quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sem parar

Há qualquer coisa de sinistro no desfiar do tempo. Novembro, tal como veio, assim se vai. Por certo, mais frio, como se o seu corpo fosse já um corpo morto, à espera das exéquias fúnebres e posterior forno crematório. Eis um começo tétrico, mas não se pode começar sempre com ambientes galhofeiros e folgazões. Eis duas palavras que estão longe de me agradar, mas assim como se deve variar o ambiente, também se recomenda que se diversifique o léxico, usando aquilo de que se gosta e aquilo de que não se gosta, para que também, ao nível estético, haja uma diversificação. O que caiu na trama da invariância há alguns dias foi o crepúsculo, esse momento em que, de súbito, o dia se precipita nos braços da noite e, no terrível amplexo que então acontece, o másculo dia seja devorado pela feminil noite. Sobre estas imagens não faço comentários e omito as razões para tal renúncia. Resta comentar o crepúsculo que se tornou invariante. O traço mais marcante é ser lacrimoso, a que se adiciona um aceno melancólico e um trejeito onde, no tremor sublinhado pelo vento, se descobre o temor da morte próxima. Morre o dia, morre Novembro e o ano prepara já a hora em que entregará a alma ao criador. Como se sabe, também os anos têm alma e, por isso, são diferentes. O criador dos anos tem uma enorme colecção de almas. Colecciona-as para se comprazer na eternidade, lembrando-se, ao vê-las, daquele tempo em que existia tempo. A tonalidade amarelada da iluminação pública desenha fantasmas pelas ruas. Uma sombra solitária passa lá em baixo, enquanto se ouve o latir ansioso de um cão abandonado. Os segundos sucedem-se sem parar.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Em nenhures

Fez-se noite sem que tenha dado por isso. Perdi o crepúsculo, que é sempre uma hora muito poética. Não se sabe bem a razão. Talvez, imagino, porque a poesia seja um discurso crepuscular, ali na fronteira entre a luz e as trevas. Outra possível razão será a de haver poetas que gostam de se apresentar como seres crepusculares, gente que se imagina a deixar a luz da razão para entrar nas trevas do sentimento. Uma outra poderá residir no sentimento poético de se estar numa época de declínio. Aqui, de forma decidida, entramos no reino da metáfora. Parece que a minha neta mais nova está a ser massacrada, mas ainda não percebi se é com fracções, com os verbos être e avoir ou com um qualquer facto histórico, com as suas ominosas causas e as suas tenebrosas consequências. É o que faz podermos conversar online. Da conversa passa-se rapidamente para as lições. Não me parece muito saudável, se me ponho na pele da pequena. Ela resiste, mas depois cede e acaba por ficar agradecida. Perante mim está deitado na secretária um livro de Cormac McCarthy, A Travessia. Na capa, tem uma cruz. Fico a pensar que o autor tem uma certa inclinação para a deslocação. Um outro romance dele, terrível e belo, portanto, às portas do sublime, tem o nome de A Estrada. A mim, porém, o que me fascina são os caminhos que não levam a lado nenhum. Caminhos que levam a nenhures. A um não lugar. Imagino, agora, que o espaço possa não existir, que seja apenas uma ilusão que certas espécies animais têm para poderem persistir na vida. Caso isso seja verdade, então estamos constantemente em nenhures, mas, é preciso levar o raciocínio às suas últimas consequências, o verbo estar é um equívoco, pois não existe qualquer estância onde se possa estar. Em nenhures não há estradas nem travessias, talvez crepúsculos, fracções, verbos franceses e acontecimentos históricos que ocorreram em nenhures, isto é, não ocorreram. Acho que preciso de fazer exercício físico para aclarar as ideias.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Do colesterol

A coisa é uma mixórdia indigna, vinda daquele país de onde não vem nem bom vento, nem bom casamento. O vento já experimentei e não era, de facto, grande coisa. Quanto ao casamento, não sei, pois nunca me casei com alguém vindo daqueles lados. Estava a referir-me, porém, a uma coisa que tem o condão, julgo, de contribuir para o aumento do colesterol, do mau, diga-se, pois consta que também há um bom. Estando sozinho e na iminência de ter de comer aquilo que cozinhasse tomei a decisão de ir almoçar ao bar do outro lado da rua. Seja o que for que escolha, pensei, não será pior do que aquilo que possa sair das minhas mãos. Na generosa lista de coisas que fazem mal à saúde, escolhi uns ovos rotos. Não sei se haveria pior, mas esforcei-me na escolha do mau. Quantos pontos cardio terei de fazer para anular os efeitos do meu livre-arbítrio? O vinho que bebi era, por seu lado, bastante razoável e talvez tenha um poder de anulação dos efeitos da escolha que fiz. Saciado, colesterolado, bebido, mas bem sóbrio, descubro nos canais de informação que na televisão russa se discute a anexação de Portugal. Consta também que há um partido espanhol que acha que a Espanha ocupa toda a Península Ibérica. Sabemos que o mundo está polvilhado de malucos, mas também sabemos que os malucos têm uma inclinação para fazer maluquices. Sem me meter em assuntos políticos, julgo que podemos conceder em comer ovos rotos e ouvir o coro do exército vermelho a cantar o Kalinka, tudo isto num ambiente alegre, quanto ao resto preferimos o colesterol bem português, as alheiras de Mirandela, a carne de porco à alentejana, os carapaus alimados, o cozido à portuguesa ou a feijoada à transmontana. Dito de outra maneira, nem xerez nem vodca, apenas uma chula minhota, um fandango ribatejano e um corridinho algarvio. Quanto mais perto do 1 de Dezembro, mas se me inflama o coração. É do colesterol, oiço. Agora, chove copiosamente, pois não há chuva digna desse nome que não seja copiosa.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Um belo tempo

