segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Perversões de Janeiro

Janeiro acaba hoje, lá para a meia-noite. Um mês pervertido, de maus hábitos, a fazer passar-se por aquilo que não é. O que tinha ficado combinado, quando foi feita a distribuição dos meses pelas estações, era Janeiro ser um mês de Inverno, com chuvas copiosas, águas a correr peãs cidades e pelos campos, talvez inundações, sabe-se lá mais o quê. Nada disso. Janeiro agora é Primavera, árvores a florir, passarinhos a cantar, um sol vigoroso. À noite está frio, claro, mas os dias são uma antecipação do que está para vir. Hoje é um dia particularmente pesado. Voltaram as videoconferências, uma espécie de exercício penitencial adequado a quem tem muitos e graves pecados, embora existam videoconferências para todos os gostos. Umas são rápidas, sem considerações sobre o importante tema do sexo dos anjos. Outras, porém, são exercícios ferozes de angelologia, onde o assunto principal é o do sexo dos mensageiros divinos. Há quem esteja fascinado por esse sexo etéreo e sobre ele derrame as mais profundas especulações. Não tenho a certeza, mas será a casos destes que se aplica aquele comentário acintoso que proclama: Freud explica. Na verdade, Freud não explica nada há muito, muito tempo, mas é pena. Ontem deu-se o desfecho da campanha eleitoral. Encerradas as urnas, pode-se dizer que a campanha – uma alegre campanha – não focou muitos dos assuntos mais excruciantes que afectam este cantinho à beira-mar plantado. Por exemplo, o desconcerto das estações, elas que deveriam suceder-se em ritmo concertante, ou a razão por que há tanta gente disposta a gastar a vida dos outros a discutir o sexo dos anjos. Os nossos políticos de todos os quadrantes eximiram-se ao dever de discutir coisas destas que atrapalham a vida de toda a gente. Uma pena e uma oportunidade perdida.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Uma questão de almas

Hoje é domingo e, devido a um hábito contumaz, o almoço será tardio. A meio da manhã recebi uma chamada do padre Lodo. Já fui votar. Desde que adquiri nacionalidade portuguesa, não falhei uma eleição, acrescentou. Sou devoto da democracia, apesar de jesuíta. Ao dizer isto começou a rir-se. Temos má fama, continuou, mas somos uma companhia moderna. Aqui, foi a minha vez de me rir. Modernos, então não são um pilar da contra-reforma? O que lá vai, lá vai, respondeu ele. Depois, começou a evocar a sua Itália, a família. Um dia destes vou fazer uma visita. Querem vir comigo, perguntou, como quem faz um convite. As minhas netas estão um pouco aceleradas. Desde que têm um cão, tratam-no como se fosse um irmão. O bicho olha para mim desconfiado, não devo ter ar de pertencer ao clube dos adoradores de animais. A verdade é que não me passaria pela cabeça fazer de avô de um cachorro. Devo ser um especista do pior, mas, apesar de defender que os seres humanos têm deveres rigorosos para com os animais e até para com as árvores, não julgo que se lhes deva dar direito de voto. Sobre este assunto partilho a visão do padre Lodo, que apesar de ter o seu gato de estimação, não admite a ideia de uma continuidade entre espécies. Costuma dizer que admira Darwin, mas que um homem é um homem e um gato é um gato. E os gatos não têm alma, para logo acrescentar: não têm alma imortal. Por analogia, também acho que o cachorro das minhas netas não terá uma alma imortal. Aproxima-se a hora de almoço.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Dia de reflexão

Até eu, um mero narrador, estou em dia de reflexão. Em vários sítios tenho encontrado um feroz argumentário contra este dia anteposto aos actos eleitorais, no qual as pessoas se recolhem e se colocam diante do espelho para este as reflectir. Como é público, eu não me meto em política e não tenho opiniões políticas. Estou proibido pelo autor. Contudo, não posso estar mais em desacordo com todos aqueles que vituperam a existência deste magnífico tempo, no qual, depois de ouvirem e de estudarem as múltiplas opções que a pátria tem para cumprir aquilo que é determinado por Bruxelas, as pessoas se entregam a um tenaz exercício da sua razão crítica para determinar, se for esse o caso, a quadrícula do boletim de voto onde irão colocar um X. E este acto – o de colocar um X – deveria produzir uma grande indignação, pois discrimina os homens, os machos da espécie. Estes deveriam ter direito a colocar no boletim de voto um Y. Pouco corajosos, temendo que o Y corresponda a um voto nulo, lá cedem na sua masculinidade e, nesse momento crucial em que escolhem o destino da pátria, feminilizam-se e em vez do verrumante Y pespegam no papel o doce e harmónico X. Não faço ideia se a Comissão Nacional de Eleições permite que se expresse este tipo de problemas, mas há que correr riscos. Hoje está um dia de Primavera por aqui. Fui à rua e senti as pessoas acabrunhadas. Deve ser o peso da reflexão, ainda não sabem em que quadrícula hão-de fazer o X, pensei. Antes de encerrar este assunto, gostaria de sublinhar a perspicácia do legislador que, nos anos 70 do século passado, decidiu um dia de grande serenidade, digamos de bonança política, antes daquele em que as urnas se abrem e se fecham. Faz-me lembrar aqueles momentos de súbita calmaria no mar que antecedem as terríveis tempestades.  O legislador era, de facto, perspicaz, mas também dado ao exagero e ao drama. Tinha uma visão teatral da política, não percebendo que vivemos no mundo moderno, numa época onde a burocracia ocupou o lugar do encantamento mítico. Tudo depende da contabilidade e não das vontades ínvias dos deuses. Agora, vou continuar a reflectir, mesmo que um narrador, um mero ser de papel, não tenha direito de voto. Outra injustiça, não bastava já o banimento dos Y, também os narradores – sejam X ou Y – foram banidos.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Fim de reclusão

