terça-feira, 30 de novembro de 2021

O Restaurador

Adeus, Novembro. Está tudo terminado, daqui a algumas horas será feriado e Dezembro virá como o Olex, o restaurador. Claro que pouca gente saberá o que é o Olex. Não é, apesar das aparências, nenhum rei de uma tribo pré-romana, que tenha restaurado a dinastia, nem haverá semelhanças com um Bragança que aceitou que os espanhóis fossem postos fora do trono para ele o ocupar. Se tem problemas com a cor do cabelo, então o Olex restituir-lhe-á a cor primitiva, uma verdadeira poção, apenas ultrapassada por aquela em que Obélix caiu em pequeno e a que toma o seu companheiro de orgia – não sexual, note-se – Astérix. O Restaurador Olex pertence à mesma empresa que produz a célebre pasta medicinal Couto. Ambos os produtos possuíam in illo tempore anúncios que, pelo seu inusitado ridículo, funcionavam muito, muito bem. Amanhã, quase hoje, livrar-nos-emos da espanholada, defenestraremos o Miguel de Vasconcelos e, como gauleses do Astérix, haveremos de resistir a todos os cantos de sereia dos castelhanos. Este é um dos episódios da nossa história que, na narrativa dos meus professores primários, me fizeram pensar que todos os nossos gloriosos antepassados eram heróis e santos, que haveriam de estar na glória do Senhor, cantando hossanas e aleluias. A inocência é uma grande coisa.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Questões de beleza

Revejo algumas reproduções de quadros de Jackson Pollock. Nunca me canso. Não é a técnica, drip painting, que me interessa, mas o resultado. Imagino sempre que se está perante uma visão daquilo que se esconde por detrás das aparências. Nestas a figura e o contorno são forças que impedem a visão de se confrontar com o caos originário. O que alguns quadros de Pollock fazem é mostrar que também no caos, naquilo que parece ser o resultado de gestos fortuitos, se encontra a beleza. Isto pode parecer paradoxal, pois a beleza é, por norma, associada à organização, à forma, à feliz disposição das aparências, as quais surgem ordenadas segundo uma justa medida. Uma das leituras da arte do século XX é que esta despediu a beleza. Talvez essa apreciação esteja radicalmente equivocada. Talvez a beleza se tenha estendido para domínios que antes seriam considerados não belos. Não sei se esta meditação pseudo-estética foi motivada pelas reproduções de Pollock ou por ser segunda-feira, aquele dia em que a realidade bate à porta, entra e senta-se até que chega a sexta-feira e ela vai de fim-de-semana. Demasiado contacto com a realidade não faz bem a ninguém, como se pode ver.

domingo, 28 de novembro de 2021

Um domingo ganho e um choque

Estava a atravessar a cidade quando ouvi: e se passássemos pelo local onde estão a vacinar, pode ser que ser que tenhamos sorte. Talvez esteja fechado, hoje é domingo, respondi. Mas dirigi o carro para lá. Era meio-dia e meia hora quando chegámos ao sítio. Às treze horas estava na rua à procura de um restaurante com o reforço da vacina contra a COVID feito e a toma da vacina da gripe, uma estreia. Isto significa que as coisas por aqui estão a funcionar como deve ser. A coisa está, por agora, resolvida, tanto quanto se pode resolver. Foi um domingo ganho. Curioso é que as pessoas que estavam a vacinar-se, a maioria, era gente nova, o que quer dizer que não o tinham feito no devido tempo e que alguma coisa lhes assaltou agora a consciência. Também se demandou por testes COVID, mas estão esgotados por toda a parte. As pessoas estão a abastecer-se para as festas de Natal e de Ano Novo. Como é que a indústria não antecipou a reacção do mercado? As acácias da praceta, que ainda há dias apresentavam uma belíssima e composta folhagem amarela, estão agora quase despidas. O vento balança-lhes as folhas mortas e estas caem, enovelando-se no chão. Numa passagem pelo supermercado tive uma das piores experiências que se pode ter. Estávamos a pagar numa caixa e alguém se mete connosco, com à vontade e familiaridade. Olho perplexo para a pessoa, torno a olhar e, só passados largos, demasiado largos, segundos, descubro que, por detrás da máscara, estava o rosto do meu filho. Acho que ainda não me recompus do choque de não o reconhecer de imediato.

sábado, 27 de novembro de 2021

Um birra

Uma birra monumental. Fui buscá-lo, ao meu neto, à entrado do prédio. Vinha ensonado e cabisbaixo. A coisa começou a meio da viagem de elevador. Abriu a boca e desatou a chorar. Não queria entrar em casa. Entrado, queria sair. Um grande problema afligia-o. Queria pôr a chucha no carro da avó que o deixara para ir tratar de assuntos urgentes. Tive de fechar a porta à chave, pois insistia em sair. Percorreu as várias tonalidades da tragédia grega. Chegou a atirar-se ao chão, mas achou que não valia a pena. Peguei-o ao colo, esperneou, fez-se de enguia para tentar fugir. Mostrei-lhe um presente que tinha para ele, nem olhou. Valeu-me a avó de cá. Com tantas peripécias, a energia foi-se gastando e o sono, que o atormentava desde o início, venceu. Agora dorme como um anjo, se é que os anjos dormem. Foi um começo de tarde exuberante. O sol já começa a declinar, toma a palidez por tom de pele, anuncia o crepúsculo e a noite que há-de vir, quando a porta ranger nos gonzos para ela, como se fosse uma rainha, entrar. Isto lembrou-me a ária da Rainha da Noite, na Flauta Mágica, do Mozart. Como eu gostaria que o meu neto, um dia, a visse comigo. Tenho ainda muitas coisas para tratar. Nem todos os sábados são dias de fim-de-semana. O pior, porém, é que não vou ter grande tempo para brincar com o rapaz, agora que a birra lhe passou. Acordado, será hora de lanchar e de o ir pôr a casa da outra avó. A vida é o que é e não o que se deseja, ou será o contrário?