Novembro está por um fio. Nem ao fim-de-semana chegará, morre na quinta-feira e enterra-se na sexta, dia em que se comemora a defenestração do Miguel de Vasconcelos. Consta que aquilo não foi bonito de se ver. Quando foi encontrado no palácio real, os conjurados crivaram-no de balas. São coisas que acontecem. Morto, atiraram-no pela janela. O que o povo fez ao corpo foi uma verdadeira profanação. Talvez inspirados na Antígona de Sófocles, os vitoriosos deixaram-no na rua para ser lambido pelo cães. Talvez todos os dias gloriosos tenham escondida uma luz tenebrosa, pois a glória, quando trata das coisas terrenas, não é mais que o exercício das paixões mais ardentes, as políticas, assunto não permitido neste blogue. O dia de hoje não foi muito diferente do de ontem. Névoas e nevoeiros, mas nada de D. Sebastião. Atravessei a cidade duas vezes e havia nela uma grandeza que não se encontra nos dias luminosos. É como se o tempo nebuloso lhe fizesse aparecer os traços de lugar muito antigo, onde as próprias rugas são um sinal não apenas de dignidade, mas ainda de uma beleza que o sol não ilumina. Talvez sejam os meus supostos genes das terras frias do Norte a falarem. Quando a cidade está assim, sinto-me em casa e há em mim um contentamento que não sei bem de onde virá. Recosto-me na cadeira, olho a rua e o mundo parece perfeito ou o melhor dos mundos possíveis.

domingo, 26 de novembro de 2023

Alívio

Talvez seja hoje. Nunca devemos desesperar perante aquilo que é impossível. Quando, pela manhã, abri as persianas vi que uma névoa caía pela cidade. As horas foram passando e a névoa é agora nevoeiro. O hospital e o bosque da escola aqui ao lado desapareceram, a própria escola começa a entrar nessa terra do invisível que anuncia a sua inexistência. Havendo aqui um pequeno rio afluente do Tejo, não será impossível que o desejado D. Sebastião aporte na avenida, num pequeno barco a remos, como aqueles que em tempos permitiam aos locais recrearem-se a troco de uns escudos. Uma parte da população já não sabe que escudos eram a moeda em que comprávamos as coisas necessárias à existência, onde se incluíam as desnecessárias a essa mesma existência, e pensará que são armas defensivas do tempo da cavalaria, usadas para evitar os golpes das espadas e das lanças. Pagavam-se então uns escudos, não me lembro quantos, para uma meia hora a remar, mais ou menos como se se pagasse um táxi e se fosse obrigado a conduzi-lo. Desvio-me do meu objectivo. O retorno, por fim, do nosso Rei bem-amado que tinha uma particular propensão para confundir a realidade com histórias de ficção. Como se sabe, a realidade é uma megera de vida dissoluta, pouco confiável, e pregou-lhe uma partida da qual nem ele nem nós estamos ainda recuperados. Ele sonha em voltar, nós sonhamos em que ele volte, o problema é que sonhar supõe estar a dormir. Assim, ele continua a dormir e nós, para não destoar, ressonamos. Acordados, nem ele se lembra de querer voltar, nem nós o queremos receber. Aborrecimentos, contratempos e adversidades já temos que cheguem, dispensamos mais uma crise dinástica. Agora que escrevi o que escrevi, o nevoeiro está a recuar. Suspiro de alívio.

sábado, 25 de novembro de 2023

Uma agulha

Não foi com um alfinete, foi com uma agulha. Não treslouquei, embora presunção e água benta, cada um toma a que quer. Não estou a narrar alguma aventura minha na nobilíssima arte da costura, a qual evitou, durante muito tempo, que andássemos nus por esse mundo fora, a fazer figuras ainda mais tristes do que as que fazemos quando estamos vestidos. Queixei-me, já não sei bem a quem, de que tinha de mudar de telemóvel. Estava com um problema a carregá-lo, pois a porta micro usb devia estar avariada e eu não conseguia acoplar devidamente o cabo do carregador ao telemóvel. É do cotão, ouvi. Do cotão, qual cotão, perguntei eu, incrédulo e desconhecedor dos factos da vida. Andamos com o telemóvel no bolso e o cotão vai-se introduzindo na ranhura da porta micro usb, explicaram-me com paciência. Usa um alfinete e vais ver o que sai de lá. Foi um conselho generoso e gratuito, mas ao qual não dei grande atenção. Hoje, porém, cansado de estar a ajustar o cabo ao telemóvel, lembrei-me do conselho. Tentei um clip, mas era demasiado grosso. Fui em demanda de um alfinete e encontrei agulhas de coser. Peguei numa e pus-me a esgaravatar a porta micro usb. A princípio o exercício parecia inútil, mas, ao insistir, começou a sair de lá tanto lixo que fiquei de boca aberta. Entreguei-me, depois de fechar a boca, a um exercício de limpeza. Concluída a operação, liguei o cabo ao telemóvel. Milagre, pensei. Era mesmo o cotão o culpado dos carregamentos infelizes. O problema desta aventura é que não tenha encontrado um Homero ou um Virgílio para a cantar, pois não fica abaixo, por exemplo, da vitória de Ulisses sobre os pretendentes. Pelo contrário, quase sou tentado a reconhecer. O sábado, como todos sabemos, é um dia propício a grandes aventuras. Está cheio delas, mas faltam os grandes bardos para as trazerem ao público.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Evitar a litania

Poderia começar por entoar a litania das sextas-feiras em honra da aproximação do fim-de-semana. Seria um início justo, mas não glorioso. A glória está para além da justiça. Uma coisa justa é uma coisa ajustada. Ora, a glória transcende o ajustamento, a adequação. O glorioso é desadequado, por excesso de adequação; é desajustado por sobejo de ajustamento. Leio a palavra samovar e imagino-me dentro de um romance russo. Aqueço a água para preparar o chá. Tudo isto, porém, é falso. Não possuo um samovar, não estou a aquecer água nem numa cafeteira eléctrica, nem sou um adepto do chá. Também não sou russo, sou apenas um meridional com nostalgia das terras do Norte. Depois da minha viagem por um romance de Thomas Mann, comecei outra num da Irène Némirovsky. Estas são as minhas viagens preferidas, contrariamente às viagens turísticas. Há pessoas que fazem viagens turísticas, mas estão convencidas que não são turistas, pois o seu viajar, por ser de uma outra ordem, embora não consigam explicar qual é essa ordem, tem uma distinção tal que não se confundem com a plebe turística. Cada um tem as ilusões que deseja, pode imaginar-se como aristocrata no século XVIII ou bombeiro voluntário no século XXII. Como não possuo alma de turista, tenho sempre uma certa resistência a deslocar-me, mas quando o faço vou convicto de que não passo de um mero turista, apesar de acidental. Contudo, se viajo num romance sinto-me um não turista, alguém que mudou de país e se instala aí, nessa nova pátria. Ler é instalar-se num universo em que se pode deambular sem sair do mesmo sítio. E é isso o que mais gosto, ser plenamente fiel à minha condição de provinciano sem mundo. Há quem sussurre aos meus ouvidos que não passo de um comodista. Eis um epíteto que transporta uma acusação moral, da qual não tenciono defender-me. Sempre evitei a litania das sextas-feiras.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Moral da história

