domingo, 28 de fevereiro de 2021

Uma peça de má qualidade

Suspeito que seja um acontecimento trivial e não há quem não o tenha experimentado. Sentei-me e fui abalroado – não encontro outro modo de o dizer – por três palavras que emergiram nem sei de onde. Em mim ouvi dizer cães de caça. Se há ocupação humana que me é estranha é a caça. Os seus rituais de perseguição e morte, o companheirismo das suas relações sociais, o prazer dos troféus e os perigos imaginários corridos, nem posso dizer que me são indiferentes, pois desconheço-os por completo. Também cães são animais com os quais não tenho qualquer relação. Não me são antipáticos, mas sempre estiveram fora do meu horizonte de interesses. O mesmo não se passa com os gatos, apesar de não ter nenhum. Por que razão cães de caça decidiu visitar-me? Talvez exista em mim um fundo de onde emanam aliterações e que estas, conforme percorrem o longo caminho que vai do inconsciente até à consciência, comecem a procurar materiais vocabulares para se realizarem, para encarnarem. Esta aliteração terá a certa altura encontrado cães de caça e foi assim que me visitou, para minha surpresa. Em tudo o que disse há uma estranha teoria sobre os recursos estilísticos. Estes não são aprendidos, mas existem no mais fundo do nosso inconsciente, tal como as ideias inatas cartesianas habitam a razão dos homens, e, por vezes, decidem, os recursos estilísticos, manifestar-se, do modo mais inesperado que se possa pensar. A isto chamaram inspiração. Ninguém há-de crer na minha teoria, nem eu, mas talvez não seja pior do que qualquer outra. Cuidado com o relativismo, ladra feroz a cadela da razão. Logo, a gata da imaginação se contorce e, ronronando, mia que o melhor do mundo é a sua relatividade. Eu fico estupefacto com o que se passa em mim, desconfiado de que a minha mente não passa de um teatro onde se desenrola uma peça, de má qualidade, a que assisto como se não tivesse mais nada para fazer. Logo hoje que é domingo e o último dia de Fevereiro.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

A porta da realidade

A manhã de sábado tomada por ocupações profissionais. O que vale, porém, é que agora a realidade se transferiu para uma dimensão fantasmática a que se dá o nome de mundo virtual. Tem algumas vantagens inegáveis. Pessoas que eram desconhecidas continuarão a ser desconhecidas e se, por um acaso, se cruzarem fora da virtualidade permanecerão nesse estado de desconhecimento, que omite os rituais de sociabilidade e dispensa mesmo a troca de palavras. Não se fala com desconhecidos, um imperativo que se aprende desde muito cedo. Não poderia acontecer um daqueles encontros decisivos que muda o destino de uma pessoa? Sejamos práticos, se é para ter um encontro decisivo, a realidade acabará por chamar, sem se saber muito bem como, aqueles a quem quer mudar o destino e pô-los um diante do outro. Ora como a generalidade dos encontros não servem para mudar destinos, o melhor é que se tornem virtuais, pois já o eram antes de a tecnologia lhes ter dado esse nome e essa aparência. A verdade é que a ocupação matinal não me fez lá muito bem, caso contrário não estaria com estes pensamentos sem nexo. Agora, vou sair e ver o meu neto, que não vejo, a não ser virtualmente, há mais de dois meses. Vou entrar pela porta da realidade.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

O golo e a garganta

Fevereiro está por um fio. Já nem três dias lhe sobram, o melhor será rezar-lhe por alma, ainda em vida. Indiferente ao meu interesse mórbido pelo calendário, uma família, uma mãe e três rapazes ainda sem idade escolar, desconfina na praceta entre prédios. Uma bola parece ser a fonte do alvoroço. As vozes elevam-se para se perderem na abstracção em que a vida se tornou. Estou a especular, a mergulhar num território para o qual não tenho qualquer prova. Por vezes, oiço a exuberância da palavra golo. Há um secreto pacto entre as gargantas dos rapazes e esse anglicismo há muito nacionalizado. Quando delas sai, vem esfusiante, prolongando-se no tempo, como se aspirasse à eternidade. Também eu a terei gritado assim e sinto alguma nostalgia de um tempo em que acreditava nos golos e nos penalties. Perdi a fé. Tornei-me ateu. Já nenhum golo é manifestação de um deus, nenhum penalty, promessa ou perigo. Talvez fosse isto que Nietzsche antecipou ao falar da morte de Deus, ou Max Weber, em desencantamento do mundo. Dei uma vista de olhos pelos jornais online. Parece haver um novo jogo. Quem descobrirá a data do desconfinamento? A imprensa sempre fez parte do meu mundo, mas há nela, mesmo na mais séria, uma superficialidade insuperável. Talvez retrate a vida como ela é. Superficial, inócua, frívola, fútil e leviana. O que me vale é que não me faltam adjectivos, cuja exuberância é prova de escrita incapaz. De facto, Fevereiro está mesmo com más cores. Cinzento violáceo. Não lhe dou muito tempo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Habituamo-nos, é tudo