Passada a semana de reclusão, lá me vi atirado para a rua, obrigado a perambular por aqui e por ali, perdido entre outros transeuntes, também eles a deambular sem destino. Constatei, não sem alguma tristeza, que nada tinha mudado. Sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, dir-se-á e eu concordo. Contudo se sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, também oito não o serão, mas se oito não são… O leitor já está a ver a onde leva esta história. A isto dá-se o nome de paradoxo de sorites. Ainda falta qualquer coisa, mas deixemo-nos de paradoxos. Tenho uma série de coisas desagradáveis para ler, bem como outras não mais agradáveis para escrever. Para comemorar o dia da libertação, acabei por passar por uma livraria e, para enriquecer a minha pobre biblioteca, trouxe de lá os romances A Polícia da Memória, da japonesa Yoko Ogawa, e Tomás Nevinson, do espanhol Javier Marías. Segunda a crítica, este será o seu melhor romance. O pior é que são 650 páginas, um tijolo. Chega de procrastinar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Sem-abrigo cinematográfico

Hoje passei o dia a trabalhar, apesar de continuar em isolamento covidiano. Amanhã, é dia de soltura. Durante estes sete dias, o vírus foi benévolo. Não por causa da minha super-imunidade, mas das três doses da vacina. Sem elas, não sei o que aconteceria. Foi ainda benévolo de outra maneira. Retirou-me a vontade de ler, o que me permitiu ter tempo para ver cinema. Não entro numa sala de cinema desde que a pandemia começou. Aliás, já tinha diminuído as idas. Por norma, só ia ao cinema quando estava em Lisboa. Ali frequentava as salas da Medeia Filmes, no Monumental, no Saldanha Residence e no King. Eram as que passavam o cinema de que gosto e onde não havia gente a comer pipocas. A certa altura, fecharam as salas do Saldanha Residence. Depois, fechou o King. Por fim, fecharam as salas do Monumental. Senti-me um sem-abrigo cinematográfico. Quando fui estudar para Lisboa, a sensação era o Quarteto, que, na altura, tinha uma selecção de filmes para um público com um certo olhar, digamos assim. O tempo passou e tudo aquilo se degradou. Já não sei em que sala foi, mas uma noite fui a uma estreia de um filme de João Botelho, salvo erro. Chegada a hora de começar o filme, nada se moveu. Os minutos começaram a passar sem dó nem piedade, os presentes perguntavam-se pelas razões do atraso, mas não havia quem confessasse, até que passado bem mais de meia hora entra na sala o Presidente da República e mulher. Estava explicado, mas havia uma incongruência. Como seria possível um militar não cumprir o horário? Fosse aquilo uma guerra e Portugal tinha perdido por falta de comparência. Do filme, já não me lembro. Tenho a vaga sensação que uma das actrizes era a Maria de Medeiros, em início de carreira, mas já não juro.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Sem traço

Continuo em isolamento, mas aproxima-se o dia da libertação. É preciso que o vírus continue a cooperar como tem feito até aqui. Tanto quanto sei, os vírus são criaturas voláteis, caprichosas, possui idiossincrasias que nem sempre se deixam interpretar. Até hoje, apenas me permitiu ver cinema. A leitura cansava-me. Trabalhar, ainda me deixava em pior estado. Hoje, porém, estive toda a manhã a cumprir os imperativos que a necessidade me impõe. Daqui a pouco volto para a azáfama. Olho para as ruas, mas acho-as irreais, um sol de cor indefinida, uma mistura de palha e melancolia. Uma máquina troa, os adolescentes gritam à espera do começo da aula no Centro de Línguas. Reparo que as acácias da praceta foram podadas. Rebentarão mais vigorosas. No correio chegou-me um livro de Augusto Abelaira, comprado num alfarrabista. Abro-o, percorro-o e sinto uma certa desilusão. Não tem nenhum traço do antigo proprietário. Uma dedicatória, um bilhete esquecido entre as páginas, uma reflexão, nada. Arrumo o livro, dou uma volta pela casa, olho para o friso das orquídeas e espreito o castelo ao longe. O tempo passa sem se importar com as orquídeas, os castelos, os vírus e os isolados. Mentalmente, registo o que tenho para fazer ainda hoje. Espreguiço-me e bocejo. Vida de isolado. Ao menos, podia ter ido para a Trapa ou para a Cartuxa, para esses lugares de grande silêncio. Medito no assunto e decido que vou ver um filme. Depois, terei tempo para acabar as tarefas de hoje.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Sem energia, o termómetro