Imagine-se que alguém escreve, como eu li há pouco, este romance não tem moral. Aqui não ter moral não significa que seja imoral. Seria uma obra que estaria além, ou aquém, do moral e do imoral, que estaria, para citar um título de uma obra de Nietzsche, para além do bem e do mal. Isto, todavia, faz parte do imenso catálogo das presunções humanas. Queiramos ou não, a moralidade envolve-nos de tal modo que nunca podemos escapar a ela. Um deus ou um animal não racional estariam para além da moralidade, mas não um ser que combina a animalidade com a racionalidade. Somos intrinsecamente seres morais e o que fazemos vem impregnado com a moralidade que nos constitui. Esse estar para além da moralidade não passa de um exercício imoral da vaidade humana. Em todos os romances que li até hoje nunca deixei de encontrar traços dessa moralidade, dessa presença obsidiante do conflito entre o bem e o mal. A própria linguagem, porque é humana, demasiado humana, está impregnada de moralidade. Não é por acaso que actualmente se travam terríveis disputas em torno da moralidade da linguagem, pois as palavras não estão para além do bem e do mal. Elas são o veículo expressivo de um e de outro. As histórias que contamos, por mais destituídas que sejam de acção, não dispensam as palavras e estas arrastam consigo o peso da moral. Logo, a moral da história é que todas as histórias têm a sua moral.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Profecias

Ao passar os olhos pela informação em linha, deparei-me com uma apresentação com o extraordinário título As preocupantes profecias de Stephen Hawking: fim do mundo está próximo. Um tremor invadiu-me o corpo e um temor atacou-me o coração. Fui vendo a apresentação e descubro que se a humanidade continuar a levar a vida que tem levado, isso conduzirá à destruição da Terra em menos de 600 anos. Chegado a este ponto, confesso o meu egocentrismo, respirei fundo. Não estarei cá, nem os meus filhos, netos, bisnetos. É mesmo plausível que a linha de descendência acabe e nenhum longínquo neto meu exista, quando o nosso planeta colapsar e se transformar numa bola de fogo, devido ao aumento populacional e ao incremento no consumo de energia. Meditei, depois, mais profundamente no assunto e lembrei-me de que Hawking não era um profeta, mas um físico. Um físico não faz profecias, mas previsões. Ora as previsões são uma forma de raciocínio indutivo que, segundo o parecer de David Hume, não está justificada racionalmente. As profecias são infalíveis, embora nunca se saiba a razão por que as consideramos infalíveis. Já as previsões são falíveis. O célebre físico tinha ideias extravagantes. Por exemplo, de que deveríamos emigrar para Alfa-Centauri. Haverá lá outras terras que estão à nossa espera. Assim, teremos oportunidade para transferir o conjunto de aleivosias que fazemos aqui para outro lado. Seria uma espécie de internacionalização da economia, no caso da economia do mal. Aquilo nem é muito longe, são apenas 4 anos-luz, qualquer coisa como 37 843 200 000 000 km. Seja como for, sou adepto de que sejamos enviados para lá, pois nunca lá chegaremos. A Terra livra-se de nós e os outros planetas propícios ao nosso modo de vida não teriam o desprazer de receber visitas tão inoportunas. Também eu sou um profeta.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Dom da ubiquidade

Alguém escreveu que as pessoas têm interesse de serem autores de si próprias. Imagino-me a ser autor de mim mesmo, a criar-me, fazendo-me vir do nada. O facto de as pessoas terem esse interesse apenas mostra que possuem muita presunção. Apesar de não ter sido Sartre o autor da frase, ele poderia subscrevê-la, com aquela história da existência precede a essência. A minha experiência de narrador prova o contrário. Eu não sou autor de mim próprio, mas uma criação de um autor com o qual tenho uma pendência nunca dirimida. Esse autor de mim, porém, não é autor de si mesmo, mas uma espécie de cuidador que tenta evitar que esse si mesmo, criado por outros, não se transvie. É nesse cuidado de si que se enxerta a ilusão de se ser autocriador. Ora, cuidar de mim já é uma tarefa suficientemente árdua, mais árdua seria a de ser autor de mim. Como se pode observar pelo escrito anteriormente, estou sem assunto digno de anotação. Seja como for, o que eu queria era ilibar-me da verrina de presunção, confessando, com humildade, que estou inocente do crime da minha autoria. Acabei de receber um telefonema solicitando a minha presença num certo sítio a uma certa hora de um certo dia. Ora, a essa hora desse dia eu terei de estar num outro lugar. Fosse eu criador de mim mesmo ter-me-ia dotado do atributo da ubiquidade. Como não o possuo, está provado que não sou autor de mim mesmo.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Lei da compensação

Ultimamente, as segundas-feiras têm tido uma certa agitação. Imagino que seja a instanciação na realidade – isto é, na minha realidade, caso exista realidade e eu possua uma – de alguma lei da compensação. Assim como à bonança se segue a tempestade, também ao sossego do fim-de-semana se deverá seguir a agitação de segunda-feira. Esta explicação conforta-me, não porque me descanse da agitação, mas por me oferecer uma explicação. No fundo, somos todos como aqueles superiores hierárquicos que, desagradados do comportamento de algum subordinado, lhe exigem explicações. As explicações não servem para nada a não ser responder à perplexidade do superior, uma forma de mitigar a eventual cólera. Dão-lhe um certo conforto, pois confirmam-lhe a autoridade e permitem-lhe compreender o que não tinham compreendido. Estava a falar da lei compensação, ela encontrou em Ralph Waldo Emerson a seguinte formulação, se for pronunciada em português do Brasil: você recebe o que você dá. Eu nunca teria elaborado uma lei destas, uma lei que conduz a uma soma nula. Se não der nada, nada recebo. Fico apenas com aquilo que tinha. Ora se eu der 7/10 do que tenho, irei receber o equivalente a esses 7/10. Por grosso, depois da troca, fico exactamente como estava no início. Daqui se conclui que dar alguma coisa ou não dar nada é exactamente igual. Não sei se Emerson terá pensado nas consequências da sua lei, na paralisia que arrasta consigo. Talvez Emerson não tenha alma de legislador. Talvez tenha ficado demasiado tempo a meditar as obras de Swedenborg e acabou por não pensar no que escreveu. Há casos desses, de pessoas que não pensam o que escrevem. É possível que alguém com intenções soezes venha dizer que esse é o caso deste narrador. Não pensa o que escreve. Como não sou bom julgador em causa próprio, suspendo o juízo sobre o assunto. Caiu a noite.