Há quase um ano, na verdade há mais, que estamos metidos neste sarilho da pandemia. Pensava nisto, enquanto contemplava a Sá Carneiro, agora pouco povoada, com cafés e bares fechados e transeuntes vagarosos, arrastando a vida e a idade atrás deles. Os mais velhos desabituaram-se de andar, os mais novos rasgam o ar com exuberância, para mostrar que são novos e que nada lhes resiste. Pergunto-me o que penso sobre a situação e dou por mim a soletrar os versos de uma canção de Jacques Brel. On n'oublie rien de rien / On s'habitue c'est tout. Não esquecemos nada. Habituamo-nos e isso é tudo o que me ocorre. Habituei-me ao ritmo da pandemia, ao confina, desconfina e volta a confinar. Habituei-me às reuniões online, à videoconferência, a usar máscara, aos rituais pandémicos. On s’habitue c’est tout. Foi com Jacques Brel que me tornei um apreciador da música francesa, apesar de ele ser belga. Lembro-me da sua morte em 1978, pouco tempo depois de eu ter comprado o último álbum que editou. Foi um ano que me ficou na memória, pois morreram também os poetas Ruy Belo e Jorge de Sena. Nenhum destes homens era velho. Sena tinha 58 anos. Brel, 49. Ruy Belo, 45. A medicina, se comparada com a de hoje, era muito incipiente. O dia acinzentou-se, as acácias continuam despidas, embora o bosque de cedros, ciprestes e pinheiros esteja exuberante nas várias tonalidades de verde. Ando muito memorioso, digo para mim mesmo, embora seja possível que os pássaros meus vizinhos tenham escutado. Ainda se hão-de rir por me verem a falar sozinho. On n'oublie rien de rien.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Das coisas em que não acreditamos

Nos tempos de faculdade, por vezes ia a um café na Avenida da República que tinha a peculiaridade de só servir café de saco. Não sei se ainda haverá casos desses. O estabelecimento era muito acolhedor e tinha um certo tipo de clientela interessada em coisas do mundo e da cultura. Mais de uma vez vi por lá David Mourão-Ferreira. Lembrei-me disto porque ele faria hoje anos, noventa e quatro. Nasceu no mesmo ano do meu pai. Nunca falei com ele, mas recordo-o da televisão, dos programas que fazia, num mundo em que havia apenas um ou dois canais televisivos, a preto e branco, e em que a palavra canal não se referia a esgoto, como acontece agora, quando se fala de um canal televisivo. Não estou a protestar com a televisão dos dias de hoje, as coisas são o que são e, de certa maneira, se as televisões são assim foi porque as pessoas o quiseram. Voltando ao café da Avenida da República, recordo o prazer de lá estar a ler o jornal, um vespertino, num tempo em que em Lisboa ainda existiam três jornais da tarde, que foram morrendo por falta de leitores. Bebia café, lia o jornal e fumava, como acontecia num tempo em que se fumava em todo o lado. Incluindo nas aulas. Os jornais morreram, o café morreu, David Mourão-Ferreira morreu, o meu pai morreu. Talvez já ninguém beba café de saco. Quando se envelhece a vida é um acumular de destroços e de perda de referências. Isso, porém, era uma coisa que eu não sabia. Ouvia dizer, mas não acreditava.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Em louvor da malva

Ao longe, descortino o que parecem ser três árvores cobertas por um véu cor de malva. Não imagino que árvores serão aquelas que florescem tão cedo e nessa cor incerta. Se se fizer uma pesquisa sobre a cor malva, encontram-se matizes tão diversificados que apetece de imediato mandar o mostruário às malvas. Há um filme de que muito gosto, embora não seja obra marcante da história do cinema, que tem um nome que vem mesmo a propósito para este texto. Um Táxi Cor de Malva (Un Taxi Mauve), de Yves Boisset, onde contracenam um contido Philippe Noiret, uma provocadora Charlotte Rampling, um exuberante Peter Ustinov e um simpático e humano Fred Astaire, o médico Dr. Seamus Scully, que se desloca no seu táxi cor de malva. Por que razão gosto tanto desse filme, nem eu o sei. De vez em quanto, procuro o DVD e fico a vê-lo, a olhar as paisagens da Irlanda do Sul, os dramas existenciais das personagens. Há uns tempo comprei o romance que deu origem ao filme, de Michel Déon, publicado pela Gallimard em 1973 e traduzido, em 1975, para português e editado pela Bertrand. Ainda não o li. Temo que o espírito do filme e o do romance não coincidam. Não conheço o autor, isto é, nunca li nada dele, mas Un Taxi Mauve foi galardoado com o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Será virtuoso, mas não sei se arrisco, apesar de Déon ter sido eleito para essa Academia em 1978. O Sol deu um ar da sua graça, ao longe às árvores cor de malva fulguram, incrustadas numa paisagem verde, que se diferencia em múltiplos matizes, desde aqueles mais abertos a lembrar uma alface alourada até aos verdes carregados, quase lutosos das colinas que encerram o meu horizonte.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Questões tribais