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Desconexão neural

Há dias que oiço continuamente a mesma música. Não sei de quê será isto sinal, mas imagino que não deve ser lá muito abonatório do meu estado mental, se é que eu tenho uma mente para possuir estados. Não a oiço como se a estivesse dedicado a ouvi-la, mas como se ela fosse o pano de fundo da minha existência, como a música das esferas celestes o é da vida neste pobre planeta e noutros, caso exista vida noutros lugares. Não parece muito verosímil que este acontecimento, o do surgimento da vida, seja uma excepção num universo cuja dimensão o espírito dos homens é incapaz de abarcar, mas é uma possibilidade a considerar. Até agora, nenhuma prova em contrário, embora isso não prove a inexistência da vida por outros lugares. Já não me recordo quem o terá dito, talvez Pitágoras, mas as esferas celestes, nas suas rotações em torno da Terra, emitem uma música – celestial, por certo – mas nós não a ouvimos porque o hábito toldou-nos a audição e ficámos surdos para as harmonias celestes. Talvez os recém-nascidos a oiçam, mas habituam-se a ela ainda antes de falarem e perdem a memória desses memoráveis concertos. Quando chego à sexta-feira, vendo-a passar num foguete (ainda haverá quem se lembre do comboio-foguete, no qual muitas viagens fiz para o Porto?), o aparelho neuronal descamba e começa a soletrar-me coisas desconexas, pegando uns assuntos noutros. É isso que escrevo com fidelidade, a minha desconexão neural das sextas-feiras à tarde quase noite.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Resiliência

Voltamos para o estado de calamidade. Parece que o vírus tem uma grande resiliência, como se tornou moda dizer. A sua manifestação é atacada, mas ele logo se recompõe do choque e não perde o equilíbrio emocional. O que lhe permite voltar a infectar. Resiliência é uma palavra que me irrita sobremaneira, tal como empreendedorismo. Não querem dizer rigorosamente nada, não passando de chavões na comunicação social.  Como, num outro contexto, alguém dizia – alguém que já não recordo – são significantes sem significado. Um significante sem significado, na linguagem falada, não passa de um flato. Abre-se a televisão e descobre-se, abismado, que muita gente importante sofre de um estado crónico de flatulência, tantos são os significantes sem significado que debita. Se fosse dono de uma farmacêutica tentaria criar um Aero-Om linguístico, passe a publicidade. A toma deveria ser compulsiva. Pessoa que falasse, na comunicação social, em resiliência, empreendedorismo e coisas semelhantes teria de tomar quatro comprimidos por dia, após as refeições. O ambiente tornar-se-ia menos pestífero, a língua agradecia e, mesmo que isso não fosse condição suficiente para chegarmos ao paraíso, contribuiria decisivamente para dele nos aproximarmos. Não fosse o caso de estar proibido de falar de política pelo autor, este narrador teria imensas soluções que melhorariam a vida das pessoas. É o que faz os narradores estarem subordinados ao seu criador, os quais são despóticos e falhos da misericórdia divina. Deus criou o mundo e deu ao homem liberdade para fazer o que entendesse. Os autores criam os narradores, mas em vez de lhes dar rédea solta, enchem-nos de proibições. Não falas disto, nem daquilo, nem daqueloutro. Seja como for, oiço agora a minha neta mais nova numa sessão online com a avó. O assunto parece ser a Geometria. Espero que pequena seja resiliente. O que vale é que comprei Aero-Om.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O que me ocorreu

Quem hoje em dia sabe quem foi Domingos Monteiro? Poucos, muito poucos. No entanto, foi um editor com peso no mundo literário com uma editora também pouco conhecida nos dias de hoje e já desaparecida há muito, a Sociedade de Expansão Cultural, a qual deu voz a muito autores nacionais, que ali encontravam abrigo. O próprio Domingos Monteiro foi escritor e com nome firmado na praça. Conhecido, principalmente, como contista, também escreveu poesia, história, doutrina e crítica, múltiplas novelas e o romance O Caminho para Lá. É este que comprei em segunda mão, a edição definitiva, a segunda, de 1958. A primeira data de 1947. Espanta-me sempre os milhares de exemplares que eram tirados. Esta segunda edição corresponde aos 5º e 6º milhares, o que significa que a primeira teve uma tiragem de 4000 exemplares. Números que hoje seriam astronómicos. Apesar de ser um óptimo escritor, Domingos Monteiro não era um dos grandes nomes da época e mesmo assim os seus livros vendiam-se muito. E não é caso único. Contudo, à medida que os portugueses se vão escolarizando, à medida que o ensino superior se vai democratizando, os leitores de literatura com um módico de seriedade parecem diminuir. Em torno da poesia gira uma pequena seita esotérica, sem qualquer ligação ao grande público. Diz-se que os poetas escrevem uns para os outros. Talvez seja assim. Temo, porém, que ao romance aconteça a mesma coisa. Curioso que o cinema, essa forma de narrativa romanesca com imagens, não matou o romance, mas talvez as séries do Netflix e semelhantes o estejam a fazer. Isto foi o que me ocorreu num dia em que pouca coisa me ocorreu.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Provações iniciáticas