domingo, 19 de novembro de 2023

Da rasura da memória

Recebo uma mensagem de um amigo, perguntando-me se eu tinha um certo texto, de 1962, do filósofo francês Paul Ricoeur. Fiz uma pesquisa pelo índice das obras do autor onde essa conferência dada em Roma poderia estar. Encontro apenas um título aproximado. Esse também ele tinha, informou-me. Recordei-me então que, na estante, dormia uma bibliogafia sistemática das obras do autor, com tudo o que escreveu e o que escreveram sobre ele até certa altura. Lá encontrei a referência ao texto e era aquele que tinha o título aproximado. Percorro a conferência, agora parte de um capítulo de uma obra importante do filósofo francês, e descubro que o tinha lido e trabalhado. Caso me o tivessem perguntado, teria respondido peremptoriamente que não. Contudo, havia sublinhados a lápis e comentários nas margens, também a lápis. Reconheci facilmente a letra como minha. Não encontro melhor explicação para o facto de ter sido eu a ler aquele texto, até porque não me lembro de alguma vez ter emprestado a obra. Resta-me concluir que fui eu que o li. Toda esta prosa insípida e maçadora serve para sublinhar um magno problema. Trata-se da retenção. Os psicólogos, julgo, estudam a memória e a sua capacidade de reter informação, mas essa informação descritiva não consegue apaziguar a perda que todos os leitores devem sentir pela rasura que o tempo produz nas suas leituras. A memória não passa de um lençol esfarrapado, onde o vazio ocupa uma área muito superior à do pano. Esse texto, cuja memória me foi roubada pelo voraz Cronos, diz a certa altura que não há acesso linguístico ao mal, quer o sofrido ou o feito, quer o moral ou físico, senão através de expressões simbólicas, tais como nódoa, desvio, errância, peso, queda, etc. Isto significa que, na fala ou na escrita, não existe uma literalidade do mal, mas todo o mal só se pode dizer simbolicamente. Podemos fazer ou sofrer literalmente o mal, mas não o podemos dizer literalmente. Ora, e aqui abandono o caminho do texto de Ricoeur, o que se descobre é que a língua contém um pudor essencial, uma contenção que não lhe permite exprimir senão por via indirecta aquilo que é inominável. Desconfio, porém, que o mesmo se passa com o bem, com o amor, com o que quer que seja de decisivo na vida. A literalidade da existência só se deixa capturar na linguagem pelo desvio do símbolo, da metáfora. Toda a linguagem é um exercício de retórica e de poética. Talvez esta estratégia seja uma tentativa desesperada para evitar o esquecimento. Debalde.

sábado, 18 de novembro de 2023

Sal da terra

Ainda se está na parte da manhã, e eu já fiz a minha caminhada e ganhei os pontos cardio respectivos. Estas caminhadas são interessantes, pois trazem-se ao ponto de onde parto. Se não as realizar, fico exactamente no mesmo lugar em que ficaria se as fizesse. Poderia também caminhar sempre no mesmo lugar, limitando-me a um exercício de mover as pernas para cima e para baixo durante um período previamente determinado. Quando caminho, faço-o para chegar onde estou. Tornei-me com o tempo um adepto do príncipe Falconeri, esse jovem impetuoso Tancredi, que, perante a céptica visão do príncipe de Salina, se saiu com aquela frase repetida até ao infinito, tudo deve mudar para que tudo fique na mesma. Eu mudo de lugar, a cada passo, para ficar no mesmo lugar. Consta que o romance de Giuseppe Tomasi de Lampedusa teria sido inspirado pela inscrição no brasão da família do autor, Nós fomos os Leopardos, os Leões; quem nos substituirá serão os pequenos chacais, as hienas; e todos – Leopardos, chacais e ovelhas – continuaremos a achar que somos o sal da terra. Também no brasão familiar, caso o que consta seja verdadeiro, há uma dose significativa de cepticismo sob o manto felpudo da ironia. Isto coloca a questão do bom pastor, como poderá ele proteger as ovelhas dos leopardos, dos leões, dos chacais e das hienas, sem lhes alimentar a ilusão que também elas são o sal da terra? Há uma distância infinita entre a afirmação evangélica, quando Cristo se dirige aos apóstolos dizendo-lhe vós sois o sal da terra, e a expressão sal da terra contida no brasão. A primeira surge quase como um aviso, uma admoestação, para que cuidem da herança e possam condimentar a terra, caso contrário serão lançados fora e pisados pelos homens. A segunda é contemplação satírica da vaidade humana, da sua pretensão de ser alguma coisa de fundamental no destino da terra. Por mim, evito o sal, por causa da hipertensão. Isto é uma mentira. Não evito, modero-me no seu uso, esperando que os hipotensores façam a sua parte.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Rêveries