Os dias cresceram a olhos vistos. Há qualquer coisa estranha na expressão a olhos vistos. Os olhos para verem não precisam de ser vistos. É uma locução adverbial, hão-de sossegar-me os gramáticos ou talvez os linguistas, duas tribos que não sei distinguir lá muito bem. Isto fez-me pensar noutro assunto. Está muito na moda verberar a tribalização da vida social que, segundo as mais recentes crónicas do planeta Terra, está a acontecer um pouco por todo o lado, uma tribalização universal. As pessoas devem gostar de pertencer a uma tribo – ou, mesmo, a várias – e com isso encontrarem um lugar no mundo e um chefe que mande nelas, pois não há tribo sem chefe. Eu próprio me tornei chefe de uma tribo. É composta por uma única pessoa, que é ao mesmo tempo súbdito e chefe, isto é, eu. Sou a única pessoa que me obedece. Tudo isto para confessar que também sou um tribalista. Quase que me esquecia do que me trouxe aqui. Os dias estão maiores, a luz demora-se cada vez mais, abandona aquela mania de se deslocar a trezentos mil quilómetros por segundo, e vai mais devagar. Esta é a verdadeira explicação do crescimento dos dias. Quanto maiores são os dias, mais devagar se desloca a luz. A certa altura, chega a parar a meio do caminho, e o dia prolonga-se, prolonga-se. Prolonga-se a olhos vistos, diria um gramático amante de locuções adverbiais. Ou um linguista. Einstein não haveria de concordar com a explicação, mas ele pertencia à tribo dos físicos, o que não era nem será um ponto a seu favor. Por que razão escreves coisas tão parvas, perguntam-me. Está-me na massa do sangue, respondo.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Não tarda, a Primavera

Já falta menos de um mês – e um mês amputado dos dias a que Fevereiro não teve direito – para que chegue a Primavera. O dia de hoje parece anunciá-la. O sol deu um ar da sua graça, embora de forma muito comedida. Ora brilha, para que árvores e vidros resplandeçam, ora se recolhe por detrás das nuvens, para que a luz se derrame difusa, com um tom de melancolia, que não deixa de lhe ficar bem. Na rua ouvem-se vozes de criança e, nos parapeitos das janelas, os pássaros conversam entre si, enquanto tomam um banho solar. Num vídeo acabado de receber, o meu neto dá saltos em cima de uma cama e parece exultante. Julgo que não haverá criança que não goste de pular em cima de uma cama. A minha neta mais velha, contam-me, entrou no clube das mulheres. Apareceram-lhe as regras, com se dizia antigamente, embora a linguagem usada na comunicação tivesse sido mais moderna. O tempo desliza demasiado depressa e ela já não virá para o meu escritório com a irmã brincar aos colégios, às professoras e alunas, às inscrições e faltas às aulas a serem reguladas com severidade com alguma mãe distraída. Com os saltos de um, as regras de outra, a expectativa da que ainda não se regulou, vou sendo empurrado para fora do mundo. O pior é o confinamento. Sem ele, talvez hoje estivessem aqui a almoçar, e o deslizar em direcção à grande e eterna noite fosse mais aprazível, pois haveria de esquecer, ao vê-los e ao ouvi-los, que o tempo é um príncipe inexorável na sua justiça. Um pássaro canta, a escola ao lado recorda um filme distópico, onde tudo foi abandonado. É domingo, e essa é a única coisa que me ocorre de momento.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Falar do tempo

O Inverno resiste aos avanços da Primavera. Finca-se nas patas traseiras e faz força para que o tempo não deslize rapidamente para os dias ensolarados. Chove e um vento frio sopra de Sul, mas não vai a galope. Deixa-se ir em passo vagaroso, nove metros por segundo. Sou informado de que por aqui se está em alerta laranja, não vá o mafarrico tecê-las. Continuo com acentuada inclinação para ser boletim meteorológico. De que hão-de as pessoas falar, quando não têm nada para dizer? Do tempo. Um homem convida uma mulher para sair, mas sofre de uma acentuada falta de assunto. Então, ocorre-lhe falar do estado do tempo. Informa-a das temperaturas máximas e mínimas, se chove ou faz sol, se troveja. Emocionante é o momento em que fala da velocidade do vento e põe a mão sobre a dela. Ela, perplexa e perdida na carta meteorológica, não sabe se há-de ou não tirar a mão. E se estiver um vendaval? E se chove a potes? E ali fica indecisa, tira ou não tira, enquanto ele avança por ciclones e tsunamis, deambula pelas tempestades tropicais. Chega a ser convincente no que diz sobre tempestades de granizo e as grandes nevascas que podem acontecer no próximo século. O tempo é um assunto inesgotável, e, caso fosse cultivado com esmero, muitos divórcios seriam evitados.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Cultivar um jardim