Nem sei se este é o terceiro ou o quarto dia de reclusão forçada. Será que a quinta-feira conta como reclusão? Quando descobri que o vírus tinha marcado encontro comigo já era noite e não fazia qualquer intenção de sair de casa. Acho que não vou contar esse dia. A relação com o vírus tem sido amistosa, apesar do PCR ter confirmado a situação. Não sei se é um dos sintomas ou apenas um dano colateral, mas ontem vi três filmes do Eric Rohmer, A Coleccionadora, O Joelho de Clara e Amor às Três da Tarde. Dizia para mim, estou com pouca energia, o melhor é ver um filme. Hoje, domingo de sol pouco exuberante, espero não me perder pelos fantasmas morais e eróticos do realizador. Sempre posso ver um filme, mas o melhor é não exagerar. Olho para a minha secretária e parece que sou um hipocondríaco. Não sou. Tenho, em cima dela, um termómetro, um oxímetro e um medidor da tensão arterial. Estar rodeado por tanta tecnologia digital mostra bem como sou um homem moderno, embora, confesso, dispensasse de bom grado o termómetro digital e voltasse para os braços do velho termómetro de mercúrio. Este termómetro irrita-me. Primeiro que o coloque em situação de medir a temperatura demora o seu bocado. Depois, posto debaixo do braço, devo retirá-lo quando ele der sinal, mas o pobre tem uma vozinha tão débil que muitas vezes nem consigo ouvi-lo. Por fim, acho que sofre de anemia. Devolve-me temperaturas na ordem dos 36, 35,5 ou mesmo dos 35 graus. Falta-lhe energia, para lidar com a realidade. Também a mim.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Antigénio e PCR

Está sol. Vejo-o através dos vidros da janela. Sou um isolado a tempo inteiro. Há alturas em que ando de máscara em casa, desinfecto as mãos antes de tocar em coisas que podem ser tocadas por outros. Ainda não recebi o resultado do teste PCR. Pode vir hoje ou, disseram-me, mesmo no domingo. E se der negativo? Não conheço nenhum caso em que um teste de antigénio feito em casa dê positivo e que o PCR o desminta, e eu não fiz um teste caseiro, fiz dois. O mais curioso de tudo isto é que escrevo antigénio e PCR com a maior das naturalidades, como se fossem coisas por mim conhecidas ainda antes de nascer, com o eram as Ideias ou Formas, segundo Platão. Ora, não faço a mínima ideia do que seja o antigénio ou PCR. Há muitas décadas, havia, numa certa escola que frequentei, um professor conhecido pelos os alunos como o Biótico. Os próprios alunos autodesignavam-se como antibióticos. Talvez o antigénio seja uma pilhéria de alguém contra os génios. Estas coisas nunca se sabem. Já o PCR faz-me lembrar a sigla de um partido político, o que se coaduna com a época de eleições em que estamos mergulhados. Vais votar em quem? No PCR, e tu? Seja como for, entre antigénios e PCR, tenho de estar confinado. As principais ocupações, até agora, são tomar paracetamol e beber água. Embora não esteja prescrito, o vinho não está proscrito, penso eu. Outra ocupação é escrever patetices, mas isso não vem de agora, nem tem por causa os testes positivos à COVID. É anterior. Tem-me animado não ter perdido o paladar. Sendo assim, posso meditar que tinto vou abrir para o almoço, que há-de chegar tarde, por circunstâncias exteriores ao actual estado de coisas. Mais logo, espero ver um novo filme de Eric Rohmer. Ontem vi dois, O Signo do Leão e Pauline na Praia. Não há nada como isolamentos e confinamento para alargar a cultura cinematográfica.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Positivo

Há pouco, com receita do SNS, fui a um laboratório para que me escarafunchassem o nariz. Tudo isto porque tive a ideia de deixar aqui em casa que me metessem uma zaragatoa pelas narinas e num passe de mágica tinha, perante os olhos, aquela coisa, por onde desliza um líquido imundo, com dois traços a vermelho. Positivo, exclamei. O melhor é repetir o teste, alvitraram. Respondi que não, que acreditava na veracidade do teste, mas lá anuí. Tornou a dar positivo. Em solidariedade comigo, a minha neta mais nova também testou positivo hoje de manhã. Uma coisa não tem a ver com a outra, pois já não nos vemos há umas semanas e ela está a mais de 100 km de distância. Até aqui, na família próxima tinham existido dois casos. Agora, já vão em quatro e talvez existam mais. Por causa das coisas, pedi que me comprassem um oxímetro. Pensei que fosse um investimento, pois parece que não livramos desta história nos próximos tempos. A sexta-feira tem estado luminosa, fazendo lembrar um belo dia de Primavera, mas não passa de um arremedo de sexta-feira. Tirando a saída para realizar o teste PCR, estou preso em casa, a tomar paracetamol. Enquanto a coisa for assim, não está mal. Aproveitei a manhã para ver A Minha Noite em Casa de Maud, de Eric Rohmer. Se tudo correr bem, tenho uns dias para dedicar ao cinema de Rohmer, para rever coisas já vistas ou para ver outras nunca vistas. Vamos lá ver se o vírus coopera.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Bibliopatologia