Quase duas semanas de poupança. O hábito é ligar, por aqui, o aquecimento no S. Martinho. Este ano não foi preciso. O frio, porém, chegou agora e já começou a infiltrar-se nas casas, armado com uma espada de gelo com que persegue as manchas de calor ainda restantes. Como alguém dizia, vivo numa zona climatizada, quente no Verão e fresca no Inverno. Não se trata, porém, de frescura, mas de frio. Ainda, por cima, sem o consolo da neve, a qual é guardada, só para eles, pelos ciosos habitantes das zonas altas. Espera-me uma noite difícil e uma manhã igual, pois hei-de submeter-me a um estranho exercício de abluções interiores, as quais me tornarão puro e cristalino, para que amanhã possa ser visto e revisto. Na verdade, é um autêntico ritual iniciático, que nem sequer exclui o jejum, embora o destino próximo não seja a elevação espiritual, mas o caminho atarefado para a casa de banho. Alguém contumaz na prova iniciática recomenda que se tenha as leituras e gadgets a postos, pois fazem parte da provação. Servem para evitar o contacto com as forças negras. Já verifiquei se os eReaders estão carregados. São mais maleáveis que uma pilha de livros e, contêm, bibliotecas. Literatura e outras leituras mais inóspitas não me faltam. Há que enfrentar com denodo a fragilidade humana. De resto, continuo a ouvir canto gregoriano, mas acho que chegou a hora de mudar. Um concerto, em Seatle, de polifonia portuguesa, com música de Filipe Magalhães, Manuel Cardoso e Duarte Lobo, todos da chamada escola de Évora e do período de ouro da polifonia portuguesa. Talvez a música, a excepcional música portuguesa, estenda sobre mim as suas asas protectoras.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Fora da realidade

Num certo diálogo, em Kiev, entre o jornalista Jagorski e o ajudante S. I. Antonov, o primeiro diz: Mas antes contou as coisas de um modo diferente. Então, o ajudante responde: É que as coisas eram complexas, e por isso eles não nos impediram a concretização da acção essencial. Ao ler o trecho do diálogo fiquei perplexo com a resposta de Antonov. Se tivesse presença de espírito e um módico de sabedoria teria respondido de outra maneira. Diria: Há pouco contei as coisas de modo diferente porque elas eram diferentes. Ao contá-las segunda vez elas já se tinham transformado com a primeira narração. Se as tornar a contar, não terei outra possibilidade, para lhes ser fiel, senão dar uma nova versão dos factos. Isto, sim, seria uma resposta à altura. É certo que todos nós possuímos a crença ingénua de que factos são factos e que mal tenham acontecido eles permanecem eternamente idênticos. A crença, porém, não tem em conta os estranhos efeitos que a narrativa tem sobre os factos. Ela interfere com eles e faz com que, mesmo já tendo acontecido, eles se transformem. Se queremos que certos acontecimentos passados permaneçam o que foram, a única forma de o conseguir é não falar neles. Talvez esta minha deambulação por terrenos ínvios esteja ligada à escuridão da noite. As trevas intrometem-se no corpo de uma pessoa e a capacidade sináptica do cérebro é duramente abalada. Ou então foi o título do Volume II da Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, de onde retirei o excerto do diálogo, que me afectou. Não é sem enormes perigos que se estabelece relação com um livro que tem por título A Queda para Fora da Realidade. Também eu terei caído para fora da realidade. Há muito, ouço dizer.

domingo, 21 de novembro de 2021

Mais valia

Como um biscoito seco tirado de uma caixa comprada numa grande superfície. Não é mau. Também não é particularmente bom. Come-se. O pior é que mesmo ao lado da caixa está um bolo de maçã e nozes, feito em casa, com um aspecto e um odor absolutamente tentadores. Mais do que isso, pois ontem perdi-me, com um sabor esplêndido. Hoje, porém, e nos próximos três dias está-me interdito. Não apenas o bolo, como tudo o que vale a pena comer. É-me permitido, por exemplo, sopa branca de batata. O que será sopa branca de batata? Terá cal? Olho para a dieta prescrita e não vejo a proibição nem de álcool nem de café. É nestes momentos que me sinto perdido na existência. Não estão prescritos, mas não estão interditos. Por exemplo, o leite está interdito. O que para mim não tem qualquer problema, pois não o suporto. Seja como for, a coisa está clara. Será que posso beber um copo de tinto? Talvez eu não tenha percebido. Aquilo que posso comer não requer acompanhamento de bebidas sérias e profundas. Logo, quem fez o maldito panfleto não achou necessidade de interditar o vinho. Pensou que era uma evidência. É nestas meditações que perco o domingo, em vez de pensar em coisas sérias, como brincar com o meu neto, fazer corridas de carros, pô-los no camião transportador, todas essas coisas que dão sentido a uma vida e não requerem dietas durante três ou quatro dias. Mais valia que me fosse decretado um período de jejum e abstinência. Mais valia.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Efeitos musicais