Os dias continuam desagradáveis. Um vento frio sopra de Sul e daqui a pouco há-de chover. Enganei-me. Já está a chover, e chove apenas para confirmar a precisão do prognóstico meteorológico lido num dos sites que se dedica a presumir como o clima se comportará. Nunca deixa de me fascinar a atracção humana pelo futuro, tão forte quanto a que existe pelo passado. Daqui não será completamente estulto concluir que o pior sítio para se viver é o presente. Deverá ser tão doloroso que a mente humana ou se volta em ânsia para o que há-de ser ou se recolhe na melancolia do que foi. Talvez a vida não seja outra coisa senão um conflito com o presente, uma descoincidência contínua com o que ocorre a cada instante. Uma pedra ou um rio coincidem plenamente com o momento, por isso não têm uma consciência infeliz. Talvez estes pensamentos sejam motivados pelo confinamento, o qual torna as pessoas meditabundas e as leva a pensar coisas que um saudável bom-senso manda não pensar. Há pouco contei as orquídeas floridas. Já são seis e as outras prometem abrir-se em esplendor para que possam ser contempladas. Um filósofo alemão de origem coreana escreveu um livro em que reflectiu sobre o tempo que dedicou ao seu jardim. Tenho pena de não ter uma vocação de jardineiro, pois essa seria a mais bela e produtiva das ocupações. Fazer crescer a beleza pelo prazer de a contemplar.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Mundos possíveis

Um dia desabrido, o de do hoje. Suspeito que terá acordado indisposto, lacrimoso, talvez a sofrer de algum desgosto de amor, se ainda os há, ou de um estado depressivo. Outra hipótese é de se estar na Quaresma e o dia entregar-se aos ritos penitenciais, ao exercício do arrependimento e, por isso, chove como se chorasse, tomado por súbitos ataques de mágoa e melancolia, em que uma água gélida se derrama de nuvens cinzentas. Daqui a pouco terei de sair, atravessar a cidade de lés-a-lés. Olho para a rua e pergunto-me se esta Terra é uma excepção num universo sem medida ou se é apenas um dos mundos que por ali existem. Caso seja apenas um dos mundos habitados, será ela o melhor dos mundos possíveis? Muitas são as coisas estranhas que há universo fora, mas talvez as mais estranhas sejam a existência de mundos habitados e de neles haver seres que pensem que há mundo habitados. A chuva persiste na queda, os carros passam devagar, são quatro da tarde, mas podiam ser seis ou mesmo duas. Este confinamento é muito diferente do anterior, é o que me ocorre.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Metafísica de alfurja

Por vezes sou assaltado por pensamentos que ninguém no seu perfeito juízo deveria ter. Por exemplo, há pouco sofri a distracção imposta pelo pensamento de que toda a busca pela origem das coisas, seja das espécies, do universo, ou de qualquer outra existência, será apenas fruto de uma forma de pensar errada. O facto de perguntarmos pela origem não significa que exista uma origem. Este computador não teria origem, aquele carro que passa na avenida não teria origem, eu não teria origem, o universo haveria de passar bem sem origem. Talvez seja tudo um borbulhar eterno sem princípio e sem fim. Depois considerei estes pensamentos e julguei-os inúteis até para uma Quarta-Feira de Cinzas. Fui espreitar o trânsito da avenida, mas fiquei a olhar para o friso das orquídeas. Todas dão sinais de que irão florescer, cada flor terá a sua origem num botão, que terá a sua origem em qualquer outra coisa que os meus conhecimentos botânicos não alcançam. Então sempre existe origem das coisas, dir-se-á. Eu responderei que sim, mas que talvez isso não passe de uma manifestação da preguiça que me invade a mente. Olho de novo para a rua e vejo borbulhas por todo o lado, bolhas que aparecem e desaparecem, sem causa nem destino. Acho que vou passar pelas brasas, talvez esta metafísica de alfurja se remeta à sua origem.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Uma Terça-Feira de Cinzas

Enquanto olho o mundo através de uma janela, vou bebendo café. Se não há qualquer ligação significativa entre beber café e olhar através da janela, é plausível que possa haver uma relação directa entre o dia triste e cinzento, com uma luz baça e fria, e um ânimo pouco animado. Os seres humanos dependem mais do cosmos do que aquilo que eles gostam de reconhecer. Acontece que certos actos ou estados de alma podem ser o resultado de causas exteriores. Um certo tipo de luz, a forma como corre o vento, algum aguaceiro despropositado, uma vaga de calor. Todas estas coisas influem sobre o espírito, assim como sobre os ossos. Esta Terça-Feira de Carnaval mais parece uma Quarta-Feira de Cinzas, oiço dizer. Contudo, os pássaros meus vizinhos parecem animados. Conversam, cantam, voam, talvez pensem que estão já na Primavera. Presumo que não se mascarem no dia de hoje, mas a ornitologia não é o meu forte. Sei, por exemplo, que os anjos se disfarçam de pombos, mas não sei se os pombos se disfarçam de alguma coisa. O mundo está cheio de mistérios e mesmo onde eles não existem, os seres humanos inventam-nos. Umas vezes para continuar uma conversa, outras para sonhar, outras ainda para escreverem qualquer coisa. Não é amor à mentira, nem tão pouco uma inclinação para o mito, mas apenas a necessidade de continuar a usar a linguagem, cujo mistério não é dos menores.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Deixar de ter opinião