Cheguei a pensar que hoje era dia 18, mas percebi que não, que o tempo não tinha acelerado, que até agora a natureza se mantivera idêntica ou uniformemente regular. Não permite saltos no tempo, pois terá medo de cair num abismo qualquer. Quando percebi que ainda estávamos a 17, decidi ir espairecer, caminhar pelas ruas da cidade, acumular pontos cardio, observar, enviesando os olhos, o movimento, que era intenso. Intenso, neste lugar quase esquecido pelos deuses, será uma hipérbole, mas, comparado com outras horas do dia, a figura de estilo não será errada. Naquela hora crepuscular, a cidade tingia-se de sombras e um cinzento prateado que descia do céu foi, ao longo do meu passeio, escurecendo. Entrei em casa quando chegava a noite. Rousseau, o genebrino Jean-Jacques, deixou para publicação póstuma e inacabada, as Rêveries du promeneur solitaire. Como ele, também eu sou um passeante solitário. Como ele, também eu sou acometido por rêveries, mas são tão insípidas que logo as esqueço. Se um acaso me proporciona alguma meditação que poderia partilhar com o mundo, o facto de não a poder prender em mim faz com que ela se desvaneça. Poderia gravá-la no telemóvel enquanto ia caminhando, mas temo que achem que enlouqueci e chamem uma ambulância para me internar. Assim, finjo que vou concentrado nos caminhos, mas deixo a mente perdida em fantasias de pouco relevo. Chegado a casa, sento-me e tudo se apaga, como se fosse um sonho nocturno que o espírito, pela manhã, recorda, mas que logo se apaga. Estou pouco inspirado, vou continuar a minha leitura. Sua Alteza Real, Nicolau Henrique, anda a arrastar a asa à menina Imma Spoelmann. Será que a Fraülein se disporá a abrir o coração ao arrastador? Tenho ainda umas dezenas de páginas para o saber. Não se trata de uma novela de má fama, mas do romance Sua Alteza Real, de Thomas Mann, onde, perante os olhos do leitor, a velha aristocracia perde o sentido da sua existência. Coisa que acontece a tudo o que existe. Primeiro perde o sentido e depois a própria existência.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Uma mulher

Aos sessenta e nove anos era uma bela mulher, o tempo poupara-a e a pele ainda não cedera ao poder das rugas. Vejo-o numa fotografia. Contemplo longamente os seus olhos azuis, a pele branca, o cabelo cendrado. No rosto, há vestígios de um calvinismo que o tempo não terá conseguido apagar e nos olhos uma hesitação entre a melancolia e a altivez. Imagino-a alta e fantasio os olhares dos homens que, ao passar, ela prende, mesmo quando os setenta anos lhe batem à porta. Descubro que a infância e a adolescência não terão sido fáceis, o mundo nem sempre é afável para com as pessoas, mesmo se lhes foi dado o dom da beleza. Olho pela janela do escritório, descubro que o Verão de S. Martinho acabou, e o dia repousa na cinza outonal que cobre a cidade. As folhas das acácias entregam o verde que as cobria num amarelo cor de limão. Tinha um compromisso às duas e meia da tarde, mas adormeci. Quando acordei, sorri e, em vez de ver no caso uma humilhação trazida pela idade, julguei que o meu corpo inclinado para o sono era muito mais sensato que a minha razão submissa a obrigações. Volto à fotografia e imagino aquela mulher aos quarenta anos ou no dia em que comemorou os vinte. De súbito, descubro-lhe, no devaneio, os traços de Eduína, essa amiga que me deixou em herança três cadernos escritos que vou lendo muito lentamente, com a relutância de quem é tocado pelo pudor perante os segredos dos outros, mesmo que a herança seja uma forma de confissão.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Pôr-se a caminho

Devia pegar em mim e pôr-me a caminho. Melhor, pôr-me no caminho, que é o sítio onde se caminha, o que, consta, faz bem à saúde. Talvez ainda seja cedo para que a caminhada tenha uma tonalidade romântica. Um pouco mais tarde e poderei dizer caminhei ao crepúsculo. Para adensar o romantismo poderei mesmo dizer um ser crepuscular caminha ao crepúsculo. A preguiça, contudo, diminui-me a veia romântica e deixo-me estar sentado, enquanto a soprano Ingrid Kappelle, acompanhada pelo pianista Håkon Austbø, canta melodias de Olivier Messiaen. Recordo-me bem qual foi a primeira peça que ouvi do compositor francês. A sinfonia Turangalîla, mais tarde fascinou-me o Quatuor Pour la Fin du Temps. Desconfio que Messiaen é muito mais forte do que a ideia de caminhar. Fico sentado, a música, como o tempo, esvai-se, e eu deslizo com ela e com o tempo para esse lugar onde todas as caminhadas encontram a sua meta. Observo as metamorfoses do céu, a declinação da luz, o crescer das sombras à procura da escuridão que lhes trará a paz da noite. Hoje já tive a minha dose de videoconferências, pratiquei com afinco aquilo que não leva a lado nenhum. Para ser mais exacto, tornei-me num asceta da inutilidade. Por vezes, considero que falhei a existência. Deveria ter dado em trapista ou cartuxo. O problema, porém, é que teria de renunciar à minha condição de narrador e no caso plausível de optar pela Cartuxa, deveria cultivar o silêncio. Isso seria um bem para o mundo, menos uns disparates lançados por aí, mas talvez um mal para mim, pois narrar é libertar-me das ideias absurdas que se desenham na minha alma. Escolhendo o silêncio, o absurdo acumular-se-ia em mim e correria o risco de explodir. Um espectáculo degradante. Vou caminhar e levo o Messiaen no telemóvel.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Tarde de Verão

Tarde é o que nunca vem. Eis uma sensata expressão da sabedoria popular. Ora, o famoso Verão de S. Martinho acabou por chegar, trazendo sobre a cidade uma luz viva, apesar de esbranquiçada. Faltou ao encontro marcado com o dia de festejo do santo, mas veio em silêncio como se não fosse nada com ele. Estamos perante um caso de manifesta subversão na hierarquia dos poderes celestes. S. Martinho terá descido nela, mas talvez não tanto quanto se pensava. É preciso estar atento aos sinais e praticar com cuidado uma hermenêutica rigorosa e atenta ao conflito das interpretações. Aproveitando uma aberta nos afazeres, desloquei-me a uma loja que também vende livros para levantar dois que tinha encomendado online. Em frente do estabelecimento comercial há um bar que vende uns óptimos pastéis de nata. Dirigi-me a ele, antes de ir buscar os livros, mas não estava ninguém por detrás do balcão. Fui buscar os livros e voltei. Ninguém, apenas uns belos pastéis de nata a rirem-se para mim. Esperei um pouco, e descubro um papel no balcão dizendo: Peço desculpa, volto já. Aceitei as desculpas, esperei mais, mas quem devia voltar não voltou. Fui-me embora. Que hermenêutica fazer destes acontecimentos? Que não devo comer pastéis de nata? Que não os devo comer quando compro livros? Que não devo comprar livros? É isto que se chama conflito das interpretações. Há outras hipóteses que não eliminam estas. Por exemplo, o funcionário foi abduzido por extraterrestres para lhes ensinar como se vendem pastéis de nata. Outra hipótese é ter desistido do emprego e, para mascarar a situação, deixou aquele aviso. Temendo que ele tenha sido mesmo abduzido, passado um minuto, fui-me embora, antes que os extraterrestres voltassem e me levassem a mim para lhes explicar o que é o gosto de um pastel de nata. Uma decisão sábia, pois não fui abduzido e posso estar agora a narrar estes acontecimentos. E os livros? Bem, julgo que os extraterrestres já passaram a fase da leitura de livros e pouco interessados estariam em Irène Némirovsky ou Henrik Pontoppidan. Está uma tarde de Verão. De S. Martinho, claro.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Peroração