Nesta altura do ano, os dias começam a despedir-se muito cedo. A um sol glorioso, que parece ir brilhar por toda a eternidade, segue-se, de súbito, uma luz mortiça e envergonhada, impotente para fazer reverberar as paredes dos prédios, para iluminar de ouro e prata a copa das árvores que ainda não perderam as folhas. Logo vem o crepúsculo e a escuridão nocturna. As acácias da praceta ainda estão magníficas, com as suas folhas amarelas, ainda tisnada por leves sombras esverdeadas. Daqui a pouco serão apenas manchas pardas. Das colunas da aparelhagem sai uma música que se poderia escutar sem nunca dela ficar cansado. Trata-se de canto gregoriano. A opinião da escuta eterna sem cansaço não é minha, mas de alguém que no Youtube comenta um vídeo com sete horas deste tipo de música. Tanto o canto gregoriano como o bizantino têm o estranho poder de envolver a consciência sem a ela se impor. Talvez a polifonia renascentista ainda herde algum deste poder. A música do barroco, porém, já se afastou desta possibilidade. Apesar de ser uma música extraordinária, não tem o poder conciliador que o ouvinte encontra no canto gregoriano e na polifonia da Renascença. A partir daí, com o classicismo, o romantismo e a música contemporânea, o afastamento dessa origem pacificadora foi crescendo, embora no século XX se tenha assistido a algumas tentativas restauracionistas dessa experiência agora arcaica. Como se vê, a minha falta de assunto é total. Se tivesse alguma coisa para dizer, mínima que fosse, não teria escrito sobre aquilo de que nada sei, a música. Uma pessoa, porém, se escrevesse apenas sobre aquilo que sabe, talvez ainda não existisse hoje coisa alguma escrita. Com isto, cheguei ao crepúsculo. A tonalidade do ambiente está carregada de mistério, o mistério da queda da noite.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Dos pastores e dos rebanhos

Na escola aqui ao lado há eleições para a associação de estudantes. A campanha é feita, segundo sou forçado a perceber, ao som de uma música ensurdecedora, acompanhada pelo grito em uníssono de um rebanho exaltado. Gritam: vota e a letra que designa a lista, tudo repetido ad nauseam. Talvez não tenha sido por acaso que tenha visto, enquanto os meus ouvidos eram martelados, num tweet de um conhecido ex-embaixador português, uma fotografia do amado líder político, de uma das mais caricatas ditaduras existentes, seguido não pelos gritos de um rebanho enfurecido, mas por um conjunto de civis e militares, armados de caneta e papel, prontos para apontar qualquer palavra – sempre, um grande pensamento – do divino pastor de rebanhos. Nós nunca estamos suficientemente atentos a estas conexões inesperadas, mas elas trazem-nos lições. Não estou a dizer que as associações de estudantes do ensino secundário sejam uma escola para produzir candidatos a amados líderes e, por outro lado, ovelhas exaltadas de um rebanho. Honni soit qui mal y pense! Talvez, porém, esta estranha coincidência, na minha consciência, não seja fruto de um mero acaso. São ínvios os caminhos do Senhor. Não tarda, chega o meu neto. Faz três anos. Sei lá se, um dia, não se irá candidatar a uma associação de estudantes. Sei lá. O que vale é o intervalo ter acabado, a música calou-se, o rebanho entrou para o redil.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Sonhos

O senhor René Descartes achou por bem que nós, seres humanos, não possuímos um critério seguro para distinguir se, neste momento, estamos acordados ou a sonhar que estamos acordados. As ínvias razões que o motivavam, nessa altura da vida, não são chamadas para aqui. A verdade, porém, é que talvez eu esteja a sonhar que estou a escrever sobre o que escreveu o filósofo francês, embora ele não pudesse afiançar – pelo menos sem recurso ao sobrenatural, o que nos jogos de hoje está interdito – que não estivesse a sonhar. Se assim for, aquele que ler o que Descartes escreveu, pode estar a sonhar com o sonho que ele teve de estar a escrever tal coisa. Tal como pode acontecer com o eventual e benévolo leitor ao pensar que está a ler aquilo que eu escrevi. Quem lhe disse que não está a sonhar? O que me atormenta de momento, todavia, é não saber por que motivo esta história de Descartes me veio assombrar. Talvez esteja a sonhar com ela. Bem podia estar a escrever qualquer coisa que tivesse o Saramago pelo meio. Além de ser português e de hoje fazer cem anos que nasceu, tem ainda a vantagem de ter recebido um prémio Nobel, coisa que Descartes não conseguiu, embora não lhe faltasse inclinação para a ficção. E caso a Academia Sueca achasse que a ficção cartesiana não era merecedora de tão alta distinção, podiam dar-lhe o Nobel da Física. Há quem diga que ando a baralhar as coisas. Se isso é verdade, então também posso baralhar as épocas. Alguém é capaz de dar uma boa razão para afirmar que Descartes não veio depois de Saramago? Não vale dizer porque ele nasceu primeiro. Essa é muito fácil e pode estar incluída na história do sonho. Alguém está a sonhar que Descartes nasceu antes de Saramago. Um sonho tão implausível como qualquer outro. Por falar em sonhos, os únicos que eu conheço são os sonhos de Natal. Se há outros, não sei, e também não vale a pena vir com a conversa de Freud e da interpretação dos sonhos. Cada um ganha a vida como pode.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Dia de Feronia