Apesar dos esforços e dos afazeres timbrados com o selo do calendário, o tempo persiste a desdiferenciar-se, a perder as qualidades com que longas tradições o investiram. Talvez todas as coisas tendam, apesar dos esforços em contrário, para a igualdade, para se mesclarem no magma da existência, perdendo qualidades. Não sei se pensar nestas coisas me dá sono ou se as penso porque estou com sono. A vida arrasta-se ao sabor das notícias, como se arrastam os carros pela avenida movidos pelas necessidades da existência. Solicitam-me uma opinião, logo a mim que faço os possíveis por evitar esse dano que é ter opiniões. Quando era novo tinha muitas opiniões, à medida que o tempo foi passando fui-me despindo delas. Quando menos se percebe o mundo mais opiniões se tem, quanto mais opiniões se tem menos se percebe o mundo. Depois, sem se saber muito bem a razão, começa-se a perder a vontade em sustentar as presunções pessoais. O silêncio então cresce. Torna-se possível ficar a olhar para o que se passa e daí evitar qualquer ilação. Talvez todas estas ideias sejam condenáveis, mas não me ocorreram outras.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Descrições do mundo

O domingo desliza sorrateiro em direcção ao meio-dia. Na rua, andam famílias em fuga ao confinamento. Trazem crianças pela mão e deixam-nas correr nas pracetas envolventes. Numa delas, um pai joga à bola com dois filhos pequenos. Tudo de máscara, exceptuando a bola. O parque infantil, porém, está vazio, interdito pelas autoridades, apesar de não haver autoridade por perto e os sinais de interdição se terem desvanecido. Um periquito poisou numa das varandas. Passa longo tempo a apanhar sol e a contemplar o abismo. Por mim, sinto uma vertigem, como se fora eu a olhar para o precipício, mas eu não sou pássaro e o meu elemento é a terra. Ontem, caminhei longamente por fora da cidade. O pior é o declive, as subidas às quais o corpo se desabituara. A vantagem está na rápida acumulação de pontos cardio, segundo uma aplicação do telemóvel que me vigia os minutos activos e talvez muitas outras coisas que nem imagino. Oiço as vozes lá em baixo, o Sol deixou-se cobrir por um véu ligeiro de nuvens esbranquiçadas e a luz perdeu a reverberação de há pouco, parecendo sofrer de súbita anemia. Consta que é dia de S. Valentim, mas esse é um santo estranho a qualquer devoção por aqui. Mais uns dias e começa a Quaresma, coisa que já não comove ninguém. Não é fácil manter um diário quando não se tem nada para dizer.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Meditação solar

Volto ao registo meteorológico. O sábado começou imerso em neblinas matinais. Prolongaram-se pela manhã dentro, mas a partir de certa altura o Sol subjugou os inimigos e coroou-se como um rei esplendoroso. Reverbera ainda, mas nesta exibição do seu poder, como em todas as exibições de poder, esconde-se uma ameaça. Virão dias em que o seu brilho será insuportável e o calor, mortal. Deflagrarão incêndios e toda uma tragédia tórrida emanará do seu brilho desmedido. Isso, porém, será lá mais para a frente. Agora, a sua vinda merece celebração. Depois do meio-dia fui às compras. As ruas quase pareciam as de um sábado desconfinado, com muitos carros a circularem. Na superfície comercial – nem sei como conseguem inventar estas designações – não havia muita gente. A aproximação da hora de almoço retrai a vontade de fazer compras, pensei. Agora, preparo-me para ir fazer uma caminhada. É um exercício para me imaginar uma pessoa livre, que não está em prisão domiciliária. Espero que os caminhos que irei eleger estejam sem gente e que possa desmascarar-me e sorver o ar, como se tudo estivesse como imaginávamos que estava há um ano, embora já não o estivesse. A vida está cheia de ilusões e armadilhas.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Tempo de Carnaval

Está um tempo de Carnaval. Olho para a frase e não posso deixar de me rir. Se estivesse a chover, também poderia dizer que estava um dia de Carnaval. Dito de outra maneira, qualquer tempo é tempo de Carnaval. Este ano não haverá corso, o país será poupado àqueles desfiles constrangedores, à pobre alegria dos foliões, às raparigas cheias de frio a abanarem-se como se estivessem no Rio de Janeiro, à falsificação que tudo aquilo representa. Certamente, haverá um psicólogo caridoso que virá explicar que essa terrível ausência dos festejos terá um impacto na saúde mental dos portugueses, que ficarão mais ansiosos e deprimidos, a sonhar com ansiolíticos e antidepressivos. Como observador longínquo do fenómeno, sempre achei que era uma manifestação depressiva de uma doença mental que ataca os portugueses entre o Natal e a Páscoa. Com um dia tão primaveril, nem consigo compreender o motivo por que me pus com esta diatribe contra tão preclara instituição. Eu que me mascaro para ir à rua e mal chego a casa tiro a máscara que usei e fico com aquela com que nasci e foi envelhecendo. Os dias já são maiores, crescem languidamente e, não tarda, hão-de precipitar-se para o solstício de Verão. Depois, começarão a encolher. Não há nada de novo sob o Sol. Talvez tenha dormido mal.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Da necessidade