Na caixa de email, uma livraria online respeitável oferecia-me vários cursos, entre eles o de biblioterapia. Descobri que existem já biblioterapeutas que se propõem curar os maus hábitos dos portugueses relativos à leitura. Eu percebo que todos temos de ganhar a vida de um modo ou de outro, e trabalhar para criar hábitos de leitura noutros é profissão tão respeitável como qualquer outra. Aborrece-me a ideia subjacente de patologia. Não ler deixa de ser a ausência de uma certa virtude moral e passa a ser uma doença que é preciso tratar. Este tipo de abordagens tem por consequência eliminar a responsabilidade de cada um perante si e os outros e, concomitantemente, a liberdade. O acto de ler ou não ler deixa de ser uma escolha livre e passa para o domínio da saúde e da doença. Eu gostava muito de ler um livro, mas sofro da doença da não leitura, paciência. A liberdade passa então para outro domínio. Frequentar ou não uma biblioterapeuta. Serei virtuoso se, perante a falta de apetite pela leitura, me predispuser ao tratamento, e vicioso se recusar tratar-me. O problema que se coloca, porém, é se a recusa em se tratar não será também uma doença a exigir uma terapia específica. Como se pode observar, estou com uma enorme falta de assunto. Nada de notável para narrar. Minto. As orquídeas começam a dar sinais de vida. Algumas têm já vários botões. Ainda não temos um mês de Inverno e já por aqui se anuncia a Primavera. Talvez as orquídeas sofram de uma patologia temporal. Haverá terapeutas para esse mal?

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Caso perdido

Encontro sempre as mais mirabolantes justificações – ou desculpas – para gastar dinheiro em livros. No domingo, encomendei uma obra na FNAC online e hoje fui levantá-la à fnacquezinha que temos nesta pequena cidade. Trata-se da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, na tradução do professor Barata-Moura. Tenho a intenção de pegar no livro e entregar-me aos devaneios idealistas do senhor Georg Wilhelm Friedrich, ir da certeza sensível até ao saber absoluto? Nem por isso. Então, diz-me a consciência, por que raio compraste esse tijolo que exige mais três centímetros de prateleira? Porque tenho um coração inclinado ao patriotismo, respondi. A consciência, não se ficou e retorquiu, citando o celebrado dr. Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. Foi nisso que te tornaste? Por Deus, exclamei e passei à explicação. Temos um mercado de bens culturais escasso, muito escasso. Ora, sempre que é traduzida uma grande obra da literatura universal ou da filosofia – embora esta não seja outra coisa senão literatura – eu disponho-me a comprá-la, mesmo que não me disponha a lê-la. Isto por solidariedade com o tradutor e o editor. A consciência olhou-me de lado e perguntou-me se eu queria arruinar-me. Aqui eu sorri e perguntei, de forma enfática, arruinar-me? Em primeiro lugar, são escassas as grandes obras universais. Depois, ainda são mais escassas – e lentas – as suas traduções. Há tempo para recuperar de qualquer extravagância. O patriotismo está aqui, acrescento, no contributo para alargar o mercado de bens a que os portugueses não são particularmente sensíveis. A consciência encolheu os ombros e olhou-me como se eu fosse um caso perdido. Sou-o, claro, mas não mais que qualquer outra pessoa, real ou virtual.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Cura de águas

Leio que há quem pense, e propague aquilo que pensa, que beber água em jejum tem um extraordinário efeito curativo. Isto, para além de ser de prevenir as doenças que, caso não sejam evitadas, hão-de exigir uns quanto jarros de água matinais. Se pensa que as maleitas tratadas a água são daquelas que se curam com aspirina ou paracetamol, então está enganado. São doenças terríveis como a taquicardia, os problemas cardíacos, a diabetes, a meningite, o cancro. Não sei o que é mais espantoso, se a facilidade com que algumas pessoas acreditam seja no que for, ou a imaginação delirante que inventa estas curas milagrosas e tem artes para as propagar. Depois de dois séculos de triunfo do Iluminismo, as luzes da razão parece que estão fundidas e não há quem mude as lâmpadas. Se eu fosse estatístico e me entretivesse a recolher dados para com eles estabelecer correlações, tenho quase a certeza – mas ter quase uma certeza, ainda não é ter certeza alguma – de que existe uma correlação entre o crescimento do conhecimento racional e o crescimento da superstição. Não me atrevo, até porque hoje é domingo, a dizer que o desenvolvimento da potência da razão é, ao mesmo tempo, a causa do crescimento das aberrações da superstição. Se fosse um dia da semana, talvez tivesse coragem para o afirmar. Assim, pois hoje é domingo, restrinjo-me a uma mera sugestão. Não se pense que falo destas coisas por falta de assunto. Motivos para falar não me faltam, até porque tive ao almoço a visita do meu neto. Não veio só, claro, mas para um avô os netos vêm em primeiro lugar e brilham de tal maneira que ofuscam todo o resto. Quando ele está comigo entrego-me a actividades úteis, como fazer construções com o Lego ou corridas de automóveis, em vez de me deixar arrastar por estranhos pensamentos que me hão-de perder. A tarde avança a galope, não tarda chega o crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Amanhã, a realidade volta. Uma chatice. Vou beber um copo de água, talvez me cure da doença da realidade.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Política-gramática

