Não cozinhar pode ser uma virtude, mesmo num tempo em que o
saber fazer alcance elevada cotação no mercado em que todos vivemos. Foi o que
me ocorreu quando entrei num takeaway
e me vi rodeado de gente que me fazia passar pela ilusão de ser novo. E
enquanto as empregadas, com zelo e bonomia, iam despachando encomendas e
satisfazendo caprichos, eu sentia que os que me rodeavam, caso tiver sorte, são
o meu futuro. Quando saí para a ira ventosa da rua, ri-me com a minha
presunção. Não, não são o meu futuro. São o meu presente. Fechei a porta do
carro, pu-lo a trabalhar e o rádio devolveu-me uma oratória de Händel, O
Messias, precisamente. Bem preciso de quem me salve, pensei ao desfazer uma
curva em direcção a casa. A chuva caía lúgubre e hesitante. Mais logo, talvez o
sol rompa a muralha das nuvens. O melhor mesmo, para não cair em metáforas
mortas, seria não pensar, pensei.
sábado, 7 de abril de 2018
sexta-feira, 6 de abril de 2018
Elegia
Estava a ver a chuva e a pensar na cadência de um poema. O
segredo da poesia estará em fazer que o poema encarne o ritmo da língua. Então
ele descerá sobre o espírito como a chuva sobre a terra, umas vezes leve e brando;
outras, exaltado ou melancólico. Hoje, a chuva é uma elegia, cai triste,
dolente, dolorosa, e as pessoas olham-na com compaixão e deixam escapar do rosto
o desejo que ela parta. A cidade arrasta-se no cansaço de uma Primavera ainda
inclinada para o mistério do Inverno. Ah se o ritmo do dia fosse outonal, ainda
seria possível crer no paraíso, segredei a mim mesmo, enquanto voltava costas
ao mundo.
quinta-feira, 5 de abril de 2018
Fidelidade
Ontem, ao passar pela Lagoa de Óbidos, lembrei-me das dores que
atormentaram Agamémnon, ao partir para guerra, tão ansioso do sangue dos
troianos e do prazer da vingança. A certa altura, vi umas velas de windsurf
empurradas sem furor pela brisa vinda do mar, enquanto alguns guerreiros, com a
sabedoria dos juncos, se equilibravam sobre as pranchas. Há muito que não via
gente a praticar windsurf, pensei com tristeza ao olhar o descolorido daquelas
velas. Depois, deu-se um curto-circuito e perguntei-me o que sucederia se o
vento desaparecesse e uma acalmia sem fim caísse sobre a lagoa. Haveria uma
Ifigénia para sacrificar por um Agamémnon exaltado? O carro rolava devagar e
dócil como as asas de uma borboleta ao sol da manhã. Ao perder o bando de
velejadores de vista, logo me esqueci de Ifigénia, de Agamémnon e do cruel
destino que foi o deles. A fidelidade é um exercício difícil, dissertei ao
recordar-me há pouco de tudo isso. O melhor será pensar noutra coisa.
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Salvação
Ao fundo, os olhos param nas dunas de Salir. Depois rodam,
rodam e encontram a entrada da baía. O mar, para além do pórtico, está exaltado,
mas tudo na praia permanece tranquilo. Por vezes, vou a S. Martinho do Porto,
nos dias em que suspeito haver por lá pouca gente, e deixo-me cercar pela
lentidão com que as pessoas passeiam pela marginal. Olho as águas paradas, o
balançar quase imperceptível dos barcos, e deixo que o sol caia sobre mim. Ali,
enquanto caminho, posso quase conceber uma teoria da perfeição ou descobrir que
toda a virtude reside na imobilidade. Um pai e uma mãe, com duas crianças e um
cão, talvez alemães, passam por mim. O cão ladra, mas a família segue em
silêncio, ele sorumbático e ela espinafrada, como diria a minha neta mais nova.
E eu silencio-me dentro do silêncio deles. Espero um milagre qualquer, mas ele
não chega. Nunca sei qual é o caminho da salvação.
terça-feira, 3 de abril de 2018
Dias assim
Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan
Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que
não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas
no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se
no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana
santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas
pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de
mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos.
Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas,
felizmente.
segunda-feira, 2 de abril de 2018
Abril
O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e
submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do
longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o
símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança
nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de
calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a
hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de
passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não
soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta
entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça
chover. Abril é sempre um árduo exercício.
domingo, 1 de abril de 2018
Na rua
Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam
como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por
ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica
que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de
anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez
as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à
mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças,
estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro,
o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa
diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia
levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a
noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo
se enrodilhou na ratoeira do silêncio.
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