De manhã, tornei à farmácia. O médico decidiu inovar e introduziu uma nova substância na ementa, a qual não apresenta opções, apenas preceitos a cumprir. Muito gostamos de pensar que a vida está cheia de possibilidades alternativas, mas começo a desconfiar que sob essa capa se esconde um feroz preceituário de regras a que não nos podemos furtar. A terrível necessidade dos gregos antigos. Estes diziam tudo com uma beleza de que perdemos a capacidade de imitar. Ananke era a deusa da inevitabilidade e mãe das Moiras. Eram sensatos, os gregos, ao prestar-lhe culto. Nunca se sabe se o inevitável não pode ser evitado. Haverá uma inevitabilidade na chuva que cai, pergunto-me. Talvez lhe seja possível não se precipitar e apenas o faça por um exercício de liberdade da vontade, o desejo de ajudar os homens e, ao mesmo tempo, de os aborrecer. Reparo que a minha inclinação para o registo meteorológico continua activa. Na verdade, sou um narrador sem narrativa, sem nada para contar e sem nada para dizer. Uma camada mais escura e baixa de nuvens parece deslocar-se a grande velocidade, ao contrário da camada superior, estática e sem vontade de se dar a grandes viagens. Também é plausível que seja uma ilusão, e que não existam nuvens, nem movimento, nem chuva e tudo o que vejo se passe na minha mente, que de tão ociosa se põe a imaginar um mundo fora dela, como se isso fosse possível.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Esculápios, profetas e sibilas

A manhã apresentava um sol esplendoroso, que logo se retraiu e agora o céu é um oceano de cinza e chumbo. Temo que estes textos se confinem e não sejam mais que um registo do estado do tempo. Nunca pensei entregar-me com tanta devoção à meteorologia. Quando era criança achava estranho, embora não me deixasse de fascinar, a devoção dos mais velhos, a geração dos meus avós, pelo boletim meteorológico. Não sei se os impelia um interesse genuíno pela meteorologia ou se era um resquício de um culto arcaico dos poderes divinatórios, de reverência por profetas e sibilas. Antes registo meteorológico do que contabilidade pandémica, pensei. Olho para as estantes que me envolvem e confirmo a necessidade de comprar mais alguns módulos. É preciso evitar que o caos se instale e, neste momento, são já demasiados livros sem poiso certo, uns sem-abrigo que estão por aqui ao deus-dará. Daqui a pouco terei de ir fazer uma visita ao cardiologista. Espero que não tenha ideia de me pôr a fazer exames, pois ainda há umas semanas os fiz, mas nunca se sabe o que atravessa a mente de um médico, uma espécie que também reivindica a posse de poderes xamânicos. Esculápios vindos sabe-se lá de onde, olham para uns papéis e põem-se a conjecturar sobre o futuro, quando não sobre o passado, o que é ainda mais difícil. Talvez chova, quando tiver de sair de casa. A profecia não é o meu forte.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Uma saída ao mundo real

Depois de tantos dias de reclusão, saí para ir à farmácia. O mal é começar a frequentá-las, pensei ao entrar. Não que as pessoas sejam desagradáveis. Pelo contrário, são muito afáveis e têm o poder de fazer esquecer que o que leva ali os clientes é uma qualquer dependência vital. Fui abastecer-me de algumas drogas de que dependo, talvez menos moderadamente do que imagino. Se as deixasse de tomar, os efeitos a curto prazo seriam invisíveis, mas desconfio que a médio prazo poderiam ser muito pouco recomendáveis. As farmácias são uma prova do triunfo da química. Talvez seja possível imaginar um mundo onde a terapia química seja substituída pela genética. Talvez, mas é um assunto do qual nada sei. Aproveitei para caminhar pelas ruas. Estavam vazias e tristes, as árvores despidas, e nem a aberta que permitiu que um sol invernoso brilhasse chamou as gentes à rua. Depois, peguei no carro e fui dar uma volta para lhe alimentar o ego e a bateria. O último confinamento custou-me uma bateria. Não há como uma vida na província, onde nada se passa e nesse nada está toda a sua glória. Os dias já cresceram um bom bocado, constato agora ao olhar pela janela.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Incertezas do dia

Um dia incerto, mais um. O sol já brilhou cheio de promessas, depois o céu cobriu-se de nuvens e, agora, chove. Uma chuva fina, pulverizada, que o vento arrasta em turbilhões. A manhã foi intensamente ocupada e a tarde não será muito diferente. A pandemia trouxe uma nova apreciação sobre o que deve ser uma conduta eticamente permissível. O próximo deve estar menos próximo e há uma justa distância a cultivar. No espaço, mas também na expressão dos afectos. As culturas do Sul vinham abolindo as distâncias, cultivava-se a proximidade até à intromissão, mas isso já não é virtuoso, se é que alguma vez o foi. Pensei em tudo isto enquanto olhava para a avenida quase deserta, um peão passava na passadeira, outro ia pela calçada do lado de lá. Faltava-lhes ânimo nos passos, como se não soubessem o que fazer numa hora como esta. Talvez não saibam. Sento-me e não quero pensar em nada, a não ser nas tarefas a realizar. Tirando isso, também eu não sei o que fazer, embora não sofra de falta de ânimo. Pelo menos é o que soletro para mim mesmo. Oiço um álbum chamado From Gagarin’s Point of View, de Esbjörn Svennson Trio. Esbjörn Svennson não teve sorte, apesar do talento até para encontrar títulos para os álbuns do seu trio. Tudo é incerto como o dia de hoje. O Sol voltou a brilhar. Por quanto tempo?