Desconfio que me precipitei no retorno a estas tristes publicações. Os afazeres acabam sempre por se avantajar, até ao ponto em que olhamos para eles e vemos gigantescos monstros. Um dia cheio e ainda não acabou. Só há pouco pude dar uma vista de olhos pela informação, o que contraria a prédica de George Wilhelm Friedrich Hegel, que não se coibiu de afirmar que a leitura do jornal é a oração da manhã do homem moderno. Imagino, no meu caso, que talvez não seja um homem moderno, talvez nem um homem, mas apenas um simulacro de ser humano. A quem oraria esse homem moderno ao ler o jornal, a que deus? Ao Espírito do Tempo, ao Espírito do Mundo? E que tipo de oração seria essa, uma oração peticionária? Como se vê, é sempre possível encontrar mil enigmas por baixo de cada pedra que, por distracção, pontapeamos no meio da rua. Magoamos os dedos do pé, mas, em contrapartida, somos assaltados por mil questões que, se as resolvermos, nos trarão a fama entre os sábios e a glória do mundo. Por hoje chega de peroração. Interlúdio musical.

domingo, 12 de novembro de 2023

Início de noite

O Outono progride invernoso, deixa um rasto de melancolia nos céus e abre as almas, no caso de existirem, à sofreguidão da tristeza. Esta é sôfrega de lutos e pesares, ávida de dores, para poder compor um ramo de crisântemos que irá deixar nalgum lugar onde a morte seja objecto de culto, com as suas procissões de flagelantes e rituais de abominação das alegrias da vida. Retomei o gosto da hipérbole, como se tivesse uma recaída num vício por vezes serenado, mas que continua a espreitar o momento em que se pode manifestar e mostrar o império que tem sobre o paciente. Imagino que para me irmanar com o espírito do dia, deixo correr, na aparelhagem, a voz de Charles Aznavour, também ela tocada pelo vírus do desgosto, Que c'est triste Venise au temps des amours mortes / Que c'est triste Venise quand on ne s'aime plus. Não é, porém, a canção do cantor franco-arménio, de que mais gosto. Essa tem outro espírito, como se pode ver : La bohème, la bohème / Ça voulait dire on est heureux / La bohème, la bohème / Nous ne mangions qu'un jour sur deux. Não é que seja dado à boémia, mas isto é o retrato de um tempo e de uma geração que, não sendo a minha, ainda me tocou. Nunca fui sensível ao rock, mas sempre gostei de uma certa música francesa. Hoje nem se sabe que os franceses também cantam. A noite caiu, e calado Aznavour, mudo de agulha. Oiço Dietrich Fischer-Dieskau e Alfred Brendel, no ciclo Die Winterreise. Isso está a impedir-me de voltar para Sua Alteza Real, um romance de Thomas Mann, na velha edição da Portugália Editora. Um início de noite mergulhado no espírito germânico. Talvez não seja a melhor opção, mas é o que se consegue.

sábado, 11 de novembro de 2023

Mudanças no poder

Nem os santos têm já mão no mundo. Pertenço a um tempo em que S. Martinho tinha uma prerrogativa, imagino que dada pelos céus, e enviava, com a cumplicidade alegre de S. Pedro, o CEO da meteorologia, um Verão merecedor da minha aprovação e estima, eu que raramente aprovo a estiagem e não lhe dedico qualquer admiração. Com o passar dos anos e dos séculos, esse Verão, de súbito incrustado no meio do Outono, acabou por tomar o nome do santo. Verão de S. Martinho. Tempo de castanhas e água-pé, mas também há quem prefira jeropiga, embora nada nessas bebidas exerça sobre mim qualquer atracção. Este ano, porém, os poderes mágicos de S. Matinho foram escassos e o Outono destes dias parece Inverno, com chuva e aguaceiros, o que pode estragar a festa de um concelho deste Ribatejo onde vejo passar os dias que me foram dados. No Ribatejo, note-se, e não no tal concelho festivo. Imagino que na corte celestial tenha havido alguma remodelação, uma tempestade política, e os poderes influenciadores do destino do mundo tenham uma nova figura, na qual S. Martinho perdeu capacidade para defender as suas causas. Seja como for, não estou disposto a ser conivente com essa vil despromoção e não deixarei de participar num magusto em sua honra. Com castanhas, claro, mas sem água-pé e jeropiga, que serão substituídas por tintos ribatejanos, escolhidos para honrar a memória do santo caído em desgraça, ao que parece. Assim seja.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Como nascem as monarquias

A criança do lado tem uns óptimos pulmões. Treina-os com frequência e grande empenho. Suspeito que se tornará um déspota na família, submeterá pai e mãe e reinará casa fora. É assim que germinam as monarquias. Alguém nasce com bons pulmões, avança aos gritos, as pessoas vão-se curvando e, a certa altura, as submissas vítimas do tiranete aclamam-no como rei. O que vale muitas vezes é que sua majestade tem de ir à escola e haverá sempre uns colegas mais republicanos que lhe porão um olho não azul, mas verde-rubro. Coisa de republicanos. Poderá acontecer que a parentela de sua majestade, habituada a obedecer-lhe, proteste por o rei não ser reconhecido e tratado como tal, mas nessa altura a questão de regime estará esclarecida. Apesar de estar proibido de falar de política neste lugar, a explicação para emergência das monarquias parece-me uma excelente contribuição para a ciência política e para a história. De resto, não tomo posição nem por monárquicos nem por republicanos, e não se pense que isto é um subterfúgio para esconder uma inclinação anarquista que haja no meu coração. O meu coração é um fiel adepto do leviatã, e não me estou a referir ao monstro bíblico. É um facto que o leviatã pode ter diversas configurações e ser mais ou menos feroz, mas sobre as minhas predilecções nada digo, pois isso seria entrar em confidências que me estão vedadas, e eu sempre dispensei fazer ou ouvir confidências. Não por algum tendência para misantropia, mas por uma questão de pudor. Admiro o meu amigo padre Lodo, pois com a idade que tem, ainda se senta no confessionário para ouvir sabe-se lá o quê, sem alguma vez, nas nossas longas conversas, ter sugerido que aquilo o perturba. O futuro rei calou-se, entretanto. Algum pajem lhe satisfez o capricho, presumo.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Uma vantagem