O sábado sumiu-se. Rio-me da aliteração. Na prosa, dizem, deve-se evitar a aliteração, ao contrário da poesia. A verdade, porém, é que gostamos muito de regras. Umas ordenam, outras proíbem. Bem, dir-me-ão, isso não são regras, mas imperativos. As regras apenas aconselham. Concedamos que assim seja. Isto significa, contudo, que trazemos atrás de nós ou dentro da nossa consciência, o que vai dar ao mesmo, um conselho consultivo, cuja finalidade é alvitrar as regras a usar em cada instante. Hoje, devido a um desígnio imperscrutável, fui almoçar à Nazaré, praia a onde muito raramente vou. Julgo que desde a última vez que lá fui passaram vinte anos. No Sítio, antes de poder olhar para o vasto oceano deparei-me com uns carros de onde saíam pessoas com bandeiras. Eram de um partido que o líder de um outro classificou há dias como interjeição. Havia no cortejo qualquer coisa de melancólico, uma tristeza que só encontro nos circos pobres, com os seus artistas fanados e à beira do colapso. Seja como for, talvez seja uma boa introdução à política utilizar a gramática como fonte de classificação. Teríamos os partidos-interjeição, os partidos-adjectivo, os partidos-artigo definido ou indefinido, os partidos-substantivo, os partidos-conjunção, os partidos-advérbio, os partidos-verbo. Neste caso, uns seriam partidos-verbo de encher e outros partidos-verbo de despejar. Toda a política seria uma política-morfológica e, quando se tratasse de alianças e oposições entraríamos na política-sintaxe. Seja como for, não estou autorizado pelo autor a emitir opiniões políticas. Um narrador, ouço-lhe constantemente, não tem opinião política, embora nunca me tenha falado da política-gramática. No restaurante, encontrei um casal conhecido com a família, onde pontuava uma bebé de dois meses. Eles recém-promovidos à categoria de avós pareciam pairar sobre os mortais. Compreendo-os muito bem. Não há na hierarquia familiar estatuto como esse, nem aliteração ou assonância que o ensombre, ao estatuto.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Atacadores

As sextas-feiras chegam e partem a uma velocidade galopante. Parecem cavalos de corrida e nós, seres humanos, não passamos de infelizes jockeys que não sabem se conseguem equilibrar-se no cavalo, quanto mais refreá-lo, fazer com que o animal se contenha num passo vagaroso.  Passei o dia envolto em assuntos que embora não sirvam para grande coisa – na verdade, não servem para nada – me são exigidos pela dura necessidade. A azáfama impediu-me de ter assunto para narrar, pois aquilo que me azafamou é inenarrável. Se quero contar uma ou outra aventura, desta gesta cavaleiresca que é a minha vida, tenho de voltar ao dia de ontem. Consegui, por fim, comprar uns atacadores. Desesperava. Sempre podia recorrer à internet e encomendar um par de cardaços, como se diz no Brasil, à marca dos sapatos, que por acaso é americana. O problema é que não me apetecia dar seis euros por umas coisas para fazer laços, para além dos custos de envio. Não é que tenha inclinação de forreta. Não tenho, mas achei imoral o preço. Investiguei descobri um sapateiro perto de casa. Tem atacadores, perguntei. Tenho vários, o que quer? Lá expliquei. Perguntou-me o comprimento. Disse que os quero substituir medem 89 cm. Não pode ser, não existem com esse tamanho. Tenho de 90. Óptimo. Devo ter medido mal, acrescentei, e perguntei quanto era. Um euro, ouvi. Sabe quanto me pediam na marca? E lá debitei os seis euros. O homem ficou de cara ao lado, como se aquilo fosse uma ofensa. Depois, acrescentou: e se calhar são tão bons quanto estes. Não, são piores, pois os meus ficaram em frangalhos em pouco tempo. Esta conversa que não interessa a ninguém tem, contudo, várias lições sobre a moral, a economia e, também, acerca do valor de ter um sapateiro perto de si. Podia contar outras histórias, mas para hoje chega. Sempre é sexta-feira.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Uma incógnita irresolúvel

Há experiências que não são fáceis. Não sei como acomodar em mim ver definhar, no meio de uma demência galopante e de uma degradação física sem retorno, alguém que foi activo, com poder de iniciativa e capacidade de ordenar a vida à sua volta. A realidade sempre me pareceu uma coisa perversa. Mesmo quando ela se apresenta como benévola e geradora de alegria e esperança, esconde o terrível. Muitas vezes lamentamos a ordem moral do mundo, o triunfo do mal sobre o bem. Não menos lamentável, porém, é a ordem da natureza, na qual a vida está assente no alicerce da dor. Nem uma longa conversa com o padre Lodo me retirou do coração o sentimento de impotência perante a realidade. Não é que o meu amigo, apesar de sacerdote, se proponha a um fácil discurso consolatório. Pelo contrário, há nele qualquer coisa que parece estar para além da religião que decidiu abraçar, um fundo trágico, herdado da antiguidade. As leituras dos trágicos gregos, sobre os quais temos longas conversas, inscreveram nele uma marca indelével. Ou talvez o próprio cristianismo se funde numa tragédia, apesar da promessa da ressurreição da carne. Da aparelhagem escorre uma música do Tingvall Trio com o nome Memory. O problema, porém, é que mesmo uma memória poderosa e dada à minúcia não resiste ao galope da demência, de tal modo que chega a não reconhecer os próprios filhos, pergunta-lhes quem são. Chegam os ecos de uma conversa online entre avó e neta. O assunto? A Matemática, a resolução de exercícios, a determinação do x, mas talvez, por mais que se tente, o x seja eternamente irresolúvel, uma incógnita contumaz que nunca deixará que lhe retirem o véu.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Inconfiáveis