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Imaginação narrativa

Numa das varandas da casa tem-se uma vista directa para a Sá Carneiro. Fui lá. Fiquei a olhar o trânsito. Os carros não paravam de passar, nos dois sentidos, movidos por uma necessidade de circulação de tal modo constrangedora que lhes foi impossível ficarem parados nas garagens ou nos lugares de estacionamento das ruas. Uns iam de faróis apagados, outros exibiam as luzes com que se anunciavam. O dia talvez esteja menos frio que o de ontem. Alguém vai pelo passeio do outro lado. Caminha sem pressa, por vezes os passos parecem hesitar. Passou diante de um friso de lojas vazias, que em tempos foram dependências bancárias. Então, imaginei um narrador que relatasse as acções daquela pessoa. Não um narrador que da sua omnisciência desse a conhecer uma história em volta de uma intriga para a qual o leitor esperaria um desenlace, mas de um outro tipo de narrador que descrevesse cada gesto, cada palavra, cada som escutado, cada cambiante da paisagem, cada mudança da configuração das pedras do passeio, a cor de cada carro que passa pela pessoa. Um narrador que fosse como uma câmara de filmar, uma câmara exaustiva, que na sua ânsia de tudo registar e contar mostrasse uma nova omnisciência. Depois, recolhi-me e disse que não devia pensar em coisas daquelas, pois hoje é domingo, dia de descanso e até a imaginação precisa de descansar. Calculo o tempo que falta para o almoço e sento-me.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Sábado tardio

Eram quase quatro da tarde quando tomei consciência de que hoje é sábado. Vale mais tarde do que nunca, dir-se-á. Comecei cedo a trabalhar e quando acabei, já a manhã tinha ido para aquela pátria de onde nunca se volta. O almoço foi tardio e, depois dele, fui à varanda do escritório olhar a rua. Vi um casal atravessar uma passadeira, ele com máscara, ela de rosto aberto para quem a quisesse olhar. Imaginei-a uma bela mulher, mas, dada a distância, não o pude confirmar. De uma chaminé saía fumo. Pela quantidade presumi ser de uma lareira. Olhei demoradamente as acácias, agora completamente despidas, mas não consegui formular nenhum pensamento sobre elas. Talvez, penso-o agora, as árvores falem entre si, troquem informações e produzam mesmo pensamentos complexos, uma literatura articulada pelo movimento dos ramos. De imediato, o olhar é capturado pelo bosque da escola aqui ao lado e sinto que os cedros falam com os pinheiros e os ciprestes. Tento escutar a conversa, mas a janela fechada não deixa que som algum chegue até mim. Depois, olho paras as oliveiras e sinto a sua solidão, a tristeza que as habita. Todos estes terrenos formavam um extenso olival, para onde vinham ranchos de homens e mulheres varejar a azeitona e apanhá-la. As que restam são tratadas como peças de museu e isso deixa-as inconsoláveis. Há muito que não há um dia de sol, um daqueles dias frios e luminosos, onde apetece vestir um sobretudo e caminhar pela rua. Hoje é sábado, as pessoas não podem viajar entre concelhos, o vento norte sopra com muita moderação, o céu está nublado, mas não chove. Não tarda, e a noite cairá.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Um analógico no mundo digital

Uma viagem à varanda faz-me descobrir que o dia está frio. Depois, pensei sobre essa constatação e fiquei decepcionado pela minha subjugação ao mundo analógico. Fosse eu um digital nato, teria de imediato aberto a aplicação meteorológica e verificado a temperatura fria que ali consta. Qual a diferença entre um digital e um analógico? O analógico depende da realidade, um digital dispensa-a, basta-lhe consultar o telemóvel para aceder ao conhecimento. Qualquer analógico, como este infeliz narrador, está submetido à canga do real, à necessidade da verificação empírica. Desconfio que, por mais reuniões e encontros em plataformas digitais que faça, nunca conseguirei que me seja concedida cidadania nessa pátria feita de 0 e1. Por outro lado, há que ter em conta uma certa inclinação do narrador para a hipérbole. O dia não apenas está frio como chove. Vejo-o pela janela, confirmo-o no telemóvel. Depois de uma manhã passada numa reunião online, aguarda-me uma tarde numa reunião online. Só espero que jantar não seja virtual, que o tinto não resulte de uvas digitais e que a serenidade da noite seja a serenidade da noite e não uma imagem da serenidade da noite projectada do computador.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Literatura de viagens