Chegámos a meio de Novembro. Parece que gosto de comemorar estas efemérides, pois algumas há-de haver neste dia. Por exemplo, há 132 anos, exactamente, nasceu D. Manuel II, que viria a ser rei de Portugal. Durante parte substancial da sua vida não soube que iria ser rei e, ainda menos, que haveria de ser o último. Aconteceu-lhe o mesmo que a todos nós. Nasceu sem saber para que estava destinado, embora o certo é que o seu destino não era ser rei. Foi-o por um acaso e a realidade pô-lo na ordem. Imagino que muitos corações femininos batessem mais depressa à evocação da majestade, mas a realidade não se interessa por essas coisas e faz o que lhe apetece com quem quer, seja nobre ou plebeu, seja soberano ou súbdito. É um facto que ela parece mais condescendente com uns do que com outros, mas talvez não seja assim. Haveria que fazer estatísticas. Consta que na Roma antiga, no dia de hoje, se realizava o Festival de Feronia, a deusa dos bosques e das florestas. Era o tempo em a divindade se dividia de tal maneira que havia uma para cada função. Agora é o que se vê. Não há Feronia que valha a bosques e florestas. As segundas-feiras não são dias fáceis.

domingo, 14 de novembro de 2021

Lição de Sociologia

Está consumado mais um fim-de-semana. A noite chegou ainda andava eu a fazer uma caminhada. Veio sem pedir licença e instalou-se, mesmo contra a vontade de certos candeeiros de iluminação pública. Persistiam em permanecer apagados, em protesto mudo contra o fim do dia e o ter chegado a altura de entrarem em funções. Talvez estejam em greve. Nunca se sabe o que se passa na cabeça luminosa de um candeeiro público. Nem dos privados, mas esses, por agora, não vêm ao caso. Durante grande parte de percurso temi que a minha deambulação fosse inútil, que nenhuma lição me surgisse no caminho, nem gesto glorioso viesse à existência para que eu, como narrador muitas vezes em conflito com o autor, aqui viesse contar. A sorte, porém, protege os audazes. Tinha-me metido por uma ruela menos dada ao trânsito quando me deparo com um adolescente – noutros tempos diria um fedelho – a equilibrar-se numa trotineta e a tentar, com pouco êxito, fazer uns equilibrismos. De repente, oiço uma voz feminina – por certo, a mãe – a proclamar que não tarda o equilibrista estará a ganhar dinheiro no YouTube. Durante a minha transição naquele beco com saída, ouvi-a umas três vezes manifestar a convicção. Não esperava, ao sair de casa, ter uma lição de sociologia, mas esta pode surgir a qualquer momento, desde que nos aproximemos da humanidade. A graçola maternal era bem mais que uma graçola, era a expressão de um desejo que é, todo ele, uma visão da sociedade. Ganhar dinheiro nas redes sociais produzindo irrelevâncias. Foi depois desta epifania que a noite caiu. Fê-lo sem estrondo, como só uma noite o sabe fazer. Talvez o equilibrista em potência chegue ao YouTube ou se perca na tenda de um circo.

sábado, 13 de novembro de 2021

Otium, skholē

O prazer de ver uma tarefa concluída. É sábado, mas ainda não pus um pé na rua e não me encontro confinado. Acabei agora mesmo um documento com 115 páginas. Não se pense que é literatura. É fantasioso, bastante, não digo que seja desprovido de imaginação, alguma haverá de ter, mas não se pode dizer que seja coisa literária. Se o é, então é péssima literatura, uma narrativa burocrática. Na verdade (muito gosto eu desta expressão), o melhor de tudo é ter ficado livre da corveia. As últimas horas de trabalho foram acompanhadas, em fundo, por cântico gregoriano, na voz de monges beneditinos, os descendentes de S. Bento de Núrsia, personagem curiosa por múltiplos motivos, entre eles o de ser um dos pais da Europa que ainda conhecemos. Talvez por pouco tempo. A regra monástica que inventou, com a consigna de Ora et Labora, tinha como função curar os monges, através do trabalho, dos desvarios que uma vida puramente dedicada à oração produzia. Talvez neste pequeno incidente, em aparência trivial, se compreenda a profunda diferença que separa a espiritualidade cristã da dos antigos gregos. Para estes, o labor estava interdito, coisa de escravos. A vida espiritual, a filosofia, nascia e alimentava-se do ócio. E é a esse ócio que me vou dedicar, não por inclinação espiritual, mas porque hoje é sábado, preciso de caminhar e, mais logo, entregar-me a um jantar alargado. Nem ora, nem labora, o corpo e o espírito pedem otium, skholē. A vida é o que é. Mais uma expressão de que muito gosto e que, na verdade (sic), não significa coisa alguma.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Uma coisa triste

Sentado à secretária, esquecido que era sexta-feira, entreguei-me a um longo delíquio. Não no sentido de me ter estado a liquefazer, mas de ter perdido a consciência. Neste caso, a consciência da realidade, envolvido que estive numa daquelas tarefas fantasiosas com que preencho a vida, cuja utilidade é nula, apesar do esforço de perfeição com que a envolvo. Talvez eu esteja a pagar pensamentos que tive na longínqua juventude. Pensamento sobre a inutilidade de tudo o que era visto como útil, a inutilidade da própria existência humana sobre o planeta Terra. O mais importante, porém, aconteceu ontem. Fui com o meu neto à feira da Golegã. A criança, o pai e o avô, com a intromissão da avó, foram jardinar entre cavalos e gente que se passeava por ali, como se o ali fosse uma coisa importante. Nunca apreciei o evento. Sempre me faltou paciência para feiras, festas e romarias, mesmo que sejam a efusão de pessoas que ouvi denominar como agro-betos. Os cavalos parecem muito nervosos com a multidão, as pessoas tentam dar-se ares de tradição e fidalguia, mas na verdade tudo aquilo, se observado com atenção, é triste, tão triste como um circo, com os seus palhaços ricos e pobres. O pequeno não me pareceu particularmente entusiasmado. Compreende-o. Chega de devaneio sociológico. Coisas ainda mais inúteis esperam o ardor do meu esforço. Tê-lo-ão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O pior é o Nanetti