Amanhã preciso de ir a um sítio onde me é exigido um teste negativo à COVID. Por isso, lá fui mais uma vez submeter-me ao império da zaragatoa. Agora, que a noite já desceu e segue firme pelas horas dentro, estou à espera do resultado. Nem percebo por que razão o veredicto não é dado logo, pois os testes antigénio feitos em laboratórios ou farmácias não me parecem diferentes daqueles que fazemos em casa. O que muda é a certificação. Não somos seres confiáveis e, por isso, em vez de estarmos em casa a introduzir a zaragatoa pelas narinas até tocar na raiz do cérebro, temos de nos submeter a terceiros para obter o certificado de bom comportamento. No fundo, somos todos o Pedro da história de Pedro e o Lobo. Não a de Prokofiev, mas a que é atribuída a Esopo (bem, já não me lembro se o pequeno pastor desta história se chamava Pedro). Somos todos uns alegres mentirosos a que ninguém leva a sério. Pelo menos três pessoas que eu conheço decidiram ir ao estrangeiro e deixaram-se contaminar pelo vírus. Descobertas quando queriam retornar à pátria, estão agora retidas até se descontaminarem. Há uma estranha sensação no ar. Conforme cresce o número de contaminações, as pessoas agem como se a pandemia estivesse a acabar, como se ela não fosse mais que um fogo-de-artifício, que acaba sempre em apoteose. Continuo à espera do resultado da zaragatoada. Será que me trocaram as letras do email?

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Uma questão de tamanho

Há pouco lembrei-me de um título de um filme dos irmãos Cohen, que também é título de um dos romances de Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Isto a propósito de uma insidiosa forma de exclusão que os livreiros decidiram pôr em marcha, para afastarem da sua clientela pessoas cuja idade já não permite ler com conforto, apesar dos óculos, letras minúsculas com que decidem imprimir os livros, que esperam vender. Por motivos que não vêm ao caso, decidi abrir o livro Palácio de Cristal, de Peter Sloterdijk. Quando me predispunha a ler umas páginas, sinto-me expulso da leitura e quase ouvi o editor murmurar este livro não é para velhos. Se me fosse permitida a política, haveria de organizar um movimento para regular o tamanho das letras que formam palavras com que são construídos os livros. O regulador assegurar-se-ia de que nenhum livro seria impresso sem que as letras tivessem um certo tamanho, pois aqui o tamanho conta. Para evitar exclusões, entenda-se. Esta, porém, não foi a minha grande aventura de hoje. Ao chegar à porta do prédio onde vivo, digito o código de entrada e nada. Olhei para o dispositivo com olhar de quem pede esmola, mas ele manteve-se impávido e comprometido com a sua decisão de não cooperar com os moradores. Vou ao molho de chaves que arrasto comigo e, depois de algumas experiências, descobri que não tinha chave da porta de entrada. Como um cão abandonado, fiquei à porta aguardando que alguém saísse do prédio para eu entrar. Agora, tenho outra aventura. Onde estará a chave que eu deveria ter? O melhor é ligar para o condomínio e pedir que me façam outra. Isto, se não me esquecer. Como se vê, o mundo existe apenas para desfazer os nossos planos, para se rir dos nossos possíveis mais próprios. Esta última frase, além de ridícula, era dispensável, mas ninguém pode deixar de ser quem é.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Uma assinatura

A data é 11/3/56, por cima da data está uma assinatura. Quando a vi desconfiei que tinha comprado um livro que merece ser guardado. A história é simples. Adquiri online o romance Homens Sem Caminho, de Castro Soromenho, uma segunda edição. Há uns tempos comecei a juntar – não sou, na verdade, um coleccionador – romances portugueses que ninguém lê. Vou comprando ao sabor da minha disposição. Os livros em segunda mão trazem, por vezes, ecos dos antigos proprietários. Dedicatórias, apontamentos, notas à margem, comentários. Este tinha apenas uma data e a assinatura do proprietário. Aliás, a assinatura resume-se apenas ao apelido, Vespeira. Ora, este é o nome de um conhecido pintor surrealista, um dos artistas mais importantes do chamado terceiro modernismo português. Fui à procura na Internet de reproduções de quadros dele e confirmei que a assinatura que consta no livro é exactamente igual à que ele punha nos quadros. Não tenho um quadro de Vespeira, mas tenho um livro que foi dele, que o comprou ainda antes de eu nascer. Não se pode ter tudo. Marcelino Vespeira morreu em 2002, há quanto tempo terá sido vendida a sua biblioteca ? Quanto a Castro Soromenho, a este nunca o li. A sua ambiência narrativa é o mundo colonial português. Foi muito traduzido e, no seu tempo, era uma personagem literária respeitadíssima. Hoje, pouca gente terá ouvido falar dele. Portugal mata a memória dos seus escritores a uma velocidade estonteante.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A imobilidade

