, mas o Pedro Burmester.  Logo, irei ouvir o Messias, de Händel. Talvez o dia não seja completamente perdido. Veremos.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dedicatórias e vozeios

Abro um livro e encontro de imediato uma dedicatória da autora a uma prezada amiga, seguindo-se o nome desta. O texto data de 10 de Abril de 1944. A escrita é espantosa, pois completamente incompreensível, com excepção de raras palavras. Estas mais se adivinham do que se lêem. É uma escrita com letras enormes, inclinadas para a frente, combinando arestas vincadas e ameaçadoras com enormes arcos, como se certas letras sofressem de uma gravidez adiantada. Pouco consegui perceber, mas a pessoa objecto da dedicação não seria das relações próximas da romancista. Se o fosse, a prezada amiga seria querida amiga. Se ainda fosse mais próxima constaria apenas o nome. As palavras nunca deixam de trazer com elas os marcos com que se assinalam as distâncias. Ora as distâncias entre as pessoas pertencem a uma ordem subtil que vai muito para além das distâncias sociais. A noite já caiu, mas na praceta ainda há um vozear adolescente que, com corridas e gritos, enfrenta o frio. Sim, é o vozear adolescente que enfrenta o frio e não os adolescentes. Estes são apenas o suporte daquele vozear, a possibilidade escolhida para ele se revelar. Esperam-me ainda algumas actividades. Há dias que nem a noite lhes põe fim.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Chegou Dezembro

Chegámos ao último mês do ano e ao dia da Restauração. É pena que o dia em que nos livrámos dos Filipes tenha uma designação que o pode confundir como uma não pouco útil actividade económica, onde, em vez de nos livrarmos desses filipes indesejados que são os quilos, somos ajudados a acumulá-los. Aqui, não tendo sido possível fazê-lo no primeiro domingo de Advento, é dia de montagem dos enfeites de Natal. Até aos Reis, a tradição é cumprida com rigor. Além disso é exposta uma pequena colecção, não deste narrador, pouco propenso a coleccionar, de pequenos presépios, verdadeiras miniaturas, quase sempre reduzidos à Sagrada Família. Coisa sem valor, mas que, por graça, tem vindo a crescer. Também, hoje, é o primeiro dia em que se ouve o Ensemble Alba, no CD It barn er foed - Old Yuletide Songs from Scandinavia. Um álbum com velhas canções escandinavas de Natal, comprado num museu da Dinamarca, há uns bons anos. Entrou na tradição familiar e só é escutado nesta quadra. Cada casa tem as suas idiossincrasias. De manhã, tive de sair e estava um belo dia de Inverno, apesar de ainda estarmos no Outono. O frio da manhã, já tardia, combinava-se com um sol vigoroso. O orvalho em plantas e relvas resplandecia e a Terra, nessa hora, estava banhada na mais pura perfeição, como se tivesse sido encantada. Caminhei devagar para o meu destino, sentindo o ar frio nas narinas e vendo o sol a cintilar nos vidros dos automóveis. Depois, tudo passou, o feitiço foi quebrado e o tempo voltou a correr, ele que tinha sido suspenso. Já chegou a noite.