Sem dar por isso, deixei que um terço de Novembro se tenha escoado. Cronos é um deus miserável. Sofre de uma acentuada bulimia, de um desejo convulsivo de devorar os dias, isto é, os seus próprios filhos. O pior é que, como efeito colateral, também nos devora a nós. Começar assim significa que não tenho nada para dizer neste diário. Como me acontece muitas vezes o cérebro começa a fazer curto-circuito e liga coisas que não devia. Lembrei-me do filme Querido Diário, de Nanni Moretti. Para dizer a verdade, já não me lembro nada do filme, apenas do título. Contudo, Moretti é um cineasta que me coloca, muitas vezes, problemas verdadeiramente existenciais. Por exemplo, quando me quero referir a ele e lhe chamo Nanetti. Ao dar-me conta do erro, que ocorre mais vezes do que gostaria, começo a pensar que já tive melhores dias, mas talvez mesmo nesses eu não seria grande coisa. Hoje comecei o dia antes das oito da manhã com um serviço de transportes. Fui buscar a minha mãe para a levar ao laboratório de análises. Depois, levei-a para casa. Ainda não eram nove horas já estava sentado a trabalhar. Confesso que o fazia com entusiasmo, embora tenha a certeza que o fruto de tanto labor será nulo. Isso, porém, é uma característica muito pessoal. Tenho uma acentuada inclinação para a nulidade, embora tenha outra para a verborreia.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Enigmas

Foi ao levantar dinheiro numa caixa multibanco que dei comigo a cismar que esse é um gesto condenado. Ainda não está morto, mas já passou o seu tempo. O cartão e o MB Way, no telemóvel, tornam obsoleto andar com notas. O dinheiro sempre foi uma imaterialidade. Só que até aos nossos dias era uma imaterialidade material. A informação necessitava de se codificar em pedaços de metal e de papel. Agora, basta a informação armazenada sabe-se lá onde e terminais para lhe aceder. Depois destas meditações, ri-me, pois eu estava, ao retirar as notas da caixa, mergulhado na mais pura obsolescência. Ora, essa é a minha verdade. Sou obsoleto. Talvez esteja a falar por enigmas. Ao escrever a palavra enigmas lembrei-me de uma nota de rodapé ao livro Anarchy, State and Utopia. Escreve Robert Nozick: Com frequência uma questão útil de colocar é a seguinte: - Qual a diferença entre um mestre zen e um filósofo analítico? – Um diz enigmas, o outro enigmas diz. Talvez a pilhéria de Nozick seja mais séria do que ele próprio terá pensado. É possível que tudo o que um ser humano diga seja enigmático. Repare-se na experiência que é ouvir falar uma língua que se desconhece por completo. Todos aqueles sons são verdadeiros enigmas. Contudo, dirá o eventual leitor, isso não se passa com aquelas que falamos e em primeiro lugar com a língua materna. Será uma observação avisada, mas esquece o longo treino necessário para que ela tivesse deixado de parecer enigmática. Anos e anos. E, apesar disso, nada nos garante que, mesmo parecendo a coisa mais transparente do mundo, ela não continue a ser profundamente enigmática, mais ainda que a língua desconhecida. Poderia, se eu fosse dado a fazer leis, enunciar a seguinte lei, ainda mais importante do que a segunda lei da termodinâmica: Quanto melhor se conhece uma língua, mais enigmática ela se torna. O que vale é que não fui fadado para legislador e a lei proposta não é uma lei, mas o devaneio de uma mente ociosa depois de uma longa reunião em videoconferência. As videoconferências são como a pandemia. Vieram para ficar. Nem vacinados nos protegemos delas. A minha neta mais velha está em sessão de massacre, em videoconferência, claro, para preparação com a avó de um teste de Matemática. O mundo tornou-se um lugar muito difícil.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Ligar o aquecimento

Estava a ler um livro de Peter Sloterdijk com o sugestivo título You Must Change Your Life – não se pense que é uma obra de auto-ajuda, não é – quando me deparo com a seguinte consideração: A era moderna é aquela que trouxe a maior mobilização das forças humanas em prol do trabalho e da produção, enquanto aquelas formas de vida em que se deu a máxima mobilização em nome da praxis e da perfeição pertencem à antiguidade. Imagino, embora tenha uma certa propensão para imaginar coisas desfocadas da realidade, que em todos os seres humanos exista uma cesura, um buraco escavado pela tensão entre uma vida marcada pela produção e a necessidade de a dedicar à perfeição pessoal, à realização de si. Quando se fala em antiguidade, nela se devem incluir todas as sociedades tradicionais e não apenas a grega e a romana. A realidade, nos dias de hoje, tempo talvez culminante da era moderna, é a produção sem fim, com o objectivo de consumir, para se produzir mais, para se consumir mais, até ao infinito. Em tudo isto parece haver uma condenação de Sísifo, uma ausência de sentido para o facto de se estar neste mundo e ter capacidade de pensar. Se queremos encontrar uma grande razão para o absurdo na literatura de Camus ou para a náusea em Sartre, encontramo-la nesta mobilização infinita das capacidades humanas para a exterioridade produtiva. A redução da existência à dinâmica da quantidade, a que se expressa no jogo dos gastos e dos proventos, é a casa do absurdo em que a vida de muitos seres humanos se tornou. Não sei o que me deu para escrever estas coisas. Talvez seja o facto de a noite estar a cair, com a escuridão que é a sua, ou a causa terá sido o ter passado o dia em actividade produtiva intensa, embora a produção a que me dedico não sirva realmente para nada. Não tarda e terei de ligar o aquecimento. Isto, sim, é uma questão importante.