Há domingos que não sei o que fazer com eles. Parecem uma suspensão inútil por dentro da pedra dura da realidade. Tivesse-me sido dada uma ciência infusa sobre a textura dos dias da semana, esta ignorância não teria lugar. Ainda não me aventurei no frio que cobre a cidade. O céu apresenta-se vestido de múltiplos matizes de cinza, desde a quase negra, até à quase branca, mas as nuvens parecem imóveis, só o tempo, com a sua espada de cristal, corre, sem necessidade da energia do vento. Na praceta, três homens, sem máscara, rodeiam uma moto. Há capacetes no chão. Um deles passa a mão pelos cabelos, outro dá passos à volta do veículo. O terceiro esgueira-se pela rampa que dá acesso às garagens de um prédio. A quietação celeste foi perturbada pelo voo de dois pássaros. Na avenida, pessoas vão devagar, cobertas de Inverno. Uma rapariga, quero dizer uma mulher ainda nova, vai atrelada a um pequeno cão. Visto de cima, o animal parece vestir um pulôver sem mangas. Caso a mulher nova – no Brasil, o termo rapariga é mal-afamado – seja brasileira, então o cão há-de estar com um suéter, que é o que por lá chamam ao pulôver. Fico sempre espantado com as coisas inúteis que sei, embora devesse ficar ainda mais, mas não fico, com as coisas úteis que desconheço. Segundo algumas opiniões, a que não me atrevo contestar, todas as coisas que sei pertencem à categoria da inutilidade. Os homens continuam a conferenciar. Alguma coisa terá acontecido ao motociclo. Um dobra-se e examina o motor, outro corre, de novo, pela rampa que dá acesso à garagem. A moto, como as nuvens no céu, continua imóvel, mas o tempo não pára de passar.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Susceptibilidades

O dia começou mal. Não bastava ter-me levantado tarde, coisa que está fora dos meus hábitos há muito, tive um desagradável encontro com a balança. A coisa – para não usar uma qualificação mais desagradável – teima em continuar a afrontar-me devolvendo-me pesos insultuosos sempre que a piso. Talvez ela fique ofendida por ser pisada. Quem gosta, nesta vida, de ser pisado? Os dispositivos – e não apenas as balanças – são seres muito susceptíveis. Ontem, por exemplo, o GPS do telemóvel ficou muito irritado e decidiu gozar com os pobres passageiros do carro. Depois de passar uns dias em Coimbra com as minhas netas, no retorno decidimos levá-las a Conimbriga. Era o fim do passeio cultural. Ligada a aplicação, a senhora que fala dentro do aparelho lá foi dando indicações. O problema é que falhei uma curva à esquerda e ela em vez de me mandar voltar para trás, continuou a dar indicações, metendo-nos a todos por aldeias inverosímeis e, não contente com isso, por estreitos caminhos do campo, terra batida, buracos cheios de água, instigando-nos sempre para a frente, ou para a direita, ou para a esquerda. A certa altura comecei a desconfiar que estava a ser literalmente gozado, fiz inversão de marcha e mandei calar a senhora. Na primeira aldeia, perguntei o caminho, como se fazia antigamente, e lá cheguei às ruínas. Não tenho certeza se as netas gostaram mais das ruínas ou da aventura de andarem perdidas pelos campos, sem saber se chegariam a algum lado. Como se vê, e esta era a minha tese, os dispositivos são seres muito sensíveis, impiedosos e vingativos. Agora, estou a ouvir Fado de Coimbra, pois ao descer da Universidade para a baixa da cidade, encontrei uma casa dedicado à canção coimbrã e decidi comprar dois CD. Tenho de os ouvir pelo menos uma vez.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Balanços e rebeliões

Ainda não nos despedimos do tempo das contabilidades. Na comunicação social, surgem todos os dias os balanços, o deve e o haver. Há quem fale de que se deve deixar de contabilizar os infectados, mas contar apenas aqueles que desenvolvem doença grave que conduza à hospitalização. Mesmo que venha a ser assim, a contabilidade continuará a ter lugar no espaço público. Há muito que a estatística se interessa por todos os tipos de fenómenos sociais, agora, porém, ela tornou-se uma atracção pública. Talvez esta exposição dos números tenha contribuído até aqui para que eles não sejam mais altos. Como se pode observar, estou com evidente falta de assunto, apesar do dia ter estado agradável e não me faltarem aventuras para narrar. A questão, porém, é que urdir uma trama narrativa exige estar voltado para esse lado. Ora, até um narrador tem direitos, e um dos direitos mais importantes é recusar-se a narrar, uma espécie de direito à rebelião, como aquele que um filósofo do século XVII, tido por pai do liberalismo, reconheceu aos povos submetidos à tirania. Apesar da paternidade de tão ilustre filho, ele possuía curiosas convicções sobre a tolerância. Por exemplo, advogava que as diversas igrejas, desde que não se metessem em política, deveriam ser toleradas, com excepção da Igreja Católica. Também os ateus não poderiam ser tolerados. Podia narrar as razões que lhe atormentavam o espírito para que o pai da tolerância fosse intolerante, mas não me apetece. A noite está a cair, e há coisas que é melhor não falar à noite. Estive a ver uns exemplares da revista Paris Match do ano que nasci, havia mesmo um do dia em que vim ao mundo. A experiência é devastadora. Se aquele era o meu mundo, então este já não é. Talvez existem diversos mundos possíveis que possam coabitar uns com os outros. Talvez. Seja como for, a revista custava à época 50 francos em França e, neste cantinho esquecido dos deuses, 8$50. 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Ausência de espírito