Abro ao acaso uma revista, a última Electra, e deparo-me com uma fotografia de Martin Heidegger. Está à janela da famosa cabana de Todtnauberg, na Floresta Negra. Mais do que o eventual génio, vejo ali a aproximação dos oitenta anos. Olha para os caminhos que levam a lado nenhum, vestido com um pulôver, entre o cinzento e o azul, sobre uma camisa branca com gravata cor de vinho. No pulso esquerdo, sob a manga da camisa, desponta um relógio, mas é impossível ver as horas. Não consigo perceber se a luz que ilumina a cena é natural ou a de um flash da máquina fotográfica. Dos olhos não vem sombra de pensamento profundo e no modo como pousa a mão no parapeito de madeira não se vê vestígio do triste discurso do reitorado. Estávamos em 1968, um ano de grandes convulsões, mas atrás do filósofo só se vê escuridão. Um dia também estive junto daquela cabana. Levou-me lá não a prestação de um tributo a um mestre, pois não faz parte das minhas afinidades electivas, mas porque Schwarzwald, Floresta Negra, me tocava a imaginação. Exceptuando a cabana, onde ainda havia, e presumo que haja, reuniões para discutir a obra do antigo proprietário, não vi outros sinais do filósofo. É possível que não os tenha procurado, que me tenha desviado por aqueles caminhos que, segundo ele, levam a lado nenhum, ou, para ser mais exacto, ao não trilhado. Isto, porém, é ficção minha. Todos os caminhos que percorri tinham já sido trilhados vezes sem conta, pois a minha natureza não é a de um inovador ou a de um explorador, mas apenas a de um homem da tradição, embora sem o zelo necessário para cuidar dela. Anoitece, Heidegger continua a sorrir-me na sua fotografia de 1968, sem saber que eu tenho uma vantagem sobre ele. Sei quem ele é, mas ele nunca saberá quem eu sou.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Rolar a pedra

Continuo preso ao breviário dos pequenos afazeres. Repetem-se e repetem-se sem parar, sem que se vislumbre a promessa de um fim, a não ser aquele de que não há retorno. Isso transporta-me para o destino de Sísifo. Rolar a pedra até ao cimo da montanha sem nunca lá chegar, para, a cada insucesso, tornar a tentar. Há uma fascinação humana pelo eterno retorno do mesmo. Construir hábitos é uma forma de solidificar em nós essa estrutura de retorno, para que pensemos que, ao fazer uma certa coisa idêntica à que fizemos ontem, pensemos que também nos mantemos idênticos. O hábito, como expressão do eterno retorno do mesmo, é um truque que me permite dizer que eu sou eu, que o nome ao qual respondo assegura que aquele que responde é sempre o mesmo. Eis, porém, um problema que aqui não tenho. O anonimato evita-me essa ilusão, o que também pode ser o indício de que estou destituído de hábitos e, muito plausivelmente, aquele que escreve estes textos nunca é o mesmo. Este vazio de denominação tem a vantagem de poder ser preenchido por qualquer nome, mesmo por aqueles que me seriam os mais repugnantes. Não me apetece, por hoje, falar de repugnância. Chove, a tarde refastelou-se na cinza-chumbo de nuvens iradas como quem descansa numa chaise-longue, e eu, na minha faceta de Sísifo, tenho de continuar a rolar a pedra até ao cume da montanha, mas, já o sei, faltar-me-ão as forças para lá chegar. Amanhã serei outro. Outro Sísifo, entenda-se.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Da invasão da noite

Os dias continuam a decrescer. A noite invade o dia e começa a escurecê-lo por dentro, lançando rajadas de nuvens negras, erguendo cortinas espessas para que a luz seja sustida e evite que a tarde encontre um alento para resistir ao avanço do exército das trevas. Pequenos afazeres pontuam-me as horas. Recolho-os e guardo-os num caderno, como se, de súbito, nascesse em mim uma alma de botânico que me levasse a criar um herbário. Vista da janela, a esta hora, a cidade parece-me um pântano, mas há muito que deixei de confiar nos meus olhos. Vejo uma coisa, mas a coisa é outra, como se a realidade estivesse apostada em iludir-me. Nos bolsos encontro algumas moedas e fico perplexo. Interrogo-me sobre o que estarão ali a fazer, por que razão foram lá parar. Não encontro resposta. Chegará o dia em que um ser humano perguntará para que servem aqueles objectos, cujo nome desconhece. Perdida a função, a memória desaparece, penso não sem uma certa melancolia, pois sinto que também eu estou a caminho de desaparecer das memórias dos outros, agora que a minha função corre para o fim. Somos seres funcionais e perdida a função passamos à categoria de descartáveis. Não faltaram, ao longo da história, tentativas para nos resgatar da funcionalidade, para nos investir com um halo que nos assegurasse a persistência, mas tudo em vão, tantos esforços que conduziram a nada. Somos seres para o esquecimento, coisa pior do que sermos seres para a morte. Ainda bem que é assim, oiço-me dizer. Quem suportaria trazer em si a memória de todos os seus antepassados? Ninguém. O culto da genealogia parece contradizer a minha presunção, mas só na aparência. Por longe que se vá na linha dos ascendentes, será ainda uma viagem muito curta e, não poucas vezes, equívoca. Volto para a lassidão dos meus afazeres.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Publicidade