domingo, 7 de novembro de 2021

Um domingo para contar uma aventura de quarta

Contrariamente ao habitual, o almoço deste domingo foi cedo. De seguida, um salto a uma superfície comercial. Talvez fosse melhor considerar aquilo um volume comercial e não uma superfície, pois não consta que a nossa espécie consiga viver num espaço bidimensional. Excepto o pouco tempo que demorou a aventura, não dei por nada mais que merecesse anotação. A luz que fendia a atmosfera e se precipitava pela cidade, essa sim. Uma luz melancólica que só existe nas tardes de domingo, e não em todas. Há nela uma cor desmaiada e aquele que para ela olha quase sente vontade de chorar, embora não saiba a razão. Talvez seja o próprio domingo que assim se apresenta por saber-se cada vez mais próximo da morte. Por falar em coisas melancólicas, ocorreu-me a minha vista a um sítio lúgubre. Trata-se da aventura nos meandros da justiça portuguesa. Arrolado como testemunha, lá me desloquei ao tribunal. Dirigi-me à secretaria, disse ao que ia, apresentei a convocatória (ou a intimação), para testemunhar em videoconferência, pois a sessão real passava-se em Lisboa. A funcionária sorriu. Escreveu no computador, disse que já tinha avisado o colega. Que esperasse lá fora. Pode ser no hall interior, está menos frio. Na verdade, havia gente no hall exterior à espera e ao frio. Dirigi-me ao interior, uma sala ampla, escura, com uma mesa, bancos corridos e dois ou três sofás aos cantos. Nesse hall desembocava uma escadaria ampla e quase imponente. Por ali, pensei, deve descer a justiça. Por vezes, um pequeno grupo de pessoas parava junto à mesa, trocava impressões e subia. Quanto a mim, testemunha ocasional de um naufrágio, dedilhava o telemóvel e esperava. A certa altura, entra um advogado, por acaso meu vizinho, e trocamos umas palavras. Digo-lhe ao que viera e que esperava que a coisa se despachasse rapidamente. Ele ri e responde-me que estava em mau sítio para ter pressa. Ri-me, despedimo-nos, volto a sentar-me e a dedilhar o telemóvel. Passam duas mulheres togadas, ainda relativamente novas. Oiço alguém murmurar que se trata da juíza e da delegada, mas não consegui saber quem era quem. Talvez seja isto a opacidade da justiça. Deveriam trazer letreiros para identificarmos os titulares de tão alta função. Assim me ia entretendo, até que, passada uma meia-hora bem medida, a oficial de justiça que me recebera, vem dizer-me que a advogada do meu amigo dispensara o meu testemunho. Que podia ir à minha vida. Perguntou-me se queria uma declaração de presença. Declinei e agradeci. Vim-me embora, sem que desse o meu testemunho. Ao sair pensei que aquele é um sítio que qualquer herói deve evitar. Agora está a chegar a noite dominical. O anúncio da cadeira de hambúrgueres cintila espampanante e o hospital, ao longe, cerra-se numa tristeza parda e sem fim. Vi que hoje a canção Let it be faz cinquenta anos. Hoje estou particularmente palavroso. Vou ler um artigo que fala – para desconstruir, claro – sobre os cinco mitos que persistem ainda hoje sobre os Beatles.

sábado, 6 de novembro de 2021

Um sábado esquivo

Não sei o que fiz deste sábado. Levantei-me bem cedo e estive a trabalhar até às dez horas. Saí e fui tratar de uns assuntos familiares. Regressado para almoçar, nem dei pelo passar das horas. É deste modo que se dissipa a vida. O tempo passa e nem por ele se dá. Já é noite cerrada há muito. Vista da janela, a rua não passa de uma fantasia fantasmagórica, pontilhada por luzes brancas e amarelas. O bosque da escola ao lado é apenas uma sombra negra e densa, as árvores da rua – tílias, acácias, liquidâmbares – dançam empurradas pela música do vento, enquanto, em estranho strip-tease, deixam cair, uma a uma, as folhas mortas. Por vezes, a avenida é cortada pelos faróis de um carro, mas o trânsito é pouco, vagaroso, alguém que procura chegar a casa, embora sem pressa. Um carro estaciona, sai um casal e precipita-se para o bar da esquina. Há pouco, sem imaginação para melhor, estive a ver um jogo de snooker. É quase tão espectacular como um jogo de xadrez, apenas um pouco menos imóvel, pois os jogadores levantam-se e sentam-se, andam à volta da mesa, onde correm bolas para dentro de buracos empurradas por varapaus a que dão o nome de tacos. A humanidade, honra lhe seja feita, de tudo faz um jogo, talvez porque esteja cansada de coisas sérias. Inventado o jogo, logo é tornado em coisa séria, para que seja inventado outro, antes que o tédio seja mais eficaz que as alterações climáticas e acabe com a espécie. Como se vê, estou sem assunto e ainda não foi hoje que falei da minha aventura, no outro dia, no palácio da justiça local. Fica para a próxima.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mrs. Robinson