Devia ter tirado uma fotografia, mas esqueci-me. Ontem estiveram cá todos os meus netos. O reboliço, porém, ocupou-me a mente e nem me ocorreu o exercício fotográfico. A isto chama-se, julgo, falta de presença de espírito. Quem tem o espírito presente não falha oportunidades, como os grandes jogadores de futebol não falham golos com a baliza aberta. Não é bom sintoma começar a fazer analogias com o mundo obscuro da bola, até porque dele sei pouco ou, para ser mais exacto, nada. Para além de não ser dotado com oportuna presença de espírito, cheguei a uma fase em que mesmo aquilo que me visita o espírito se varre num abrir e fechar de olhos. Imagine-se que se tem a intenção de levar o objecto X para o lugar Y, mas antes há que fechar a janela Z. Fechada a janela, já o X e o Y entraram naquele limbo de onde hão-de sair, se saírem, daí a umas horas. Ontem, tive de fazer cara feia ao meu neto. Parece divertir-se imenso em pegar num objecto – seja o brinquedo W – e atirá-lo ao ar, o que tem sempre a grande possibilidade ou de cair em cima da cabeça de alguém ou de partir qualquer coisa. Ele ficou muito sério e prometeu não continuar a verificar se a gravidade funcionava, embora não creia que tenha ficado convencido de que atirar coisas ao ar não é um belíssimo passatempo ou uma óptima experiência com a qual ele poderia aprender uma pouco de Física. Na idade dele, porém, explicações para pouco servem, mais vale uma cara feia. Como paga, ele mascarou-se de monstro e passou longos minutos a assustar-me. Vendo-me assustado, tirava a máscara e dizia sou eu avô, e recomeçava. Hoje, quando me levantei, estava uma bela manhã, mas a beleza logo começou a declinar. O azul dos céus tornou-se cinzento e as ruas ficaram mais soturnas, como se cheirassem a mofo. O tempo passa.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Corpo conservador

Ainda não me habituei a escrever o último dois de 2022, os dedos fogem sempre para o um. Isto será uma prova de que o corpo, comandado pelo cérebro, tem uma inclinação conservadora. Fora ele revolucionário, eu escreveria, automaticamente, 2023 ou mesmo 2024. Caso, porém, o corpo fosse reaccionário, os dedos haveriam de escrever 1821 ou 1822. Recusar o ano em que se está é um sintoma de conservadorismo, um caso daquilo a que vulgarmente se chama instinto de conservação. O tempo não nos mata, mas traz com ele aquela que nos há-de ceifar. Poderia ter escolhido uma metafórica mais criativa, mas estou cansado. Tive de sair de casa para pôr o telemóvel de uma das minhas netas a consertar. Aproveitando a saída, dirigi-me à Fnac – aqui, apesar da dimensão risível da cidade, também há uma loja Fnac, assim haveremos de nos julgar menos provincianos – para levantar um livro que tinha encomendado online. Por desfastio, comprei mais três. Vim carregado de poesia e mesmo assim não encontro imagens dignas de registo. Como antes de sair de casa ouvi sempre podias ir levantar-me as calças que foram emendar as bainhas e, é mesmo ao lado, podias trazer um chouriço de carne, lá fui em demanda das calças reembainhadas e do chouriço de carne – atenção, não seja gordo, ouvi ainda – e, também por desfastio, passei pela zona dos vinhos, o que é sempre uma visita aprazível. Entre livros de poesia e garrafas de tinto do Douro, trouxe para casa não sei quantos produtos que, ao sair, nem tinha imaginado comprar. É assim que uma pessoa cede aos imperativos da sociedade de consumo. Fora eu um asceta rigoroso, um monge de estrita obediência, nem poesia nem vinhos, apenas água pura e um livro de orações coçado pelo uso, mas não sou. A minha neta mais nova está a choramingar, embora sem abundância de lágrimas. As sessões de Matemática dela com a avó – com a outra neta a função é mais apaziguada – têm uma coloração bergmaniana, dão sempre em lágrimas e suspiros. É a vida das marionetes, pensei.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Estamos em 2022

Estamos todos mais descansados. Afinal, sempre existe o ano de 2022. Chegou por aqui entre fogo-de-artifício, pessoas a brindar e outras submetidas àquela terrível provação das doze passas e não sei quantos desejos. Estava para passar as passas, mas como eram bastante boas, acabei por cumprir o ritual enquanto fazia videochamadas para a família. Na azáfama, esqueci-me dos desejos. Quando meditei nessa falta, concluí que fora o melhor. O mais sensato é não desejar nada. Até, porque, passados uns minutos uma pessoa esquece-se daquilo que desejou e não tem hipóteses de verificar experimentalmente se a conexão entre passas e desejos formulados funciona. Apesar de me ter deitado a hora muito razoável, levantei-me tarde, coisa a que não estou habituado e torna o dia um pouco zanaga. Não imagino por que razão esta palavra me surgiu. Os dias não têm olhos, logo não podem ser zanagas. Talvez nos olhem de lado. É uma hipótese, mas de confirmação tão difícil de testar quanta a da causalidade entre passas e realização de desejos. Estou preocupado comigo. O que me terá dado para fazer estas referências, já são duas, ao método científico. As notícias são animadoras. Uma equipa de cientistas portugueses – mais uma vez a ciência – desenvolveu um nariz electrónico que consegue detectar odores apesar da humidade. Parece que esta é inimiga da captação de aromas. Por falar em aromas, recordei-me que a palavra é usada para designar certos produtos químicos adicionados industrialmente a alimentos para lhes dar determinados sabores. Como se vê, até a indústria mais soturna tem um lado poético. Seja como for, estamos em 2022, na noite do seu primeiro dia. Nem sempre é fácil constatar a realidade.