Imaginemos uma agência de viagens desejosa de atrair clientes para destinos turísticos desafiantes. Imaginemos ainda que esta semana pretende vender como destino um certo país que, por acaso, é uma ilha. Nos folhetos de promoção, pois a agência ainda opera com papel, mas também no site, o leitor encontra a seguinte descrição publicitária: Mas este país é uma ilha, a que a própria natureza impõe leis imutáveis. É a terra da verdade (um nome aliciante) rodeada de um largo e proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a ponto de derreterem, dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem jamais levar a cabo. É possível que antes de querer saber mais sobre esse país-ilha, se interrogue sobre o publicitário que escreveu o texto. Sem saber a resposta, entrega-se a um longo devaneio sobre como atravessar aquele oceano proceloso, como abrir caminho pela neblina e como evitar o gelo traiçoeiro, para não se deixar enganar por falsas terras e poder chegar são e salvo a esse país verdadeiro, onde poderá admirar a constância das leis e passar umas sossegadas férias sem temer o bulício da mudança e os alvissareiros da novidade. A sua imaginação fica presa naquelas esperanças falazes e nas aventuras que há-de querer viver, e que o publicitário, para estimular o desejo da viagem e os lucros da agência, lhe diz que nunca será capaz de levar a cabo. Pois aquilo que os homens mais amam, eis uma generalização miserável, são as coisas impossíveis, pois das possíveis depressa se cansam. Ora, é na página 257 da Crítica da Razão Pura, que Kant, o publicitário, anuncia esse país do entendimento puro, que ele terá percorrido. Aquilo que ele lá fez, omito-o aqui, mas estou certo de que qualquer viageiro inclinado para a aventura, ao ler a publicidade desse país, fica a sonhar com oceanos procelosos e aventuras de que nunca desistirá e que, pela força da sua vontade e indústria da sua inteligência, como Ulisses, há-de levar a cabo para se encontrar, nessa ilha, com a amada Penélope e matar, com o vigor do seu braço, os incautos pretendentes.

domingo, 5 de novembro de 2023

O velho château

Olho para a rua e penso que o Advento se aproxima. Falta menos de um mês. Não sei, todavia, o que na luz suspensa sobre a cidade me fez lembrar essa época do calendário religioso. Vivemos num tempo em que os calendários religiosos se tornaram assuntos privados e deixaram de regular o ritmo dos dias, dando um sentido comunitário à passagem do tempo. Talvez não seja possível ter tudo. Ganhar liberdade em relação ao peso das tradições e manter um tempo diferenciado, um tempo que se arranca à monotonia rasa e insípida da passagem inexorável dos dias. Até os ritmos da natureza parecem perder a sua capacidade diferenciadora. Por estes dias, ocupo as horas de insónia com a leitura de Au Château d’Argol, o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo de Louis Poirier. Argol é uma aldeia na Bretanha, mas, para desconsolo de eventuais cultores de Gracq, não possui qualquer château. A palavra deve traduzir-se por palácio e não por castelo, penso. Enquanto vou lendo, pergunto-me, nalgum momento de desatenção, como foi possível nunca ter lido Julien Gracq. Só há umas semanas entrei naquele universo. Mais valia ter lido Gracq na juventude do que Sartre, mas isto é uma constatação de quem já perdeu a juventude há muito. Uma presunção sobre o que deveria ter sido o passado. Uma das coisas que me agrada na escrita de Gracq poderá contribuir para que o universo dos seus leitores não seja excessivamente grande. Mais do que narrar, ele descreve. Descreve paisagens, não tivesse ele cursado Geografia, descreve construções humanas, descreve pensamento, emoções. Mesmo as acções e os diálogos, o que constituiria a trama romanesca, são apresentados em forma de descrição. Tudo se torna paisagem e um romance é a construção de um mapa. Não de uma carta que representa um território, abstraindo as paisagens, mas uma que institui todos os territórios, interiores e exteriores, numa paisagem luxuriante feita de palavras, frases, parágrafos enormes. Olho de novo para a rua e a sensação de aproximação do Advento continua viva. Penso que um dia irei a Argol e procurarei o château que nunca existiu, mas que está à minha espera, pois aquilo que nos espera só chega à existência quando o encontramos. Começou a chover e tenho a súbita necessidade de saber se em Argol também chove. Um site meteorológico diz-me que sim. Ao longe, ergue-se para os meus olhos o velho château.

sábado, 4 de novembro de 2023

Do prazer estético

Está um tempo chuvoso e sombrio. Dito de outra maneira, está um belo sábado, cheio de melancolia e com a promessa de uma tristeza que se derrama nas águas caídas do céu. Não é a Terra que sofre mágoas inexplicáveis, mas a morada celestial que não consegue conter a cinza da sua dor. Leio e releio o prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura. Faço-o de um modo intolerável. Não procuro ali conhecimento, mas um prazer estético que a repetição faz nascer no leitor. A frase de abertura é espantosa: A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. A técnica usada por Kant é claramente romanesca, mostra a personagem dilacerada pelo seu singular destino, na verdade, um tormento, quase que me atreveria a dizer uma paixão, onde o desejo que a natureza lhe deu é limitado pela impotência com que essa mesma natureza a cobriu. O prazer estético, todavia, vai muito para além do parágrafo de abertura. As metáforas que o autor semeia no texto são outra fonte de volúpia. A Metafísica a certa altura é um teatro: O teatro destas disputas infindáveis chama-se Metafísica. Logo a seguir, passa a ser uma rainha: Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada a rainha de todas as outras. E o texto prolonga-se de metáfora em metáfora, para que o leitor descubra que os cépticos afinal são nómadas e como tal repugna-lhes estabelecerem-se definitivamente numa terra. Tudo isto ainda antes de chegar a fim da segundo página. Antecipando o destino de Maria Antonieta, também esta rainha terá de comparecer perante um tribunal. Dir-se-á que o tribunal kantiano não é um tribunal revolucionário. Já estive mais convencido disso, pois a nobre rainha sai do processo condenada à morte. É decapitada. Ora, o enorme processo a que ela é sujeita, cerca de 700 páginas na edição portuguesa, talvez seja tão irracional quanto aquele que conduziu o empregado bancário Josef K. à morte, em O Processo, de Kafka. Aliás, há, quase no fim do prefácio kantiano, um sinal de um destino comum, quando o filósofo de Konigsberg diz: a metafísica outra coisa não é que o inventário, sistematicamente ordenado, de tudo o que possuímos pela razão pura. Afinal a nobre rainha não passa de uma peça de contabilidade, melhor dizendo de uma contabilista, como de alguma maneira o seria Josef K. São quase duas da tarde e aqueles que espero para o almoço ainda não chegaram.