Fazer parte do batalhão do confinamento é uma tarefa que exige um rigoroso planeamento militar, do qual a logística e o regimento de disciplina não serão o que menos importância tem. Há pouco, foi hora de exercício. Nestas alturas, sinto uma estranha afinidade com o jovem oficial herói desse espantoso romance que dá pelo título de Viagem à Volta do meu Quarto, de Xavier de Maistre. Detido durante seis semanas em casa, descreve as deambulações no quarto como se o assunto fosse a literatura de viagens. Também eu deveria começar a descrever as estantes do escritório como grandes paisagens exóticas. Falaria do deserto que se abre na estante à minha esquerda. Faria o inventário minucioso dos acidentes orográficos através da indicação de autores e títulos. Na da direita, haveria de descobrir paisagens polares, a brancura de neves e gelos. As deslocações para os quartos ou a cozinha seriam descritas como grandes viagens transatlânticas. Na sala onde se encontra a televisão, talvez descobrisse pirâmides, múmias e o que resta da grandeza do Egipto dos faraós. Haveria de fazer anotações etnográficas, considerações políticas e meditações sobre a relatividade moral dos povos. Seria tudo mais interessante, tivera eu talento para inventar desertos de areia ou de água gelada naquilo que é apenas papel e gostasse de ser um viajante. Há pouco fiz mais uma tentativa de falar com os estorninhos, mas nem para mim olharam. Talvez estejam zangados comigo. Passei a manhã a videoconferenciar, o mais natural é que os neurónios sofram ainda as ondas de choque do acontecimento, e as sinapses sejam um pouco desconexas. Há em tudo uma sombra de tristeza, uma tonalidade melancólica.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Comprar um destino

Na contracapa de um livro de poesia – aliás, uma tradução – estão as palavras de um conhecido romancista português: Isto é Grande Poesia, sem uma baixa, uma falha, um tropeço. Os olhos não se soltam das maiúsculas de Grande Poesia. Medito nelas e quanto mais medito mais me parece que o famoso romancista se entrega ao proselitismo ou ao apostolado. Uma grande poesia não necessita da hipérbole das maiúsculas, basta-se a si mesma na sua grandeza. Depois, penso no que será uma baixa, uma falha, um tropeço em poesia, mas não sou um escritor famoso, nem sequer um escritor, e não consigo fazer ideia. Entretenho-me com minudências e escrevo sobre futilidades. Por vezes, pareço uma emissão do boletim meteorológico. Descrevo o estado do tempo, a cor do céu, a inclinação do vento. Outras vezes, sou um voyeur que espreita não amantes descuidados, mas a rua por onde passam transeuntes com destino. Fascinam-me as pessoas que possuem um destino. Gostava de lhes perguntar onde o compraram. Sabendo o sítio, haveria de ver o preço, e se fosse em conta, ainda compraria um destino. Pena é que não possa comprar, disso estou certo, um Grande Destino, cheio de maiúsculas. Contentar-me-ia com um destino pequenino.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Um diário de futilidades

Também de Fevereiro o júbilo anda arredado. Está tudo tão melancólico que a luz se some dentro de si própria, num movimento de reversão que transforma o dia em quase noite. Espreito pelas janelas, a estrada está molhada, os carros passam na avenida, um ou outro transeunte vai pelo passeio, dando ares de atleta. O esboroar da existência nem sempre se faz em festa e fogo-de-artifício. Preso ao confinamento, observo as contabilidades de cada dia, nesse balanço macabro que junta infecções e óbitos, numa economia em que a oferta da morte e da patologia excede em muito a procura. A manhã passou com um contínuo bombardeamento da caixa de correio electrónico. A existência virtual, de tão imponderável, acaba por ser bem mais adiposa que a real. À minha frente, tenho vários livros de poesia. Com os títulos compor-se-ia um poema que não haveria de desmerecer, mas o que leio, quando a virtualidade me deixa, é um romance de Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty. Em Portugal o termo alemão Angst foi traduzido por angústia, mas na edição em castelhano, por miedo. Os franceses traduzem por angoisse e em língua inglesa está vertido por anxiety, no caso do livro, mas no do filme de Wenders, por fear. Medo será mais apropriado, ou talvez nenhum guarda-redes sinta medo, angústia ou ansiedade antes do penalty. Isso, como já vi escrito, pertence ao que vai marcar e não ao que vai tentar defender. Houve um corte súbito de electricidade. A internet desapareceu e talvez alguém tenha ficado preso num dos elevadores. Apuro os ouvidos. Silêncio. A vida é feita destas minudências e aos homens cabe-lhes apenas a metafísica do penalty. Por mim, perco-me neste diário de futilidades.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Questões aladas

Os estorninhos voltaram ou talvez nunca tivessem partido. Serão residentes, mas durante os últimos tempos não se ouviam. Agora, cantam e voam, desenhando estranhos símbolos no ar, letras de um alfabeto que só os anjos decifrarão. Os pombos, pousados nos telhados, observam com desconfiança as acrobacias destes primos mais pequenos. Enumero as coisas que tenho de fazer, olho para um artigo que preciso de ler com atenção. Terá a chave para um enigma com que me deparei numa incursão por um sítio que não devia frequentar. O arvoredo dorme em profunda quietação e também em mim há sono. Pudesse e dormiria agora. Fecho os olhos, deixo-me levar por uma súbita rêverie, mas logo tomo consciência de que não me posso entregar a tais devaneios. Os estorninhos fazem-me chegar a sua voz. Deveria gravá-la e dedicar a vida a decifrar-lhes as palavras. Depois, conformo-me com a minha impotência para o fazer. Não é Champollion quem quer, e também não tenho qualquer pedra roseta.