Li há pouco que hoje, dia 5 de Novembro, Art Garfunkel faz 80 anos. Que importância tem isso, a não ser para ele e para a família e amigos, caso os tenha? Nenhuma. No entanto, a dupla Simon & Garfunkel marcou várias gerações, entre as quais a minha. Não apenas pela sua música (possuo todos os seus álbuns em CD), mas também por ser deles a banda sonora de um filme de culto, de Mike Nichols, com o título The Graduate, o que deu em português europeu A Primeira Noite. O filme é de 1967 e, apesar da soma dos meus anos ser pesada, não tinha idade, então, para ver o filme. Nem sei se ele passou nessa época em Portugal. Vi-o anos depois. Não por acaso fiquei fascinado. Por certo, se o revisse, não o ficaria. Os tempos mudaram e a inocência perdeu-se sabe-se lá onde. Quem nunca viu o filme, por certo não terá dificuldade de o encontrar por aí. Eu vinha aqui para contar a minha experiência de quarta-feira, numa ida a um tribunal, mas julgo que vou ter de adiar a narrativa épica, embora não tenha acontecido nada, nem eu seja criminosos, nem o motivo tenha sido um crime, mas a dolorosa partilha de bens entre um amigo e a mãe dos seus filhos. Hoje, porém, é sexta-feira, já anoiteceu, o sábado conspira para chegar. Acho que vou ouvir a música que animou A Primeira Noite. Podia dar-me para pior. Quem não desejou uma Mrs. Robinson que atire a primeira pedra.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Metafísica de trazer por casa

Já era noite quando me sentei no escritório. Cansado. Demasiado contacto com a realidade torna-se patológico. No leitor de CD estava um disco de Richard Strauss, corria o poema sinfónico MacBeth. Ao fim de alguns minutos descobri que hoje não é dia em que possa ouvir Strauss. O meu cansaço – ou as preocupações que me atravessam a mente – deixam-me incapaz para uma música tão densa. Ainda pensei escolher uma coisa ligeira. De imediato, porém, uma voz vibrou dentro de mim. Nada, exclamou. Silêncio, ordenou. Sou obediente. Desisto da música, olho pela janela para a noite. Então recordei-me do tempo em que fumava. Se ainda o fizesse, acenderia um cigarro e deixaria a mente deambular entre o fumo e a escuridão do céu. Sem ouvir nada, desejando não pensar em nada, mas isso não me parece possível. A mente é uma cabrita irrequieta, nunca pára. Não fumo, resta-me a noite. Não a noite que existe, mas aquela que desejo. Uma noite pura, não toldada pelas luzes humanas, uma noite que espelhasse o silêncio do universo, que trouxesse até mim o mistério de tudo o que é. Como se vê, depressa se deriva para uma metafísica de trazer por casa, toldado por um pathos insuportável. Melhor seria fumar um cigarro.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Deambulações com os astros

Num site de agregação de notícias, vejo as previsões para os diversos signos astrológicos. São extraordinárias. Quase ao nível das previsões do tempo e das da chave do Euromilhões. Só são batidas pelas previsões económicas e estas, como se sabe, nem depois dos factos acontecerem conseguem estar de acordo com a realidade. Lembro-me de uma conversa tida num meio jornalístico da capital, há muitos anos, em que um jornalista dizia que as previsões da astrologia eram um trabalho da redacção, por norma dado a um novato. Uma forma de desenvolver o talento para contar histórias sobre a realidade. É muito possível, imagino, que mesmo muitas cartas dos leitores sejam – ou tenham sido – trabalho de redacção. Não faço ideia por que razão me aventurei num campo tão juncado de minas e armadilhas como a astrologia. Não vale a pena, para contrariar a minha mais funda e completa desconfiança nesses truques, falar de Fernando Pessoa. Se ele se dedicava à astrologia, também se dedicava a outras coisas que não faziam bem ao espírito. O que conta em Pessoa não é aquilo em que ele acreditava, mas aquilo que escreveu. Não o conteúdo, mas a forma. Se era dado a mapas astrais, isso é irrelevante, embora talvez fosse mais interessante que desenhasse mapas físicos e atlas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Considerações sobre os mortos

Chegámos a Novembro e aos Santos. Cedo, saí de casa pois necessitava de fazer umas compras. Passei pelo cemitério. No pequeno largo exterior havia algum movimento, venda de flores e de alguma parafernália para deixar nas campas. O movimento, todavia, não era muito. Talvez fosse muito cedo, talvez porque o dia de Fiéis Defuntos seja amanhã e não hoje. Poderá haver uma outra razão para a diminuição da afluência aos cemitérios, se é que há essa diminuição. A subjectivização da relação com os mortos. As visitas aos cemitérios pressupõem ainda a existência de um corpo objectivo que ali está e é esse que suporta o culto do antepassado. Ora, uma das marcas da modernidade é a subjectivização da relação com o mundo. Pode-se cultuar os antepassados apenas na interioridade do sentimento e da memória, sem necessidade de recorrer a um suporte físico dado pela existência de um corpo na campa, no jazigo, etc. Os que morreram não se encontram nos cemitérios, mas na memória, no sentimento e nas orações dos vivos. Tudo isto me disse há pouco o padre Lodo, quando lhe liguei e lhe contei que tinha visto pouca gente à porta do cemitério da cidade. Depois, da reflexão filosófica sobre um problema sociológico, lembrou-me que estava com imensas saudades de comer umas broas daqui. São únicas, acrescentou. Levar-lhas-ei, caso vá a Lisboa no fim-de-semana. Agradeceu. Não resisti e disse-lhe que deveria ter cuidado com elas, mesmo que não contribuam para a perdição a alma, podem não ajudar muito o corpo. Ele respondeu com uma expressão em italiano que não percebi e riu-se.